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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

ARTIGOS

 

Desafios da militância na esquerda: artefatos para a insurgência1

 

Challenges of militancy in the left: artifacts for insurgency

 

Desafíos de la militancia en la izquierda: artefactos para la insurgencia

 

 

Alessandra Speranza Lacaz

Docente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem a intenção de discutir a relação entre algumas práticas de militância e o Estado, questionando os efeitos desta aliança na efetiva transformação social e problematizando se tal aposta não vem funcionando como lubrificante da máquina estatal, apaziguando, assim, insurgências por parte da população e dos próprios movimentos sociais. Como forma de pensar essa questão, o texto começa pensando a constituição da razão de Estado no século XVI e da governamentalidade como nova prática política de controle sobre a população que, ao longo dos séculos vem aperfeiçoando seus mecanismos e táticas. Posteriormente, analisa as singularidades da emergência do Estado no Brasil, transitando pelas noções de democracia, colonialismo e matabilidade. E por fim, discute a ideia de captura da Forma-Estado sobre a produção de subjetividades e o desejo, trazendo a ideia de máquina de guerra como possibilidade de resistência.

Palavras-chave: Militância; Estado; Governamentalidade; Democracia; Produção de subjetividades; Máquina de guerra.


ABSTRACT

This article intends to discuss the relationship between some practices of militancy and the State, questioning the effects of this alliance on the effective social transformation and problematizing if such a bet does not work as a lubricant of the state machine, thus appeasing insurgencies by the population and the social movements themselves. As a way of thinking about this question, the text begins by considering the constitution of the state reason in the sixteenth century and of governmentality as a new political practice of control over the population that, over the centuries, has perfected its mechanisms and tactics. Subsequently, it analyzes the singularities of the emergence of the State in Brazil, passing through the notions of democracy, colonialism and matabilidade. Finally, it discusses the idea of the capture of the Form-State on the production of subjectivities and desire, bringing the idea of a war machine as a possibility of resistance.

Keywords: Militancy; State; Governmentality; Democracy; Production of subjectivity; War-machine.


RESUMEN

Este artículo tiene la intención de discutir la relación entre algunas prácticas de militancia y el Estado, cuestionando los efectos de esta alianza en la efectiva transformación social y problematizando si tal apuesta no viene funcionando como lubricante de la máquina estatal, apaciguando así, insurgencias por parte de la población y de los propios movimientos sociales. Como forma de pensar esta cuestión, el texto comienza pensando la constitución de la razón de Estado en el siglo XVI y de la gubernamentalidad como nueva práctica política de control sobre la población que, a lo largo de los siglos viene perfeccionando sus mecanismos y tácticas. Posteriormente, analiza las singularidades de la emergencia del Estado en Brasil, transitando por las nociones de democracia, colonialismo y mutabilidad. Y por fin, discute la idea de captura de la Forma-Estado sobre la producción de subjetividades y el deseo, trayendo la idea de máquina de guerra como posibilidad de resistencia.

Palabras clave: Militancia; Estado; Gubernamentalidad; Democracia; Producción de subjetividades; Máquina de guerra.


 

 

Damos início a este artigo com a Figura que nos convoca a pensar sobre nossas práticas de militância. Apesar de toda crítica ao Estado como instrumento das tecnologias de assujeitamento e opressão de grande parte da população, o campo da esquerda, majoritariamente influenciada pelo pensamento marxista, ainda aposta nesta via como meio de transformação. O que queremos problematizar é até que ponto o enamoramento da esquerda pelo Estado vem conseguindo intervir nos modos de produção de subjetividade dominante, modos esses que sustentam funcionamentos genocidas e até fascistas em crescente expansão e institucionalização. Tal questão serve para nos perguntarmos se esta aliança, esquerda-Estado, vem trabalhando também como lubrificante da máquina estatal, apaziguando, assim, insurgências por parte da população e dos próprios movimentos sociais.

 

 

O Estado e a governamentalidade

O Estado está presente macro e micropoliticamente nos discursos de muitos movimentos sociais e organizações políticas e seus representantes. Foucault, no curso intitulado Segurança, Território e População, nos apresenta a ideia de governamentalidade, isto é, as práticas de governo que passaram a se tornar preeminentes à soberania e às disciplinas, a partir do século XVI, e que posteriormente se tornaram parte de uma instrumentalização do Estado como o reconhecemos hoje.

A partir do século XVI, quando se inicia a crise dos sistemas feudais na Europa, há uma transformação quanto à racionalidade governamental, que Foucault (2008) denomina como o surgimento de uma razão de Estado. Neste período começam a surgir inúmeros tratados não mais direcionados a aconselhar o príncipe quanto à manutenção de seu principado, mas sim no sentido de pensar as artes de governar:

De modo geral, o problema do governo aparece no século XVI com relação a questões bastante diferentes e sob múltiplos aspectos: problema do governo de si mesmo - reatualizado, por exemplo, pelo retorno ao estoicismo no século XVI; problema do governo das almas e das condutas, tema da pastoral católica e protestante; problema do governo das crianças, problemática central da pedagogia, que aparece e se desenvolve no século XVI; enfim, problema do governo dos Estados pelos príncipes. Como se governar, como ser governado, como fazer para ser melhor governante possível, etc. (Foucault, 1990, pp. 277-278).

Neste período, portanto, começa a aparecer no campo da ciência política uma preocupação com a questão do governo. No entanto, apesar do surgimento de diversos tratados nesta época discutindo essa temática, a ideia de um governo que não fosse exercido por um soberano sobre seu território só começou a ganhar expressividade a partir do século XVIII. Dentre os motivos que teriam evitado que as artes de governar se desenvolvessem como prática política mais consistente à época estavam a economia estreita e frágil baseada ainda na família e os acontecimentos históricos marcantes, como a Guerra dos 30 anos e as revoltas campesinas e urbanas que contribuíram para a crise do sistema feudal.

No entanto, já no século XVIII, alguns processos foram catalisadores do desenvolvimento e capilarização das artes de governar, dentre eles: a expansão demográfica no século XVIII, uma abundância monetária e o aumento da produção agrícola. O crescimento da população, em especial, se torna um dos principais motivos para o desenvolvimento de técnicas de controle do Estado. Essa nova racionalidade política acerca das práticas de governar se caracterizará, especialmente a partir do século XVIII, por pensar como governar as massas ao mesmo tempo incidindo sobre sua produção de subjetividade (micro) e sobre as populações (macro). Era preciso uma máquina que pudesse gerir ambas as esferas concomitantemente, isto é, governar entre um mínimo e um máximo. O Estado, assim, passa a ser uma espécie de operador do poder que ao mesmo tempo incidia sobre os planos individual (qualitativa) e totalizante (quantitativa).

Diferentemente, portanto, do poder soberano, a governamentalização do Estado se caracterizará como a criação de um maquinário com uma diversidade de ferramentas e estratégias para a garantia não mais de um território e de súditos em torno do soberano, mas para a garantia de sua existência e conservação. Para tornar isso funcional e possível, não bastava a figura de um soberano, mas seria preciso uma série de agentes sociais que pudessem exercer a função de governar, formando, assim, um corpo muito mais amplo e diversificado de técnicas de controle. Dentre tais agentes, podemos citar a medicina, a pedagogia e, posteriormente, até a psicologia, como campos de saber que vão produzir conhecimento sobre a população buscando aprimorar modos de agir sobre ela. Como disciplinar melhor as crianças, como cuidar da saúde, como se comportar, como se relacionar, entre outras condutas que vão sendo dirigidas às pessoas por meio dos especialistas de cada campo de saber. Em especial, emerge a estatística como tecnologia que possibilitava esquadrinhar o funcionamento populacional sob a forma de um mapeamento dos padrões sociais - como taxas de natalidade, mortalidade, expectativa de vida, entre outras - buscando investir na vida como novo objeto do poder, o que Foucault denominará de Biopoder (poder sobre a vida).

A figura do soberano, portanto, vai se transmutando na do governante, que já não englobaria características apenas salvacionistas ou paternalistas, mas as de fazer o Estado se tornar sólido, permanente, rico e forte (Foucault, 2008). Importante ressaltar que não se trata de uma relação de substituição de uma prática por outra, mas de uma triangulação entre "soberania-disciplina-gestão governamental, que tem na população seu alvo principal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais" (Foucault, 1990, p. 291). Se antes o soberano estava voltado à manutenção de seu lugar de poder, agora, com as mudanças que vinham ocorrendo economicamente na sociedade, era preciso inventar outros modos de governar que pudessem levar em consideração os movimentos emergentes do capital e das novas condições que se apresentavam socialmente.

As artes de governar no Estado teriam tomado corpo através de três práticas: o mercantilismo como forma de enriquecimento do próprio Estado através da organização da produção comercial; a instauração de uma nova gestão interna (ou polícia) como regulamentação da vida no país; e a organização de um aparelho diplomático-militar como estratégia de manutenção das fronteiras entre os Estados, garantindo assim a pluralidade e a não constituição de impérios, como antes.

Com relação, especialmente, à gestão interna, Foucault vai se debruçar sobre os dispositivos de segurança como analisadores de tal processo rearranjo entre as modalidades de poder soberana, disciplinar e do biopoder (que se inaugura neste contexto histórico). As ruas começam a ser vistas como local de perigo, seja por uma lógica médica e higienista, que localiza nesses espaços os focos de doença e insalubridade, seja pela circulação de figuras que à época eram denominadas como vagabundos, criminosos, prostitutas etc. A casa e a família, como parte de um instrumento de privatização da vida, passam a ser denominados como os territórios seguros a serem ocupados e investidos. A polícia, então, se caracteriza, neste momento, como o braço de governo do Estado na gestão da segurança da população nas ruas, seja aniquilando ou prendendo os supostos perigosos.

Assim, a governamentalidade vai se constituindo como um conjunto de práticas de controle social, voltado para como governar melhor a população emergente na Europa. O investimento nas artes de governar vão se voltar para uma melhoria das condições de vida da população como forma de estender as riquezas do Estado.

 

Estado e governamentalidade no Brasil

A compreensão desenvolvida acima nos serve, apesar de se tratar de uma racionalidade europeia, para entender que, desde o seu surgimento, o Estado tem uma relação intrínseca com o poder e com as artes de governar. Seja ele de que regime for e de quais tecnologias faz uso. O Estado, desde sua constituição até a forma como conhecemos hoje, volta-se prioritariamente para as práticas de controle sobre a população.

Claro que, ao apresentar essa ideia, estamos falando de uma realidade diferente da latino-americana, que tem na constituição de seus Estados uma série de outros atravessamentos. Ao trazer essa análise para o contexto da América Latina é preciso dar linha a algumas singularidades do processo. A emergência dos Estados latinos não pode ser debatida sem levar em consideração o processo histórico de colonização e seus efeitos físicos, econômicos e subjetivos, que se perpetuam até hoje em nossos modos de vida.

Enquanto na Europa o modo Estado começa a investir na expansão da vida visando a sua manutenção e enriquecimento, nas Américas, o Estado era atravessado pelo interesse Europeu, investindo em larga escala na colonização das populações ameríndias e africanas para a garantia de mão de obra escrava. Ou seja, enquanto nos territórios ditos civilizados desenvolvia-se uma série de tratados sobre como governar melhor sua própria gente, para as colônias - reconhecidas como "selvagens" ou "atrasados" - levava-se tal civilização através de práticas de barbárie (Cesaire, 2010), da animalização dos sujeitos de etnias diferentes e da colonização dos modos de vida e pensamento, este último por meio, especialmente, da conduta jesuíta de evangelização/educação cristã, no caso do Brasil.

O Estado europeu apresentava-se aqui por meio de outras práticas, muito mais conectadas ao que seria o poder soberano do que efetivamente às artes de governar citadas por Foucault, até o início do século XIX, quando a família real portuguesa chega ao Brasil. A vinda da corte portuguesa modifica a política interna, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, no sentido de investir na modernização da cidade, construindo teatros, biblioteca, museus, liceus, entre outros.

A governamentalidade, no entanto, se intensifica como tecnologia de poder no Brasil ao final do século XIX, motivado pela necessidade de controle sobre a população negra, principalmente.

No Brasil, na segunda metade do século XIX, as cidades iniciam sua expansão e consolidação e, ao mesmo tempo, suas ruas são tomadas por negros fugitivos das senzalas, revoltosos dos quilombos, guerreiros capoeiristas com seus dorsos nus e sua dança-luta perigosa. Pelas ruas, espalhavam-se as possibilidades de revoltas, com histórias vindas do nordeste brasileiro de quilombos formados desde o final do século XVI [...]. No final do Império, não só as ruas do Rio de Janeiro, o perigo e o medo estavam associados à presença de negros, apontados como vadios, mendicantes, arruaceiros, revoltados e violentos (Augusto, 2013, p. 43).

O investimento sobre esta população se dava por meio de iniciativas estatais e privadas, desde as casas de caridade voltadas às crianças em situação de rua e bebês abandonados nas rodas, até a política repressivo-policial e higienista, que começava a contagiar médicos e juristas envolvidos nesta discussão (Augusto, 2013). Além da população negra, outros grupos sociais começavam a chamar atenção dos especialistas da época, tais como crianças, especialmente aquelas em situação de rua/abandono; os imigrantes italianos e espanhóis que movimentavam discussões políticas de vertente anarquista; e os migrantes de outras partes do país que vinham para o Sudeste, em especial São Paulo, para arriscar um trabalho com melhores condições. Estes segmentos, que nem sempre conseguiam se inserir em algum trabalho ou situação de vida "regularizada", passam a se tornar alvo das polícias, de instituições filantrópicas ou estatais de correção, com o intuito de limpar as ruas e torná-las seguras para o "cidadão de bem" (Augusto, 2013).

Pegando a estatística como analisador, até esse momento da história do Brasil, era a Coroa Portuguesa quem determinava levantamentos populacionais, realizados de maneira inconsistente, com a justificativa de conhecer a população livre e adulta passível de ser usada na defesa do território (IBGE, 2018) Como marco da mudança de racionalidade podemos citar a criação da Diretoria Geral de Estatística, em janeiro de 1871, que coordenou o primeiro levantamento censitário nomeado como Recenseamento Geral do Império do Brasil no ano seguinte (Camargo, 2009), inaugurando o uso das estatísticas na arte de governo no Brasil.

O processo de governamentalização do Estado no Brasil, portanto, se constrói de forma diferente se comparada à da Europa. Não podemos afirmar que historicamente se construiu em algum momento uma prática de governo voltada majoritariamente ao bem-estar da população ou ao investimento sobre a vida, mas que tal arte de governar sempre esteve misturada aos interesses privados das oligarquias no poder e à bárbara prática racista e de extermínio em relação às populações negras, indígenas e pobres, que não conseguimos nos desvencilhar até hoje.

Um país de tradição paternalista, profundamente agrário, envolto em projetos desenvolvimentistas estatizantes com base na industrialização, querendo afirmar sua riqueza nacional, é um país com uma política republicana oligárquica, compondo continuidades com os setores burgueses emergentes e, por conseguinte, com uma classe trabalhadora institucionalmente pastorada (Passetti, 2014, p. 3).

Não podemos perder de vista, portanto, que a história brasileira como nos é predominantemente contada, é aquela que privilegiou os grandes acordos entre os poderosos e deu pouca importância às insurgências populares. O histórico das insurgências é também de aniquilamento das forças divergentes ao poder dominante. O processo de colonização teve efeitos drásticos e mortais que se perpetuam até hoje, inclusive neste aspecto. Apesar de profundamente naturalizada nas narrativas históricas, a escravidão de negros e índios foi um dos mecanismos mais violentos de subjugação e extermínio.

Tal modelo colonial perdura na forma de exploração ou domínio de certos grupos sobre outros, enfatizados ainda por um recorte racial nunca solucionado. Nesse caso, a colonização foi a prática inaugural que fundamenta o racismo institucional distribuído nas mais extensas e diversas esferas da vida até os dias atuais. Um exemplo disso é a quase inexistência de produções acadêmicas que discutam a governamentalidade no Brasil, enquanto saltam aos milhares publicações que discutem conceitualmente tal noção sob o viés de uma perspectiva histórica europeia.

Soma-se a isso a experiência das ditaduras militares que se instalaram em diversos países latino-americanos durante as décadas de 60 e 70 do século passado. Tendo vivido tal regime no Brasil, a esquerda, que aqui se constituía há poucas décadas, passa a concentrar sua pauta na retomada da democracia como solução à repressão, à tortura, aos desaparecimentos e à censura. Diante de uma situação em que não era garantida a diversidade de pensamento e a oposição ao governo, especialmente após o AI52, a democracia e a implementação de direitos garantidos constitucionalmente pareciam grandes possibilidades de retomada do poder popular através do Estado.

Já nos últimos anos do regime militar, há a intensificação na articulação de diversos movimentos sociais no sentido de construir leis que pudessem assegurar que direitos como a livre expressão, a livre imprensa, a defesa e até mesmo a vida, não fossem jamais suspendidos novamente. Tal movimento culminou na construção da Constituição de 1988, marco da afirmação do Estado Democrático de Direito como saída fundamental aos tempos sombrios de ditadura.

Como desdobramento da nova Constituição, uma série de políticas públicas são forjadas nos mais diversos campos - saúde, educação, assistência - ao longo das décadas seguintes, como estratégia para garantir o acesso da população aos direitos prescritos em lei. No entanto, mesmo com a promulgação de leis consideradas bastante progressistas e alinhadas com os Direitos Humanos internacionais, o que podemos ver é que os índices de violência, em especial as taxas de homicídios de grupos minoritários3, só aumentam (Cerqueira, 2018).

As políticas públicas passaram a funcionar não apenas como intercessoras entre o Estado e a população, mas também como controle sobre ela, na medida em que, para serem acessadas era necessário localizar, fixar, enquadrar, vigiar os sujeitos. Desde os cadastros às visitas domiciliares, dos laudos técnicos às prescrições de uma verdade científica sobre os modos de vida distintos, seria importante garantir um local de moradia, outro de trabalho, uma situação civil, um registro aos sujeitos. Não quaisquer sujeitos, mas principalmente aqueles que poderiam oferecer risco à ordem social que se constituía na época. Tratava-se de uma prática de regulamentar a vida na cidade, tornando mais fácil a localização e o esquadrinhamento dos indivíduos como forma de captura.

A fim de garantir sua manutenção, portanto, o Estado busca eliminar tudo aquilo que o ameaça. Afinal, "todos devem pertencer ao Estado" (Foucault, 2015, p. 48). A única guerra travada pelo Estado é da eliminação deste sujeito considerado perigoso e que aqui no Brasil terá um recorte racial e político importante.

 

A esquerda, o Estado Democrático de Direito e a matabilidade

A história das lutas na América Latina não é recente. Comumente contamos nossa história a partir da chegada dos europeus em nosso território, como se esse marco fosse o disparador de nossa existência. No entanto, muitos povos aqui vivam, com organizações, línguas e modos de vida diferentes. O processo de colonização trouxe, concomitantemente, uma série de lutas de resistência por parte dos nativos à dominação europeia (Varella, 2017).

Porém, entendemos que a esquerda, como assim a denominamos, é um campo heterogêneo que não diz respeito exatamente às lutas históricas de resistência que se deram no território brasileiro e latino, mas se inaugura como um campo político de percepção sobre o mundo. Nesse sentido, fazemos uso da definição de Deleuze para este entendimento:

Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure. [...] E ser de esquerda é o contrário. [...] Primeiro, eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois, o continente... europeu, por exemplo... depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte (Deleuze, 2018, p. 31).

Nesta concepção, a esquerda não é um campo teórico específico, nem se define por condutas determinadas, mas é entendida como um posicionamento político na vida - como a enxergamos, como nos relacionamos, que olhar temos sobre nossas práticas.

Até 1964, a esquerda se definia como revolucionária a partir de referenciais bastante claros ligados às produções marxistas ou anarquistas. A emergência da esquerda partidária no cenário político brasileiro se deu com a formação do Partido Comunista em 1922 a partir da aderência de lideranças anarquistas aos temas "bolcheviques sob influência da Revolução Russa de 1917" (Silva, 2009, p. 94). Importante ressaltar que a chegada dos imigrantes europeus, especialmente os italianos e espanhóis a partir do início do século XIX, contagiados com as produções de ideologia anarquista e marxista foi um importante fator histórico na constituição e organização das lutas sociais brasileiras.

Em 1956, foi instaurada uma crise mundial do comunismo com a denúncia, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, das atrocidades cometidas por Stalin na URSS, produzindo muitas divergências no campo da esquerda, levando à criação de outros partidos e posturas ideológicas (Silva, 2009), inclusive no Brasil.

Todavia, com o Golpe Militar em 1964, as expressões de oposição e resistência ao regime eram duramente reprimidas, garantido pouco ou nenhum espaço de luta nos períodos mais duros. Aqueles que buscaram insistir no combate à ditadura tiveram que fazê-lo de forma clandestina, pois as atividades dos partidos comunistas foram institucionalizadas como criminosas. Isso levou à prisão, tortura e morte ou desaparecimento, diversos integrantes do PCB e demais partidos ou grupos resistentes ao Regime.

Durante as décadas de 1960 e 1970, novas modalidades de lutas e referências intelectuais vão se aproximando do contexto brasileiro, especialmente pelas Universidades, fazendo com que autores como Foucault, Deleuze e Guattari se tornassem importantes analisadores para pensar o campo político por meio, principalmente, dos cursos de Psicologia. Apesar de tais modificações, que apostavam menos no encrudecimento partidário (perspectiva macropolítica) como caminho para a revolução, mas nas revoluções moleculares ou micropolíticas, ainda se manteve privilegiado o pensamento em torno das organizações políticas formais, hierárquicas e que brigavam pelo poder na forma do Estado (Monteiro, Coimbra, & Mendonça Filho, 2006).

Como vimos anteriormente, o Estado Democrático de Direito no Brasil é fruto das lutas de resistência contra a Ditadura Militar forjadas entre os anos 1960 e 1970 e da gritante aposta em um Estado amparado em direitos garantidos em lei. Porém, cabe-nos avaliar o que é isso que vimos denominando como democracia e que forças vêm compondo-a. Em termos literais, a democracia seria o governo do povo para o povo, baseado no sistema de representação onde cada um escolhe por meio das eleições, alguém que o represente no governo. Contudo, há certamente uma confusão que se passa pela noção de uma democracia que se encerra na representação. Segundo Casanova (2002),

A falta de exatidão com que se fala de democracia, ligada ao entusiasmo colossal que a democracia desperta no continente [latino-americano], constitui um dos desafios mais importantes para as ciências sociais. [...] Por mais estranho que pareça, ao analisar qualquer democracia, é necessário se perguntar como anda a repressão, e não só a que se exerce fisicamente contra as pessoas com perseguições, prisões, desaparecimentos, crimes e massacres (p. 167).

Um processo democrático teria que compreender uma complexidade muito maior de coisas do que o processo eleitoral em si, onde se deposita, historicamente, toda a aposta por mudanças sociais.

As eleições não tem nada de particularmente democrático: durante muito tempo os reis foram eleitos, e raros são os autocratas que dispensam um pequeno prazer plebiscitário de vez em quando, As eleições são democráticas apenas na medida em que permitem assegurar não uma participação das pessoas no governo, mas uma determinada adesão a este por meio da ilusão de o terem escolhido até certo ponto (Comitê Invisível, 2015, p. 82).

A fim de elucidar este ponto, buscamos trazer alguns dados que ilustram um problema em relação à efetividade das leis ligadas a pautas fundamentais na garantia de direitos humanos das minorias, entre elas a população jovem negra e das mulheres. Não podemos afirmar que as leis vêm produzindo uma transformação no que se refere, inclusive, à garantia da existência desses segmentos.

Segundo o Atlas da Violência de 2018, levantamento que reúne pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no Brasil, ainda em 2012, o número de jovens negros mortos antes de completar 25 anos superou o patamar de trinta mortes por 100 mil habitantes (taxa igual a 30,3). Esse número de casos consolida uma mudança de patamar nesse indicador (na ordem de 60 mil a 65 mil casos por ano) e se distancia das 50 mil a 58 mil mortes, ocorridas entre 2008 e 2013. Na década compreendida entre 2006 e 2016, o número de mortes de jovens no país aumentou 23,3%, um dado gritante. Vale lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069), como um importante marco da construção de direitos ligada a parte deste segmento, foi promulgado em 1990. E que o Estatuto da Juventude (Lei Federal nº 12.852) foi publicado em 2013. Ambos não garantiram a diminuição das práticas de extermínio de jovens negros no país, que apenas cresce.

A taxa de homicídios de mulheres também é alarmante, segundo o mesmo levantamento. De 2006 a 2016, o número de feminicídios (considerando as categorias doméstica, sexual e reprodutiva) aumentou 6,4% no Brasil, apesar de a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei Federal nº 11.340) datar justamente do ano de 2006.

Se formos, ainda, ilustrar os dados de feminicídio segundo um recorte racial, o quadro fica mais grave. A maior parte dessa população de jovens e mulheres mortos ou encarcerados é negra. Parte de nossa população, ainda concentrada entre aqueles de descendência africana ou indígena, é até hoje exterminada das mais diversas formas, desde o nutricídio4 até o homicídio propriamente dito. Isto é, desde a falta de acesso a uma alimentação saudável - seja por questões financeiras ou de praticidade, pois poucos têm condições para cuidar destas questões -, passando pelo acesso aos serviços de saúde e chegando na morte precoce de grande parte desta população, especialmente por situações de grave violência.

O modelo de representação e legalista não exerce na prática um tipo de mudança que incida nas estatísticas acima descritas, mas funciona muito mais como um instrumento para calar uma possível insurreição, já que em certa medida se sente que ao constituir um direito em lei estaríamos garantidos do acesso a ele. A militância da esquerda, especialmente aquela partidária, pauta suas principais lutas na garantia de direitos, na construção de leis e também, na criminalização como prática de transformação ou reparação para segmentos minoritários.

A ideia de um Estado democrático, portanto, seria quase um paradoxo, levando em consideração a perpetração de ainda mais mortes e desaparecimentos5, proporcionalmente, do que durante a ditadura militar. A lógica de representação baseada numa participação popular por meio do voto universal e do processo eleitoral como um todo, mostra-se, assim, falaciosa.

Assim, percebemos certo tipo de colonialismo que vai se perpetuando na forma de um Estado Democrático de Direito, reproduzindo ainda hoje práticas do sistema colonial, fazendo uso de tecnologias mais sofisticadas no controle especialmente das forças que desviam das suas formas de poder e o ameaçam destruir/destituir. A democracia, portanto, não garantiu o fim dos desaparecimentos, nem da tortura, nem da repressão e nem da escravidão. Mas talvez os tenha camuflado nas práticas que já acompanham o Brasil por tantos séculos.

Afinal, para a tranquilidade do poder, "matar de tempos em tempos" não seria afinal uma questão de necessidade?" (Mbembe, 2018a, p. 236). A ideia do Estado Democrático de Direito camufla, assim, uma lógica colonial racista ainda presente.

No colonialismo,

O soberano pode matar a qualquer momento ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é uma atividade codificada legalmente. Em vez disso, o terror colonial se entrelaça constantemente com um imaginário colonialista, caracterizado por terras selvagens, morte e ficções que criam o efeito de verdade (Mbembe, 2018b, p. 36).

Presumindo que o colonialismo compõe o Estado Democrático de Direito como mecanismo de poder, poderíamos afirmar que a matabilidade faria parte deste cálculo, dessa economia surgida com a razão de Estado. Mbembe vai chamar essa tecnologia de poder de necropolítica. Sobre essa questão, ele escreve:

Se o poder ainda depende de um controle estreito sobre os corpos (ou de sua concentração em campos), as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com a inscrição dos corpos em aparatos disciplinares do que inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo "massacre" (2018b, p. 59).

Apesar de o autor estar tratando do terrorismo e sua constituição como prática política, esta análise serve para nos fazer pensar a questão da matabilidade como forma de governo.

O que seria, então, a garantia de direitos quando o próprio Estado funciona impreterivelmente fazendo uso das técnicas do terror e, portanto, da matabilidade? Enquanto se discute nos planaltos e palanques mais e mais leis a serem construídas a fim de garantir direitos à população, mais e mais corpos são jogados nas valas das cidades, queimados em pneus, perfurados por balas de fuzil ou pistolas, ou permanecem desaparecidos.

As perguntas que emergem são: como falar em democracia, em participação popular, em ocupação do Estado, em reforma, em políticas públicas, se pensar no Estado Democrático de Direito brasileiro é admitir sua matabilidade como tecnologia fundamental? Há quantas décadas investimos no Estado esperando dele uma melhor condição de existência? O que ganhamos? Por que toleramos as mortes anunciadas acima e continuamos investindo em uma luta majoritariamente pautada na promulgação de leis que não nos vem garantindo sua efetividade?

A esquerda vem fazendo uso, em um contexto pós-golpe de 20166, do discurso que enaltece a democracia como fundamento crucial para a resolução das questões políticas que o país vem vivendo. No entanto, não se faz qualquer crítica às práticas realizadas para manutenção do estado no poder, que como vimos, está diretamente relacionada a uma conduta até mesmo fascista.

Nesse sentido, nos cabe questionar as práticas de governo exercidas também pela esquerda e sua vertente mais conservadora e/ou institucionalizada. Uma esquerda que foi se tornando nas últimas décadas, por meio da bandeira do Estado Democrático de Direito, legalista, eleitoreira, oportunista, pouco comprometida com as lutas cotidianas e também pouco disposta a ouvir as críticas em função de uma arrogância que passa pelo domínio de um estatuto de verdade sobre o que seria uma melhor organização social. Tal modo de militar vem se desdobrando, especialmente, numa prática entristecida, adoecedora e desmobilizadora, já que não consegue operar na prática aquilo que prega como mudança. Muitas pautas dos partidos considerados de esquerda pregam discursos voltados às mesmas questões que debatemos quanto às artes de governar, fazendo proliferar os discursos sobre um Estado que governe melhor, puna melhor, controle melhor. Essa esquerda, também criticada por práticas racistas, machistas, homofóbicas, tem muita dificuldade de abrir mão de intelectuais e representantes europeus, homens, brancos como possibilidade de reinvenção de suas práticas.

Retomamos, então, o que Deleuze nos falou sobre o que é a esquerda. Perdemos sua dimensão de percepção e precisamos urgentemente retomá-la a fim de nos debruçarmos sobre a revolução como prática cotidiana e não horizonte distante. Por onde, então, transitam os exercícios de liberdade na militância? A partir de tais percepções não seria precipitado afirmar que qualquer mudança deste quadro alarmante só poderia se dar na medida em que uma esquerda hegemônica pudesse se descolar da lógica e da expectativa de que somente através das mãos daqueles que matam seria possível compor alguma luta efetivamente transformadora.

 

O Estado em nós e a máquina de guerra: por onde transitam as resistências?

Até o momento, tratamos de pensar o Estado principalmente como uma instituição externa a nós. No entanto, gostaria de trazer neste trecho outro aspecto para pensar as práticas de governo perpetradas pelo aparelho de Estado e suas tecnologias colonialistas, na forma de uma capilarização e captura das produções de subjetividade.

Governar é conduzir os comportamentos de uma população, de uma multiplicidade que é necessário vigiar, como um pastor com seu rebanho, para maximizar o potencial e orientar a liberdade, É, portanto, levar em conta e modelar seus desejos, suas formas de fazer e de pensar, seus hábitos, seus temores, suas disposições, seu meio. É pôr em funcionamento um conjunto de táticas, de táticas discursivas, policiais, materiais, de atenção minuciosa às emoções populares, às oscilações misteriosas; é agir a partir de uma sensibilidade permanente à conjuntura afetiva e política de modo a prevenir tumultos e rebeliões. [...] garantir o domínio sobre o rebanho. Em suma, é manter uma guerra - que nunca terá tal nome nem aparência - em praticamente todos os planos pelos quais se movimenta a existência humana. Uma guerra de influência, sutil, psicológica, indireta (Comitê Invisível, 2015, p. 80).

A arte de governar não se limita ao controle populacional (macro), como demonstra a citação acima, mas incide também sobre uma esfera micro, isto é, interfere no campo afetivo, inconsciente, imaterial e também político. O aparelho de Estado não é apenas aquela instituição localizável, organizada em seus grandes estabelecimentos governamentais, facilmente reconhecível. Sua produção não é apenas material, mas também subjetiva e, dessa forma, se distribui em linhas finas que nos compõem e governam. Isto é, o Estado também nos habita. Portanto, não se trata de uma natureza, não existe a priori das práticas que o produzem. E nem é uma entidade separada de nós.

Dessa forma, o próprio desejo passa a ser capturado. Quando aqui afirma-se o desejo como território de domínio do aparelho de Estado, não se trata de um desejo como na compreensão psicanalítica, na qual estaria ligado a uma ideia de falta estruturante ao inconsciente, mas numa outra perspectiva que entende o desejo como máquina.

Por esse aspecto, o desejo não poderia ser algo estático e determinado a partir das relações edípicas na infância. Ao contrário, estaria relacionado à ideia de movimento, de produção incessante. Claro que, ao ser capturado, o desejo também se enrijece e cristaliza em formas que podem ser a da própria falta. Entendendo esta como uma produção, dentre tantas outras possíveis. Assim, produção desejante e produção social são categorias interligadas, misturadas e concomitantes. Não é à toa que, como estratégia política, o aparelho de Estado tenha passado a agir sobre tal produção.

Uma subjetividade habitada por essa forma-Estado estaria contaminada por categorias como a paralisação, a conservação, a segmentarização dura.

O Estado é desejo que passa da cabeça do déspota ao coração dos súditos, e da lei intelectual a todo sistema físico que dela se desprende ou se liberta. Desejo do Estado, a mais fantástica máquina de repressão é ainda o desejo, sujeito que deseja o objeto de desejo. (Deleuze, & Guattari, 2011, p. 294)

Assim sendo, o desejo pode desejar também as coisas mais funestas quando dominado por forças relacionadas ao poder. Trata-se de uma colonização do inconsciente na construção de uma massa homogênea e cinza. Tal análise nos serve para pensar, inclusive, a respeito das práticas fascistas que compõem nossa história, a começar pela própria colonização, organismo governamental legal que promoveu solenemente - e muito antes da Alemanha nazista - os campos de concentração, a massificação, o doutrinamento e o genocídio de povos tornados objetos.

Podemos afirmar, assim, que o fascismo não é apenas um mecanismo que se expresse na forma de um regime macro, mas se estende ao plano micro, nas minúcias da produção desejante.

Por que o desejo deseja sua própria repressão, como pode ele desejar sua repressão? [...] O desejo nunca é uma energia pulsional indiferenciada, mas resulta ele próprio de uma montagem elaborada, de um engineering de altas interações: toda uma segmentaridade flexível que trata de energias moleculares e determina eventualmente o desejo de já ser fascista. As organizações de esquerda não são as últimas a secretar seus microfascismos. É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista em nós mesmos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas (Deleuze, & Guattari, 1996, pp. 92-93).

No entanto, se o desejo se tornou também objeto de captura do aparelho de Estado, poderíamos pensar o próprio desejo como a possibilidade e condição de resistência, pois é também no plano do desejo que as forças insurgentes se forjam.

Para pensar tais questões, nos aproximemos da noção de máquina de guerra forjada por Deleuze e Guattari. A primeira característica necessária à máquina de guerra é ser exterior ao aparelho de Estado. Essa exterioridade se contrapõe à lógica interiorizadora do Estado. A máquina de guerra é aquilo que escapa a este aparelho, que se localiza entre suas produções, nas brechas e fissuras de suas formas.

A forma-Estado, como forma de interioridade, tem uma tendência a reproduzir-se, idêntica a si através de suas variações, facilmente reconhecível nos limites de seus pólos, buscando sempre o reconhecimento público (o Estado não se oculta). Mas a forma de exterioridade da máquina de guerra faz com que esta só exista nas suas próprias metamorfoses; ela existe tanto numa inovação industrial como numa invenção tecnológica, num circuito comercial, numa criação religiosa, em todos esses fluxos e correntes que não se deixam apropriar pelos Estados senão secundariamente. Não é em termos de independência, mas de coexistência e de concorrência, num campo perpétuo de interação... (Deleuze, & Guatarri, 2012, p. 25).

A distinção entre a máquina de guerra e o aparelho de Estado é a aposta em um outro modo de pensar a sociedade, ritmada pela composição da diferença e de disputa do desejo enquanto campo de produção. Se relaciona com uma prática nômade, não pautada pelos territórios rígidos da lógica da representação, mas na avaliação ética contínua dos territórios que ocupamos e construímos.

Assim, as máquinas de guerra "não se definiriam de forma alguma pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos: os movimentos revolucionários [...] e também os movimentos artísticos são tais máquinas de guerra" (Deleuze, 1990, p. 212).

A questão premente é, então, como agenciar a produção desejante à máquina de guerra, dando passagem a forças instituintes, criativas e destituídas da necessidade de organização estatal ou repressiva. O desejo como campo de batalha, que vem perdendo espaço para a lógica do controle, da repressão, da morte e, consequentemente, do fascismo, crescente.

Faz-se urgente, portanto, pensar por onde transitam as lutas que escapam a essa lógica. É possível localizar alguns poucos movimentos que efetivamente romperam estrategicamente com o Estado e suas artes de governar, como é o caso dos zapatistas no México ou acontecimentos/movimentos insurgentes que se deram entre 2012 e 2014 em diversos lugares do mundo. Neste último caso, temos as Jornadas de junho de 2013 como potente analisador para pensar outros modos de agenciar as lutas e os espaços formais de militância na esquerda, pois ali, se operou, ao menos em primeira instância, um agenciamento desejante heterogêneo, livre de lideranças e organizações, nômade, sem rosto, multitudinário, coletivo.

As hierarquias e palavras de ordem velhas deram lugar a cantos novos, às fogueiras e rostos encobertos, à depredação dos bancos como símbolo do capital neoliberal contemporâneo, à solidariedade comum, ao temporário fim do insuportável há muito tempo entalado em nossas gargantas. Esta força persiste em nossos desejos, mesmo que estejamos assistindo a uma ascensão de grupos de extrema direita, fascista e neonazista, o que torna ainda mais importante e imprescindível que acionemos nossos corpos para o combate também do conservadorismo da forma-Estado nas formas de militância na esquerda.

 

Conclusão

Seguindo tal problematização, nos aliamos a Clastres (1986), quando nos coloca a seguinte questão:

a que necessidade responderia desde então a existência de um Estado, uma vez que sua essência - a violência - é imanente à divisão da sociedade, já que é nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida por um grupo social sobre os outros? (Clastres, 1986, p. 142).

A aliança, portanto, entre a esquerda e o Estado vem produzindo pouca interferência no seu funcionamento genocida, controlador e coercitivo, servindo, muitas vezes para aplacar as condições de emergência de acontecimentos insurgentes. Além disso, ainda tem feito da militância uma prática entristecida como efeito das capturas do aparelho de Estado que enfraquece e mina a potência estética das resistências. Que máquinas de guerra conseguimos até agora forjar nas fissuras da eficiência do aparelho de Estado e de sua abrangência infinitesimal que toma até mesmo o campo da esquerda organizada/partidária/conservadora/hierárquica?

A mudança, então, não poderia passar somente pela reestruturação organizacional do Estado, mas por uma interferência na produção de subjetividades, acompanhando, talvez, as insurgências e sua potência viralizante, como forma de nos contagiar desta poeira que por vezes a história sedimenta.

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. [...] É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo, de criação e povo (Deleuze, 1992, p. 218)..

Afinal, a militância dura e triste nos dá indícios de que foi capturada. Não consegue mais inventar e remói os mesmos discursos e práticas como se não pudesse entrar em contato com o porvir das lutas. Se o aparelho de Estado se apropriou também das subjetividades que se apercebem à esquerda, propagando um modo de funcionamento pautado no sacrifício, na onipotência, no missionarismo, no messianismo e, na luta pelo poder, é preciso instaurar, na contramão disso e como resistência, o cuidado como tática de acionamento da máquina de guerra.

Este artigo, assim, busca trazer alguns elementos que sirvam à construção de artefatos - ou pequenas bombas - que implodam os modos formais de militância e suas durezas, que desorganizem o instituído da esquerda. E que com isso criemos condições para uma análise de suas práticas e para a ruptura com a forma-Estado que a habita, um exercício eterno, constante e urgente.

 

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Endereço para correspondência:
Alessandra Speranza
Lacaz a.slacaz@gmail.com

Submetido em: 11/07/2018
Revisto em: 16/10/2018
Aceito em: 17/10/2018

 

 

1 Este artigo é fruto de pesquisas realizadas durante o doutorado da autora, ainda em andamento.
2 O AI5 - como se chama o Ato Institucional nº5 - foi o quinto decreto baixado durante a Ditadura Militar e considerado o mais duro de todos eles. Datado de 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, o AI5, culminou na perda de diversos direitos políticos dos cidadãos, já que dava ao presidente poderes de dar recesso às casas legislativas em todas as esferas federativas, instituía a suspensão do habeas corpus, proibia manifestações políticas e impunha a dura censura à imprensa, entre outros. Foi considerado o "golpe dentro do Golpe", caracterizando publicamente o caráter tirano do regime.
3 Minoritário aqui não está no sentido de menor quantidade, mas daquilo que difere das hegemonias impostas pelo mundo em que vivemos. Como sinalizou Deleuze (1992), as minorias e maiorias não são definidas por ordens de grandeza. Para o autor, a maioria diz respeito aos modelos que balizam a existência, enquanto a minoria é sempre processo, devir. Como exemplos de grupos minoritários temos as mulheres, os negros, os LGBTQI, entre outros.
4 Práticas de uma espécie de extermínio lento que se dá também através de como certa parcela da população tem tido acesso a uma alimentação saudável e de qualidade, seja por questões sociais, políticas, econômicas e/ou educativas.
5 Tentamos levantar este dado para colocar também em análise neste artigo, mas não há qualquer estudo publicado que seguramente afirme o número de desaparecimentos forçados no Brasil.
6 Trata-se do golpe perpetrado à então presidenta Dilma Rousseff, através de um processo de impeachment que declarava ter ela participado de manobras econômicas denominadas "pedaladas fiscais", consideradas, ao fim do processo, como crime de responsabilidade.

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