SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.70 special issueLines, scratches and scribbles - thoughts about the presentTutelary council must not be written with capital letters author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

ARTIGOS

 

Proteção e escuta no espaço do conselho tutelar: relações com a judicialização da vida

 

Protection and listening within the tutelary council space: relations with the judicialization of life

 

Protección y escucha en el espacio del consejo tutelar: relaciones con la judicialización de la vida

 

 

Maria Lívia do NascimentoI; Paloma Lima Ramos JasharII; Marianne de Camargo BarbosaIII

IDocente. Instituto de Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIPsicóloga. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIPsicóloga. Instituto de Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo busca pensar como se dá a institucionalização de algumas práticas que entrelaçam escuta e proteção a partir de uma intervenção realizada em conselhos tutelares (CTs). As análises procuram questionar práticas instituídas sobre a proteção de crianças e adolescentes no referido estabelecimento. Na rotina do conselho tutelar, são frequentes os usos que se faz da escuta como arte do especialista e como uma técnica para apontar verdades. A escuta, tomada como um saber poder, acaba por tomar o judiciário como espaço mais capacitado para gerir as condutas, seja normalizando os modos de vida, seja sendo convocado quando esta vida escapa à moral instituída. De tais problematizações surgem alguns questionamentos que conduzem a presente escrita. Aqui dois em destaque: como são escutadas as diferenças que se instalam no espaço de atendimento? Como se dão as práticas de escuta e proteção em meio aos processos de judicialização que atravessam o CT?

Palavras-chave: Escuta; Proteção; Conselho tutelar; Judicialização.


ABSTRACT

The article tries to think about how the institutionalization of some practices that intertwine listening and protection occurs through an intervention carried out in tutelary councils. The analyses seek to question established practices about the protection of children and adolescents in these establishments. Usually, in the routine of the tutelary council, the listening is used as the art of the specialist and as a technique that points out truths. Taken as a knowing power, the listening ends up considering the judiciary as the most capable place to manage the conduct, or normalizing the ways of life, or being summoned when this life escapes the established morality. From such problematizations arise some questions that lead to this writing. Here two are highlighted: How are the differences, that are installed in the service space, listened to? How are the practices of listening and protection in the midst of the processes of judicialization that cross the tutelary board?

Keywords: Listening; Protection; Guardianship; Judicialization.


RESUMEN

El artículo busca pensar como se da la institucionalización de algunas prácticas que entrelazan escucha y protección a partir de una intervención realizada en consejos tutelares (CTs). Los análisis buscan cuestionar prácticas instituídas sobre la protección de niños y adolescentes en el referido establecimiento. En la rutina del consejo tutelar, lo más frecuente son los usos que se hacen de la escucha como arte del especialista y como una técnica para señalar verdades. La escucha, tomada como un saber poder, acaba por tomar al judiciario como espacio más capacitado para gestionar las conductas, sea normalizando los modos de vida, sea siendo convocado cuando esta vida escapa a la moral instituida. De tales problematizaciones surgen algunos cuestionamientos que conducen al presente texto. Aqui, dos en destaque: ¿cómo son escuchadas las diferencias que se instalan en el espacio de atención? ¿Cómo se dan las prácticas de escucha y protección en medio a los procesos de judicialización que atraviesan el CT?

Palabras clave: Escucha; Protección; Consejo tutelar; Judicialización.


 

 

Introdução

Um questionamento pode conduzir este artigo, a saber, o mesmo que guiou a pesquisa e sustenta as análises que pretendemos aqui levantar: como se dá a relação entre proteção e escuta no espaço do conselho tutelar?

O conselho tutelar (CT) emerge como um dos órgãos que compõem o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente estabelecido em 1990, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É composto por cinco conselheiros tutelares, equipe técnica e equipe administrativa e planejado para pensar, com as famílias, caminhos que possam reverter as violações de direitos sofridas por crianças e adolescentes. Quando necessário, encaminha as situações a outros órgãos responsáveis pela continuidade das práticas de cuidado com esse público.

Trata-se de um cotidiano de trabalho atravessado por um cenário de sofrimento e urgência por soluções, no qual não é raro chegarem demandas que não caracterizam exatamente uma violação de direitos ou que convocam o conselho a responder como um lugar policialesco. Como exemplo, conflitos familiares nos quais não seria necessária sua intervenção ou quando o conselho é chamado a escolas para coibir algumas ações de adolescentes. O modo de lidar com essas solicitações pode seguir dois caminhos. Um primeiro consiste em aceitá-las e responder na forma em que chegam, o que pode reduzi-las a um determinismo que paralisa ou a moralismos e culpabilizações das famílias, das crianças e dos adolescentes. Outro caminho tem sido buscar pequenas brechas para fugir de soluções instituídas, o que passa pela problematização dos atravessamentos que compõem as histórias que são ali narradas. Dessa maneira, a escuta tem importante função no modo de acolher e de se comprometer com as demandas que chegam ao conselho.

Interessa-nos pensar como se dá a institucionalização de algumas práticas que entrelaçam escuta e proteção. É possível acolher as diferenças que se instalam no espaço de atendimento? Como o usuário escuta o profissional que o atende? Como a escuta no CT afeta e é afetada pelas políticas públicas voltadas à proteção? Pode a escuta escapar do mundo da verdade? Como se dão essas práticas em meio aos processos de judicialização que atravessam o CT? Esse conjunto de questões é um desdobramento daquela inicial, já levantada, e contribui para a ampliação de nossas análises.

 

A pesquisa

O processo de constituição das análises aqui propostas se deu a partir da pesquisa "Histórias, vidas, instituições: escuta e proteção no conselho tutelar", cujos dados foram construídos com base em diários de campo feitos por estagiárias de psicologia em suas práticas de intervenção realizadas por cerca de um ano em dois conselhos tutelares. Do conjunto dos diários foram analisados os trechos referentes aos modos de escuta aos usuários, como também a maneira como os mesmos escutam os profissionais que os atendem.

O diário é uma ferramenta que possibilita historicizar e registrar o cotidiano, e com isso, colocar em análise os acontecimentos, propondo que, ao escrever as vivências de um campo, emergem criação, desnaturalizações, questões e diferentes modos de pensar e agir, permitindo remexer os instituídos. Ou seja, o exercício de escrita coloca em análise o modo como nos afetamos, nossas estranhezas e dificuldades, fazendo emergir situações que poderiam ficar de fora caso não existisse a prática do diário.

A análise histórica proposta por Foucault (1979) atuou como um dos eixos de suporte para a elaboração e discussão dos dados. No lugar de uma história linear que desvela a permanência de uma verdade essencial ao longo do tempo, a genealogia, proposta pelo autor, indica uma história efetiva, concebida como uma série de interpretações ou perspectivas, e decorrente de um embate de forças. Ao estudar a proveniência e a emergência de algo, a genealogia realiza um duplo movimento: dissocia a unidade em questão ao seguir os rastros dos múltiplos elementos que a compõem; e evidencia o jogo de forças do surgimento de uma perspectiva, bem como as formas de dominação que essa acarreta.

Para operar as discussões foram utilizadas situações analisadoras ou analisadores, que permitem, de acordo com a análise institucional, desestabilizar, desacomodar, dinamizar o pensamento em relação a certas questões que, muitas vezes, não são sequer objeto de tematização, dando ensejo ao mero repetir, reproduzir, sem questionamento das práticas. As situações analisadoras levantadas funcionaram como disparadores que levaram ao questionamento das verdades instituídas e das crenças engessadas sobre as práticas de proteção. Assim sendo, a partir dos textos dos diários, foram construídos analisadores que conduziram as problematizações sobre os modos de escuta que circulam no conselho. Com isso, buscou-se levantar questões sobre os efeitos produzidos pelos diferentes modos de escuta e de acolhimento quando esse estabelecimento é procurado como um órgão de proteção.

 

Proteção e escuta

Discutindo o tema da proteção, Nascimento (2015), em seu artigo Proteção à infância e à adolescência: nas tramas da biopolítica, pontua que problematizar a proteção pode retirá-la

[] do lugar no qual é compreendida como naturalmente boa, quando vista em sua forma imediata e aparente obviedade, cujo plano de organização se sustenta na fixação, em estados denidos, estruturados. Constituir a proteção como um problema abarca acontecimentos políticos, econômicos, sociais, subjetivos que emergem quando diferentes forças entram em ação, produzindo efeitos que não podem ser antecipados. Divergir de sua versão naturalizada envolve discutir as práticas ditas de proteção a partir de diferentes referenciais: a ideia de prevenção, o controle da vida, a despotencialização do cotidiano, o questionamento das chamadas políticas públicas, os investimentos econômicos feitos em seu nome, e a produção de saberes e de especialistas nesse campo. Tomar a proteção como um problema é incluir todas essas dimensões em sua análise, privilegiando os exercícios capilares de saber-poder que geram realidades vistas e ditas sobre ela (p. 2).

Sendo assim, pensamos que a proteção é forjada por linhas que lhe atribuem essências e verdades. Buscando romper com esse instituído, a proposta é entender família e proteção como construções que assumem configurações dentro do contexto sócio-histórico em que surgem, fugindo de um modelo correto de ser família e de uma função pré-determinada a ser assumida pela proteção. Cabe salientar que pensar as "políticas de proteção" no campo da infância e da adolescência significa aliar o debate a discussões sobre legislação, políticas públicas, processos de subjetivação construtores de modelo hegemônicos e a questões éticas e políticas presentes no jogo constante das relações de forças1.

No espaço do conselho tutelar, pode-se lançar um olhar à escuta e à proteção como processos reflexivos um ao outro. Ou seja, pensar uma interseção entre os modos como se desenham a proteção e o modo como se opera a escuta; como proteção e escuta estão aliadas condicionalmente, sendo uma premissa para que a outra ocorra, e estruturalmente, constituindo uma a outra nos modos como são compreendidas. Pensando as relações entre os profissionais e os usuários do conselho, a escuta nos inquieta e nos faz problematizá-la como uma ferramenta de proteção. Que escuta tem-se produzido nesse espaço? Uma escuta que dê conta da história, da vida e da singularidade do outro ou uma escuta mecanizada, apoiada em supostas técnicas?

Entrelaçados a Foucault (2004) e a Arantes (2012), remontamos ao processo de escuta dentro das práticas gregas do cuidado de si, prática essa que constituía o primeiro estágio em busca de adquirir e proferir o discurso verdadeiro. Entretanto, dentro das práticas cristãs, a escuta adquire função de renúncia a si, pois confessar suas verdades encobertas constitui o início da trilha em direção à redenção. Partindo dessa constatação, Foucault (2004) aponta que a sociedade disciplinar traz à escuta um passo adiante no aprisionamento. Para além da confissão, o exercício de poder desse modo de sociedade é validado pelo saber científico, que se propõe a garantir uma essência aos discursos, estabelecendo uma verdade universal, mais verdadeira que todas as outras verdades. Uma verdade única que constrói um modelo aceitável e permitido de existir.

É desse modo que escutar torna-se um procedimento técnico com regras próprias, nas quais o que é falado deve nelas se encaixar, e o que é ouvido vai sendo, de certo modo, delineado. Essa escuta é tida como a que merece credibilidade científica, reforçando a escuta como arte do especialista, diminuindo e deslegitimando a escuta tida como leiga.

A escuta, como a fala, requer um trabalho para que possa acontecer, entrelaçando habilidade e experiência. Entretanto, não é viável pensar técnicas de escuta como pensamos técnicas de oratória, pois esse caminho leva a escuta para o campo dos especialistas, o que vemos ocorrer, com frequência, no âmbito do conselho tutelar: a escuta enquanto arte do especialista (o psicólogo, o conselheiro, o pedagogo) a sustentar e estabelecer a verdade e a determinar o que merece confiança e credibilidade.

Esse modo de pensar a escuta caminha de mãos dadas com a judicialização de nossas vidas, um caminhar cada vez a passos mais largos em direção a substituir qualquer possibilidade de gestão de nós mesmos pelo que determina, visando o bem maior do cidadão e da sociedade, uma instância hierarquicamente superior e emocionalmente distante de nossa realidade, o judiciário. Para orientar a decisão do judiciário, a figura do especialista em escuta vai sendo cada vez mais exigida, visando a cientificização das escolhas, a esterilização das opções e a prática de limpar tudo aquilo que não seja considerado a verdade absoluta, o modo de viver hegemônico e a saída mais eficiente.

O que queremos afirmar aqui não é a escuta do especialista como uma escuta ruim a priori, mas os contornos que o enlace com o judiciário vai lhe conferindo como única escuta possível e com o intuito de desvelar verdades, pensando um enquadramento moral e uma forma única possível de existir, de ser família, de serem pais, de ser criança e adolescente. Acreditamos que essa escuta, como saber poder, acaba por avalizar o judiciário, que vai assim se afirmando como mais capacitado que nós mesmos para gerir nossas vidas, seja normalizando os modos de vida, seja sendo acionado quando esta vida escapa a uma moral instituída.

O que chamamos de jurisdicionalização das práticas é a presença de modelos de atuação característicos do Poder Judiciário, que acabam sendo adotados, mesmo em espaços que não detêm tal poder, mas que, por serem revestidos de certa autoridade e terem como fundamento para a sua prática o termo da lei, assumem tais formas como as adequadas para o seu exercício. Do nosso ponto de vista, é esta a lógica que tem pautado algumas das práticas dos conselhos tutelares (Nascimento, & Scheinvar, 2007, p. 153).

O valor do especialista que escuta, dentro dessa concepção, está em ser aquele que é capaz de arrancar dos discursos sua verdade, de modo a enquadrar em padrões morais aquilo que ouve. A ele cabe a importância de quem descortina aquilo que se tenta encobrir, de modo a nortear uma melhor decisão, o mais próximo possível dos mitos da neutralidade e da verdade hegemônica. Observando por esse enquadre, somos capazes de facilmente cair em armadilhas, como pensar que estabelecer a verdade é uma missão que cabe ao psicólogo, ao médico, ao conselheiro, enfim, ao especialista em escuta. Com isso, é possível sentir certo alívio em poder contar com um especialista para encontrar aquilo que tanto perseguimos: a verdade, garantindo uma sensação de segurança na busca pela melhor resposta ao caso.

O problema nesse discurso vai para além de desqualificar a escuta "leiga", de esquecer-se que a escuta é campo de acolhimento da fala, e que a fala traz à tona o outro. Arantes (2012, p. 93) nos traduz escutar por "[] se deixar afetar pelos ruídos e barulhos do mundo". Dentro desta leitura, escutar é abertura para o mundo, é ser afetado pelo que é do outro, sem que seja possível uma ruptura, ainda que temporária, com o que há de si, compondo junto nessa sinfonia. É o universo de quem fala e o universo daquele que ouve, construindo juntos uma escuta.

O especialista na escuta que acolhe mesmo aquilo que foge à sua vivência, que une mundos, não se forma apenas nos bancos acadêmicos.

Dependendo de como a análise é entendida e praticada, ela poderá estar ou não à escuta da problemática singular que se coloca a cada momento de sua prática. Desta escuta dependerá seu efeito: calar ou dar voz ao transhumano no homem, resistir ao trágico ou afirmá-lo - ou seja, emperrar ou relançar a produtividade do ser. Em termos sociais e históricos isto implica em reiterar os modos de subjetivação dominantes ou colocar-se na adjacência de suas rupturas, sustentando a busca de expressão daquilo que as nuvens negras das diferenças anunciam intempestivamente. Em suma, suportar e permitir que a história nos separe de nós mesmos toda vez que isso se fizer necessário (Rolnik, 1995, p. 11-12).

O problema na escuta do especialista que busca arrancar verdades é que ela se torna mecânica, programada. Quando o outro fala, essa fala vai sendo ouvida mediante regras aprendidas sobre como deve soar uma verdade, ou o que de fato significa o que o outro diz, ou qual é o discurso real. Desse modo, o que é dito perde a potência da história, das vivências, de sentimentos únicos. Tudo isso morre dentro dos modos como se é programado para ouvir. Na rotina do conselho tutelar, são frequentes os usos que se faz da escuta como arte do especialista e como uma técnica para chegar a verdades, de modo a gerir os conflitos que ali se desenrolam. Há também o que Baptista (1999) cunhou por escuta surda, ou seja, a escuta viciada, que ouve sem escutar. A partir dessa referência, Heckert comenta:

Uma escuta surda se constitui quando no lugar de indagar as evidências que nos constituem como sujeitos, nos deixamos conduzir por estas, reificando-as. Produz-se aí uma medicina das evidências, uma psicologia das evidências, uma enfermagem das evidências que, tendo seus procedimentos dirigidos por naturalizações, pouco consegue captar as singularidades que permeiam o humano, a variabilidade e imprevisibilidade que constitui o vivo. Neste sentido, a escuta acaba sendo reduzida a um ato protocolar, a uma técnica de coleta de evidências, de sinais, ou ainda, a um jogo interpretativo. A escuta surda produz como efeito a tutela e a culpabilização dos sujeitos, uma vez que fala por, fala de, em nome de, no lugar de falar com o outro (Heckert, 2007, p. 199).

Dentro dessas práticas encaixam-se diversas das histórias que habitam as rotinas dos conselhos tutelares e ocupam os diários de campo. Desde a escola que encaminha o caso ao CT de modo a convocar uma intervenção junto à família quando um aluno foge à norma; passando pelo pai que procura o CT acreditando que o conselheiro saberá lidar melhor com a rebeldia de seu filho, não percebendo que esse saber não se adquire em instâncias consideradas superiores e legais; até o conselheiro que convoca o psicólogo para avaliar um caso, de modo a eximir-se da responsabilidade de um direcionamento equivocado, pois confia que o psicólogo encontrará a verdade nos discursos. Essas práticas de escuta habitam os discursos da juíza que afirma que "na experiência dela isso é transtorno opositor desafiador", baseando-se em algo que ouviu de um especialista e entendendo que sempre que se repitam falas semelhantes ao caso em que esse diagnóstico foi dado anteriormente, cabe repetir o mesmo diagnóstico. Tais práticas estão também presentes nas falas dos conselheiros quando afirmam que "recepcionista do CT não tem nada que ficar ouvindo caso na recepção, pois elas nem tem conhecimento para isso". Como se a família que chega ao conselho precisasse unicamente da escuta do especialista. Ao desqualificar o que ocorre na recepção, desconsidera aquele espaço como um lugar no qual, muitas vezes, ocorre o primeiro movimento de acolhimento e escuta.

 

Histórias infames

Na maioria das vezes, o conselho conta com uma rede de dispositivos afetada por algum tipo de desmonte e precariedade ou com uma política baseada no descaso dirigido a certos seguimentos da população. O que fazer para possibilitar a proteção nessas condições, ao mesmo tempo em que são hegemônicas as demandas de punição, a busca por verdades e a insistência em uma resolução imediata? Cabe ressaltar que não se pretende aqui tirar a responsabilidade do conselho tutelar enquanto uma instituição de proteção à infância e à adolescência, mas pensar os atravessamentos que compõem o modo de escutar e acolher as demandas que lá chegam, trabalhando a tênue linha entre proteção e tutela, cuidado e condução de conduta.

A partir desse pano de fundo, destacamos aqui uma situação analisadora específica, visando uma análise mais detalhada de questionamentos acerca dos processos de escuta e proteção no conselho tutelar. A narrativa conta a história de uma família na qual a mãe, com uma história de cinco filhos abrigados, havia sido denunciada por supostamente bater na filha de quatro meses quando sob efeito de drogas. Entretanto, naquele momento, não foi possível a comprovação de tal fato. Um ano depois, a mulher retorna ao CT em vias de perder a guarda da mesma menina, que a essa altura passava de um ano de idade.

Pobre, negra, usuária de drogas e moradora de uma comunidade conhecida e temida pela violência. Sua história, bem como a de sua filha, não é individual e se assemelha a tantas outras que passam pelo conselho tutelar. Foucault (2005) nos fala do biopoder como um poder-saber que produz realidades subjetivas e objetivas através de discursos e práticas, e que a medida que se difunde fabrica seres humanos. Essa produção é eficiente ferramenta estratégica nessa lógica de exercício de poder, e termina também por produzir aqueles que fará viver (os que são úteis) e aqueles que se deixará morrer, conforme o enunciado do biopoder. Acreditamos ser uma lógica que atravessa também conselhos tutelares, escolas e hospitais públicos, bem como políticas de proteção assistência e segurança, o que evidencia a estratégica precarização desses serviços, se pensarmos seu público-alvo. Retomando à história, tal fato fica evidente quando nos deparamos com a situação dessa mulher e de sua filha ao regressarem ao CT. Alvo de uma política que enquadra, seleciona, tutela e pune os que fogem à regra, a vida dessa mulher e de sua filha poderiam exemplificar grande parte do público atendido no CT e as políticas de proteção destinadas a ele.

Após perder cinco filhos, a mulher sabia bem como funcionava essa engrenagem e tentava buscar estratégias para se desvencilhar das intervenções. Sabia que o conselho podia assumir uma postura culpabilizadora e esforçava-se, argumentando contra isso para não perder sua sexta filha. A escuta dos conselheiros, indo ao encontro das desconfianças da mulher, caminhava em uma direção que investigava, procurava pequenas coisas que pudessem comprovar uma violação de direitos. Havia uma negação da notável relação afetiva entre elas e do zelo da mulher com a menina. Implicava-se com as "roupas de menino" que a criança usava. Questionava-se o fato de a criança estar sem fraldas, sem almejar entender que suas condições eram tão miseráveis que nem dinheiro para isso havia.

Dirigia-se àquela mulher a culpa por sua condição de pobreza. Sem perceber, e neste ponto se encontram os perigos de uma escuta surda, era reproduzida a política de um Estado que deixa morrer. Atravessada por esta prática, a escuta dos conselheiros que se destinava a proteger a criança dos riscos de uma mãe infame desconsiderava que a vivência de ambas era efeito de condições sociais produtoras de miséria e vidas matáveis. Deste modo, a escuta era permeada pelo histórico da mulher e pela sua suposta incapacidade de cuidar dos filhos que havia perdido.

Posteriormente, o pai da criança chega alcoolizado ao conselho, em um momento em que elas não estavam presentes, e declara que a mulher era uma boa mãe, reafirmando os padrões morais que atravessam também o CT, mas que de fato mudava seu comportamento com a menina quando usava drogas. Desde a primeira denúncia, quando a menina ainda tinha quatro meses, o que pôde ser feito por essa família para que a situação não chegasse a esse ponto? O que fazer daquele momento em diante?

 

A escuta do usuário

Em certo ponto da pesquisa inicialmente focada na escuta que o conselho faz de seus usuários, emergiu uma nova questão. Naquele momento pensávamos em como eram similares as reações dos usuários atendidos pelo conselho tutelar sempre que apresentado ao estagiário de psicologia. Independente das particularidades de cada caso ou das diferenças entre os usuários, o que percebíamos era que em sua grande maioria, ele fazia uso de outro modo de se portar e descrevia a situação apresentando detalhes que mencionava apenas ao profissional psi, como se a palavra psicologia fosse a senha para um modo diferenciado de agir, visando conquistar a confiança deste profissional, e trazendo falas que, supunha, pudessem ter importância para aquele especialista. Como um acordo que nunca existiu, mas que sempre esteve presente.

O diário de campo mencionado nos traz o relato de como a mãe faz questão de repetir e frisar que o atual companheiro tem um emprego e que ela tem se dedicado apenas a cuidar da criança como estratégia para sensibilizar a conselheira e ganhar seu apoio. Isso aponta uma prática de ler e adaptar seu discurso ao que o profissional que o atende espera ouvir.

Se entendemos as relações como um processo dual, assim como o profissional do CT faz uma escuta daquele que atende, aquele que é atendido tem também uma leitura particular do discurso que lhe é dirigido. Ao problematizarmos esta questão, começamos a pensar as diferentes forças que conduzem o entrelace entre a experiência do usuário e o CT, como quando a mãe, na história narrada anteriormente, desabafa dizendo que o conselho para ela seria a pior coisa que existiria, pois entravam em sua vida fazendo perguntas e achavam que só ricos podiam ter filhos. Entretanto, há brechas nessa relação de saber-poder, visto que é possível perceber estratégias desenvolvidas pelos usuários para lidar com o CT.

Rauter (2012) afirma que "uma certa tradição psicanalítica frequentemente leva o terapeuta a desenvolver uma seletividade em sua escuta, privilegiando o passado" (p. 9). Ainda, segundo a autora, isto confere ao dispositivo jurídico-policial uma prática na qual "a história pregressa é buscada para configurar motivos e indícios criminosos" (p. 10). Os conselhos tutelares não fogem a esta lógica, e a história pregressa pode encerrar destinos, como se uma história vivida anteriormente determinasse a reincidência.

Atenta a esta tendência, aprendida no vivido, a mãe em questão, que já havia tido cinco filhos abrigados, afirma que pensa tentar recuperá-los, porém não quer ir ao CT com sua bebê, temendo que o fato de já ter perdido outros filhos diga de uma incapacidade de ser mãe, e com isso perca a guarda também desta criança, ou que não recupere os outros. Definitivamente esses não são temores infundados, uma vez que a denúncia de sua irmã, acusando-a de repetir os motivos que a levaram a perder suas crianças, produz nos conselheiros motivações para começarem a organizar o abrigamento da criança, antes de confirmar os fatos, conversar com a mãe ou visitar a casa.

Quando a mãe relata que, um ano antes, ao receber a conselheira e a estagiária em uma visita domiciliar, teve medo de abrir sua porta, é um sinal de como a mãe escuta as práticas do conselho. É também efeito dessa escuta o fato de o pai só ter coragem de comparecer ao CT alcoolizado. E o que dizer da fala da mãe, que reafirma, um ano mais tarde, seu temor ao julgamento dos conselheiros?

Há, pois, diferentes modos de escuta que podem ser conduzidos pelo exercício da proteção, da tutela, do aconselhamento, do acolhimento por parte de conselheiros e técnicos do CT; ao passo que, da parte dos usuários, podemos encontrar uma escuta de estranheza, medo, confiança/desconfiança, desesperança, dentre outras. Entretanto, outras escutas circulam em torno do conselho. Quando a escola convoca o conselheiro a dar uma palestra que vise reprimir os adolescentes faltosos ou que se envolvem em brigas, entendendo o CT como um órgão punitivo e policialesco, como tal demanda é escutada pelo conselho? Ou, como a escola escuta as experiências do conselho para que possa solicitar tal prática? E tendo isso em vista, como pode o CT proceder de modo a inventar novos caminhos que produzam fuga desse lugar policialesco, onde transita o medo e a punição, no qual vem sendo constantemente colocado?

 

A escuta produzindo políticas públicas

A escuta que se opera nos equipamentos destinados à proteção não se restringe a um espaço físico, ela atravessa as paredes das estruturas e das práticas. É uma escuta que produz subjetividade, constrói mundos. Guattari (Guattari, & Rolnik, 1986) afirma a subjetividade como produto de um processo transpassado por instâncias individuais, coletivas e institucionais, propondo a ideia de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada e modelada. Rolnik se alia a esse pensamento de Guattari, afirmando que "os modos de subjetivação são formações singulares e datadas, fruto de um tempo processual e irreversível" (Rolnik, 1995. p. 3). Esta maneira de conceber a subjetividade nos ajuda a pensar os entrelaces entre o que se produz nos conselhos tutelares e o que se produz na sociedade.

Entende-se por políticas públicas as ações, programas, projetos, regulamentações, leis e normas que o Estado desenvolve para administrar de maneira mais equitativa os diferentes interesses sociais. A participação social, de onde essas políticas emergem, deve atravessar toda sua elaboração, planejamento, execução, monitoramento e estruturação.

É da relação entre estes dois conceitos, produção de subjetividade e políticas públicas, que tratamos aqui, problematizando como a escuta nos equipamentos de proteção é produzida no social, ao mesmo tempo em que o produz. Isto diz de uma prática que pretende a priori dar rosto e voz ao que é protegido, exigindo do Estado que se produzam políticas públicas voltadas à proteção dessas famílias. Porém, o que se vê é a afirmação de uma política de Estado, que opera responsabilizando as famílias por suas condições adversas, em uma prática que faz a seleção entre aqueles que se fará viver e aqueles que serão deixados para morrer.

Eu creio que, justamente, uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania - fazer morrer ou deixar viver - com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de "fazer" viver e de "deixar" morrer. O direito de soberania é, portanto, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer (Foucault, 2005, p. 287).

É necessário atentar que a neutralidade é um mito, uma impossibilidade ética e afetiva. O trabalhador do CT atua munido de certa leitura de mundo e de crenças sobre a proteção, condições que compõem seu trabalho. Do mesmo modo, também é afetado por sua rotina como conselheiro ou técnico. É no embate entre estas forças que suas práticas se instalam. As construções subjetivas que produzem o conselheiro, a equipe técnica e o usuário se pautam em relações em que o eu e o mundo engendram-se. Há uma relação indissociável da escuta que a sociedade, os trabalhadores e os usuários do CT fazem entre si. Assim sendo, o que é produzido no CT produz mundo, ao mesmo tempo em que as lógicas, forças e movimentos presentes no mundo produzem as práticas do CT.

O enlace entre o trabalho no CT e a tendência que o assemelha ao trabalho policial, jurídico e punitivo nasce entre o CT e o mundo, impossível determinar onde começa e onde termina. Fato é que esta força toma corpo e apodera-se das práticas que circulam neste espaço. O que está sendo dito quando a escuta do especialista é tida como a melhor? Quando o que deveria habitar a esfera das famílias e das escolas é trazido para ser mediado e resolvido por um conselheiro, partindo-se do princípio que ele está mais dotado de saber para gerir a vida de crianças e adolescentes? Voltando ao que nos diz Foucault (2005) sobre biopoder, é possível entender como as ações do CT também estão inscritas em práticas que reafirmam uma política que visa a segregação do público que atende, os que são deixados para morrer, culpabilizando-o por sua situação de precariedade. É sobre buscar romper com essa lógica que estamos tratando quando propomos a busca por outros caminhos que possibilitem não uma escuta surda nos órgãos de proteção, mas uma escuta-experimentação. Conforme Heckert:

A escuta-experimentação não visa apreender uma realidade, uma verdade do sujeito, e sim abrir espaço para criação de modos de existência compatíveis com uma vida solidária e generosa; acompanhar os movimentos que criam paisagens por vezes suaves, por vezes endurecidas, por vezes mortificadoras. Afirmar a escuta como experimentação significa indicar que as necessidades do outro precisam ser incluídas, não por uma operação humanista e piedosa, mas como elemento perturbador e analisador dos modos de vida naturalizados, das práticas instituídas (Heckert, 2007, p. 10).

Pensando as relações entre produção de subjetividade e produção de políticas públicas, a potência da escuta-experimentação e a necessidade de romper com o engessamento da escuta surda, e entendendo o CT e o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) como gestores, implementadores e fiscalizadores de políticas públicas, queremos levantar mais algumas análises. O engendramento entre as políticas públicas e o cotidiano do CT pode produzir no CT, no usuário e na sociedade, uma escuta viciada. Tal escuta acaba por compor junto ao Estado uma proposta implícita que visa individualizar os casos que atravessam o CT e naturalizar vivências de exclusão, retirando os usuários de seus contextos e ao mesmo tempo culpabilizando-os pelo lugar de desamparo social que ocupam.

Em um dos diários, uma conselheira fala de prática de extermínio ao referir o caso de um adolescente que precisava ser abrigado por ter sido ameaçado de morte pelo tráfico, e na porta do abrigo lhe é dito que não poderia realizar o abrigamento porque o rapaz não teria o "perfil da casa". Quando o município se propõe a ofertar abrigo apenas aos meninos que não se envolvem com o tráfico e a não ofertar nem ao menos esta migalha àqueles que se envolvem, quando a sociedade pede a redução da maioridade penal, quando as mídias e redes sociais não apenas estimulam os policiais a abater tais adolescentes, mas também glorificam e compartilham os vídeos destes atos, isto nos diz do mundo que tem sido produzido através dessa relação entre políticas públicas e a proteção nos CTs.

Nem todas as ações do CT, do Programa Médico de Família, da escola pública, dos abrigos, enfim, das políticas públicas destinadas a crianças e adolescentes, estão garantindo o direito à vida, saúde, alimentação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, como diz o artigo 4 do ECA. Há ações desses órgãos que individualizam e culpabilizam as situações que fogem ao enquadramento, produzindo no social a ideia de meritocracia, e a crença de que os desvios que ocorrem são frutos de uma deturpação de caráter, sendo o indivíduo ou sua família passíveis (e porque não dizer merecedores) de punição e segregação, o que justificaria práticas de guetificação, prisão ou morte.

Não necessariamente porque se diz de uma política que parte do Estado em direção ao cidadão, com as ressalvas cabíveis a este termo, uma política pública de fato engloba aquele a quem se destina (Monteiro, Coimbra, & Mendonça Filho, 2006). A começar porque está se pensando em uma concepção homogênea de homem e sociedade. O padrão de infância, de adolescência e de família pensado não abrange todas as camadas da sociedade, dada a multiplicidade nos modos de existir e as condições de vida que lhe são impostas. É visando romper também com esses esquadros morais a nortear uma escuta surda que cremos ser necessário pensar a escuta que se opera nos dispositivos de proteção, apostando na experimentação como caminho para a (re)criação cotidiana em lugar da repetição de práticas.

 

O Conselho Tutelar e a judicialização

Vivemos um momento em que um "senso comum punitivo" (Batista, 1999) paira sobre nossa sociedade. Por esse viés, há um clamor público por punição e, ao mesmo tempo, há uma judicialização das relações sociais. É como se a punição se transformasse na nova panaceia que solucionará todos os problemas da sociedade. Dessa maneira, movimentos de "lei e ordem" ganham, a cada dia, mais força (Wacquant, 2008). Compreende-se como judicialização da vida o movimento contemporâneo no qual vemos emergir o Poder Judiciário como instituição mediadora do viver. A ampliação do domínio jurídico tem se estendido por espaços antes habitados por outros saberes e práticas, capilarizando a função do tribunal às diversas esferas do cotidiano. No que concerne especificamente ao contexto da proteção à infância e à adolescência, vemos que esse desejo de ordem, justiça e punição tem ressonância com o que vem sendo chamado de famílias negligentes, que são aquelas que mais frequentemente chegam ao CT.

De acordo com Foucault (2008), a vida e os modos de viver das pessoas, da população, são cada vez mais geridos e governados, o que produz uma demanda maior por ações judiciárias, pelo incremento na ordem de mediar e negociar. No campo da proteção à infância e à adolescência vão se organizando redes de vigilância do viver que acionam o judiciário, apoiando as políticas de judicialização, e ao mesmo tempo criminalizando e moralizando as famílias ao colocarem sob suspeição seus modos de vida. Por esse percurso, a dinâmica da denúncia tem como objetivo fazer uso de uma legislação punitiva para regular os cotidianos familiares, colocando em funcionamento uma estreita relação entre lei, ordem e proteção.

Desse modo, a judicialização é entendida como uma construção subjetiva que implanta a lógica do julgamento, da punição, do uso da lei como parâmetro de organização da vida e o judiciário se estabelece como instância a qual não é possível se opor. Além disso, no mundo da judicialização foi implantada a máxima "somos todos responsáveis", que delega às redes de proteção e a toda e qualquer pessoa os funcionamentos antes restritos aos operadores da justiça. Construindo, assim, uma subjetividade que afirma uma determinada vida certa a ser garantida pelo judiciário.

 

Considerações finais

Ao construirmos análises sobre a escuta, seus atravessamentos com a proteção, suas interlocuções com as políticas públicas, no contexto do conselho tutelar, não partimos de um modelo de referências único, pensando a escuta como uma ferramenta dada e automatizada, que se faz ao receber um usuário em um órgão do sistema de assistência social. Tentamos problematizar as diferentes possibilidades que podem se fazer presentes nas relações que ocorrem no conselho, ao tomar a escuta como um modo de intercessão político e ético dessas relações.

Ao estarmos sensíveis à rede potente dos diálogos que podem ocorrer em uma situação de atendimento ao usuário, e como eles são escutados, encontramos situações as mais diversas. Há escutas que intimidam, escutas investigativas, nas quais o profissional coloca-se no lugar de autoridade em sua busca pela verdade, silenciando aquele que fala. Ou, mais que isso, busca encontrar culpados, algo errado em que se deve intervir. Em muitos casos, essa escuta investigativa é colada a elementos que estigmatizam: as famílias negligentes, o dependente químico etc. Há escutas que acolhem, orientam, que entendem que proteger é tutelar, é definir modos corretos de vida, é seguir a lei e a moral acima de tudo. Há escutas que afirmam as lógicas biopolíticas de controle da vida. Há, também, escutas que colocam em análise as demandas das famílias, tentando junto com elas buscar soluções. Há as que criminalizam, assustam, entendem, policiam, punem, confortam, resolvem

A escuta é movimento que cria modos de subjetivação, sentidos que circulam e afetam a vida daqueles que passam pelo conselho. Talvez possamos aqui retomar uma pergunta já anunciada: pode a escuta escapar do mundo da verdade? A fabricação da verdade domina as relações que ocorrem no CT, cabe aos que ali trabalham "promover novas formas de subjetividade recusando o tipo de individualidade que nos foi imposto durante séculos" (Foucault, 1995, p. 239).

 

Referências

Arantes, E. M. M. (2012). Verbete escutar. In T. M. F. Galli, M. L. Nascimento, & C. Maraschin, (Orgs.), Pesquisar na diferença: Um abecedário (pp. 93-96). Porto Alegre, RS: Salina.         [ Links ]

Baptista, L. A. S. (1999). A cidade dos sábios. São Paulo, SP: Summus.         [ Links ]

Foucault, M. (1979). Nietzsche, a Genealogia e a História. In Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In H. Dreyfus, & P. Rabinow, (Orgs.), Michel Foucault, uma trajetória filosófica: Para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 273-295). Rio de Janeiro, RJ: Forense/Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2004). A hermenêutica do sujeito. São Paulo, SP: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (2005). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, RJ: Nau.         [ Links ]

Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo, SP: Martins Fontes.         [ Links ]

Heckert, A. L. C. (2007). Escuta como cuidado: O que se passa nos processos de formação e de escuta? In R. Pinheiro, & R. A. Mattos, (Orgs.), Razões públicas para a integralidade em saúde: O cuidado como valor (pp. 199-212). Rio de Janeiro, RJ: Abrasco.         [ Links ]

Guattari, F., & Rolnik, S. (1986). Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Monteiro, A., Coimbra, C., & Mendonça Filho, M. (2006). Estado democrático de direito e políticas públicas. Psicologia & Sociedade, 18(2), 7-12. https://doi.org/10.1590/S0102-71822006000200002        [ Links ]

Nascimento, M. L. (2015). Proteção à infância e à adolescência nas tramas da biopolítica. iN H. Resende. (Org.), Michel Foucault: O governo da infância (Vol. 1, pp. 281-290). Belo Horizonte, MG: Autêntica.         [ Links ]

Nascimento, M. L. (2016). Proteção e negligência: Pacificando a vida de crianças e adolescentes. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aliança.         [ Links ]

Nascimento, M. L., & Scheinvar, E. (2007). De como as práticas do conselho tutelar vêm se tornando jurisdicionais. Aletheia, (25), 34-45.         [ Links ]

Passetti, E (1999). Crianças carentes e políticas públicas. In M. Del Priore (Org.), História das crianças no Brasil (pp. 247-375). São Paulo, SP: Contexto.         [ Links ]

Rauter, C. (2012). Clínica do esquecimento. Niterói, RJ: Editora da UFF.         [ Links ]

Rolnik, S. (1995). O mal-estar na diferença. Recuperado de http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Malestardiferenca.pdf        [ Links ]

Wackant, L. (2008). As duas faces do gueto. Rio de Janeiro, RJ: Boitempo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Maria Lívia do Nascimento
mlivianascimento@gmail.com

Paloma Lima Ramos Jashar
palomajashar@gmail.com

Marianne de Camargo Barbosa
mariannecamargo@id.uff.br

Submetido em: 04/08/2018
Revisto em: 07/10/2018
Aceito em: 17/10/2018

 

 

1 Ainda que estejamos trazendo reflexões sobre o tema, não é nossa proposta traçar a história da política de assistência dirigida à criança e ao adolescente no Brasil. A esse respeito, é possível encontrar leituras como Passetti (1999) e Nascimento (2016).

Creative Commons License