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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

ARTIGOS

 

Análises críticas para desmontar o termo "ideologia de gênero"

 

Critical analyses to dismantle the term "gender ideology"

 

Analisis criticos para desmontar el termino "ideologia del genero"

 

 

Giovanna Marafon

Docente. Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF) e Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH). Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Duque de Caxias. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo é proposta uma escavação histórica dos saberes e discursos sobre a emergência do termo "ideologia de gênero" e são buscados pontos de discussão genealógica sobre o poder, partindo do presente e analisando a chamada "ideologia de gênero" em seus aspectos de conexão e efeitos de verdade. Problematiza como se constituiu a ideia de que colocar em pauta saberes e práticas de gênero seria uma ideologia e questiona a montagem que aponta para o exercício do poder pastoral sobre as condutas. Lança um olhar para os modos como o gênero tem sido conjugado e julgado moralmente no contemporâneo e faz uma crítica da "ideologia de gênero" como produção discursiva que vem sendo reeditada no Brasil, especialmente pelo movimento "Escola sem partido".

Palavras-chave: Ideologia de gênero; Verdade; Poder; Genealogia; Estudos de gênero.


ABSTRACT

This article proposes a historical excavation of knowledge and discourses on the emergence of the term "gender theory/ ideology" and looks for points of genealogical discussion about power, starting from the present and analyzing the so-called "gender ideology" in its connecting aspects and effects of truth. It problematizes how the idea of putting gender knowledges and practices on the agenda was constituted as an ideology and it questions the assemblage that points to the exercise of pastoral power over behaviors. The article takes a look at the ways that gender has been conjugated and morally judged in the contemporary and it makes a critique of "gender theory/ideology" as a discursive production that has been reissued in Brazil, especially by the movement "School without political party".

Keywords: Gender ideology; Truth; Power; Genealogy; Gender studies.


RESUMEN

En este artículo se propone una excavación histórica de los saberes y discursos sobre la emergencia del término "ideología de género" y se buscan puntos de discusión genealógica sobre el poder, partiendo del presente y analizando la llamada "ideología de género" en sus aspectos de conexión y efectos de verdad. Problematiza cómo se constituyó la idea de que poner en pauta saberes y prácticas de género sería una ideología y cuestiona el montaje que apunta el ejercicio del poder pastoral sobre las conductas. Echa una mirada sobre los modos cómo el género ha sido conjugado y juzgado moralmente en lo contemporáneo y hace una crítica de la "ideología de género" como producción discursiva que viene siendo reeditada en Brasil, especialmente por el movimiento "Escuela sin partido".

Palabras clave: Ideología de género; Verdad; Poder; Genealogía; Estudios de género.


 

 

No momento que se atualiza no Brasil, ano de 2018, escutamos diariamente a expressão "ideologia de gênero". Tem havido um uso indiscriminado do termo e muitas pessoas desconhecem a diferença entre ideologia de gênero e estudos ou teorias de gênero. O termo "ideologia de gênero" não integra as narrativas teóricas feministas, consiste em uma noção nova, criada no seio de discursos fundamentalistas (Lionço, 2016) que, a partir disso, vem sendo acionada de maneira a fabricar a desqualificação de comportamentos de estudantes, atividades escolares, atuações de professoras e professores e jeitos de ser e estar na vida, de se reconhecer e de viver as sexualidades.

Quando evocada, a "ideologia de gênero" tenta se opor às situações em que a produção de gênero é inconforme aos modos mais usuais do que se convencionou entender por gênero no senso comum. Na concepção do senso comum, temos que gênero se soma ao sexo e não o substitui, como identificou Carvalho (2011, p. 120): "gênero é associado aos traços de caráter e ao comportamento, enquanto sexo descreve o corpo e a biologia, ambos referidos a indivíduos". Sem se diferenciar do senso comum, o uso do termo "ideologia de gênero" diz, sobretudo, de um ataque desqualificador daquelas(es) que pesquisam, pensam e discutem as construções e relações de gênero. A "ideologia de gênero", como vem sendo alardeada, incita à manutenção das compreensões de gênero como "um discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como a linguagem universal" (Butler, 2017, p. 30).

Nessa linguagem permanece a assimetria dos gêneros, assim como são mantidas as normas de inteligibilidade socialmente instituídas. São essas normas de gênero que continuam excluindo muitas pessoas da inteligibilidade enquanto humanas. O livro de Judith Butler, acima citado, foi inicialmente publicado em inglês em 1990 e, nele, a autora já afirmava: "gêneros 'inteligíveis' são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo" (Butler, 2017, p. 43). Movimentações que desestabilizem o estabelecido sistema sexo-gênero como algo de atribuição natural, ou seja, que apresentem espectros de descontinuidade e incoerência frente a esse sistema:

"são constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a 'expressão' ou 'efeito' de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual" (Butler, 2017, p. 43-44).

O aspecto de proibição e, ao mesmo tempo, de produção de gênero, a que Butler fazia referência, parece se atualizar hoje no Brasil, e também em vários outros países, pela acusação nomeada "ideologia de gênero". Os defensores da ideologia de gênero alinham-se às práticas reguladoras que visam gerar identidades coerentes por meio da defesa de uma matriz de normas de gênero também coerentes, a saber, normas compulsoriamente heterossexuais, sustentadas na diferença assimétrica entre "feminino" e "masculino", estes compreendidos como atributos expressivos de "macho" e "fêmea", respectivamente. Butler1 passou a ser uma das autoras mais atacadas2, na medida em que ela problematizou a existência de uma "matriz de inteligibilidade" do gênero, algo não aceito na disputa política por aqueles que propagam a negação dessa matriz e defendem, ao contrário, a ideia de uma "ideologia de gênero" que, em última instância, seria o mesmo que dizer que somos todas e todos e qualquer um constituídos de uma única forma e essa seria, ainda, a correta, normal, saudável.

Mas, convém lembrar: "Gênero é um conceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual em múltiplas arenas de luta" (Haraway, 2004, p. 211). Para compreender como se constituiu a montagem reativa sobre o gênero e o que ela defende, bem como o que tenta produzir/excluir, vamos apresentar continuidades e descontinuidades nas discursividades e, com isso, posicionamo-nos pela desmontagem do termo "ideologia de gênero".

 

Implicações com o tema e as lentes teórico-metodológicas

Pesquisar-intervir na fronteira dos campos disciplinares da Psicologia e da Educação, com olhares e interesses voltados para os Estudos Feministas e de Gênero, campo eminentemente interdisciplinar, é o território a partir do qual podemos tomar a profusão discursiva em torno da chamada "ideologia de gênero" e seus efeitos sobre nossas vidas, e analisar a proveniência desse termo para proceder a uma crítica da nossa atualidade. Assim, a perspectiva aqui proposta se avizinha da pesquisa-intervenção, tal como pensada por Rocha e Aguiar (2003), por ter o intuito de desarticular práticas e discursos instituídos, inclusive daqueles eventualmente produzidos como científicos. Pauta-se, ainda, na recusa da neutralidade de analista/pesquisador(a) e busca romper com as barreiras entre sujeito que conhece e objeto a ser conhecido, uma vez que compreende que ambos fazem parte do mesmo processo. Pesquisar, desse modo, é uma intervenção na realidade por que transforma o que se pesquisa e como se pesquisa, abraçando o desafio da teorização permanente.

Tomar o termo "ideologia de gênero" como objeto de crítica é a proposta deste artigo, com a inspiração teórico-metodológica de uma atitude-limite, que visa "transformar a crítica exercida sob a forma de limitação necessária em uma crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível" (Foucault, 1984/2000, p. 347). Trata-se, então, de um trabalho no limite de nós mesmos, não para resgatar tradições ou universais, mas para promover ultrapassagens possíveis, parciais, localizadas. Esse trabalho sobre nossos limites, seguindo a inspiração foucaultiana, "é um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade" (Foucault, 1984/ 2000, p. 351).

Para isso, a crítica vai se exercer como pesquisa genealógica, da gênese, por meio de acontecimentos que levaram à constituição do termo "ideologia de gênero", fazendo emergir uma narrativa e um campo problemático. A crítica e a desmontagem da "ideologia de gênero", seguindo a inspiração de Foucault, será aqui um caminho para nos reconhecermos como sujeitos do que fazemos, pensamos, dizemos, ou seja, realizando uma "ontologia histórica de nós mesmos". Ontologia a um só tempo com as dimensões arqueológica e genealógica. Pensando em companhia de Foucault, a dimensão arqueológica é entendida como imanente, não transcendental, por tomar os discursos e também os acontecimentos históricos como aquilo que nos constitui, que articula o que pensamos, dizemos e fazemos. Isso significa, pela via arqueológica, "extrair os acontecimentos discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo" (Foucault, 1984/2000, p. 257) e investigar por que e como se estabelecem relações entre os acontecimentos discursivos. Em uma perspectiva genealógica, trata-se de extrair das contingências que nos fizeram ser o que somos a possiblidade de não mais sermos, fazermos ou pensarmos o que somos, fazemos ou pensamos. Por se tratar de uma insurreição dos saberes, a genealogia trava o combate contra os efeitos de poder de discursos tomados como verdade.

Ideologia de gênero é o termo aglutinador de um discurso que se almeja verdadeiro, produzindo-se pela retomada de valores familialistas e contrários à abertura nos modos de ser e estar, em relação a gênero e sexualidade, que vinham se desenhando socialmente e produzindo desestabilizações das normas nas últimas décadas. Nesse sentido: "é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder" (Foucault, 2010, p. 22).

Na relação entre poder e saber, uma sociedade como a nossa produz efeitos de verdade e, nesse sentido, afirma Foucault (2006a, p. 232-233): "entendo por verdade o conjunto de procedimentos que permitem a cada instante e a cada um pronunciar enunciados que serão considerados verdadeiros". Tanto o poder se infiltra no campo do saber para produzir a verdade, quanto o poder precisa dela, necessita dela para funcionar, "não há exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele" (Foucault, 2010, p. 22), por isso "somos condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la" (idem).

Trabalhos recentes produzidos por Junqueira (2017; no prelo) levantam a gênese, em perspectiva transnacional, do termo "teoria/ideologia de gênero". Com essas referências, buscamos um duplo exercício: de escavação histórica dos saberes e discursos sobre a emergência da ideologia de gênero, bem como de levantamento de pontos de discussão genealógica sobre o poder, partindo do presente e analisando a chamada "ideologia de gênero" em suas conexões e efeitos de verdade (Foucault, 2010). Interessa problematizar como se constituiu a ideia de que colocar em pauta saberes e práticas de gênero seria uma ideologia, o que supõe o estudo de algo falso, não verdadeiro ou que não existiria. Ideologia de gênero: que montagem é essa? A que ela responde? O que almeja produzir/excluir?

 

A emergência e a proveniência do termo "ideologia de gênero"

Em uma engrenagem de poder, saber e verdade, o termo "ideologia de gênero" emerge em uma cruzada ofensiva antigênero, gestada no interior do discurso e de práticas católicas fundamentalistas, tendo sido apropriado por setores ultraconservadores (Junqueira, 2017), por empreenderem ações políticas que impõem valores morais tradicionais e, mais, reafirmam pontos doutrinais cristãos dogmáticos e intransigentes. A esse respeito, Mello (2006) afirmou que em nível mundial o ano de 2005 marcou a radicalização do ultraconservadorismo vaticano com a eleição do Papa Joseph Ratzinger (Bento XVI). Também Lionço (2016; 2017) trabalhou sobre a noção de fundamentalismo religioso como expressão de forças políticas conservadoras extremistas que se utilizam de polarizações morais para demarcação de arenas de disputa eleitoral. Conforme investigação de Junqueira (no prelo), entre os grupos que promovem a disseminação do termo ideologia de gênero estão: movimentos eclesiais católicos, associações pró-família e pró-vida (contrárias ao aborto), associações de clínicas de conversão sexual (da chamada "cura gay"), organizações de juristas e/ou médicos cristãos, movimentos e partidos políticos de direita (ou de uma direita moral) e extrema-direita, órgãos de imprensa, entre outros.

Com o argumento de defesa da família tradicional frente a uma supostamente perigosa infiltração da perspectiva de gênero tanto nas instituições, quanto nas políticas públicas e na vida cotidiana, a narrativa da "ideologia de gênero" constrói estratégias em meio a um campo de disputa de poder que encontra adesão também de outras matrizes religiosas, não somente católica. Reconhecendo que o termo "ideologia de gênero" provém da Santa Sé, Junqueira (no prelo) identificou que isso não impediu que setores neopentecostais, especialmente na América Latina, também se apropriassem dele e do discurso antigênero e contribuíssem para sua disseminação. A polarização discursiva e a disputa de verdades, promovida pelo termo "ideologia de gênero", assenta-se numa ação reativa e ofensiva contra o uso do conceito gênero. Assim, a defesa de uma "ideologia de gênero" se dá acusando quem opera com a categoria gênero de ameaça à ideia de "família natural", à segurança dos filhos e, em última instância, à perpetuação da sociedade e à sobrevivência da civilização (esta assente na diferença sexual binária - homem versus mulher, na hierarquia dessa divisão, com a dominação masculina e na crença de complementaridade sexual homem-mulher, compulsoriamente heterossexual).

Podemos compreender como uma reação vingativa de grupos que se ressentem das discussões realizadas a partir do conceito gênero como operação que se efetua em meio a normas de gênero e a enquadres (Butler, 2015) que se constituíram na história e não naturalmente. Daí advém esforços para naturalizar ou renaturalizar as compreensões de gênero, promovendo sua redução a sexo biológico, restringindo reprodução biológica e filiação supostamente natural como fundamentos da reprodução social e promovendo ataques ressentidos a discursos que se fundamentam no deslocamento ou na desconstrução de tais compreensões. Esses ataques fazem apelos à desestruturação social, subjetiva e relacional, aferrando-se na sustentação da diferença sexual como baluarte último da nossa civilização.

Interessante analisar como o discurso da "ideologia de gênero" foi arquitetado para afirmar certezas conservadoras, de forma reativa a conquistas de direitos das mulheres. As emblemáticas Conferências Internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1994 e 1995, foram o palco de articulação de narrativas antifeministas e antigênero:

Em reação às discussões ocorridas para a aprovação dos documentos da Conferência Internacional sobre População, no Cairo, em 1994, e da Conferência Mundial sobre as Mulheres, em Pequim, no ano seguinte, o Vaticano convocou dezenas de "especialistas" para pôr em marcha uma "contraofensiva", reafirmar a doutrina católica e reiterar a naturalização da ordem sexual centrada na dominação masculina e na matriz heterossexual. Desde então, intensificou-se o lobby antifeminista junto às Nações Unidas por meio de grupos ligados à Santa Sé e representantes religiosos católicos (Junqueira, no prelo3, p. 17).

A Conferência Internacional da ONU no Cairo (1994), sobre "População e Desenvolvimento", pautou a questão dos direitos reprodutivos das mulheres e, em Pequim, em 1995, a "Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz" direcionou o olhar para as mulheres em uma perspectiva dos direitos humanos. Em um movimento de oposição a tais lutas e reivindicações, participaram autoras como Christina Hoff Sommers, que escreveu o livro Who Stole Feminism? How Women Have Betrayed Women, no qual atacou o que chamou de gender feminism: um feminismo ideológico, por buscar a igualdade de gênero, e ainda, Dale O'Leary, conferencista autodidata e ensaísta estadunidense, que se tornou membro da Opus Dei. Esta é uma instituição hierárquica da Igreja Católica destinada à evangelização, que prega a santidade e o valor santificador do trabalho cotidiano, composta por 98% de homens e mulheres casados e 2% sacerdotes. Entre as publicações mais importantes de O'Leary, Junqueira (no prelo) cita o livro The Gender Agenda: Redefining Equality, de 1997, e também um blog mantido por ela What Does the Research Really Say?, no qual "promove a defesa da moralidade cristã e da família tradicional, combate o que ela nomeia 'feminismo radical' e o ativismo LGBTI" (Junqueira, no prelo, p. 21). A produção de O'Leary foi intimamente sintonizada com as formulações vaticanas e produziu um arsenal discursivo e político antifeminista e antigênero que modulou as estratégias de movimentos conservadores na cruzada antigênero no período que segue até os dias atuais. Embora não tenha sido ela a formular o termo ideologia de gênero, permitiu amplamente a sua divulgação em linguagem direta e acessível a qualquer um, em vários idiomas, o que pode ter contribuído para a circulação transnacional da ofensiva antigênero, que chegou também ao Brasil.

A investigação detalhada realizada por Junqueira (no prelo) encontrou que, possivelmente, uma das primeiras, senão a primeira emergência do termo "ideologia de gênero", tal como adotada nas cruzadas antigênero, tenha acontecido no livro L'Évangile Face au Désordre Mondial, de 1997, com prefácio de Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI), e autoria do monsenhor Michel Schooyans, conhecido pelas posturas ultraconservadoras: críticas ao aborto, ao uso de contraceptivos e por acusações aos organismos internacionais de seguirem o interesse de "minorias subversivas", que promoveriam cultura antifamília, "colonialismo sexual" e "ideologia da morte". (Junqueira, no prelo). Segundo tais investigações realizadas por Junqueira e apresentadas em seminário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)4 em 2017, a "ideologia de gênero" apareceu pela primeira vez em um documento eclesiástico em 1998, em uma nota da Conferência Episcopal do Peru, intitulada La Ideologia de Género: sus Peligros y Alcances. A confecção daquele documento foi dirigida por outro monsenhor ultraconservador, Alzamora Revoredo, e envolveu a Comissão ad hoc da Mulher e a Comissão Episcopal do Apostolado Leigo, tendo se baseado em artigo de O'Leary, de 1995, escrito para os trabalhos preparatórios dos grupos pró-vida e pró-família por ocasião da Conferência de Pequim. Da mesma maneira como ocorre com os textos de autoria de O'Leary e de outros autores do campo antigênero, "ideias e trechos desse documento são, por parte dos cruzados antigênero de todo o mundo, incessantemente reiterados e copiados, sem aspas ou menção a autoria ou fonte" (Junqueira, no prelo, p. 23). Isso explica a vertiginosa aparição e apropriação transnacional do termo "ideologia de gênero" e sua rápida disseminação pelo senso comum moralista e punitivista, sem maiores variações ou dificuldades, pois seguia a mesma matriz, agora identificada.

Cabe problematizar os efeitos de um discurso que remete a supostas certezas que não devem ser contestadas, enquanto são vividas crises econômicas diversas no capitalismo global, agudizadas desde 2008, com altos índices de desemprego, alargamento das desigualdades sociais, repressão policial, limitação da liberdade de expressão, e que têm atingido mais intensamente partes da população tornadas vulneráveis pelas políticas neoliberais, entre os quais se encontram estudantes, jovens qualificadas(os) e sem trabalho, trabalhadores informais, professoras(es) etc. (Marafon, 2017). Em vez de confrontar o sistema neoliberal quanto à produção de miséria que este confere à maior parte das populações e preserva riquezas para uma minoria, como fizeram recentes movimentos de ocupação e resistências (tais como as chamadas primaveras árabes, os occupies estadunidenses e os "ocupas" brasileiros), os grupos conservadores se atêm a fabricar discursos e estratégias de poder para assegurar a conservação moralista de valores sociais que já foram dominantes, para que não passem pela reterritorialização de forças que se movem na cena pública.

Como bem destacou Junqueira (no prelo), tais grupos, além de uma postura hiperconservadora no terreno da moralidade privada, também se alinham a setores com posições ultraliberais na economia, que pregam um Estado mínimo no campo das políticas sociais, diminuição dos investimentos públicos em políticas de redistribuição de renda e, paralelamente, são complacentes com o aumento de incentivos públicos às instituições privadas (e de cunho religioso) de saúde e educação, entre outras. Na mesma direção, Miguel (2016) destacou que os discursos reacionários no Brasil provêm da excêntrica conjugação entre fundamentalismo religioso e anticomunismo, com tendências ultraliberais no plano econômico. Confirmando isso, Lionço (2016) refere que, na esteira do que aconteceu nos Estados Unidos com a nova direita estadunidense que emergiu no governo Reagan, na década de 1990, há uma associação, no Brasil, entre autoridades religiosas neopentecostais no poder público e a teologia da prosperidade, alinhada a projetos políticos neoliberais.

Do lado do fundamentalismo religioso, também desde os anos 1990, despontou o investimento das igrejas neopentecostais na eleição de seus candidatos pastores e dos setores mais conservadores da Igreja Católica para eleger parlamentares que as representem. Essas forças se alinham bem aos latifundiários e aos defensores de armamentos, produzindo a aliança chamada "bancada BBB" - boi, bala e Bíblia. No âmbito econômico, os grupos conservadores pregam um ultraliberalismo, com enaltecimento do indivíduo e de sua condição de "proprietário de si mesmo" (Miguel, 2016, p. 594) ou, pensando com Foucault (2008a), na mais evidente manifestação do homo economicus, por meio da forma sujeito empresário de si mesmo. O Estado deve interferir o mínimo nas relações econômicas e no provimento de serviços, mas, ao mesmo tempo, regular intensamente a vida privada. Tais grupos são ainda favoráveis aos discursos do senso comum penal (Wacquant, 2001) em voga nesses tempos sombrios, a favor de ações penais mais rígidas, costumam defender a redução da maioridade penal, são favoráveis ao vigilantismo e à promoção de práticas vingativas, tal como a pena de morte.

A cruzada antigênero assume uma postura conservadora ou, ainda, uma "atitude normalizadora - que ignora sistematicamente os deslocamentos ou tenta recuperá-los e reintegrá-los" (Guattari, & Rolnik, 1986, p. 50). Em vez de práticas de liberdade, práticas de assujeitamento, modos de sujeitar a verdades em um universo que já não apresentaria surpresas, além daquelas provenientes da instabilidade de produção da vida material. Por expedientes assim, a instabilidade das relações de si para consigo e com os outros pode parecer para muitos que esteja em uma ordem estável, sem abalos. Nos cenários de insegurança, desenvolvem-se estratégias para conferir alguma segurança às vidas fragilizadas e aos sujeitos precarizados que facilmente aderem ou são capturados por esse discurso, ainda que para isso sejam acionadas posturas fascistas, de um "fascismo que está em todos nós que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora" (Foucault, 2004, p. 5).

Curiosamente, a atitude normalizadora do termo "ideologia de gênero" utiliza-se do termo ideologia, que em filosofia é um conceito desenvolvido no século XIX, dizendo respeito "a análise das sensações e das idéias", segundo Condillac (que foi discípulo de John Locke). No dicionário de filosofia se encontra que:

Em geral, portanto, pode-se denominar I. toda crença usada para o controle dos comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença (v.), em seu significado mais amplo, como noção de compromisso da conduta, que pode ter ou não validade objetiva. Entendido nesse sentido, o conceito de I[deologia] é puramente formal, uma vez que pode ser vista como I. tanto uma crença fundada em elementos objetivos quanto uma crença totalmente infundada, tanto uma crença realizável quanto uma crença irrealizável. O que transforma uma crença em I. não é sua validade ou falta de validade, mas unicamente sua capacidade de controlar os comportamentos em determinada situação (Abbagnano, 2007, p. 532).

Depois de ler a definição acima apresentada, torna-se difícil não pensar que, em termos filosóficos, o uso do termo "ideologia de gênero" é ideológico! Não em sua vertente marxista, pois não se explicita como interesse de uma classe ou grupo social. Mas, sim, como doutrina sem fundamentação teórico-científica que lhe dê respaldo. Entretanto, por sua fácil apreensão no senso comum, ao inflar um moralismo familialista assentado em crenças religiosas, veicula um discurso de controle de comportamentos no campo do gênero e da sexualidade. Paralelamente, alguns ditos e escritos de Michel Foucault apresentam a recusa, em suas investigações, a realizar estudos de tipo ideológico, a exemplo de como procedeu com o tema das prisões. Ou, ainda, no estudo da loucura, não seguiu um universal que diria: eis a loucura - ela é isso ou aquilo. Preferiu evitar a noção de ideologia por ela sempre se oferecer, de alguma maneira, em oposição a algo que seria a verdade (Foucault, 1979). De modo que, em geral, acusa-se algo de ser "ideológico" para dizer que não é científico ou verdadeiro. E aqui fica perceptível que a cruzada antigênero acusa o campo de Estudos de Gênero de fazer "ideologia de gênero", estratégia discursiva para desqualificar e acusar o gênero de algo falso, não verdadeiro ou mesmo não científico. Em oposição, outorga o lugar de verdade ao termo "ideologia de gênero".

 

"Ideologia de gênero" e poder pastoral

Gestada como discurso de verdade no interior de contextos vaticanos e episcopais, com o tempo, a "ideologia de gênero" foi se disseminando em ações midiáticas eficazes, passando a ser um receptáculo para qualquer sorte de ações de extrema direita e valorização moral, deixando à sombra a sua proveniência católica e sendo usado como forma-fôrma que pode comportar agendas conservadoras diversas. Houve a sua desconfessionalização e o investimento em um caráter de aparente laicidade (Junqueira, 2017) no âmbito de documentos referentes a políticas públicas e governamentais, com o convencimento de juristas, gestores de escolas, pais, formuladores de políticas, profissionais de mídias, entre outros. Atualizada aos nossos tempos, a "ideologia de gênero" visa ao controle das condutas, com maior alcance por tornar aparentemente invisível sua proveniência cristã e se mimetizar entre discursos aparentemente laicos.

Com isso, podemos afirmar que o gênero - e não somente a sexualidade - está na "ordem do discurso"! Seria esse um modo de parafrasear Foucault, quando afirmou no primeiro volume de sua "História da Sexualidade" - A vontade de saber, que não seguia a hipótese repressiva quanto à sexualidade, pois as coisas apareciam bem diferentes: havia, nos últimos três séculos no Ocidente, uma verdadeira explosão discursiva em torno e a propósito do sexo (Foucault, 2005). O filósofo afirmou que se tratava muito mais da incitação de discursos e enunciados que objetivavam a gestão (correta, sadia, normal) da sexualidade. Tratava-se de um conjunto de técnicas de poder e de produção de verdade sobre o sexo, que desenvolveu no final do século XIX uma série de controles sociais, que via perigos em toda parte, despertando vigilâncias, solicitava diagnósticos, acumulava relatórios, organizava terapêuticas etc. No dizer do filósofo: "em torno do sexo eles irradiaram os discursos, intensificando a consciência de um perigo incessante que constitui, por sua vez, incitação a se falar dele" (Foucault, 2005, p. 32-33).

Para tanto, houve antes um investimento cristão na confissão do sexo e no governo das almas, segundo Foucault, com uma moral recuperada de épocas anteriores ao Cristianismo, na forma de um poder pastoral (Foucault, 2006b). Poder pastoral por visar acima de tudo à condução de condutas, como uma arte de governar, que esteve presente de forma embrionária no limiar de desenvolvimento do Estado Moderno entre os séculos XVI e XVIII. No curso "Segurança, Território, População", Foucault (2008b) afirmou que o pastorado não coincidia nem com uma política, nem com uma pedagogia, nem com uma retórica. O filósofo entende que é uma "arte de governar os homens", por que o pastorado cristão instaurou um tipo de relação de obediência individual, exaustiva, total e permanente. O pastorado tornou-se um modo de individualização, de uma individualização por sujeição, que visa à produção de uma verdade interior, supostamente secreta e oculta. No pastorado cristão o que se evidencia são relações de submissão, de dependência integral ao pastor, havendo um estado de obediência sem fim ou finalidade além de simplesmente obedecer. O pastor exerce sobre a vida cotidiana das suas ovelhas uma vigilância, uma direção constante, a cada instante, constituindo um saber perpétuo, que será um "saber do comportamento das pessoas e da sua conduta" (Foucault, 2008b, p. 239). No mesmo sentido, há ainda uma direção de consciência permanente, para uma vida inteira, constituindo um instrumento de dependência.

A partir desses diálogos entre autores, evidenciando a associação entre religião e política no que se refere à emergência e à proveniência da "ideologia de gênero", podemos questionar: qual a relação entre o poder pastoral e a estratégia da "ideologia de gênero"? A prática política da pastoral cristã teria servido de pano de fundo para o que veio a se desenvolver depois com uma governamentalidade, como prática política calculada e refletida no governo das condutas. O pastorado visa a constituir um sujeito e preludia a governamentalidade:

"pela constituição tão específica de um sujeito, de um sujeito cujos méritos são identificados de maneira analítica, de um sujeito que é sujeitado em redes contínuas de obediência, de um sujeito que é subjetivado pela extração de verdade que lhe é imposta" (Foucault, 2008b, p. 243).

Além de ser momento decisivo nas relações de poder nas sociedades ocidentais, Foucault (2008a) afirmou que a relação entre religião e política se dá menos pelo jogo entre Igreja e Estado e mais entre pastorado e governo. É o que constitui uma relação entre religião e política, "numa economia das almas", que incide sobre a comunidade de cristãos e sobre cada cristão em particular. Totalidade e individualização ao mesmo tempo, de forma que cada um tinha de se abrir ao exame de consciência, vinculando obediência total, conhecimento de si e confissão a um outro. Tudo isso para levar os indivíduos a sua "mortificação": renúncia a este mundo e a si mesmo, em uma espécie de morte cotidiana (Foucault, 2006b). Portanto, pensar as relações de poder coloca em cena a maneira como nos relacionamos com nós mesmos e com os outros e possibilita perquirir como nos subjetivamos. Um ponto fundamental a ser lembrado é que Foucault alertou que o poder pastoral nunca seria de todo abolido, embora tenha sido deslocado, integrado a outros dispositivos, modos e instrumentos de poder.

Estaríamos diante de uma ação renovada de poder pastoral que toma o gênero como alvo? Ou, no empréstimo das palavras de Foucault (2008b, p. 481): "uma nova pastoral", pelo que discorremos até aqui, somado a reconhecer que os pleitos políticos recusados pelos movimentos fundamentalistas religiosos são exatamente aqueles concernentes aos direitos das mulheres e das chamadas minorias sexuais, tais como profissionais do sexo e lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersexos (LGBTI), conforme também identificou Lionço (2016). Então resta bastante evidente que o poder pastoral hoje segue orientando condutas e tendo relação com o governo das pessoas. Um poder pastoral que elegeu o campo das relações de gênero e sexualidade como pontos importantes de sua ação, que visa a produzir a homogeneidade de comportamentos, com a imposição de uma visão monolítica, disposta a apagar as diferenças e divergências.

Algo importante que se pode depreender também dos trabalhos empreendidos por Junqueira (2017; no prelo) é que, paralelamente, o alvoroço católico se dirigiu também intensamente contra a homossexualidade, sem abrir mão da cruzada antifeminista, na gestação da falaciosa "ideologia de gênero". Essa cruzada destacou a heterossexualidade como parâmetro único e aceito para a sexualidade, visando à estruturação da família heterossexual e qualquer movimento diferente desse seria considerado patológico pelo catolicismo. Enquanto vários países na Europa discutiam o reconhecimento das uniões civis de casais do mesmo sexo na década de 1990, no interior do pensamento católico, afirmava-se mais ainda o matrimônio heterossexual, tendo por base uniões de sexos diferentes, sob o argumento da complementaridade e recusando que se pudesse equivaler as uniões homossexuais ao casamento heterossexual. Essa nova cruzada nomeava a homossexualidade como o "mal", "sexualidade errada" e "imoral". Com a defesa de um tipo de família, aquela entendida como correta aos olhares divinos, pregavam contra outros arranjos familiares e a adoção do termo "ideologia de gênero" passava a abrigar também a cruzada contra a chamada "ideologia antifamília", acusação feita aos movimentos e grupos pró-uniões civis de pessoas do mesmo sexo que, em alguns casos, pleiteavam também o direito à filiação por meio da adoção, reivindicação vista como inconcebível pela Igreja.

Ao longo das décadas seguintes, o que se viu foi uma afronta mais rígida à colocação em pauta dos saberes e das práticas de gênero, com a figura do Papa Bento XVI, e um recrudescimento do discurso "ideologia de gênero", com argumentos mais sutis e insidiosos e menos explícitos na reprovação/condenação das práticas homossexuais. Mantém-se, assim, a postura antigênero, com a defesa da família nos moldes heterossexuais, com a ideia de complementaridade entre homem e mulher e a defesa de uma educação (inclusive escolar) que tenta regular as práticas didático-pedagógicas para afastar as crianças de concepções de gênero externas a esse modo de compreender e (se) governar no mundo.

 

Mobilizações antigênero e "Escola sem partido": da crítica às ultrapassagens necessárias

As mobilizações antigênero fazem acusações vagas de que grupos ligados à "causa de gênero" estariam disseminando ideias vinculadas ao tema, especialmente nas escolas, como se fosse algo a ser temido. Distorcem as abordagens de gênero, que perspectivam relações, e promovem o que Rubin (2003) já denunciou como efeito de agendas conservadoras em políticas da sexualidade, criando um pânico moral, ao afirmarem equívocos que chegam a assustar devido à falta de fundamentos acrescida de argumentos falsos, tal como dizer que os estudos de gênero promovem que crianças e jovens se tornem homossexuais. Exemplo disso, em 2013 no Brasil foi a retirada do material que visava a discutir a homofobia nas escolas, apelidado pelos parlamentares religiosos, de modo pejorativo e conservador, de kit gay. Logo se percebe que naquele discurso a homossexualidade é a figura abjeta, o anormal, considerada fora de uma gramática de humanidade. Os argumentos da cruzada antigênero fomentam preconceitos e discriminações e atacam frontalmente os princípios de promoção da igualdade e os questionamentos de estereótipos de gênero. No Brasil, têm sido disparados sobre escolas, políticas de saúde e educacionais, contando com o lobby de grupos como o Movimento "Escola sem partido" (EsP) que, em articulação a parlamentares que defendem pautas de retrocessos no campo dos direitos sociais, promovem uma série de projetos de lei (PL) que versam sobre a tal "Escola sem partido".

A promoção de discussões de gênero no âmbito das políticas brasileiras não foi uma tônica frequente, contando com idas e vindas, a exemplo da inexistência do termo gênero na Constituição Federal (Senado Federal, 1988), o que parece ter coincidido com o levante da cruzada transnacional antigênero que começava a se desenhar naquele período. Nas políticas educacionais, com esforços e contradições, em 2001, o Programa Nacional de Educação (PNE) incorporou de forma sutil a referência a gênero, mesmo que o termo tenha desaparecido da apresentação geral do referido programa, sendo apresentado apenas em alguns tópicos. A história da construção desse documento merece registro, pois havia tensões que o permeavam, chegando à aprovação de um texto final pelo Ministério da Educação (MEC) diferente daquele discutido e aprovado pela sociedade civil, que tinha outro nome: "PNE - proposta da sociedade brasileira". Neste último, havia propostas para que o texto contemplasse as demandas relativas à supressão das desigualdades de gênero na sociedade, no entanto, elas não foram incorporadas no documento oficial.

De acordo com as análises de Vianna e Unbehaum (2004), foi somente com a aprovação dos Parâmetros Curriculares Nacional (PCN), em 1997, que o gênero apareceu mais evidentemente como tema de discussões e da formação no ensino fundamental, por meio dos temas transversais. Mesmo assim, o termo gênero aparece de forma tímida e se fazendo expressar em temáticas que o remetem ao universo da biologia e nas quais sobressai a perspectiva de prevenção de doenças, como: "corpo - matriz da sexualidade"; "relações de gênero" e "prevenção às doenças sexualmente transmissíveis". Por isso, há que se ter cautela com o reconhecimento da incorporação de algumas discussões de gênero nas políticas públicas de educação para analisar a que elas têm servido. Mas, no seio do enfrentamento atual ao EsP e frente as ameaças à democracia, parece que aquela era uma pequena conquista, forçada pelos movimentos sociais e outros coletivos. Os regimes discursivos em torno de gênero e sexualidade, bem como de diversidade étnica e religiosa, encontram-se hoje ameaçados de proibição, anunciando retrocessos na agenda política.

Os novos vetos às discussões a respeito de gênero em espaço escolar, por ocasião da aprovação do mais recente PNE, sancionado em 2014, com a supressão dos termos "identidade de gênero" e discussão de "sexualidade nas escolas" reavivaram debates que não são novos, entretanto reeditaram um resultado que se repete há alguns anos, em que forças de vanguarda, que visam a levar tais discussões para a educação, são vencidas. Nos anos de 2015 e 2016, os municípios e estados brasileiros tinham de aprovar e implementar seus planos de educação, com base no PNE de 2014 e, muitos deles, mantiveram a supressão da temática gênero-sexualidade, chegando a impedir que esses termos aparecessem nos textos. Isso parece ter sido o aval para discursos mais conservadores, garantindo aparentes triunfos do movimento EsP, o que teve ressonância com a disseminação de suas ações nas redes sociais e, acima de tudo, no lobby e na propositura legislativa de inúmeros PL nas Câmaras de Vereadores dos municípios, nas Assembleias Legislativas dos estados e no Senado Federal.

Os PL "Escola sem Partido" buscam proibir explicitamente que professoras e professores discutam, em suas aulas, temas como gênero, sexualidade, diversidade étnica e religiosa e direitos humanos, temas acusados de serem trabalhados com finalidade de "doutrinação ideológica e partidária", em uma equivocação produtora de mal-entendidos em que partido é um reducionismo intencional de política. Ora, assumir uma perspectiva política não é o mesmo que partidarismo. Para o EsP, tais temas deveriam ficar ao encargo das concepções de educação de cada família, sendo proibidos no âmbito público da educação, de acordo com os idealizadores do EsP. Como slogan dessa pretensão, o movimento prega a autoridade dos pais sobre seus filhos, com os dizeres: "meu filho, minhas regras". Trata-se evidentemente de uma paródia reativa a outro dizer construído como slogan de movimentos feministas - "meu corpo, minhas regras" - utilizado em situações políticas de reivindicação, como: lutas pelo direito ao aborto, pela desnaturalização da maternidade compulsória, contra a cultura do estupro e da objetificação do corpo das mulheres, entre outras.

Chama a atenção que de início o EsP estigmatizava as discussões filosóficas pautadas nas reflexões marxistas, sobre política e democracia e sobre desigualdades sociais de modo amplo, mas, com o passar do tempo e sob influência da cruzada antigênero transnacional, passou a focar a perseguição às discussões de gênero realizadas nas escolas. Sua visibilidade tornou-se mais expressiva a partir de 2010, apesar de o movimento ter se iniciado em 2004, por meio de Miguel Nagib, advogado que militava por fazer valer sua compreensão pessoal a respeito da formação de sua filha e, a partir disso, tornou-se um expoente do conservadorismo moral e defensor do conservadorismo econômico em matéria de políticas educacionais (Miguel, 2016).

Há uma página de facebook do EsP que agencia um canal de denúncias em que os pais podem fazer uma notificação extrajudicial (facilmente tornada judicial), repleta de fundamentação jurídica, sugerindo o "abuso de liberdade" de professores ao ensinar. Além disso, a Associação "Escola sem Partido", registrada como pessoa jurídica de direito privado, tem movido ações junto ao Ministério Público, levantando, por ora, a acusação de improbidade administrativa de professores em exercício docente, acusados de serem doutrinadores. Através do sítio eletrônico do "Escola sem Partido", estudantes são orientados a pensar a relação professor-aluno a partir da dicotomia excludente entre liberdade de ensinar (do professor) e liberdade de aprender (do aluno) e, assim, a planejarem as suas denúncias, recolhendo provas e situações que possam vir a confirmar a doutrinação política e ideológica supostamente perpetrada nas escolas por docentes. O enquadramento da situação de ensino e aprendizagem deixa de ser pedagógico ou educacional, tornando-se jurídico, em uma relação previamente compreendida como de atrito e de delito, entre adversários de um jogo que poderá ser arbitrado judicialmente (Marafon, 2017). Além disso, a questão educacional é vista como um serviço, a ser prestado por uma unidade escolar, circunscrevendo a educação à dimensão do direito do consumidor, em termos de ações dos pais (insatisfeitos) contra o serviço prestado pelas escolas. Mas, também é importante referir que existe uma página intitulada "Professores contra o escola sem partido", que organiza análises, críticas e resistências com discussões e veiculação de materiais que colocam em xeque as ofensivas do EsP.

Um dos efeitos produzidos pelo regime de verdades que tenta dominar o discurso educacional com o termo "ideologia de gênero" é a sensação de medo e insegurança que paira sobre professoras(es) que transversalizam discussões sobre saberes e práticas de gênero nas escolas básicas e sobre aquelas/es que atuam na formação de professoras(es) no ensino superior também. Não à toa, foram estudantes que passaram a nominar o Esp como "escola da mordaça" em diversos locais, como aconteceu em inúmeras ocupações estudantis que tomaram corpos no ano de 2016 no Brasil. Organizaram práticas de resistência e de análise do discurso moralista que tem pretensões de amordaçar docentes em sua prática educacional, tornando-as(os) meras(os) técnicos sem pensamento crítico. Em muitos lugares, como na ocupação do Colégio Pedro II de Realengo, no Rio de Janeiro, estudantes mostraram que:

"querem continuar as discussões sobre gênero e sexualidade, afinal, a temática está em suas vidas e mais, algumas vidas são tidas como inviáveis em um sistema classificatório hierarquizante das diferenças, algo com o que jovens estudantes estão dizendo não quererem compactuar" (Marafon, 2017, p. 28).

A aproximação das escolas básicas permite observar que há produção de gênero nas práticas escolares, diariamente e em qualquer espaço, mediada pela ação docente ou independentemente dela. O que acontece no espaço escolar não é neutro, pois segue inexoravelmente alguns parâmetros e normas de conduta, refletidos ou não. A questão é que não poder abordar ou analisar as relações de gênero em sua constituição é um exercício de poder calculado para fazer passar por inevitável o jeito dominante de nos constituirmos como sujeitos, portanto, é um modo de governar as condutas. É uma ameaça que intimida liberdades, tenta calar e amordaçar vozes dissonantes num jogo político em que grupos há tempos sem voz começaram a articular outros discursos.

 

Considerações finais

Com as acusações de doutrinação ideológica, empreendidas também por meio do termo "ideologia de gênero", além de ser uma manifestação antigênero, o "Escola sem Partido" é um movimento antidemocrático. Opõe-se aos direitos de não discriminação e à promoção da igualdade de gênero e sua ação reativa advoga pelo bloqueio do combate à lesbo/homo/transfobia e ao sexismo nas escolas. Sendo assim, é um movimento que contribui para a manutenção de privilégios de alguns e para a perpetuação de práticas preconceituosas, segregacionistas e violentas. Concordando com Lionço (2017), podemos dizer que legitima a exclusão e/ou precarização de direitos "a determinados segmentos populacionais em prol da manutenção de privilégios para grupos em situação de poder hegemônico em um contexto social desigual" (p. 212).

Considerado um saber perigoso, possivelmente pela inegável contribuição desse campo interdisciplinar para se pensar os modos de vida, de subjetivação e liberdades a serem construídas frente aos assujeitamentos, além de engajamento na vida pública, o gênero foi colocado na berlinda por grupos ultraconservadores. O conceito de gênero é como uma fenda na sanha dominadora da produção de subjetividade em série, essa que rechaça inconformidades.

O campo dos Estudos de Gênero segue sendo fundamental para analisar e até mesmo alavancar alguns processos sociais em que as relações de gênero se mostram ainda pouco permeáveis a aberturas, deslocamento e reinvenções, apresentando crítica e resistência a cruzadas antigênero e antidemocráticas perpetradas por movimentos conservadores que defendem a existência de uma "ideologia de gênero", tal como o "Escola sem Partido". É da força constitutiva dos múltiplos Estudos de Gênero serem saberes feitos para cortar. "É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar" (Foucault, 1979, p. 27). Se os tempos atuais se mostram limitadores nas possibilidades de liberdade na constituição de nós mesmos e de nossas vidas, fazer a crítica ao uso do termo "ideologia de gênero" é uma aposta acadêmica, social e politicamente implicada em subverter as formas dogmáticas do pensamento, estranhar as verdades e desassujeitar saberes e práticas de gênero. Buscar ultrapassagens possíveis.

 

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Endereço para correspondência:
Giovanna Marafon
giovannamarafon@gmail.com
Rua São Francisco Xavier, 524 - Pavilhão João Lyra Filho
12° Andar - Bloco F - Sala 12.111
Maracanã - 20550900 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil

Submetido em: 01/09/2018
Revisto em: 04/11/2018
Aceito em: 06/11/2018

 

 

1 Judith Butler esteve no Brasil pela primeira vez em 2015, para realizar a conferência oficial de abertura do II Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizado na Universidade Federal da Bahia, e participar de eventos em São José do Rio Preto e em São Paulo. A filósofa e autora de diversas obras que problematizam o gênero, a exemplo de seu livro "Problemas de gênero", esteve novamente no Brasil, em São Paulo, em novembro de 2017, ocasião em que foi alvo de ataques de grupos conservadores que tentaram impedir a sua conferência no SESC Pompeia, conforme se lê na matéria: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/07/politica/1510085652_717856.html, acessada em 11 de abril de 2018.
2 Entretanto, não é a única. No Brasil, também vêm sendo alvos de ataques e ameaças as pesquisadoras e professoras universitárias: Tatiana Lionço (UnB), psicóloga, ativista LGBT, que teve um vídeo seu editado e manipulado de maneira difamatória (acusada de pedofilia) por ocasião de sua participação no 9º Seminário LGBT (Sexualidade, papéis de gênero e educação na infância e adolescência), no Congresso Nacional em 2012; Debora Diniz (UnB), antropóloga, coordenadora do Instituto de Bioética - Anis - por pesquisar e defender a saúde das mulheres, em seus direitos reprodutivos, e se posicionar favoravelmente à descriminalização do aborto em 2018; Marlene de Fáveri (Udesc), historiadora, acusada de "perseguição ideológica", em 2017, por uma ex-aluna - havia sido sua orientanda de mestrado - pois a professora havia ministrado um curso sobre feminismo no programa de pós-graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina.
3 Junqueira, R. D. (No prelo). "Ideologia de gênero": uma invenção vaticana para uma retórica reacionária. Revista Psicologia Política, número especial.
4 Nos dias 30 e 31 de outubro de 2017, foi realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) o Seminário "Gênero ameaça(n)do: análises e resistências frente a movimentações conservadoras sob a perspectiva dos Direitos Humanos". Na ocasião, Rogerio Junqueira (INEP) participou da Mesa "Ideologia de gênero: desafios e estado da arte".

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