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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.3 Rio de Janeiro sept./dic. 2018

 

ARTIGOS

 

Apropriação do espaço e psicologia histórico-cultural: reflexões e apontamentos para possíveis aproximações

 

Appropriation of space and cultural-historical psychology: reflections and notes for possible approaches

 

Apropiación del espacio y psicología histórico-cultural: reflexiones y apuntes para posibles aproximaciones

 

 

Ricardo Lana PinheiroI; Ana Paula Soares da SilvaII

IDoutor em Ciências - área de concentração: psicologia - pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Ribeirão Preto. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de reflexões produzidas no âmbito de uma pesquisa de doutorado que buscou compreender a constituição do professor em contexto rural, o artigo propõe uma aproximação inicial dos conceitos de apropriação do espaço e da perspectiva histórico-cultural de vertente Vigotskiana. Argumenta-se que a base marxiana dessas perspectivas permite um diálogo que pode favorecer desenvolvimentos mútuos. Apesar desta base, as elaborações contemporâneas do conceito de apropriação do espaço na Psicologia não se beneficiam de suas contribuições. Defende-se que, se por um lado a perspectiva Vigotskiana permite melhor incorporar ao conceito de apropriação do espaço a relação fenomenal da vivência do sujeito e aspectos desenvolvimentais, o conceito de espaço força um detalhamento e uma especificação do que é genericamente definido como meio. O artigo argumenta assim a favor da necessária incorporação da dimensão espacial para pensarmos a constituição do sujeito.

Palavras-chave: Psicologia histórico-cultural; Apropriação do espaço; Constituição do sujeito.


ABSTRACT

Based on reflections produced in a doctoral research that aimed to understand the teacher's constitution in rural contexts, this article proposes an initial approaches of the concepts of appropriation of space and of the cultural-historical perspective of Vygotsky. It is argued that the Marxian basis of both perspectives allows a dialogue that can foster mutual developments. Despite this basis, the contemporary elaborations of the concept of appropriation of space in Psychology do no profit from its contributions. It is argued that if, on the one hand, the Vygotskyan perspective allows a better incorporation of the phenomenal relation of the subject's emotional experience and developmental aspects to the concept of appropriation of space, the concept of space enforces a detail and a specification of what is generically defined as environment. The article thus argues in favor of the necessary incorporation of the spatial dimension when the constitution of the subject is addressed.

Keywords: Cultural-historical psychology; Appropriation of space; Constitution of the subject.


RESUMEN

A partir de reflexiones producidas en el ámbito de una investigación de doctorado que buscó comprender la constitución del profesor en contexto rural, el artículo propone una aproximación inicial de los conceptos de apropiación del espacio y de la perspectiva histórico-cultural Vigotskiana. Se argumenta que la base marxiana de estas perspectivas permite un diálogo que puede favorecer desarrollos mutuos. A pesar de esta base, las elaboraciones contemporáneas del concepto de apropiación del espacio en la Psicología no se benefician de sus contribuciones. Se defiende que, si por un lado la perspectiva Vigotskiana permite mejor incorporar al concepto de apropiación del espacio la relación fenomenal de la vivencia del sujeto y aspectos desarrollistas, el concepto de espacio fuerza un detalle y una especificación de lo que es genéricamente definido como medio. El artículo argumenta así a favor de la necesaria incorporación de la dimensión espacial para pensar la constitución del sujeto.

Palabras clave: Psicología histórico-cultural; Apropiación del espacio; Constitución del sujeto.


 

 

Introdução

Este artigo tem o objetivo de traçar reflexões teóricas que colaborem para articulações entre a psicologia histórico-cultural, em especial as contribuições de Vigotski (Vigotski, 1926/2001; 1927/2004; Vigotski, 1931/2012a) e o conceito de apropriação do espaço, oriundo das elaborações contemporâneas de Pol e colaboradores (Pol, 1996; Valera, Guàrdia, & Pol, 1998; Vidal, & Pol, 2005). Este interesse surgiu no desenvolvimento de uma pesquisa de doutorado que buscou apreender o processo de constituição do professor do campo e sua relação com apropriação do espaço rural.

O conceito de apropriação do espaço tem sido apresentado como capaz de dar conta dos processos mútuos que ocorrem entre a constituição do sujeito e os espaços por eles vividos, de forma a contemplar, ao mesmo tempo, a identificação e a transformação dos sujeitos e espaços e sua dinâmica de inter-relação no decorrer do tempo. Argumenta-se aqui que, embora bastante profícuo, haveria a necessidade de problematizar ou complexificar este conceito a partir de alguns referentes da psicologia histórico-cultural. Por outro lado, esse interesse de articulação, para além da exploração e da experimentação conceituais, decorre do reconhecimento de que, na origem do conceito de apropriação do espaço, repousa uma base marxiana, também presente na construção teórica de Vigotski (Graumann, 1976). Defende-se que a incorporação de conceitos vinculados à apropriação do espaço pode contribuir para desenvolvimentos da perspectiva histórico-cultural, em especial na compreensão das diferentes escalas implicadas na relação sujeito-meio e que o resgate da fundamentação Vigotskiana no conceito de apropriação do espaço pode fornecer-lhe novas possibilidades de leituras teóricas na contemporaneidade.

 

O conceito de apropriação do espaço

O interesse pelo espaço na Psicologia, em particular nos anos mais recentes, poderia ser cogitado como resultado do chamado giro espacial (Carlos, 2015; Velázquez Ramírez, 2013), que assume que as existências são espacialmente situadas e dá ao espaço centralidade na explicação de produções e processos sociais.

A apropriação do espaço tem sido tratada, principalmente no âmbito da Psicologia Ambiental, por Pol et al. (Pol, 1996; Vidal, 2002; Vidal, & Pol, 2005), como forma de superar um conjunto de conceitos, de diferentes perspectivas teórico-metodológicas, que busca dar conta da relação entre pessoa e espaço, alguns deles elencados por Vidal (2002): topofilia (Yi-Fu-Tuan); dependência do lugar (place dependence) (Stokols); identidade de lugar (place identity) (Proshansky, Fabian e Kaminoff); sentido de lugar (sense of place) (Hay), satisfação residencial (Amérigo); satisfação e sentido de comunidade (sense of community) (Hummon); identidade urbana (urban identity) (Lalli); identidade social urbana (Valera e Pol); espaço simbólico urbano (Valera, Guàrdia e Pol); apego ao lugar (place attachment) (Altman e Low).

A proposição do conceito de apropriação do espaço por Pol (1996) é uma síntese criativa que busca incorporar as discussões implicadas na relação pessoa-espaço. No delineamento de sua perspectiva, Pol (1996) refere-se à contribuição de Marx nos estudos que lhe inspiraram, em especial ao processo de apropriação, bem como às influências de Heidegger e Henri Lefebvre.

Na discussão sobre o conceito de apropriação do espaço, Graumann (1976) recupera a origem marxiana da concepção de apropriação. Para o autor, a apropriação aparece, na obra de Marx, como uma retomada crítica das contribuições de Hegel. Marx parte da compreensão de que o ser humano se desenvolve em um meio social marcado pelas produções construídas historicamente, sendo o trabalho a força motriz essencial dos processos sociais. O produto do trabalho é a objetificação do humano no mundo, a sua exteriorização. As gerações anteriores deixam seus produtos como marcas objetivas nesse mundo, sendo que o desenvolvimento das capacidades humanas, por sua vez, decorre da apropriação desse produto e das capacidades ou aptidões no seu uso. O indivíduo, no processo de dominação da natureza para satisfação de suas necessidades, dela se apropria, assim como dos instrumentos e das formas de com ela lidar. Se esta perspectiva recupera a relação do indivíduo com o produto da história, ela também atribui um sentido social à apropriação, uma vez que a sociedade preserva e transmite suas produções através das gerações (Marx, 1844/2009). Nesse sentido, toda apropriação individual é constituída pelo que os outros, predecessores na história, apropriaram-se e deixaram como herança a ser transmitida, o que se insere, na perspectiva de Marx, na lógica segundo a qual a própria consciência humana decorre de processos histórico-sociais construídos na história (Marx, & Engels, 1845-46/2001).

Ou seja, na história, o ser humano explora os materiais, capitais e forças produtivas herdadas das gerações precedentes, o que configura certa continuidade das organizações e formas de ação social, mas em circunstâncias diferentes, o que também as relacionam com as alterações ocorridas nas atividades humanas no decorrer do tempo (Marx, & Engels, 1845-46/2001). Essa dinâmica de pensamento se funda na ideia de superação dialética, emprestada de Hegel, que é "simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a conservação de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior" (Konder, 2008, p. 25). Dessa forma, as novas formações trazem em si elementos do anteriormente existente, ao mesmo tempo em que há diferenças fundamentais, que, para Marx, decorrem do trabalho realizado enquanto atividade humana.

Com base nessa ideia, Graumann (1976) ressalta a aproximação entre o termo apropriação, no alemão, e o termo educação, entendido numa perspectiva ampliada. Assim, para Marx, o sujeito se apropria do mundo objetivado a partir de determinadas formas e normas sociais, de modos de pensar, sentir e agir (Marx, 1844/2009). Assim, toda apropriação tem caráter social, refletindo aspectos da sociedade do momento histórico. Esse aspecto reforça que a apropriação não se dá com relação ao objeto em si, mas às significações decorrentes dos modos de apropriação do grupo social e das condições concretas de que o sujeito dispõe. Para Graumann (1976), na Psicologia, Vigotski teria sido um dos primeiros a utilizar o termo apropriação, em especial ao abordar a relação entre pensamento e linguagem, seguindo a linha de pensamento acima descrita.

Ao abordar o conceito de apropriação do espaço, Serfaty-Garzon (2003) diz que a concepção de apropriação carrega duas ideias principais: a de adaptação de alguma coisa a um uso ou destinação definida; a de tornar alguma coisa própria, que decorre da primeira. É esta definição do tornar algo próprio que diz da constituição dos sujeitos e que especialmente fundamenta os desenvolvimentos do conceito de apropriação do espaço; para a autora, este tornar algo seu quer dizer adaptá-lo a si, transformá-lo em uma expressão de si, o que faz com que a apropriação seja, ao mesmo tempo, uma apreensão do objeto e uma dinâmica de ação subjetiva sobre o mundo material e social - ao mesmo tempo em que a pessoa se apropria do espaço, o espaço também teria caráter "apropriante", apropriando-se do sujeito (Villela-Petit, Quan, Robin, & Vidal, 1976).

Também está na base do conceito a ideia de que pessoas têm distintas possibilidades de apropriação devido a diferenças de condições socioeconômicas, o que leva à consideração não apenas dos processos de apropriação do espaço, mas também de "desapropriação" ligada a desigualdades sociais (De Lauwe, 1976) e, neste sentido, podemos dizer que existe uma relação indissociável entre apropriação e alienação do espaço.

Pensando estas contribuições de forma articulada, Pol (1996) compreende que o ser humano, assim como a maioria dos animais, necessita delimitar seu espaço, marcar seu território, fazendo-o de forma mais sofisticada que os outros animais. Uma vez que se fazem presentes elementos simbólicos na relação com o espaço, nesse movimento, o território constitui referenciais transitórios, visto que estão em movimento, mas também, ao mesmo tempo, minimamente estáveis, capazes de ancorar os processos dinâmicos da vida e de construção da identidade pessoal. O movimento do sujeito transformar o espaço por meio de suas ações e, ao mesmo tempo, deixar-se levar pelos referentes do lugar, é chave para o processo de apropriação do espaço, através do qual, no passar do tempo, um espaço "vazio" se torna um "lugar" com sentido. De acordo com Pol (1996), o espaço não tem sentido meramente funcional, mas sintetiza um resumo das experiências do sujeito, dando a este uma projeção no tempo e ancoragem para certa estabilidade de si, na dialética constante entre transformação e permanência.

O conceito de apropriação do espaço é definido, assim, a partir de um modelo dual que envolve a ação-transformação do sujeito e do espaço e a identificação simbólica relacionada a aspectos afetivos, interativos e cognitivos da relação da pessoa com o espaço (Pol, 1996; Vidal, 2002; Vidal, & Pol, 2005). Para os autores, ao agirem, as pessoas transformam o espaço e, ao mesmo tempo, incorporam-no em seus processos cognitivos e afetivos, de forma sempre ativa, atualizada e significativa. Nessa lógica, através da identificação simbólica, a pessoa se reconhece no espaço, atribuindo qualidades do entorno às suas identidades e suas atividades.

Pol (1996) relata que há certa sequencialização e um movimento cíclico nos processos de apropriação do espaço, sendo a apropriação por ação-transformação mais primária e aquela por identificação simbólica mais elaborada, mas esta última, por sua vez, em seus aspectos interativos, se transforma em uso do espaço, conduta territorial e, assim, ação-transformação. A apropriação é, assim, um processo circular. Este processo é mutável, instável, mas, segundo o autor, paradoxalmente, na medida em que constitui a identidade e a autoimagem do sujeito, também garante continuidades que se tornam mais estáveis com o passar do tempo, levando inclusive a certa resistência a mudanças em espaços com os quais há forte identificação pessoal (Pol, 1996).

Outros elementos destacados por Pol sobre a apropriação do espaço decorrem de elaborações de Sansot (1976), que argumenta que a apropriação ocorre devido a processos de significação que não necessariamente estão ligados a uma prática e que dá uma ênfase ao aspecto afetivo: nós nos apropriamos de algo (como a cidade) se há identificação, em termos de aceitação ou recusa. No conceito de apropriação do espaço, há uma dimensão temporal importante, segundo a qual, inicialmente, a ação se sobrepõe à identificação com o espaço e, em texto mais recente, Benages-Albert, Di Masso, Porcel, Pol e Vall-Casas (2015) colocam que o primeiro ponto da relação com o espaço diz respeito a respostas estéticas, relacionadas ao capturado pelos sentidos (encantamento ou repulsa, por exemplo), seguido por um apego ao lugar e, finalmente, por comprometimento com o espaço (essa linha é acompanhada por maior identificação com o espaço).

Vidal (2002) associa à identificação simbólica a criação ou construção do significado do espaço que é considerado próprio, de onde decorre a implicação pessoal ou grupal com o local. Nesse processo, o tempo aparece por meio de elementos de interações passadas (vividas diretamente ou interiorizadas por outras vias históricas e culturais) e também futuras, potenciais, além de gerar uma ligação com o local, o que facilitaria condutas responsáveis e a participação no entorno; o espaço apropriado promoveria a coesão grupal e a participação em termos de projetos para o futuro e a defesa do território (Benages-Albert et al., 2015; Berroeta, Ramoneda, Rodriguez, Di Masso, & Vidal, 2015; Pol, 2000). Dessa forma, o entorno apropriado tem papel fundamental de referência nos processos cognitivos, afetivos, de identidade pessoal e grupal.

 

Psicologia histórico-cultural Vigotskiana

Vigotski (1896-1934) buscava a superação das compreensões reducionistas que considerava imperarem em sua época, que configuravam o que ele denominava como a crise da psicologia, e o faz a partir da tradição marxiana, com um olhar dialético, processual e dinâmico da subjetividade e do desenvolvimento humano (Vigotski, 1927/2013). Esta lógica permeia todo o seu trabalho e incide também nos entendimentos da relação sujeito-meio, sobretudo em obras do final de sua vida em que discute tal relação. Ressaltamos que meio é o termo presente nas traduções para o português e, por essa razão, o utilizaremos ao nos referir à produção do autor. Vigotski não traz uma definição para o que concebe como meio, porém ressalta que seu estudo se dá não por suas características em si, mas pelo que desempenha no desenvolvimento da criança, seu papel e significado (Vigotski, 1934/2010). Segundo Pino (2010), o termo russo sredá, utilizado por Vigotski, designa tanto as condições naturais quanto as culturais, criadas pelo homem. O autor argumenta que, em Vigotski, o conceito de meio é vago, sendo aplicável às condições ambientais de qualquer organismo, podendo "ser entendido como condições básicas comuns de existência" (Pino, 2010, p. 742) e, ao mesmo tempo, específico, compreendendo as alterações realizadas pelos organismos no meio a partir de suas condições e necessidades peculiares.

Para Vigotski (1926/2001), o desenvolvimento do ser humano se dá a partir de sua relação com contextos sociais, mediada por outros e por signos sociais - pela produção realizada pelo ser humano em sua história, que é compartilhada por meio de processos de aprendizagem (Baquero, 1998; Pino, 2013).

O fio explicativo desse processo de constituição do tipicamente humano, das funções psicológicas superiores, é o conceito de mediação, que é central na teoria de Vigotski (Molon, 2009; Oliveira, 2010; Vigotski, 1927/2004; Wertsch, 1985) e mostra a primazia da cultura no desenvolvimento humano. Para o autor, a relação do homem com o mundo não é direta, de estímulo-resposta linear, mas mediada por elementos dirigidos tanto externa quanto internamente, que alteram a relação do sujeito com o espaço. Os elementos orientados a ações externas correspondem aos instrumentos ou ferramentas, e proporcionam uma forma de atuação no mundo que supera o puramente biologicamente dado. Já os signos ou instrumentos psicológicos (Vigotski, 2004) são orientados internamente:

Chamamos de signo os estímulos-meios artificiais introduzidos pelo homem na situação psicológica que cumprem a função de autoestimulação; adjudicando a este termo um sentido mais amplo e, ao mesmo tempo, mais exato do que se dá habitualmente a essa palavra. De acordo com nossa definição, todo estímulo condicional criado pelo homem artificialmente e que se utiliza como meio para dominar a conduta - própria ou alheia - é um signo (Vigotski, 1931/2012a, p. 82).

Tanto os signos quanto os instrumentos são produzidos e transmitidos pelas gerações anteriores, dado que sua elaboração e significados foram construídos pelo trabalho humano. Segundo Vigotski (2004), o conteúdo dos signos é extraído da ideologia do meio que rodeia o homem - assim, os signos são construções humanas que passam a orientar as ações humanas a partir das normas sociais (Molon, 2009), o que faz com que, segundo Baquero (1998), os meios culturais constituam a mente, criando uma "segunda natureza". Considerando o desenvolvimento como eminentemente decorrente de relações sociais, mediado por outros e por signos sociais, a relação da pessoa com o meio é primordial na perspectiva de Vigotski. É necessário apontar que o meio, para Vigotski é sempre cultural. Os signos, na mediação da relação sujeito mundo, atuam construindo o mundo e o próprio sujeito - segundo Molon (2011):

O sujeito e o social são mutuamente constituídos e reciprocamente constituintes, e o processo de significação envolve e condensa todas as suas manifestações, expressões, sentimentos e emoções, afecções; portanto, seu corpo, sua atividade, sua consciência, sua vivência e sua experiência são atravessados e realizados pelos processos de produção da significação (Molon, 2011, p. 619).

A partir dessa ideia, Veer e Valsiner (1991) colocam que pessoas de diferentes culturas pensariam de formas diferentes, não só no que diz respeito ao conteúdo do pensamento, mas também à maneira de se pensar (mesmo porque os diferentes idiomas, como sistemas semióticos de mediação, têm diferentes estruturas e lógicas). Nessa direção, os próprios sentimentos, no ser humano não são encarados de forma pura, uma vez que são pautados pelos sistemas de conceitos desenvolvidos na história da humanidade. Molon (2009) destaca que, nessa relação bidirecional e de imbricação entre pensamentos e sentimentos, a vontade é a função psicológica que potencializa as outras.

Para Vigotski (1926/2001), o desenvolvimento do ser humano se dá por meio de seu contato com a cultura, o meio social em que vive, que é marcado por construções realizadas na história do ser humano e que transformam o mundo. A criança já nasce em um mundo repleto de significados, de signos, de construções históricas e sociais, e é nesse meio que se desenvolve, através de trocas dinâmicas com seu entorno. Para Pino (1993, p. 18) "a descoberta e a apropriação deste universo definem o conteúdo do processo de constituição do ser humano da criança". O processo de desenvolvimento se dá em uma lógica na qual as funções psicológicas superiores, anteriormente presentes no meio, são apropriadas pela criança, que as desenvolve, humanizando-se (Vigotski, 1931/2012a).

De acordo com Pino (2005):

Isso não significa que a criança seja um agente passivo no processo que a converte num ser humano. Muito pelo contrário, ela participa ativamente desse processo, de maneiras e em graus diferentes em função do próprio amadurecimento biológico. A mediação necessária do Outro não impede que seja ela o sujeito do processo de internalização das funções culturais, as quais já fazem parte da história social dos homens (Vigotski, 19971) (Pino, 2005, p. 154, itálicos no original).

Essa reconstituição ocorre dentro das possibilidades reais que o meio oferece à pessoa. No movimento intergeracional, a partir de uma base materialista, "a história é construída a partir das objetivações resultantes das atividades das gerações passadas, que vão sendo subjetivadas pelas novas gerações" (Diogo, & Maheirie, 2007, p. 142).

Isso não significa que as condições do meio são igualmente vivenciadas por diferentes sujeitos. Conforme Paludo (2012) destaca, o processo de constituição do sujeito não se dá de forma homogênea, mas depende da elaboração dos sujeitos, que é singular. Conforme discutido por González Rey (2016), Vigotski compreendia o pensamento como uma função do sujeito que não podia ser separada da completude da vida, bem como a emoção era indissociável das outras funções psicológicas.

Dois conceitos Vigotskianos, inseparáveis e coconstituintes, aparecem na obra do autor mais diretamente relacionados ao debate da relação pessoa-meio e podem ser produtivos na interlocução com o conceito de apropriação do espaço: situação social de desenvolvimento e vivência.

A situação social de desenvolvimento é definida pela relação estabelecida entre a criança e o entorno que a rodeia, o todo social, caracterizada por ser, para cada idade, específica, única e irrepetível (Vigotski, 1931/2012b). Tal situação determina as formas e a trajetória que possibilitam à criança desenvolver sua personalidade, uma vez que a realidade social, apropriada pela criança, é a fonte primordial de desenvolvimento. Também é ela que informa os significados que a criança atribui às situações vivenciadas e, consequentemente, ao seu meio.

Dessa forma, a criança é sempre parte de um meio social vivo e, assim, sua relação com o meio deve ser considerada a partir "do que é certo meio para uma certa criança. Então, interessa a Vigotski o meio tal como ele é subjetivado, interiorizado pela criança" (Toassa, 2011, p. 195-196, itálicos no original).

Considerada essa perspectiva, para Vigotski (1931/2012b), a vivência é a unidade de análise para o estudo da personalidade e do meio, o que une a consciência da pessoa àquilo com que tem contato do mundo exterior - dessa forma, a relação não é com o meio como espaço físico imutável, mas, segundo Toassa (2011), com o meio fenomenal, significado pelo sujeito.

Se tivéssemos que formular uma tese formal, um tanto generalizada, seria correto dizer que o meio determina o desenvolvimento da criança através da vivência do dito meio. [...] A criança é uma parte da situação social, sua relação com o entorno e a relação deste com ele se realiza através da vivência e da atividade da própria criança; as forças do meio adquirem significado orientador graças às vivências da criança (Vigotski, 1931/2012b, p. 383, tradução nossa).

Segundo Toassa (2011), a vivência é a unidade sistêmica da consciência, configurando um campo psicológico que contém a criança e o meio; a relação interior entre ambos é marcada por valências positivas e negativas, movimentos de atração e afastamento, não sendo constante no tempo (Vigotski, 1931/2012a).

A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado - a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa - e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitutivos que possuem relação com dado acontecimento. Dessa forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência (Vigotski, 1934/2010, p. 686, itálicos no original).

Nesse sentido, para Vigotski, a vivência é marcada pela significação que a situação tem para a criança, (Clarà, 2016; Fleer, Marilyn, Rey, & Veresov, 2017), que é carregada emocional e volitivamente e que decorre da situação social de desenvolvimento. É a vivência que determina que tipo de influência uma situação ou meio vai ter na criança (Clarà, 2016). Clarà (2016) sublinha que é importante compreender que, para Vigotski, a vivência não diz respeito ao significado de um ou outro aspecto da situação para o sujeito, mas ao significado que o sujeito constrói da situação como um todo, "incluindo todos os elementos relevantes da situação externa e todos os aspectos relevantes do sujeito que está face a esta situação" (Clarà, 2016, p. 17).

Assim, a relação entre sujeito e meio, para Vigotski, é determinada pela vivência desse espaço. Conforme destacado por Fleer et al. (2017), o que é importante é que a vivência é uma ferramenta conceitual para analisar a influência do ambiente sociocultural, não no indivíduo em si, mas no seu processo de desenvolvimento.

Neste aspecto, Vigotski contribui com elementos para uma abordagem de um sujeito concreto, definido a partir do conjunto das significações atribuídas ao conjunto de elementos presentes no meio e de suas construções psicológicas anteriores. Articula passado e presente, características do grupo e dos indivíduos. Para o autor, quando surgem novas formações (sobretudo o domínio da linguagem, pensando no desenvolvimento infantil), a criança se modifica e, por conseguinte, sua relação com o meio e seu desenvolvimento posterior: "Se dizemos que a relação da criança com o meio se modificou, significa que o próprio meio já é distinto e que, portanto, mudou o curso do desenvolvimento da criança, que chegamos a uma nova etapa no desenvolvimento" (Vigotski, 1931/2012b, p. 380).

 

Pela dimensão espacial na constituição dos sujeitos

De acordo com o exposto, é possível compreender que ambas as perspectivas rompem com dicotomias da relação pessoa-meio, assim como assumem o caráter simbólico da ação humana, na apropriação do mundo objetivado, como estruturante do processo de constituição do sujeito (a partir da perspectiva Vigotskiana) ou de identidades pessoais e sociais (pelo conceito de apropriação do espaço). Não há nelas um repertório que apela à ideia de influência, mas sim que se refere à coconstituição entre pessoa e meio, além de uma forte inclinação para dar centralidade, neste processo, à significação.

Desde a contribuição Vigotskiana, é possível resgatar, ao conceito de apropriação do espaço, a dimensão da vivência como uma perspectiva que permite melhor singularizar os processos de apropriação do espaço, uma vez que convida para considerar a situação social de desenvolvimento constitutiva da relação pessoa-meio. Ademais, se por um lado permite desdobramentos que falam da singularização da apropriação do espaço, por outro, também permite desenvolver aspectos relacionados ao caráter particular deste processo, atribuído em virtude da consideração da idade, tal como definido por Vigotski na composição da situação social de desenvolvimento (Vigotski, 1931/2012b). Esta dialética entre o singular o e particular no processo de apropriação do espaço poderia dinamizar o conceito de apropriação do espaço desde aproximações com a perspectiva Vigotskiana. Ainda, poderíamos pensar que tanto a ação quanto a identificação simbólica, como partes do processo de apropriação do espaço, são dadas pelo prisma da vivência, em um processo de contínuas situações sociais do desenvolvimento que se dão temporalmente.

Por sua vez, o conceito de apropriação do espaço, menos pelas elaborações de seu primeiro termo, que vincula as perspectivas Vigotskianas e a do grupo de Pol, e mais pelo conceito de espaço, poderia fomentar um olhar detalhado sobre os componentes e processos relativos ao meio, pouco tratados na perspectiva Vigotskiana.

O conceito de apropriação do espaço forja a compreensão dos elementos de um dos termos do binômio indissociável pessoa-meio, ou seja, exige maior qualificação do que é apropriado pelo sujeito e melhor atenção aos modos como operam processos macro e microprocessuais, oriundos de tempos longos e curtos. Assim, se por um lado a perspectiva Vigotskiana permite melhor incorporar ao conceito de apropriação do espaço a relação fenomenal da experiência do sujeito, o conceito de espaço força um detalhamento e uma especificação do que é genericamente definido como meio.

O espaço não é um conceito de fácil definição. Nossos entendimentos sobre espaço apoiam-se nas elaborações de Santos (2006), para quem o espaço é um sistema formado por objetos e ações compreendidos como indissociáveis. Os objetos constituem a herança da história natural e o resultado das ações humanas e, por sua vez, as ações são processos dotados de propósito, intencionalidade, comportamentos orientados e, portanto, tipicamente humanos. Essa definição implica reconhecer um conjunto de categorias que dão substância ao meio e esmiúçam seus processos, seus elementos e as relações entre eles. Totalidade, movimento, recortes espaciais, redes e escalas, universalidade e particularidade, configuração territorial, lugar, símbolos e ideologia são algumas dessas categorias, que complexificam nossas análises sobre os processos espaço-temporais e as formas e conteúdos da apropriação do mundo pelos sujeitos. Os sistemas de objetos mobilizam o desenvolvimento das ações e, por outro lado, os sistemas de ações criam novos objetos em relação com os já existentes. Esse processo dá ao espaço uma dinâmica de constante reconstrução e nele se articulam tempos oriundos de diferentes momentos históricos. Também nesse processo, Santos (2006) considera o que denomina de verticalidades (processos globais e homogeneizadores) e horizontalidades (processos do cotidiano e de resistências criativas), de modo a contemplar, nas formas e conteúdos do espaço e nas interações sociais, aspectos que dizem respeito à relação intrínseca entre o global e o local. O autor destaca que, sendo o espaço decorrente de ações humanas, é marcado por normas (explícitas ou não, formais ou não) que buscam reger as ações. Nessa definição, totalidade e movimento são características do espaço, o que implica definirmos as escalas espaciais e temporais para sua abordagem. O espaço é assim intrinsecamente marcado pelas relações sociais, econômicas e históricas, em âmbito micro ou macrossocial, sendo necessariamente um espaço humano, social, do qual fazem parte os sujeitos (Santos, 2004).

Em sua compreensão, os objetos e as ações são constituídos nas e mediadores das relações sociais e de trabalho e, neles, há marcas morfológicas e também relativas a funções e processos do espaço - cada período histórico é caracterizado por uma gama de técnicas e objetos que se alteram no passar do tempo, dando surgimento a novas formas de ação e técnicas, rugosidades em virtude da ressignificação dada aos objetos construídos ao longo da história (Santos, 2006). Assim, tempo e espaço são, para o autor, indissociáveis, configurando processos de mudança e de continuidade que se materializam nos objetos e no espaço físico.

A partir dessa concepção, a atenção ao conceito de espaço, quando se considera o processo de apropriação, fornece instrumentais para as análises sobre a situação social de desenvolvimento de modo a considerar locais e momentos históricos - o que se alinha com a perspectiva marxiana. A perspectiva de Santos (2006) permite pensar como diferentes espaços se configuram de determinadas formas numa dada situação, quais as técnicas e organizações espaciais que trazem as marcas das ações já realizadas pelo ser humano e os processos que permitem coexistir o velho e o novo. Assim, se o ser humano se apropria de algo já objetificado pelo homem, pode-se questionar sobre como se manifesta essa objetificação e como se faz presente na vivência do indivíduo e considerada como permeada por diferentes escalas espaço-temporais, semioticamente constituídas.

Esse caráter semiótico do espaço e o seu processo de apropriação, desde uma perspectiva temporal, remete-nos ao que Pol (1997) descreve como a relação entre simbolismos a priori e a posteriori, presente no conceito de apropriação do espaço. Neles juntam-se tempos, poderes e intencionalidades diversas, uma vez que os espaços são construídos a partir de lugares sociais e nem sempre pelos sujeitos que dele farão uso cotidiano; momentos diferentes de sua concepção e apropriação coexistem, constituindo formas e conteúdos determinados de ações e objetos e, ao mesmo tempo, diferenciadas. Se as ações sobre o espaço são delineadas por relações sociais, ocorre um jogo entre aqueles que detêm maior poder na produção do espaço e os que os recriam diariamente na sua utilização, de forma a colocar sempre em relação o simbolismo a priori (dado por elementos já materializados e incorporados no espaço) e o simbolismo a posteriori (resultado do momento de criação de novos significados e novas objetificações).

Neste processo, operam elementos de apropriação ou alienação das formas e conteúdos do espaço. Pol (1997) discute que, na criação dos espaços, lhes são atribuídos valores, formas, estruturas estéticas e éticas desejadas que fomentam ou procuram eliminar fatos, memórias e experiências a partir o do grupo que o construiu. Assim, o valor simbólico buscado pode ou não ser assimilado pela população como referência, tornando-se ou não um elemento compartilhado. Essa descrição pode colaborar para aprofundamentos acerca do processo de internalização Vigotskiano, uma vez que introduz a contradição, as resistências, as recriações e o poder como características presentes no processo de apropriação do espaço e nas relações intergeracionais.

Não menos importante, uma variante dessa discussão chama a atenção para características do espaço na mobilização de simbolismos e na constituição das identidades sociais. Há que se considerar neste sentido, um momento histórico marcado pela hegemonia dos modos de vida urbano, que extrapolam os limites da cidade e se inserem, por meio de processos verticais e horizontais, nos diferentes territórios de agrupamentos humanos. Para Vidal (2002), a produção do espaço permite compreender processos de identificação relacionados ao urbano como categoria social. Os indivíduos de um grupo se identificam como iguais e com o espaço, diferenciando-se de outros grupos com base no próprio espaço ou em dimensões categoriais simbolizadas por ele. Para que um espaço seja considerado simbólico é necessário que seja percebido pelos indivíduos do grupo como prototípico - tal característica é dada, sobretudo, pelos significados socialmente elaborados e compartilhados que são atribuídos a um espaço. Segundo Vidal (2002), é dessa forma que um espaço simbólico se torna expressão da identidade. Essa compreensão é interessante para pensar como o espaço, compreendido como sistema de objetos e ações, estrutura-se também como signo (Kharlamov, 2012) ao fornecer referentes para as vivências com grupos e sociedades. Desde os conceitos de vivência e de situação social do desenvolvimento, é possível apontar nesta lógica, de constituição de si ou identitária, diferentes formas de apropriação dos espaços (mesmo do mesmo espaço pela mesma pessoa) em diferentes momentos e situações. Dessa forma, a apropriação de um espaço não implicaria, necessariamente, a identificação com este, mas também sensações de estranhamento em locais cotidianos, como a escola, e identidades construídas a partir da diferenciação.

A depender dos papéis atribuídos à pessoa ou assumidos por ela na estrutura social do espaço, há um jogo de (im)possibilidades determinadas de se apropriar e relacionar com o espaço - na lógica da apropriação, da alienação (Graumann, 1976) ou da desapropriação do espaço (De Lauwe, 1976).

No Brasil, a defesa da consideração do conceito de espaço na constituição subjetiva, desde a perspectiva Vigotskiana, tem sido feita por Lopes (2013). Para ele a teoria, além de histórico-cultural, deveria ser entendida como geográfica, a exigir inclusão da dimensão espacial do desenvolvimento psicológico. O autor faz o seguinte questionamento:

Interrogo-me se cada um de nós, em nosso desenvolvimento compartilhado com outros humanos, nesse momento histórico, construtos da história humana na própria história geológica da Terra, partilhando nossas culturas, não somos atravessados pelas condições geográficas de nossas paisagens, de nossos territórios e lugares? Não haveria em nós reminiscências dos locais que ocupamos? E que nos ocupam? Das paisagens em que transitamos? E que em nós transitam? Eis minha questão: uma topogênese seria possível? (Lopes, 2013, p. 127).

De acordo com Lopes (2013), se, na história, o homem produz o espaço geográfico, são estes lugares que possibilitam os processos humanos. Uma pessoa, ao nascer, encontra a história da humanidade por meio dos espaços erguidos na Terra - estes, para o autor, portanto, constituem um dos primeiros processos de mediação. O autor coloca que, dessa forma, os espaços não são vazios, existindo uma dimensão geo-histórica no desenvolvimento do sujeito.

 

Considerações finais

Para Marx e Vigotski, o ser humano se constitui a partir da relação social, instância de apropriação dos produtos histórico-culturais. Assim, a pessoa se apropria da forma como foi inserida nas práticas sociais, dos modos de pensar, sentir e agir, de modo a que a própria estrutura cognitivo-afetiva dos sujeitos tem como base seu contexto histórico-social e linguístico (Veer; Valsiner, 1991).

O conceito de apropriação do espaço nos questiona a compreender esse processo como espacializado, entendendo o espaço como sistema de objetos e ações e como semioticamente constituído.

Essa lógica, trazida aos interesses de compreensão do processo de constituição do sujeito, incorpora as diferentes escalas e tempos nesse processo e chama atenção para formas e conteúdos do meio produzido a ser apropriado. Neste sentido, colabora para uma compreensão mais situada e concreta do sujeito, que não dispensa o olhar para sua dimensão espacializada. Ao considerar as condições concretas para a apropriação do espaço é ainda possível integrar, no processo de compreensão da vivência, as formas de apropriação (Graumann, 1976) à inserção social dos sujeitos, delimitando suas possibilidades de apropriação (De Lauwe, 1976). Os processos do desenvolvimento podem ser vistos marcados por (im)possibilidades oferecidas pelo espaço - a depender das posições ocupadas, a vivência toma diferentes prismas. Os sujeitos posicionados em determinados lugares, constituem-se sob diferentes forças e poderes na configuração de vivências. Apropriação e alienação passam então a ser conceitos necessariamente indissociáveis, úteis para os desdobramentos das elaborações sobre a relação pessoa-meio e, consequentemente, ao conceito de vivência.

A qualificação do espaço, bem como dos processos de sua apropriação, quando vista a partir de conceitos Vigotskianos, por sua vez, pode vir a contribuir para que sejam considerados mecanismos e processos intrapsicológicos, relativos à idade e desenvolvimentais, em geral, pouco discutidos nos debates sobre a apropriação do espaço.

Os aspectos presentes no conceito de apropriação do espaço, aqui destacados como potenciais mediadores no diálogo em estudos futuros sobre os entendimentos Vigotskianos da relação pessoa-meio, são: a alienação no processo de apropriação; as desigualdades de poder na produção do espaço; o espaço como constitutivo do desenvolvimento humano; a relação dos simbolismos a priori e a posteriori; a dinâmica socioespacial na constituição do sujeito. Ao mesmo tempo, compreendemos que a perspectiva histórico-cultural permite uma complexificação do conceito de apropriação do espaço, em especial ao considerar a dinâmica dialética e processual das vivências e situações sociais de desenvolvimento, decorrentes dos diferentes momentos históricos - do sujeito e dos espaços em que vive.

 

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Endereço para correspondência:
Ricardo Lana Pinheiro
ricardolanap@yahoo.com.br

Ana Paula Soares da Silva
apsoares.silva@usp.br

Submetido em: 25/06/2018
Revisto em: 21/07/2018
Aceito em: 11/08/2018

 

 

1 Não é possível identificar a que texto o autor se refere, porém, em seu texto, é citada a seguinte coletânea: Vigotski, Lev S. (1987-1997) The collected works. New York/London: Plenum Press, 5 v.

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