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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

ARTIGOS

 

Novos ares e o desgoverno da escola: traçados histórico-genealógicos e a poética do hoje-amanhã

 

New airs and school misrule: historical-genealogical traces and the poetics of today-tomorrow

 

Nuevos aires y el desgobierno de la escuela: trazodos histórico-genealógicos y la poética del hoy-mañana

 

 

Jorge Ramos do Ó

Docente. Instituto de Educação (IE). Universidade de Lisboa (UL). Lisboa. Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende acercar-se das forças acionadas para governar a cognição dos sujeitos escolarizados. Crescer dentro de um estabelecimento de ensino é habitar, desde a infância, uma mecânica de governo que faz escolar regressar, dia após dia, a uma mesma performance caraterizada pela vigilância constante, pela padronização e procura do igual tantos dos conhecimentos quanto dos sujeitos. Os mesmos conteúdos são administrados em simultâneo a todos os alunos como se fossem um só. O dispositivo escolar que montámos desde o final do século XVI permanece intato nestes nossos dias da revolução digital e carateriza-se ainda pela circularidade absoluta, por um fechamento essencial. A hipótese de que parto aqui é a de que podemos ser e fazer mais se nos dermos o tempo e a possibilidade de refletir, da mesma forma e com a mesma intensidade, sobre o que nos constitui como desejo e objeto idealizado, tanto quanto sobre o que se nos apresenta como obstáculo, fronteira e barreira intransponível.

Palavras-chave: Currículo; Governamentalidade; História do Presente.


ABSTRACT

This article intends to approach the forces directed to rule the cognition of school subjects. Growing up within an educational institution is to inhabit, from childhood, a mechanics of government that makes the school return, day after day, to a same performance characterized by constant vigilance, by the standardization and by the search of homogeneity of both the knowledge and the subjects. The same contents are administered simultaneously to all students as if they were one. The school system that we have set up since the end of the 16th century remains intact in our days of the digital revolution and is characterized by absolute circularity, by an essential closure. The hypothesis that I leave here is that we can be and do more if we give ourselves the time and the possibility of reflecting, in the same way and with the same intensity, on what constitutes us as desire and idealized object, as well as on what presents itself as an obstacle for us, boundary and insurmountable barrier.

Keywords: Curriculum; Governmentality; History of the Present.


RESUMEN

Este artículo pretende acercarse a las fuerzas accionadas para gobernar la cognición de los sujetos escolarizados. Crecer dentro de un establecimiento de enseñanza es habitar desde la infancia una mecánica de gobierno que hace que el escolar regrese día a día a una misma performance caracterizada por la vigilancia constante, por la estandarización y la búsqueda del igual tanto de los conocimientos como de los sujetos. Los mismos contenidos se administran simultáneamente a todos los alumnos como si fueran uno solo. El dispositivo escolar que montamos desde el final del siglo XVI permanece intacto en estos días de la revolución digital y se caracteriza por la circularidad absoluta, por un cierre esencial. La hipótesis de que parto aquí es la de que podemos ser y hacer más si nos damos el tiempo y la posibilidad de reflexionar, de la misma forma y con la misma intensidad, sobre lo que nos constituye como deseo y objeto idealizado, tanto como sobre lo que se nos presenta como obstáculo, frontera y barrera infranqueable.

Palabras clave: Currículo; Gubernamentalidad; Historia del Presente.


 

 

Introdução

A hipótese de que parto aqui é a de que podemos ser e fazer mais se nos dermos o tempo e a possibilidade de refletir, da mesma forma e com a mesma intensidade, sobre o que nos constitui como desejo e objeto idealizado, tanto quanto sobre o que se nos apresenta como obstáculo, fronteira e barreira intransponível. Ora, creio que é na aceitação plena dessa agonística, desses limites paralelos - como os das duas margens do rio tão bem nos indicam quando as contemplamos de um só lance, ou seja quando já saímos de uma e não chegámos ainda à outra - que nos surge todo um vasto campo de escolha. Reconhecemo-nos aí num espaço inexplorado, ausente de todas as cartografias, não descrito por qualquer mapa. O de podermos ser os sujeitos-a-caminho, os que descobrem a raiz do pensamento, da criação e da vida nos espaços-entre. O entremeio, o rio mesmo, vai-se então instalando e impondo na sua vastidão e nós descobrimos as mil e uma possibilidades de ser e trabalhar a cada dia nesse intervalo, como tantas e tantas vezes Serres (1993) sublinhou ao insistir que nenhuma aprendizagem deveras digna desse nome pode evitar a viagem. São os limiares que nos fazem operar laboriosamente para fundar passagens transparentes e virtuais no seu interior, como ainda, muito importante, o poder descobrir na poética do deslocamento e do afastamento o grande efeito que articula as instituições de saber e conhecimento. Simplesmente, para que esta sereia, que nos acena de longe, nos faça partir e ir ao seu encontro - e então o nosso desejo se transforme em investimento real - torna-se igualmente necessário conhecer muito bem os poderes que operam, longa e profundamente, para que nunca abandonemos o domicílio e não consigamos ligar o sonho com o gesto inventivo. Precisamos, como também assinalou amiúde Michel Foucault, da procura de uma coragem da verdade, isto é, da procura dos fundamentos pelos quais as verdades se constituem na nossa sociedade até se tornarem ideias feitas, a fim de que o íman do igual, do equável e da repetição do mesmo, inoculado em todos pelas instituições de ensino, não volte em nós sob a forma da nossa própria impotência e autodepreciação.

É por esta razão maior que aqui me determinarei em articular mortificação com vivificação, governo com desgoverno, para, enfim, tentar ensaiar essa força movente e também em andamento pleno na atualidade de uma comunidade de iguais.

O Estado-nação tomou para si a bandeira da educação para todos, converteu mesmo, ao longo do século XX, esse grande objetivo da escolarização de toda a população, mas essa operação concretizou um efeito civilizacional dramático, cujas consequências talvez nunca possamos avaliar ao certo - não há para nós memória do que sejam uma infância e uma juventude fora da escola -, e temos, por isso, a obrigação e a responsabilidade cívica de a identificar e de a tentar compreender. Refiro-me, de largada, ao tipo de relação que a instituição escolar, nos últimos duzentos anos, tem procurado desencadear no interior de nós mesmos: a de, por intermédio de discursos pedagógicos que invocam constantemente a autonomia, o interesse e a liberdade do aluno, tudo na realidade fazer para tornar natural a homogeneização e a hierarquização, objetivando as múltiplas práticas de trabalho que garantem a seletividade mais brutal. A escola que temos tido representa a possibilidade, propriamente política, de se generalizar à infância e à juventude um devir-adulto inteiramente rígido, exigindo a cada sujeito a participação em dinâmicas que definem a identidade pela lógica da conformidade-desvio, levando-o a descobrir-se a si mesmo em referência a modelos de conduta universais, cada vez mais estereotipados e em indecorosa negação das diversas formas de vida relacional que as crianças e os jovens inventam. É neste sentido preciso que a cultura escolar, no coração de si mesma e desde a sua origem, se articula diretamente com os vocabulários e as próprias práticas que o Estado moderno desenvolveu e se destinaram ora a medicalizar ora a judicializar a infância e a juventude.

Talvez pudéssemos, em conformidade com esta tese, admitir que a imagem da floresta seja aquela que mais remotamente atemorizou e continua ainda a atemorizar as autoridades escolares. Eu gosto da metáfora da floresta. Como Heidegger (2002, p. 3) escreveu, e insistiu ao longo dos seus escritos filosóficos, "na floresta há caminhos que, o mais das vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não trilhado". A instituição escolar, há que dizê-lo, ergueu-se para obstaculizar que o aluno pudesse conceber a produção do saber como se de um caminho florestal se tratasse - aquele caminho que, mal começa a ser percorrido e contra as aparências, deixa perceber que não há nenhum trilho que seja exatamente igual a um outro, que todos os caminhos podem inscrever uma diferença real entre si. O projeto educacional do Estado-moderno não suporta a diferenciação, a multiplicação de discursos, e tudo tem feito para os impedir. É porque se apresenta como a instituição por excelência da conservação social que a escola hipervaloriza e esgota os seus efetivos em delirantes rotinas de repetição, anotação, síntese e comentário, fazendo crer à maioria dos que a não aguentam que a imaginação criadora é, justamente, um patamar cognitivo só ao alcance dos predestinados, aqueles que resistem, incólumes, à absurda máquina escrava da mimesis.

Ora, de Nietzsche a Foucault - e outras linhagens interpretativas idênticas poderiam ser estabelecidas facilmente no pensamento ocidental -, sabemos muito bem que todo o discurso que se apresenta como universalmente verdadeiro não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa. E, por isso mesmo, Foucault construiu todo um projeto de análise crítica da modernidade a partir de uma pergunta que não pode também deixar de nos conduzir no que fazemos como professores e educadores: "mas o que há afinal de tão perigoso no facto de os discursos proliferarem indefinidamente? onde está o perigo?" (Foucault, 1997, p. 9, 17). Por isso, cabe-nos lançar estoutra: em nome de que modelo de sociedade por vir se interdita em absoluto as crianças e os jovens de participarem no mais sério dos jogos, o da busca ininterrupta da verdade, o da criação mesma do saber.

Uma escola por vir só a consigo imaginar como contraponto crítico daquela que temos tido, numa espécie de combate corpo-a-corpo com as racionalidades pedagógicas e as soluções de ensino-aprendizagem hegemónicas nos sistemas de ensino produzidos pelo Estado-nação a partir de finais do século XVIII. Os sistemas de ensino nacionais, que crescentemente converteram todas as crianças e os jovens em alunos, nos quatro cantos do mundo, ergueram uma verdadeira maquinaria que, implacavelmente, subordinou os saberes e a sua transmissão a padrões rígidos, fenómeno este que atinge, embora com intensidades variáveis, todos os ciclos de ensino, desde os bancos em que se aprendem as primeiras letras até ao próprio ensino superior. O que hoje tomamos por currículo transformou-se numa tecnologia disciplinar através da qual o conhecimento passou a estar ao serviço da regulação social, de um ponto de vista único sobre a realidade.

Fazer diferente ou fazer a diferença supõem, nesta perspetiva, um conhecimento agudo sobre o que a escola tem sido. Todos precisamos não da verdade, como se ela fosse uma e uma só, o que felizmente não virá nunca a ser, mas precisamos da coragem da verdade para romper o círculo e o cerco em que estamos. Precisamos de um diagnóstico lúcido e desassombrado do que designaria pela miséria do mundo escolar, parafraseando aqui um título de um livro conhecido do sociólogo Pierre Bourdieu. Para entendermos bem o que queremos fazer, e de que modo o poderemos fazer, há que conhecer, ao detalhe e em profundidade, como se estruturam e funcionam os poderes, como se alimentaram e se fortaleceram as lógicas de conservação que operam e que têm resistido muito bem a todas as tentativas de construir uma outra escola, uma escola-outra.

 

Mortificação

Cumpre doravante falar dos processos de clausura tanto da razão quanto dos sujeitos aprendentes. Não há que temer as palavras. A escola, essa grande bandeira das Luzes, dos regimes liberais, republicanos e democráticos foi de todas as instituições do Estado-nação aquela que menos mudou no decurso dos últimos séculos. Mudou muito menos que a prisão, o hospital, o quartel ou até a fábrica. Para se perceber bem a essência e a proveniência histórica do nosso modelo escolar escolho uma passagem de um texto seminal. Refiro-me à Didática Magna de Coménio, obra escrita em meados do século XVII e em que se faz esta profissão de fé, fruto já de experiências anteriores no quadro do alargamento da cultura protestante e católica: "Nós ousamos prometer um método universal de ensinar tudo a todos. E de ensinar com tal certeza que seja impossível não conseguir bons resultados. E de ensinar rapidamente. E de ensinar solidamente, encaminhando os alunos para uma verdadeira instrução, para os bons costumes e para a piedade sincera. Assim estabelecemos um método universal de fundar escolas universais" (1627-42/2006, pp. 45-46).

O desejo de invariabilidade, contido na promessa de Coménio, tornou-se paulatinamente realidade, todos o vivemos e sabemos, e domina ainda praticamente por inteiro as nossas instituições de ensino. Eis a imagem simultaneamente mais remota e atual da escola: um quadro - seja ele preto, verde ou interativo -, uma classe homogénea, um professor em permanente monólogo, e um monólogo a que o uso constante do powerpoint na atualidade reforça ainda mais, alunos transformados em orelhas, transidos ou irrequietos, mas sempre vergados à obrigação de permanecer calados e confinados a um espaço métrico de proximidades imediatas que se refere a centros, concentrações de regulares de pessoas: uma escola, uma sala de aula, um auditório, um pátio, um campo de jogos. Trata-se de começar a operar segundo o princípio da localização imediata ou do quadriculamento. Cada elemento passa a ser visto como uma unidade, ocupando o seu lugar na carteira, na fila regular ou na classe: a disciplina "individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações", a qual é assim interiorizada pela noção que cada um passa a ter não apenas da posição mas essencialmente da distância que o separa do outro, como Foucault nos fez compreender em Vigiar e Punir. Todos os alunos, um por um, são classificados e colocados no ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna. Esta taxinomia dos seres naturais, que os vai tornando visualmente inteligíveis por meio da tecnologia do quadro de dupla entrada, está associada a uma racionalidade científica/política/económica que permite, por um lado, o controlo e a intervenção pontual, individualizada (de diferenciação, de correção, de castigo, de eliminação) e, por outro lado, a possibilidade de utilizar os indivíduos de acordo com o nível que alcançam nas séries que ocupam (os resultados obtidos mostram que se tem a possibilidade de ir mais longe ou não e, logo em seguida, a aptidão para fazer isto e não outra coisa). Pelas operações conjugadas da distribuição e análise as autoridades escolares produzem uma imensidão de registos nos quais localizam, observam, controlam, inspecionam, classificam e desse modo regularizam o sujeito. Na verdade, nessa espacialidade constrói-se um eixo de poder que leva o uno diretamente ao múltiplo. A parte e o todo, o topo e a base estão estruturalmente ligados, senão mesmo objetivamente fundidos.

Ainda que apenas de modo telegráfico, importa lançar um olhar sobre as características estruturais do modelo escolar e as modalidades de aprendizagem que temos disponibilizado para as crianças e os jovens, desde os primeiros anos. Convirá ter presente que, ontem como hoje, os saberes escolares - que herdam simbolicamente uma nomenclatura que os faz passar por ciências - de aspiração enciclopédica e assumidamente entrelaçados se veem delimitados em programas difundidos pelas agências governamentais e que são, em seguida, transpostos para manuais escolares, depois retraduzidos pela fala do professor e, finalmente, compactados pela mão do aluno em textos cujo destino é exclusivamente serem avaliados em função da proximidade que exibem com as fontes referidas. Isto vale por dizer que toda uma civilização se vem relacionando com a cultura escrita através da prática da demonstração, fundando-se na leitura e na sacralização da página ou do livro, reificados como estruturas que revelam certezas há muito estabelecidas como necessárias e inquestionáveis. É um facto que nunca ultrapassámos na escola a missão judaico-cristã que ela teve até ao fim do Antigo Regime, a de a escrita se objetivar no acesso ao texto canónico, e depois continuada pela Modernidade e seu desejo de reproduzir, no currículo e de forma assaz simplificada, o Grande Livro do Mundo. A prática mais remota e que todos internalizámos, para nossa tragédia, é a da recognição, quero dizer, o exercício concordante em que um mesmo objeto pode em momentos diferentes ser lembrado, imaginado e concebido. Jamais a mecânica da sua própria construção, jamais o convite à sua reelaboração!

De facto, no que diz respeito quer ao figurino institucional quer ao conjunto de interações, métodos e processos de trabalho adoptados pelas autoridades escolares nos períodos moderno e contemporâneo, não há dúvida que se têm fortalecido as soluções que apontam para a padronização do saber distribuído e das correlatas possibilidades de ser, como o crescimento exponencial dos mecanismos de avaliação universal tão bem atesta. Falar de escola na contemporaneidade implica falar de objetivos e procedimentos em torno do saber científico que deliberadamente ignoram a esplendorosa diferença que as ideias, as pessoas e as coisas exibem entre si; por isso mesmo, tais fins e meios não têm qualquer relação objetiva com a verdade que eles mesmos dizem veicular e incansavelmente afirmam estabelecer. Não posso deixar de evidenciar a violência com que a escola vem mantendo a sua noção de um saber universal - a um tempo segmentado por províncias disciplinares, mas também interligado pela utopia totalizante do enciclopedismo - às consciências e aos corpos ainda em formação.

A tarefa da crítica consiste aqui, a meu ver, em procurar compreender como o trabalho de enunciação da verdade se construiu por meio de esvaziamentos e deslocamentos do conhecimento, mas que, por efeito das regras de funcionamento que atravessam e animam as várias instituições de saber, se transformaram eles próprios em estruturas, leis e invariantes. Há, portanto, um efeito de desconhecimento do que se produz na afirmação performática do próprio conhecimento em contexto escolar. As concepções pedagógicas e as práticas escolares que vemos imporem-se crescentemente ao trabalho sobre si do aluno e aos patamares cognitivos em que passou a decorrer a sua aprendizagem ajudam-nos a perceber como de facto se construíram relações e modelos de objetivação do conhecimento que ainda circulam na nossa sociedade. O grande efeito civilizacional que o modelo escolar consubstanciou é o da massificação de um poder epistemológico que consiste em administrar aos alunos e extrair deles um saber já devidamente programado, controlado e congelado.

Tome-se o cluster lexical que se estabeleceu também há vários séculos e cuja substância ainda ocupa grande parte tanto do pensamento teórico quanto do debate social relativo à reforma e às escolhas das melhores práticas para as instituições de ensino e educação dos nossos dias (Hamilton, 1989). Com efeito conceitos como currículo, classe, didática, método, disciplina, programa etc., foram desde Seiscentos alvo de uma intensa problematização, tendo-se transformado numa autêntica tecnologia educacional, a partir da qual o conhecimento foi codificado, representado e administrado sob a lei compendiária, isto é, aquela que, mesmo percorrendo caminhos confusos, ínvios e impenetráveis, como os que a natureza e as coisas humanas nos oferecem, encontra sempre uma ordem respeitante às matérias sobre que se debruça, uma via rápida e eficaz para reproduzir um saber manuseável. Nestes termos, a cultura escolar constituiu-se para exprimir a necessidade de veicular a comodidade, a ordenação, o resumo e a uniformização do conhecimento, ou seja, discorrer sobre todos os assuntos com o menor dispendium possível. De acordo com esta lógica, os artefatos produzidos para uso dos alunos submetem invariavelmente o discurso a procedimentos rápidos, simplificadores. A justificação é que, nessa economia extrema da síntese, os conteúdos programáticos adquirem uma grande comodidade, propiciam o maior lucro e riqueza a quem se destinam e a quem deles beneficia. Parcimónia e sumarização estrategicamente formuladas de modo a que as ideias expressas se não dispersem e as realidades descritas não causem dúvida. Porque o objetivo permanece o mesmo - inviabilizar o contraditório, o pensamento livre e desenfreado, o desejo do dissemelhante.

Nesta perspectiva, os saberes escolares assumem-se não apenas como certos, mas também como lícitos, sendo que a consciência dessa violência simbólica ao serviço da regulação social não escapou àqueles que teorizaram o campo pedagógico desde os alvores da modernidade. Desde então e para as várias autoridades escolares, à disciplina do objeto devia e deve corresponder a disciplina dos espíritos. A teoria pedagógica foi-se centrando paulatinamente na intensificação da rigidez da ciência disciplinar e, por essa via, contribuiu muito para uma evidente retração da autonomia da invenção, posto que todos os currículos escolares, como sublinha Fernando Gil (1984) em Mimesis e negação, passaram a exibir "a forma extrema e acabada da organização do saber". Este é o ponto central para o qual convergiu a demanda pedagógica em que se sustentou a posterior massificação do ensino. Na realidade, o modelo escolar articulado e expandido a partir da Idade Moderna europeia vulgarizou a noção segundo a qual qualquer disciplina corresponde a "um tratamento correto, completo e ordenado por certos preceitos, de coisas tornadas homogéneas a um objeto formal superior". Como se, a partir de então, o ensino procedesse de um conhecimento preexistente, e tudo, mas mesmo tudo, tivesse que ser feito para que os seus destinatários não pudessem sair desse circuito reprodutivo. A noção de disciplina confunde-se, assim, na nossa civilização, com um saber axiomatizado e universal na sua intenção, característica esta que só uma escrita controlada e controlável estava em condições de garantir. À normalização do objeto científico deve corresponder, pela mesma lógica, a normalização da sua representação, razão pela qual historicamente o ensino procura a certificação através da exigência do que entende ser o rigor e a objetividade, as premissas verdadeiras e primeiras. O fundamento atribuído às metodologias didáticas deduz-se de uma ação dupla sobre o entendimento: tanto extirpar o erro ou refutar o falso, próprios do senso comum, como transmitir, ensinar e confirmar o correto. Não há dúvida que terá sido a finalidade de transmissão, que quase sempre esgota os objetivos e as práticas nas instituições escolares, a secundarizar a intenção do labor propriamente científico, o trabalho da descoberta e da abertura do saber.

É amplamente conhecido que o termo curriculum se originou na Antiguidade Clássica, embora o Oxford English Dictionary situe a definição mais antiga somente no ano de 1663, num documento produzido pela Universidade de Glasgow. A sua etimologia básica - curriculum como pista de corrida, lugar de realizações articuladas entre si, percurso de uma carreira de vida ou até a carreira em si mesma - nunca perdeu a sua operacionalidade e vocação de expressar uma visão inteira do mundo. Dando corpo a este sentido primeiro do currículo, a escolarização impôs a seriação tanto do conhecimento quanto das tarefas, das realizações e das experiências necessárias a que cada aluno se transforme num ator social capaz de responder aos padrões de eficiência - de produção e comportamento - exigidos pela sociedade do seu tempo. Não pode causar por isso estranheza o afirmar-se que o currículo se refere tanto à administração do conhecimento quanto à constituição da cognição e da identidade mesma dos sujeitos que nele se encontram envolvidos. Com a permanente associação entre saber e ser, entre ciência, capacidades, atitudes e hábitos, é toda uma política de governo da vida que de facto o atletismo curricular instaura nas suas pistas fechadas.

O currículo é a expressão concreta da antecipação, de um futuro já inteiramente conhecido e tornado objetivamente necessário por ação da escola. Bobbitt (1918/2004) - autor da obra The Curriculum, que é unanimemente referenciada como a que inicia os estudos especializados no campo há um século - referia-se assim ao significado latino da palavra, já tornado banal nas instituições escolares do seu tempo: quando aplicado à educação, "o currículo consiste na série de coisas que as crianças e os jovens devem experimentar para desenvolverem capacidades para fazerem as coisas bem-feitas, que preencham os afazeres da vida adulta, e para serem, em todos os aspetos, o que os adultos devem ser". Temos então a melhor imagem do que é a escola: sociedade em miniatura, microcosmos antecipado dos mil e um trabalhos de construção do idêntico e do mesmo. É para produzir o habitus tendente a perpetuar a mesmidade dos mais velhos e suas instituições que se lá entra tão cedo e só se sai para trabalhar e constituir família.

Por isso mesmo, dos vários conceitos tributários de currículo, o de ordem foi aquele que se exprimiu com mais intensidade nos debates pedagógicos travados ao longo do século XVI. Ora, a vinculação das ideias a procedimentos acomodados e devidamente alinhados, tanto na mente, quanto no discurso, implicou uma ressignificação no termo método que igualmente nos atinge no presente educacional. Recorre-se a ele sempre que se quer explicitar a procura do conhecimento ou se intenta clarificar as cadeias e os fluxos de uma pesquisa, mas é também invocado quando se trata de apresentar ou ensinar um qualquer assunto. A cultura escolar encontra na ideia de percurso orientado - não importa se para a virtude moral ou para o conhecimento científico - o seu mais precioso património. Método que nos devolve continuamente a ideia de um traçado e quase sempre conduz a um final já previamente desenhado e testado. Escreveu Descartes (1628/1989, p. 8) nas suas Regras para a Direção do Espírito publicadas em 1628: "Entendo por método um conjunto de regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber." Esta é uma definição atemporal porque exprime com inteira clareza a rotina de eficiência a que o conceito de método ainda nos submete - quando pensamos nele temos geralmente em mente uma série de passos ordenados que se devem percorrer de modo a produzir, com a maior eficácia possível, um efeito previamente desejado.

Porém, o tremendo interesse que associou a palavra método à especificação do processo de ensinar, e por isso mesmo aos passos que deviam ser dados numa ordem determinada para aceder a um conhecimento já estabelecido e fundamentado, é anterior em cerca de duas gerações ao tempo em que viveu o autor do Discurso do Método e cuja primeira edição data de 1637. De facto, na cultura universitária de Quinhentos, methodus foi deixando de ser uma espécie de apêndice de outros termos como ars, clavis, medius, ou mesmo empereia, para se estabilizar enquanto sinónimo de um experimento positivamente controlado e, por essa razão, passou a ser associado a scientia, doctrina, via compendiaria e até compendiu. É da segunda metade dessa centúria que provém a tradição incorporada ainda nas nossas instituições de educação e ensino segundo a qual doutrina é a própria ciência ou que ensinar uma coisa é o mesmo que demonstrá-la e prová-la. Desde então, método quer significar a ordem encontrada no interior de uma ciência perfeita e completamente organizada ou, ainda, a ordem de apresentar um assunto enquanto se ensina esse mesmo assunto. Falo dessa conhecida e tão triste disposição à prática que, através de rotinas de orientação e coordenação, de alinhamento, arrumação, seriação e enfileiramento gradual do saber, vão acomodando, dirigindo e uniformizando tanto os corpos de conhecimento quanto, no interior da classe, os próprios corpos dos sujeitos aprendentes.

É também daqui que emerge a imagem do professor como acometido ao seu próprio monólogo, distanciando-se de uma vez por todas da tradição dialógica e dialética clássica, de um ideal de um dar-receber próprios de uma cultura de base oral. A pedagogia do monodrama docente não mais cessou de se ampliar a partir do momento em que um professor se passou a fazer acompanhar de uma agenda programática e a sua ação a decorrer em horas fixas semanais durante boa parte dos meses de um ano. A sua figura consolidou-se historicamente como mero funcionário ou representante legítimo de um conhecimento-observável, passando a recair sobre ele as exigências mais requisitadas da cultura escolar - claridade, precisão, distinção, explicação e examinação. Desse modo, temos sido levados pela ação diligente e continuada deste ator social a valorizar a sequência apropriada dos itens e a tornar inteligível qualquer objeto, assunto ou matéria. A voz e o gesto professoral, prolongados pelo material didático a que os alunos se obrigam a deitar mão, circunscrevem os limites concretos da realidade escolar, no interior da qual os procedimentos de natureza experimental e de investigação científica estão efetivamente excluídos em favor de uma prática rotineira da transmissão do saber. É da organização e apresentação quotidiana das matérias escolares que, na realidade, brota a ideia generalizada de identificar o método com um esforço e uma estratégia cognitiva concertada que não aceita o aleatório nem tão pouco sabe como permanecer no trabalho incerto da aproximação ao desconhecido. Método surge-nos pela cultura escolar como o conceito-senha que evocamos para declarar a morte da incerteza e da margem de erro. Consiste então na perseguição de regras e etapas para as quais se tem de antemão uma resposta determinada; corresponde a uma economia de meios e de investimento que nos deve poupar a esforços inúteis, tergiversações, jogos de acaso ou a indeterminações excêntricas; preserva-nos do passo em falso, do aleatório e dos caminhos ignotos, fazendo-nos andar sempre de forma gradual do mais simples para o mais complexo, a fim de alcançarmos sem qualquer rotura ou descontinuidade o fim que temos em vista; faz-nos aceitar como certas somente as evidências. Enfim, método é a regra comumente seguida para combater a pluralidade e que encontra na atividade professoral a sua imagem mais remota. Seja qual for a estratégia de ensino adotada, o trabalho docente converge para a representação de uma relação entre uma situação e o seu fim. Um trabalho cuja natureza é essencialmente política, havemos de vir a reconhecer, porquanto se institui sobre um pensamento universal da verdade, sobre uma invariabilidade que nega liminarmente toda e qualquer circulação entre aqueles saberes que os princípios e os critérios do seu método não conheçam ou pratiquem regularmente.

 

Transformação

A manutenção e a insistência nesta visão arcaica e anacrónica, no que se refere tanto à passagem, quanto sobretudo à compreensão do que seja nos nossos dias a essência mesma do ato de aprender, têm-nos transformado, a nós adultos-ainda-vivos, que nos encontramos a trabalhar nas diversas instituições de educação e ensino, em autênticos antepassados longínquos de todos os nativos digitais, quero dizer, daqueles que à nossa volta começam a crescer ativando e desenvolvendo outras regiões do cérebro que não são as mesmas da página, do livro ou de outros objetos que se carregam. É de uma meridiana evidência o reconhecer-se que os recém-chegados não conhecem, não articulam nem sintetizam da mesma forma que nós, porque as tecnologias que os habitam desde o nascimento não cessam de produzir e instaurar proximidades imediatas com uma velocidade e uma intensidade jamais vistas. Há uma caixa objetivante, um outro cérebro colocado mesmo à frente dos olhos, que torna o espaço hoje essencialmente distributivo. Para os adultos essa caixa é uma prótese tardia, ao passo que para as crianças constitui um verdadeiro plano de imanência.

Ora, é sobre este acontecimento, assim como das profundas consequências que traz no seu bojo acerca do ato de aprender e conhecer, que as instituições de ensino precisam de refletir com a maior urgência. O modelo escolar resiste a reconhecer que as novas relações do saber implicam o abandono radical da velha lógica da compartimentação, da verbalização da página-matriz e da página-compilação. Nas salas de aula há um burburinho e uma tagarelice permanentes que tornam cada vez mais inaudível a voz antiga do livro e o escrito recitado pelo professor. O tempo que passa já não é o do silêncio e da eloquência. Ninguém aguenta mais na sala de aula a fala de outrora que lia, recitava e mandava calar em nome do programa, do manual soberano e magistral; essa palavra docente que se dirigia a corpos ignorantes e silenciosos, prostrados e imobilizados em bancos apertados, carteiras mínimas, anfiteatros gigantes, sujeitos impossibilitados de lateralizar sequer o olhar quanto mais a palavra oral.

No processo de afirmação histórica da civilização ocidental pudemos beneficiar, convém igualmente ter presente aqui, de duas outras grandes revoluções da cognição, que permitiram, a seu tempo e a seu modo, um alargamento exponencial do acesso ao conhecimento e sua mais ampla generalização. Refiro-me, claro está e em primeiro lugar, à invenção da escrita fonética na Grécia Antiga que assegurou a alfabetização com uma rapidez nunca vista até aí. Esta tecnologia traduziu-se num empreendimento intelectual em que um meio de comunicação acústico se viu substituído pelo ato de olhar, pela visão da palavra escrita, traduzindo assim uma operação combinatória assaz complexa. O texto, uma vez lido, passou a ser tomado como o equivalente da palavra falada e daí deriva o princípio da nossa cultura de que só quando a linguagem está escrita é que se torna possível pensar acerca dela. A paideia nasceu na Grécia sob o impulso da escrita, como todos sabemos. Muitos séculos à frente, no Renascimento, a invenção da tipografia deu um segundo impulso a este processo, ao permitir fixar, preservar e duplicar a informação, traduzindo-se na produção em massa de monografias e outros textos que se puderam dispersar rapidamente por todo o planeta. Foi aí que nasceu a ciência moderna e os projetos de alfabetização da população encontraram efetivas condições para se materializar. A tipografia acelerou o deslocamento da sonoridade para o interior da página, no qual a palavra passou a ser sempre identificável e a abrir-se a novas combinações temáticas. A fim de multiplicar os enunciados era mister que os seus conteúdos respetivos se mantivessem acessíveis por meio de índices e cabeçalhos, títulos e subtítulos, parágrafos autónomos e espaçamentos, corpos de letra diversos... A palavra, a frase e o texto adquiriam uma nova materialidade na superfície do papel impresso. Com esta segunda revolução tecnológica, o leitor viu-se no interior de uma verdadeira habitação: os elementos que encontramos em qualquer índice passaram a ser os lugares onde a palavra reside fisicamente e é identificável numa superfície concreta. Ao gesto de registar, acumular e armazenar ordenadamente o conhecimento passou-se a juntar um outro, o de readquirir e reaver instantaneamente uma parte do todo para ulterior manuseio. São efetivamente estes os dois grandes momentos que ampliaram enormemente o campo de possibilidade da invenção. Um aprofundamento das literacias e das acessibilidades da palavra que nos interpelam ainda diretamente.

Com efeito, ainda estamos bem no interior dessa longa viagem da inclusão social, da democratização não apenas do conhecimento e da cultura, mas igualmente da sua construção. Chegou a nossa vez de assimilar o alcance destoutro fantástico movimento compressão do tempo e do espaço trazido pela tecnologia digital, da possibilidade de fazer de cada homem um criador e não um mero consumidor-espetador. Vivemos hoje a possibilidade da dispersão absoluta e da livre circulação do saber, um tempo histórico em que a materialidade do discurso se esboça em novas modalidades de projeção da palavra e sua circulação, não já entre sítios, mas entre procedimentos e processos construtivos. Hoje, a inventividade é essencialmente plástica e desenvolve-se no enfrentamento direto de todas as classificações, por meio de uma mecânica simultânea de inscrição, distanciação e aproximação das palavras e das coisas.

A ser assim, Futuro seria o nome provisório que daríamos a essa potência, a essa força movente já posta em atividade e que urge assumir por inteiro nas escolas, em todas as escolas e em todos os níveis de ensino. Nas instituições de ensino é mister conferir a maior dignidade e o estatuto mais elevado às interações centradas nas formas e nas modulações do possível, a apostar tudo nos processos de conquista e aquisição do fazer e quase nada nas demonstrações. Para tanto teríamos de começar por aceitar que a essência do aprender identifica e desenha o fluxo como método, e que este se só terá condições de se estruturar na oralidade difusa, na assunção da palavra plural, no diálogo puro.

 

Uma comunidade de iguais

Qualquer forma de resistência crítica supõe, neste nosso mundo totalmente constituído a partir da cultura escolar, a edificação de uma comunidade de iguais. A evidência de que partimos é a de que ninguém pode nada sozinho. De facto, só o grupo de pares consegue potencializar e multiplicar a ação reflexiva acerca dos saberes. A parábola de um mundo dividido entre espíritos sábios e espíritos ignorantes, insista-se, apenas tem servido para negar a simetria de duas vontades, a possibilidade de um encontro feliz entre duas inteligências. Ora, ensinar e aprender não constituem uma potência divisível quando todos pudermos compreender que todo o saber se ergue a partir da cooperação e do entrecruzamento de textos, ideias e pontos de vista. Que o cerne de todo o método consiste, tão-só, em procurar e que, no processo da procura, alunos e professores coincidem por inteiro. Não há possibilidade de construção da informação fora da troca, dos canais, das redes, dos servidores, dessa poética da fluidez que torna todo o pensamento híbrido e cada texto um intertexto, cada obra de arte num artefacto que pensa e relança a própria arte. Formação e mestiçagem deveriam, nesta perspetiva, tornam-se, através da vivência escolar, palavras sinónimas. Exatamente isto nos vem lembrando insistentemente Michel Serres ou Jacques Rancière, entre muitos outros:

Nunca deixar de partilhar saber e informação. Como? Ativo e passivo, usado na língua francesa tanto para o docente como para o discente, o verbo apprendre [que inclui os sentidos de "aprender" e de "ensinar"] deveria descrever uma interacção simétrica. Ninguém, efetivamente, sabe mais do que qualquer outro, pelo menos sempre e em todas as coisas. Então, ele tem o dever de partilhar a sua ciência e de permutá-la com o que a ignora, pela que ele ignora. Equivalente, o intercâmbio supõe que, tanto como os homens, todos os saberes, práticos ou teóricos, se equivalem, inclusive os que a arrogância não quer reconhecer, devido à sua condição humilde e baixa. Todos os saberes são livres e iguais de direito (Serres, 1997, p. 174).

Compreender não é mais do que traduzir, isto é, fornecer o equivalente de um texto, mas não a sua razão. Nada há atrás da página escrita, nenhum fundo duplo que necessite do trabalho de uma inteligência outra, a do explicador; nenhuma língua do mestre, nenhuma língua da língua cujas palavras e frases tenham o poder de dizer a razão das palavras e frases de um texto [...]. Aprender e compreender são duas maneiras de exprimir o mesmo ato da tradução. Não há aquém dos textos, a não ser a vontade de se expressar, isto é, de traduzir (Rancière, 2007, pp. 27-28).

Professores e alunos têm de começar a reconhecer-se também como iguais na procura do saber, mesmo se a relação seja fundada na aquisição e domínio das linguagens e das técnicas por parte dos segundos. Ninguém sabe tudo e em todas as ocasiões; uns e outros se devem entregar a uma prática volátil, contudo inteiramente revivificante, que consiste em aceder, ocupar e moldar o conhecimento em simultâneo. A nossa época reclama por uma aprendizagem que saiba fragmentar e mesclar, que insista, logo desde os primeiros anos do jardim infantil, em fazer com que parcelas de conhecimento desemboquem em objetos híbridos, exprimindo assim que todos os enunciados e realizações humanas são contingentes e estão sempre precisar de novos suplementos, novas realizações. Tudo está feito; tudo está por fazer (Serres, 2013). É na exigência desse labor instante, destinado a fundir as fronteiras e os limites físicos de ontem, que cada um aprenderá adaptar-se a um amanhã imprevisível e incerto. Diferentemente de todas as gerações anteriores, cujos destinos profissionais estavam continuamente a ser percecionados e prescritos ao longo da trajetória escolar, nenhuma criança ou jovem pode razoavelmente saber ao certo que trabalhos irá encontrar mais à frente e se eles já existem ou estão por nascer. Por isso, em lugar da recapitulação de conteúdos, temos de criar todas as condições para que, já a partir da infância e na sua inteireza mesma, seja possível a cada um percorrer os vários processos sociais em que se dá a construção da cultura e da ciência toda. É por essa razão maior que os alunos precisam de ser chamados a participar no planeamento, organização e avaliação de todas as práticas, como tantas vezes lembra Niza (2012) em Escritos sobre educação.

A ser assim, na aprendizagem escolar ficaríamos bem cientes que, no nosso tempo, são os conceitos de reciprocidade e de cooperação, os que mais importam na relação educativa. Trata-se de conquistar para todas as infâncias esse tempo longo e lento da conversa e do trabalho, esse afinco do pensar alto, da fala e da escuta ativa como sinónimo da troca e da arte da procura, da ideia, do enunciado, e da construção da obra. A escola tem de se conceber como um laboratório de experimentação, o lugar da busca permanente de um idioma pessoal numa constante afirmação do estar-a-ser junto. Onde antes se via homogeneização deve agora passar a ver-se singularização. Como também afirmou tantas vezes Heidegger (2008, p. 114, 155, 157], "a comunidade só se torna possível sobre a base um-com-o-outro" e não se explica como um somatório de "eus" ou pela relação "eu-tu". E como nas relações de amizade, o ser reflexivo e crítico apenas encontrará possibilidades de se tornar num si próprio quando está co-originariamente junto a outro alguém. Precisa do diálogo com colegas e mestres para saber quem é. Ora, este ideal da aprendizagem como processo de energização interativa e autodesenvolvimento, também se há de transmutar em exigência docente, fazendo com que o educador saiba que precisa, para a estruturação da sua própria tarefa, da presença constante do elemento mais novo e ainda em processo de formação.

Imagino, amiúde, o que poderiam ser as lógicas de trabalho de uma escola por vir destinada a envolver todas as crianças e jovens numa dinâmica que associasse simultaneamente o trabalho oficinal com o aprofundamento de uma reflexividade teórica acerca dos processos criativos. Um espaço que albergasse uma estrutura suscetível de promover e ampliar infinitamente a troca aberta de ideias e práticas, o trânsito permanente entre conceptualização e execução técnica. Em que todos os intervenientes se fossem paulatinamente integrando num modelo móvel - temos ao nosso dispor a palavra seminário que se estruturou na Universidade alemã do século XIX para representar a imagem de uma comunidade escolar em que alunos e professores assumem o pacto da busca do saber - que soubesse cruzar plenamente a lógica da sessão teórica, com interações mais dinâmicas, de tipo teórico-prático, como as do regime tutorial, do workshop ou do atelier. Cada um destes formatos de interação pedagógica haveria de funcionar como prolongamento e condição de emergência do outro, quebrando o mais possível as fronteiras entre o conceber, o explicitar e o fazer. Só assim se poderia institucionalizar um dispositivo permanente de incitamento à ideação e à discussão, à escrita e à reescrita científica, à execução e à re-execução científica, literária e artística. Os alunos articulariam as suas questões de investigação num vaivém constante entre o pensamento acerca das condições de possibilidade do devir arte e o exercício mesmo do fazer. O cruzamento de disciplinas, de discursos e de metodologias constituiria a base que iria permitir ao aluno, ao longo do seu processo formativo, ensaiar o desdobramento permanente de conceitos, de vocabulários e de técnicas. Seria, porventura, da dinâmica gerada por esta interação com os adultos que a escola mais se afastaria e romperia com as práticas clássicas da aprendizagem - aquelas em que todo o professor abandonaria a função de repetidor/explicador e se colocaria do lado da produção do discurso, sendo ele mesmo um exemplo desse devir questionador. A presença do professor simbolizaria e intensificaria o desejo de investigar, a procura do saber, o infinito da interpretação. A reciprocidade e os fluxos de troca constantes, entre alunos e professores, estariam na base de todos os métodos de trabalho. Eis por que acredito que qualquer mudança supõe radicalmente a possibilidade de edificação de uma comunidade de iguais.

A edificação pedagógica por que me bato corresponde a um artesanato, a um devir, um estar a ser. Por isso, a aplicação de uma teoria afigura-se-me sempre realizada no plano local, num domínio relativamente circunscrito; é certo que uma solução prática se pode estender a mais do que uma realidade, mas nunca se imporá de modo mecânico e universal. O poder da teoria está em que ela se multiplica e faz multiplicar. O grande desafio de qualquer professor na atualidade estará na disponibilidade a reconhecer obstáculos, choques e barreiras, posto que será esse enfrentamento que o irá conduzir a um novo diagnóstico, que o fará percorrer um caminho diferente do inicialmente previsto. Tomo de empréstimo algumas palavras de Deleuze (2006, p. 266) - trocadas com Michel Foucault numa célebre entrevista de 1972 intitulada "Os intelectuais e o poder" -, porque julgo estas suas palavras dão bem conta do tipo de articulação que todos nós tentamos fazer. Diz ele:

A prática é um conjunto de revezamentos de um ponto teórico a outro e a teoria um revezamento de uma prática a outra. Teoria alguma se pode desenvolver sem encontrar uma espécie de muro, e é preciso a prática para atravessar o muro. [...] Uma teoria é exatamente como uma caixa de ferramentas". E um pouco mais adiante Deleuze colocava uma importante pergunta: "Quem fala e quem age?" Para logo responder assim: "Há sempre uma multiplicidade, mesmo na pessoa que fala ou age. Nós somos todos grupúsculos. Não há mais representação, há somente ação de teoria, ação de prática em relações de revezamento em rede, em comunidade.

Outro grande desafio que todos, alunos e professores, temos pela frente é o de nos conseguirmos assumir também como uma comunidade de escritores. As noções de ludicidade, de reelaboração, de troca e de anonimato da linguagem, consubstanciais a todo e qualquer ato criativo, científico ou outro, são as que evidentemente chocam de frente com os múltiplos e insuspeitos poderes que combatem a expansão do mais perturbador dos desejos. Aquele que, sob o nome comum de escrita, descobre uma operação que simultaneamente reflete, inventa e dispõe artefactos no mundo como se de uma qualquer ficção experimental se tratasse. Estou, por isso, igualmente persuadido de que o maior enfrentamento que possamos fazer a qualquer lógica de dominação é o de proclamar que todo o conhecimento é de natureza essencialmente poético-performativa, porque, uma vez concretizado num qualquer objeto, logo se oferece ao desdobramento, a ser retomado, ultrapassado, reterritorializado por outro. A escrita, essa grande máquina de agenciamento da pluralidade. Os conjuntos que ela arregimenta transportam-nos do conhecido para o desconhecido. É uma força de exteriorização. A escrita produz o salto e a viagem. A escrita é nómada. É, enfim, a melhor arma que temos entre as mãos para rompermos o cerco.

 

Coda

O que aqui acabo de escrever acerca do amanhã da escola pode parecer de uma meridiana evidência a uns ou um objetivo inalcançável e utópico a outros. Sei bem que não há novidade alguma nestas minhas últimas afirmações. A escola será a última a aceitar a complexidade e a heterogeneidade do conhecimento contemporâneo. Por isso, defendo que o seu amanhã impõe um confronto com o que ela tem sido. Não vejo o nosso futuro fora da possibilidade de materialização de uma contrainstituição, de uma proposta simultaneamente ativa e cognitiva, afetiva e existencial, em clara oposição com a promessa totalizante e embrutecedora sobre a qual se funda o nosso modelo escolar atual. É exatamente daqui, deste intolerável desconforto do presente, que partem e regressam todas as minhas considerações. Por isso termino como comecei: o escândalo maior da vida escolar contemporânea está em que não cause escândalo o manter-se ativo o princípio, velho de séculos, de que é possível, necessário e útil um método universal de ensinar tudo a todos ao mesmo tempo, nestes nossos dias, caracterizados pela instabilidade e pela imprevisibilidade, pela manifesta impossibilidade de encontrarmos uma só resposta para cada pergunta.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Jorge Ramos do Ó
jorge.o@ie.ul.pt

Submetido em: 03/07/2018
Revisto em: 12/09/2018
Aceito em: 18/09/2018

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