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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

EDITORIAL

 

A judicialização da vida - ensaios sobre transgressões

 

 

Estela ScheinvarI; Katia AguiarII; Maria Lívia do NascimentoII

IDocente. Departamento de Educação. Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana. Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). São Gonçalo. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Mês 11, ano 2017. Estamos em universidades públicas e tem sido nelas que construímos percursos de pesquisa e de in(ter)venção social, tomando a formação universitária, em particular nos cursos de psicologia e de formação de professores nos quais atuamos, como processo sempre inacabado que comporta conversações, silêncios e exasperações. Momento no qual urge estarmos atentas às formas de polarização que fomentam polêmicas. Com práticas consideradas menores em nossos campos de atuação, não nos rendemos à provocação meritocrática que, ao operar por desqualificação, nos querem impotentes. Insistimos no exercício de uma crítica do presente, colocando a atenção em nossos fazeres, efetuando raspagens nas cristalizações, condição de seguir apreendendo as forças sociopolíticas em seus tensionamentos e composições. Afirmar diagramas coletivos que, por criação e resistência, interfiram nas relações de forças conservadoras é o que nos move. Acionamos o menor em sua potência de variação e diferença, a fazer ranger o que está posto como padrão, como norma.

Estamos em universidades públicas e nelas cultivamos o exercício do pensamento que implica em questionar as práticas seculares de escolarização interessadas em disciplinar corpos e domesticar afetos, indicando caminhos de mão única em direção a um conhecimento pretensamente neutro e superior a qualquer saber das lutas, ao saber de qualquer um. Não basta conhecer para produzir zonas de aproximação e respeito à diferença, não é qualquer conhecimento que porta a abertura de mundos. Convivemos com atrocidades realizadas em nome da ciência e da grandeza da humanidade. A defesa de um modelo civilizatório, a exaltação da pretensa superioridade de uma raça e a imposição de um pensamento único já nos deram mostras dos efeitos devastadores dos racismos impregnados em nosso cotidiano, permeando relações de vizinhança, habitando nossos corpos.

Em meio às desmontagens criminosas dos últimos anos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - o que envolve a suspensão de salários e bolsas, o sucateamento de um patrimônio público material e imaterial, a construção do "III Colóquio internacional Michel Foucault: a judicialização da vida"1 se faz expressão de resistência2. Um movimento que se anima agenciando as forças de ocupação, para com elas recortar espaços outros e diferentes temporalidades na educação universitária. Recolhemos, especialmente em tempos recentes, aprendizagens nas mobilizações e manifestações em defesa da escola pública, nas ocupações de estudantes, nas lutas pela implantação de cotas nas pós-graduações, observando que ainda há muito o que fazer na direção de um efetivo trabalho entre os interesses dos setores acadêmicos e uma miríade de microuniversos culturais disponíveis a orientar a invenção de mundos, de modos de vida.

Não por acaso insistimos no tema da judicialização da vida como disparador de problematizações dos modos de controle em nosso presente, tema que vem sendo amplamente estudado, cada vez mais referido e se mostrado de enorme interesse desde as edições anteriores do Colóquio. Esta iniciativa vem abrindo a possibilidade de reunir pesquisadores de renome nacional e internacional, grupos de pesquisa, profissionais e instituições de referência na discussão em pauta. Tal discussão vem sendo realizada não só em Instituições de Educação Superior, mas com professores de Educação Básica, estudantes de formação de professores, equipes de tribunais de justiça, assistência social, garantia de direitos, saúde e movimentos sociais, aos que também se destina o Colóquio. O acesso ao Colóquio é livre. O financiamento é público. O convite é fazer trincheira em meios aos combates cotidianos... Um fazer que se aproxima da arte: "arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, estejam elas já instaladas ou próximas de sê-lo" (Foucault, 1993, p. 198).

Mês 11, ano 2018. Ainda que sejamos críticas ao que para nós, brasileiras, se apresenta como Estado Democrático de Direito, entramos num ano eleitoral com o desafio e a expectativa de garantir condições de seguirmos lutando pela ampliação das frágeis conquistas aportadas desde a abertura democrática. O olhar microfísico há tempos nos coloca em contato com o recrudescimento de forças conservadoras a questionar a liberdade de cátedra e materiais de apoio educativo, a forçar passagem para a proliferação de diagnósticos e medicalização, a julgar modos de vida que desviam, a criminalizar movimentos sociais de contestação, a perseguir, condenar e encarcerar corpos pretos, a insistir na colonização do pensamento.

No entanto, as lutas por uma vida não fascista se colocam hoje em regime de urgência: fazer uma vida inconformada aos padrões, interpelar as forças de assujeitamento, em cada um de nós, que nos faz "desejar essa coisa mesma que nos domina e explora" (Foucault, 1993, p. 198). A judicialização se apresenta como um aprisionamento da criação de modos singulares de experimentar a vida. Traça destinos únicos, torna as vidas reproduções, destituindo-as de sua potência.

Há que resistir ocupando espaços que aí estão e inventando, ainda que não saibamos o que produzirão, recusando o que temos feito de nós mesmos. O convite para a produção de artigos, a palestrantes do III Colóquio e parceiros que participaram da sua organização, resultou na apresentação de análises de suas pesquisas conceituais e empíricas, realizadas tanto no âmbito acadêmico, quanto em equipamentos sociais e foros de discussão dos direitos sociais de diversos locais do Brasil e de outros países. Uma obra, ora aqui publicada, que parece ganhar, nas condições atuais, a intensidade da transgressão.

 

Referência

Foucault, M. (1993). O Anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Subjetividade, 1(1), 197-200.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Estela Scheinvar
estela@uerj.br

Katia Aguiar
katiafaguiarpsi@gmail.com

Maria Livia do Nascimento
mlivianascimento@gmail.com

 

 

1 O colóquio contou com o apoio da CAPES, do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFF e do Programa em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ.
2 As mesas do colóquio podem ser acessadas na página eletrônica: www.infancia-juventude.uerj.br.

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