SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.70 special issueThe government of subjectivity through judicialization in the security deviceDramatization of power: the question of the reduction of the age of majority author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

ARTIGOS

 

O governo da infância: o brincar como técnica de si

 

The government of childhood: playing as a technique of the self

 

El gobierno de la infancia: el jugar como técnica de sí

 

 

Tiago Almeida

Docente. Instituto Politécnico de Lisboa. Escola Superior de Educação/Centro de Investigação em Educação do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas Sociais e da Vida (CIE - ISPA). Instituto Universitário (IU). Lisboa. Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A compreensão que temos do que é a infância e do papel do brincar tem sofrido alterações ao longo do tempo. Este texto pretende refletir e analisar, a partir dos escritos de Rousseau, Pestalozzi e Froebel, como o brincar se pode assumir como uma tecnologia de subjetivação da infância e, com isso, definir o seu "estar-a-ser". Neste sentido, este trabalho propõe-se discutir o brincar como dispositivo de normalização e de governo do que pode e do que não pode uma criança fazer e, ainda, como se naturalizou uma atividade hegemónica na vida das crianças. O enfoque de análise será a forma como as perspectivas sobre o brincar das crianças encerram em si, por um lado, uma dimensão delimitadora do que uma criança deve ser e, por outro lado, como essa delimitação antecipa um projeto de adulto por vir.

Palavras-chave: Infância; Brincar; Subjetivação; Técnica de si.


ABSTRACT

Our understanding of childhood and the role of play has been changing over time. This text intends to analyse and to question, from the writings of Rousseau, Pestalozzi and Froebel, how play can be assumed and considered as a technology of subjectivation of childhood and, with that, define its "to-be" and how. In this sense, this paper proposes to discuss play as a device for normalization, subjectivation and governance of what a child can and cannot do. The focus of analysis will be on how the perspectives on children's play, on the one hand, delimitate what a child should be and, on the other hand, how this delimitation anticipates the project of an adult to come.

Keywords: Childhood; Play; Subjectivation; Technique of self.


RESUMEN

La comprensión que tenemos de lo que es la infancia y el papel del jugar ha sufrido cambios a lo largo del tiempo. Este texto pretende reflexionar y analizar, a partir de los escritos de Rousseau, Pestalozzi y Froebel, cómo el jugar se puede asumir como una tecnología de subjetivación de la infancia y, con ello, definir su "estar-a-ser". En este sentido, este trabajo se propone discutir el jugar como dispositivo de normalización y de gobierno de lo que puede y de lo que no puede un niño hacer y, además, cómo se naturalizó una actividad hegemónica en la vida de los niños. El enfoque de análisis será la forma como las perspectivas sobre el jugar de los niños encierran en sí, por un lado, una dimensión delimitadora de lo que un niño debe ser y, por otro lado, cómo esa delimitación anticipa un proyecto de adulto por venir.

Palabras clave: Infancia; Jugar; Subjetividad; Técnica de sí.


 

 

No texto que se segue procuro traçar uma genealogia de como o brincar se constituiu um lugar de agenciamentos (Deleuze, & Guattari, 2007) da infância e, também, uma técnica ética de si (Foucault, 2006), unânime e transversal, no seu governo (Foucault, 2010). Ao procurar pensar o brincar através destas lentes teóricas tento identificar como é que esta ação tem no seu interior uma racionalidade que condiciona o que pode ou não pode uma criança fazer e, com isso, impõe formas de individualidade que fazem com que a criança esteja a "trabalhar sobre um conjunto de alter identificações" (Ó, 2006, p. 38) e competências (físicas, motoras, cognitivas, emocionais, sociais, morais, etc.).

Se através do agenciamento tomo a ideia de produção de "atualidade" (Deleuze, 2016), isto é, tento capturar "focos de unificação, nós de totalização, processos de subjetivação, sempre relativos, a serem sempre desfeitos" sobre como os enunciados relativos ao brincar produzem a "atualidade" (Deleuze, 2008, p. 109) do "estar-a-ser-criança", com o conceito "técnica de si" procuro expressar o conjunto de tecnologias e experiências que participam do processo de (auto) constituição e transformação do sujeito (Foucault, 2006) em sujeito-criança. Por "governo" entendo os modos como a construção da individualidade nos é imposta através de práticas de subjetivação que ocorrem numa "lógica de pertença orgânica ao laço social e do laço social à forma de autoridade e de governo" (Foucault, 2010, p. 379). Já não se trata de uma autoridade de Estado sobre o sujeito, mas do próprio para consigo, construída a partir duma relação absolutamente individualizada com os outros e onde "a autonomia e a liberdade estão cada vez mais presentes" no modo como se produzem cidadãos (Ó, 2006, p. 31) totalmente "normalizados" (Ó, 2006, p. 63). Neste sentido,

O termo subjetivação remeter-nos-á para um regime de práticas e de técnicas em absoluto heterogéneo e contingente, ainda que na actualidade essas mesmas actividades possam passar aos nossos olhos por manifestações do que é evidente e incontornável, do que não se pode pôr jamais em causa (Ó, 2006, p. 133).

Daqui, procuro problematizar três ideias que nos constituem integralmente. A primeira é o brincar enquanto prática inquestionável da vida da criança nos seus mais diversos contextos. Depois, como é que se universalizou na ação natural da infância e, finalmente, questiono a dupla brincar-brinquedo e a sua relação, sempre presente, entre o "estar-a-ser-criança" e seu por vir, tentando, a partir das duas últimas expressões pensar a dialética entre o hoje e o amanhã da infância. Com efeito, através da primeira, numa apropriação que me permiti a partir do dasein e do wesen de Heidegger (2014), procuro expressar um momento determinado em que o petiz se encontra a existir com uma certa condição, com uma determinada característica ou natureza íntima. Com a segunda, numa clara alusão ao trabalho de Deleuze (1987/1999), tento capturar o que não se conhece, mas se projeta como futuro do ato de criação. Quero com isto ampliar essa tensão permanente, entre presente e futuro, entre o que uma criança é e o que ainda não é de forma suficiente e, como é que através do brincar vivido no presente, se espelha uma projeção integral do que se antecipa como útil para o futuro adulto. Uma projeção feita a partir das concepções, implícitas e explícitas, do que uma criança é, deve ser e devir. Estas são as hipóteses e questões com que parto e com as quais procuro desenhar a genealogia do brincar como técnica de si.

Para tal, irei convocar diferentes obras e acontecimentos tentando estabelecer um "traçado relativamente uniforme em função de princípios que são sempre válidos em todas as circunstâncias" (Foucault, 2008, p. 35). Um traçado que explore, a partir do contexto histórico enquadrado entre o Iluminismo e a Revolução Francesa, as continuidades e descontinuidades da ideia de brincar. Encontram-se, neste período, um conjunto de autores que, no meu entendimento, contribuem de forma decisiva para sistematizar e consolidar esta ideia. Convidarei obras consagradas de Rousseau, Pestalozzi e Froebel, procurando, respetivamente, em Emílio, As Cartas sobre Educação de Infância, Como Gertrudes Educou seus Filhos e Na Educação do Homem tensões que possibilitem, inteiramente à distância, encontrar linhas de fuga que atravessem a história e comuniquem com o presente. Ora, a obra Emílio de Rousseau é, ainda nos dias de hoje, considerada como um texto pioneiro e determinante na reconfiguração da educação das crianças. As obras de Pestalozzi e Froebel são nela inspiradas e traduzem uma visão de criança que, há época, se instalava na continuidade do novo "sentimento de infância" que emergia desde os séculos XVII e XVIII (Ariès, 1988) e incorporava, num primeiro momento, a preocupação da aristocracia e, mais tarde, da nova classe burguesa que se afirmava após a revolução. A escolha destes três autores justifica-se porque, por um lado, escreveram sobre a educação de crianças pequenas e, por outro, porque neles se encontram, de forma sistemática, referências à sua natureza. De certa forma, este trio traduziu nas suas obras o espírito iluminista, que se consagrou e instalou de forma definitiva depois da Revolução Francesa (Boto, 1996), com a particularidade de o fazer colocando a infância como protagonista.

Dialogarei com estes autores através de um quadro teórico e conceptual em muito influenciado pelas investigações de Foucault (2006; 2008; 2010) e da dupla Deleuze e Guattari (2007). Metodologicamente, este trabalho encontra a sua matriz operacional em Ó (2017) que "supõe a prioridade absoluta do escrever sobre o ler" (p. 9). Tais opções oferecem a esta narrativa múltiplos traçados, articulações e ligações que configuram uma possibilidade de análise, entre várias possíveis, do problema em estudo. Por isso, esta investigação circula em redor de quatro eixos que importam clarificar. O primeiro, este que agora termino, traz, por um lado, a definição e explicitação da questão maior que colocará em andamento este trabalho (o que é brincar?) e, por outro, o seu enquadramento conceptual e metodológico. Procurarei, num segundo momento, pensar a partir da origem etimológica desta palavra e de outras, que muitas vezes lhe aparecem associadas, como são o caso do verbo jogar e do adjetivo lúdico. Em terceiro, circularei em redor dos escritos de Rousseau, Pestalozzi e Froebel para constituir o meu arquivo e tentarei, na sua leitura, capturar os conceitos de agenciamento (Deleuze, 2016) e de técnica ética si (Foucault, 2017) tal como os entendo e proponho. Por fim, apresentarei uma narrativa que, espero, comunique ao presente como o brincar pode ser entendido, a partir dos escritos destes autores consagrados como clássicos do pensamento pedagógico, uma técnica ética de si que agencia a "atualidade" da infância e o seu governo.

Trata-se, por isso, de um exercício analítico, cujo conteúdo se assume como uma possibilidade, entre tantas outras, de olhar o brincar como uma técnica ética de si que agência o "estar-a-ser-criança". Existe neste gesto uma tentativa de encontrar linhas de fuga e descontinuidades face à tradição incorporada, de capturar na "história das ideias semelhanças, mas também descendências ou filiação" para "marcar limiares que atravessam uma ideia, as viagens que faz, que mudam a natureza ou o objecto" (Deleuze, & Guattari, 2007, p. 302). Neste caso, capturar na "história das ideias" sobre o brincar das crianças, semelhanças, descendências e filiações que marcam "limiares" que atravessam esta ideia como uma ação hegemónica e universal do "estar-a-ser-criança".

 

Brincar, jogar, lúdico e brinquedo: um apontamento etimológico e histórico

Frequentemente o verbo brincar é associado ao verbo jogar e ao adjetivo lúdico, sendo utilizados, indiscriminadamente, como se referindo a uma mesma coisa. Em Português, os verbos jogar e brincar derivam, etimologicamente, de origens diferentes e importa que nos debrucemos um pouco sobre o tema. A etimologia da palavra brincar, em português, remete para os verbos do alemão antigo blinkan ou blinken e springan, cujo significado é, respetivamente, gracejar/entreter-se, brilhar e pular (Machado, 2003). No inglês, no francês, no espanhol, no italiano e no alemão contemporâneos, o verbo brincar não encontra correspondente direto e é, normalmente, traduzido nas diferentes línguas para o verbo jogar (to play, jouer, jugar, giocare, spielen). A origem em Português da palavra jogo deriva do latim jocus e é comum às línguas francesa, espanhola e italiana. O verbo jogar deriva do latim jocãre. Na língua inglesa play deriva do inglês antigo pleyen e na língua alemã, do protogermânico spilōną. As palavras jocus, plenyen e spilōną remetem para aquele que exerce uma ação, que se entretém, que movimenta, que executa, mas também para "tudo quanto se faz para recreio do espírito" (Morais Silva, 1959).

Esta dupla, constituída por brincar e jogar, elenca um conjunto de relações e significados que merecem reflexão. Por um lado, a aparente distinção que brincar e jogar assumem na sua origem etimológica e, consequentemente, no seu significado e, por outro lado, a aparente ausência de equivalente para o verbo brincar noutras línguas europeias. Se nos ocuparmos sobre o seu significado e origem, temos, de um lado, aquele que se "entretém" e, de outro, aquele que executa, que faz algo "para recreio do espírito". Nesse sentido, é precisamente a partir do "entreter-se" e do "recreio do espírito" que gostaria de problematizar o brincar. Isto é, brincar poder ser o recreio do espírito enquanto se entretém. Poder-se-á sempre questionar se o brincar contém o jogar ou, por aproximação de ideias, se o jogar poderá conter o brincar. Ou, até, se um e outro fazem parte, indissociavelmente, do mesmo. A pergunta que se desdobra desta afirmação é se quando uma criança se entretém (brinca) está, necessariamente, a tratar do "recreio do espírito"?

Quanto à palavra lúdico, do ponto de vista etimológico, deriva do francês ludique que, por sua vez, vem do latim ludus. O seu significado remete para divertimento e jogo, ou ainda, no sentido figurado, para infantilidade e brincadeira. Temos, então, que a palavra "lúdico" pode ser utilizada associada aos termos jogo e brincadeira. Donde se pode considerar que o jogo e o brincar têm uma dimensão lúdica associada, ou seja, uma dimensão de divertimento próprio do infantil, da criança.

Sobre este tema, Huizinga (1928/2015), na sua obra Homo Ludens, refere que o jogo pode ser considerado preexistente a qualquer dimensão ou condição humana, ou seja, destaca que o jogo existe independentemente do homem e que é comum e transversal as todas as espécies animais. Os seus argumentos são baseados numa abordagem que, diz o autor, se centra nos "aspetos culturais" do jogo e que encontra nele uma "consistência interna" própria que é autónoma das próprias dimensões culturais em que o jogo emerge. Na sua análise, Huizinga propõe o jogo como um elemento cultural com "uma função significante", ou seja, com um "sentido" (p. 17). Com isto, procura romper aquilo a que denominou uma leitura, atribuída à psicologia e fisiologia, que parte do "princípio de que o jogo tem de estar ao serviço de qualquer coisa que não o próprio jogo, que deve ter uma qualquer finalidade biológica" (p. 18). Contesta, num certo sentido, a dimensão de utilidade do jogo: não tem de existir um porquê, nem um para quê do jogo, o jogo existe em sie por si mesmo. "Ao abordar a questão do jogo como uma função da cultura propriamente dita e não como ocorre na vida dos animais ou das crianças, partimos do ponto em que a biologia e a psicologia se tornam insuficientes" (p. 20).

Uma outra dimensão que o autor destaca é o carácter "voluntário" do jogo, ou seja, "jogar para obedecer a uma ordem não é jogar" (p. 24). Esta tónica na liberdade, na opção de querer e poder jogar é interessante, mas Huizinga exclui desta concepção os animais e as crianças. Para estes, o autor propõe o instinto como motor do jogo, ou seja, para a análise aqui em apreço, é porque são crianças e pela condição de "estar-a-ser-criança" que o jogo é, nada menos do que o resultado de um instinto que serve para "desenvolver as suas aptidões físicas e os seus poderes de selecção" (p. 24). No entanto, acrescenta Huizinga, "as crianças e os animais brincam porque gostam de brincar e é aí, precisamente, que reside a sua liberdade" (p. 24). Por oposição, o adulto joga não por instinto, mas porque quer e por divertimento, ou seja, nas palavras do autor, "para o ser humano adulto e responsável o jogo é uma actividade acessória. O jogo é supérfluo" (p. 24).

O que Huizinga parece propor, nesta sua formulação, é a diferenciação entre o brincar da criança e o jogo do adulto. Há, digamos, uma distinção que assinala que o brincar deixa de ser uma coisa para se transformar numa outra. No fundo, é como subsistisse a ideia de que o brincar da criança deixa, ao longo do tempo, de ser por "instinto" e necessário para passar a ser jogo, "controlado, acessório e supérfluo", no adulto. É como se aqui se expressasse, nesta tradução da obra para a língua portuguesa na qual aparece a palavra brincar no lugar de jogar (Huizinga escreve no original spelen), uma ideia que abre a possibilidade de o primeiro começar por ser "instintivo" e,"num percurso evolutivo que o levará gradualmente à prática de cada vez mais intricados e regrados jogos" (Silva, 2017, p. 16), tornar-se, progressivamente, no segundo. O que une os dois é, em certo sentido, o carácter divertido e lúdico associado a estas práticas. Temos, então, que o "entreter-se" e o "recreio do espírito" têm uma dimensão de fruição e, para as crianças, assumem a função de "desenvolver as suas aptidões físicas e os seus poderes de selecção" (Huizinga, 1928/2015, p. 24).Esta ideia, expressa pelo autor de Homo Ludens, capta como o brincar e o jogar, sendo algo humano por natureza, se transformou numa prática totalmente naturalizada e inquestionável da vida em relação das crianças: as crianças brincam porque são crianças e brincam porque lhes faz bem (Brougère, 1998).

Sobre os brinquedos, Ariès (1988, p. 104) refere que o "novo sentimento de infância" trouxe associada uma preocupação que conferiu às crianças uma ação e utensílios próprios para a ocupação do seu tempo. É um movimento que surge acompanhado de uma "especialização infantil dos brinquedos" (Ariès, 1988, p. 104) e, a este propósito, importa referir que a palavra "brinquedo" apenas foi "reconhecida oficialmente em 1607, nos dicionários de César Oudin" (Manson, 2002, p. 51). Isto não quer dizer que não existissem utensílios com os quais as crianças se entretinham, mas a definição como categoria, como substantivo que agrupa todos os utensílios surge apenas no início do século XVII com "algumas diferenças de pormenor" relativamente aos usos do século XX e XXI. Não é estranho a esta ideia a consolidação do liberalismo que trouxe consigo uma lógica comercial e industrial à produção, outrora artesanal, dos brinquedos (Manson, 2002). Este gesto trouxe consigo a massificação da produção e contribuiu para invadir, de forma abundante, o tempo da criança aristocrata e burguesa, numa primeira fase e, mais tarde, da infância em geral. Benjamin, cuja obra versa, também, sobre as crianças, o brincar e os brinquedos, já havia referido que os últimos "não foram invenções de fabricantes especializados, mas surgiram originariamente das oficinas entalhadoras em madeira, de fundidores de estanho, etc." (1928/2017a, p. 90), condicionados "pela cultura económica e, muito em especial, pela cultura técnica das coletividades" (1928/2017b, p. 100). Mais, para o autor de Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação "o brinquedo tem sido demasiado considerado como criação para a criança, quando não criação da criança" e é-lo feito em "demasia a partir da perspectiva do adulto, exclusivamente sob o ponto de vista da imitação" (p. 100).

Face ao exposto, o que parece possível estabelecer, desde logo, é uma associação temporal entre o "novo sentimento de infância", a definição do brincar como ação própria do que é infantil e o aparecimento da palavra brinquedo. Isto é, a definição de uma especificidade infantil aparece associada à definição de um campo específico de ação, o seu brincar, que deve ser ocupado com utensílios próprios e específicos, os brinquedos.

No fundo, o "entreter-se" enquanto se trata do "recreio do espírito" de adultos e crianças foi-se diferenciando ao longo do tempo em estreita relação com as concepções e representações do que é uma criança. Parece que as dimensões entretenimento, fruição, prazer e recreio da alma surgem associadas ao brincar, isto é, o entreter-se, fruindo, enquanto se trata da alma é, de alguma forma, o que está implicado no brincar e no jogar. Com efeito, há medida que a infância ganhava relevância para o Estado, a sociedade e a família como futuro que importava cuidar, ou, melhor dito, como o adulto por vir (Almeida, no prelo)1, brincar e jogar assumem-se como tecnologias de governo e agenciamento da infância. É, precisamente, este movimento que procurarei captar de seguida revisitando, com estas lentes teóricas, as obras de Rousseau, Pestalozzi e Froebel.

 

Rousseau, Pestalozzi e Froebel - para uma genealogia do brincar como técnica ética de si

O debate sobre o brincar e os brinquedos das crianças já estava instalado quando Rousseau publicou Emílio. Prova disso mesmo são as referências de outros autores, como Coménio (1627-42/2006), Locke (1689/2014) e Montaigne (1993), ao uso do brincar e dos brinquedos para, por exemplo, a instrução das crianças. Poder-se-á inclusive considerar que os dois primeiros abriram,"nos tratados sobre a educação", a referência à utilização do brincar e dos brinquedos (Manson, 2002, p. 155). A título de exemplo, nestes escritos, a associação entre o brincar, os brinquedos e a instrução foi estabelecida pelo carácter lúdico que a terceira poderia assumir e, por isso, aos olhos dos autores, mais eficaz. Não é por isso inovador o movimento de Rousseau, quando se refere ao brincar das crianças e aos seus jogos. No entanto, sistematiza, de certo modo, a ideia de que brincar faz parte da condição natural de "ser-criança". Ou seja, brincar é a ação que confere a possibilidade de a natureza agir "durante muito tempo, antes de" se procurar "agir em lugar dela" (Rousseau, 1762/1972, p. 76). Veja-se que aqui emerge uma ideia, que ainda hoje nos acompanha, do brincar ser, por inerência, uma atividade natural na infância. Rousseau vai mais longe e opõe o brincar da criança ao ócio, isto é, brincar o dia inteiro é o que faz com que a criança "em toda a sua existência" não ande "mais ocupada" (Rousseau, 1762/1972, p. 76) atribuindo-lhe um "como" específico e particular. Isto é, a criança, quando se entretém, embora possa fazê-lo como os adultos, deve ter um contexto e materiais próprios. Os utensílios com que brinca, os brinquedos, devem permitir que o faça, por um lado, em segurança, respeitando a sua especificidade e, por outro, possibilitando o "seu progresso". Em certo sentido, o brincar consiste num entreter-se que pode ser, arrisco afirmar, deve ser, tanto quanto possível, funcional, isto é, não sendo ócio, serve de base para que a natureza apure o progresso e o desenvolvimento infantil. Para tanto, os brinquedos devem ser adaptados à sua condição de "ser-criança". Penso que se encontra aqui uma ideia que nos é próxima, brincar não é um ócio, pelo contrário, é um tempo de grande relevância para a criança e está, em certo sentido, ao serviço do desenvolvimento da sua "natureza". Mais, deve ter um contexto e material próprios e deve ser feito em segurança atendendo à especificidade do "ser-criança". É como se aqui encontrássemos a ideia de que brincar é uma ocupação séria, que deve ter regras, contextos e utensílios próprios.

Quando uma criança brinca com o arco, exercita o olho e o braço na precisão; quando chicoteia um pião aumenta sua força servindo-se dela, mas sem nada aprender. Perguntei algumas vezes porque não se ofereciam às crianças os mesmos jogos de destreza que têm os homens: a pela, a malha, a flecha, a bola, os instrumentos de música. Responderam-me que alguns desses jogos estavam acima de suas forças e que seus membros e seus órgãos não estavam suficientemente formados para os outros. Acho essas explicações falhas: uma criança não tem a estatura de um homem e não deixa de usar uma roupa como a dele. Não penso em que brinque com nossos tacos num bilhar de três pés de altura; não pretendo que vá jogar pelota em nossos antros, nem que sobrecarreguem sua mãozinha com a raqueta de jogador de pela; mas que brinque numa sala cujas vidraças se tenham protegido; que só use primeiramente bolas moles, que suas primeiras raquetas sejam de madeira, de pergaminho depois, e finalmente de cordas retesadas na proporção de seus progressos (Rousseau, 1762/1972, p. 114).

No fundo é como se Rousseau propusesse, ainda que sucintamente, que o brincar é a ação natural na infância que permite que a "natureza" opere, ou seja, é uma ação que está ao serviço do desenvolvimento infantil e da sua instrução, com a particularidade de ter um "como" e um "com o quê" específicos.

Dir-me-ão que caio aqui, em relação aos corpos, no defeito da cultura prematura que censuro às crianças em relação ao espírito. A diferença é muito grande, porque um desses progressos é aparente e o outro é real. Já provei que o espírito que parecem ter, não o têm, enquanto tudo o que parecem fazer eles o fazem. Demais deve-se pensar sempre que tudo isto é ou não deve senão ser jogo, direção fácil ou voluntária dos movimentos que a natureza lhes exige, arte de variar seus divertimentos para tornar-lhes mais agradáveis, sem que jamais o menor constrangimento faça deles trabalho. Porque afinal com que se divertirão que eu não possa fazer um objeto de instrução para eles? E ainda que eu não o pudesse, desde que se divertissem sem inconveniente, e que o tempo passasse, seu progresso em tudo pouco importa ao presente; ao passo que quando é preciso necessariamente ensinar-lhes isto ou aquilo, o que quer que façamos, será sempre impossível obter um resultado sem constrangimento, sem zanga e sem aborrecimento (Rousseau, 1762/1972, p. 115).

O desenvolvimento dessa mesma natureza, que é, de resto, uma linha de continuidade com o trabalho de Rousseau, começa por ser o ponto de partida de Pestalozzi que quer "introduzir a criança em seu mais tenro desenvolvimento no círculo inteiro da natureza que o rodeia" (Pestalozzi, 1801/1894). Considerado por muitos autores como "o reformador ou promotor da escola popular" (Soetard, 2010, p. 206), coloca, tal como Rousseau, a educação como o veículo pelo qual o "homem [...] chega a ser homem". Pestalozzi atribui um papel determinante à mãe como figura primeira da educação da "liberdade autónoma", mantendo uma linha de contato com a proposta do autor de Emílio, isto é, o governo da infância começa desde logo e cabe, num primeiro momento, à sua mãe. A descontinuidade, no sentido em que acrescenta algo, encontra-se numa proposta de método que procura preservar o "estar-a-ser-criança" e a sua espontaneidade, atribuindo ao(à) educador(a) o papel de guia "das forças espirituais imanentes na criança" respeitando os seus "interesses", as suas "necessidades" e o "seu ritmo natural de desenvolvimento". Propõe a "substituição do uso da disciplina exterior pelo cultivo da disciplina interior" (Arce, 2002, p. 206), dando a entender a influência que a sua educação protestante teve na forma como defende a autonomia do próprio no governo da alma. Especificamente, refere que a concretização da educação deve resultar da articulação de três elementos (cabeça, coração e mão) que "concorrem na produção da força autônoma" "integralmente dentro do contexto da sociedade, na medida em que esta modela a razão humana" (Soetard, 2010, p. 25). Ou seja, o que tento afirmar é que Pestalozzi, tal como Rousseau, escreve sobre o respeito pela natureza, pelas necessidades e pelo "ritmo natural de desenvolvimento", acrescentando a ideia, tão próxima nos dias de hoje, de que é necessário um método que promova a "força autónoma" da criança "dentro do contexto da sociedade". Algo que faz ecoar a tensão, outrora referida por Rousseau, entre a "vontade particular" e a "vontade geral". O que se parece afirmar é que a "aprendizagem" implica, de forma definitiva, um método que esteja ao serviço do "conhecimento de si". "[...] a direção ao caminho dos conceitos claros e distintos se abre mais fácil e seguro do que qualquer outro, e entre tudo o que é claro, nada pode ser mais claro do que a clareza desse princípio, que o conhecimento da verdade procede, no homem, do conhecimento de si mesmo" (Pestalozzi, 1801/1894, p. 86).

O caminho é feito através da "psicologização" da "instrução humana" procurando "pô-lo de acordo com a natureza" do "espírito" e das "circunstâncias" (Pestalozzi, 1801/1894, p. 199). No fundo, Pestalozzi propõe que o conhecimento de si mesmo passe a ser elemento integrante da instrução humana com a grande demanda de aperfeiçoar-se ao ponto de "fazer do que deve o que quer fazer" (p. 199). Inaugura, num certo sentido, a ideia de autogoverno da criança a partir do conhecimento de si (do seu "corpo" e da sua "personalidade"), introduzindo a "liberdade autónoma", enquadrada "integralmente dentro do contexto da sociedade", como fim último da instrução.

O conhecimento de si mesmo é, portanto, o ponto central do qual deve partir o ser da instrução humana completa. Mas esta em sua essência é dupla: 1ª, é conhecimento de minha natureza física; 2ª, é conhecimento de minha personalidade, interior, consciência de minha vontade de fomentar em meu próprio bem e ser fiel a meu dever e às minhas ideias (Pestalozzi, 1801/1894, p. 210).

De forma tangente, Pestalozzi, aborda o "recreio do espírito" e as "plaything" (p. 100) propondo que se facultem "brinquedos às crianças, pois servem para facilitar suas experiências", assumindo que às vezes é importante "ajudá-las [na experimentação] dos mesmos" (p. 100). Daqui resulta que o entreter-se da criança possa ser colocado, à semelhança do método, ao serviço do "conhecimento de si mesmo" (p. 210) através duma relação ética entre criança e cuidador. No entanto, esta "consciência de si" enquanto se "entretém" é invadido, já que importa que nenhuma das "intervenções" do adulto resulte "inútil" e que, no uso das "plaything" nunca falte "estímulo à criança quando pode ser-lhe causa de um prazer inocente e proporcionar-lhe uma ocupação proveitosa" (p. 100). Há que aproveitar, integralmente, a ação natural da criança ao serviço da "consciência de si" (Foucault, 2006). Cabe ao adulto, numa projeção integral da sua contemporaneidade, orientar este tempo e espaço para que a criança aprenda a governar-se, a partir do que lhe é útil, através, por um lado, do método e, por outro, do seu brincar.

Há de se evitar que os jogos das crianças, repetidos dia a dia e a cada hora, tenham uma excessiva uniformidade, procurando introduzir alguma variação em suas pequenas distrações. Com isto se avivará seu interesse, se moverá sua fantasia e se afinará sua capacidade de observação (Pestalozzi, 1818/1827, p. 100).

Dá-se, em certo sentido, uma instrumentalização do brincar ao serviço do desenvolvimento de competências físicas e psicológico-mecânicas que, por sua vez, contribuem para o "conhecimento de si". O brincar institui-se como uma "técnica", entre outras, para que a criança se aperfeiçoe ao ponto de "fazer do que deve o que quer fazer". Ou seja, brincar é uma parte do tempo da infância, além daquele ocupado pela aprendizagem através método, que contribui para o conhecimento do corpo e da personalidade no sentido de formar uma liberdade autónoma totalmente enquadrada na sociedade. Em certo sentido, o método e o brincar são técnicas de si que convergem para o centro de todo o "estar-a-ser-criança".

But the richness of its charm, and the variety of its free play cause physical necessity, or natural law, to bear the impress of freedom and independence.

Let the results of your art and your instruction, while you try to found them upon natural law, by the richness of their charm and the variety of their free play, bear the impression of freedom and independence. All these laws, to which the development of human nature is subject, converge towards one centre. They converge towards the centre of our whole being, and we ourselves are this centre (Pestalozzi, 1801/1894, p. 79).

Froebel é influenciado pelo trabalho de Pestalozzi, com quem trabalhou na Suíça e é com ele que a "psicologização" da infância se dá definitivamente (Blow, 1912). É também com ele que o brincar passa a ser, assumidamente, o centro de toda a ação infantil e o veículo da "consciência de si" até a entrada na escola. É através do jogo (Froebel escreve spiel) e no jogo que a criança desenvolve as competências necessárias para aprender a conhecer e a regular as suas necessidades e, também, como se deve relacionar com o mundo à sua volta. O trabalho de Froebel foi determinante para a concepção romântica de criança e para, em certa medida, a consolidação do movimento iniciado por Owens em Inglaterra, no final do século XVIII, com a criação de instituições dirigidas a crianças com menos de 6 anos. Estes lugares foram pensados, numa primeira fase, para resolver o problema dos pais que trabalhavam nas fábricas e tornaram-se, progressivamente, lugares de pré-escolarização. Foi neste contexto e imbuído no espírito do pós-revolução francesa, indo ao encontro das necessidades duma burguesia cada vez mais consolidada, que as ideias de individualidade e de liberdade são, de algum modo, expressas na obra A Educação do Homem de Froebel. Por um lado, é nela que se instala definitivamente o jogo como ação natural do "estar-a-ser-criança" "porque o jogo, em princípio, não é outra coisa que vida natural" (1826/1885, p. 47) e, por outro, como instrumento pelo qual os seus pais e cuidadores devem ensinar, ou, melhor dito, instruir o ofício de "ocupar-se de si próprio" (Foucault, 2006). De certa forma, Froebel captura no brincar uma plataforma de trabalho encapotado, o trabalho que inicia o aprimoramento da alma infantil, agenciando o seu por vir, isto é, o seu devir-adulto (Almeida, no prelo). Ao contrário de Pestalozzi, em que se encontram brincar e método, Froebel parece propor que brincar é o método, ou, pelo menos, faz parte integrante deste.

Como já se disse, não se devem considerar os jogos infantis como coisa frívola e sem interesse. As mães devem intervir nos jogos, assim como o pai deve observá-los e vigiá-los. Para um observador, verdadeiro conhecedor do coração humano, toda vida interior do homem futuro está já presente nos jogos espontâneos se livres desse momento da infância. Os jogos dessa idade são germes de toda a vida futura, porque ali o menino se mostra e se desenvolve por inteiro em seus variados e delicados aspectos, em suas mais íntimas qualidades. Toda a vida futura do homem - até seus últimos passos sobre a terra - tem sua raiz nesse período (Froebel, 1826/1885, pp. 47 e 48).

Decididamente, este texto de Froebel atribui ao brincar (entreter-se) e ao jogo (recreio do espírito) a sua função definitiva de "tratar da alma", justificando, em certo sentido, a polissemia com que estas duas palavras são consideradas no "estar-a-ser" da criança. O brincar e o jogo definem-se como centro de toda a ação infantil, como uma "ocupação espontânea" que mostra "imitações da vida e de seus fenómenos", ou o "emprego do ensinado, da escola", ou "livres imagens e manifestações do espírito, de toda a espécie e em matéria de toda classe, segundo as leis contidas nos objetos e matérias do jogo" (p. 205).

Um outro ponto que merece atenção é que Froebel ao colocar o jogo como centro da ação infantil, atribui-lhe, simultaneamente, materiais específicos e um propósito. Os brinquedos já eram utilizados como forma de captar a atenção das crianças, mas o que o autor de A Educação do Homem propõe é a criação de materiais específicos que potenciem, no "estar-a-ser-criança", o seu por vir, isto é, o desenvolvimento da "consciência de si", e da "futura reflexão de si mesmo" (1826/1885, p. 51). Os brinquedos são uma ferramenta de aprimoramento a partir do que o adulto, neste caso Froebel, neles projecta como benéfico para o por vir da criança.

Os jogos mesmos podem ser: corporais, já exercitando as forças como expressão da energia vital, do prazer da vida; dos sentidos, exercitando o ouvido, como o jogo de esconder-se; ou a visão como o tiro ao prato; jogos do espírito, da imitação e do juízo, como o xadrez ou as damas etc.; jogos muitas vezes considerados, se bem que raras vezes têm sido dirigidos ao verdadeiro fim, até o espírito e as necessidades infantis (Froebel, 1826/1885, p. 205).

Encontramos nesta afirmação três ideias que reconhecemos, certamente, como próximas quanto ao que deve ser, no entender de Froebel, o "recreio do espírito". São elas o aprimoramento do corpo, dos sentidos e da cognição e a satisfação das necessidades infantis, um pouco à semelhança do que refere Pestalozzi para o seu método. O que Froebel parece definir é, em certo sentido, o jogo como espaço e tempo no qual a criança se aperfeiçoa, numa relação com o outro - adulto, num primeiro momento e pares posteriormente - na direção do seu por vir. Um por vir, cada vez mais próximo e reconhecível como adulto, em que a mudança se expressa através de um brincar que deixa, progressivamente, de ser "instintivo", mas necessário, para passar a ser "controlado", mas acessório, até ser, inteiramente, espelho do jogar adulto.

 

Onde se esboça um olhar sobre a atualidade do brincar

Talvez se possa sintetizar que, no período atravessado pelas obras de Rousseau, Pestalozzi e Froebel se instala, definitivamente, um "novo sentimento de infância" que define a criança como sujeito cuja essencialidade e especificidade da alma é preciso cuidar, aprimorar e aperfeiçoar. Simultaneamente, ganha força e relevância a ideia de que a expressão "natural" da "alma" infantil é feita através do brincar e do jogo, isto é, são o espaço e o tempo para o aprimoramento da sua alma.

Neste sentido, a questão que emerge e a hipótese que coloco é definida pela pergunta, outrora feita por Foucault (2004), como "constituímos diretamente a nossa identidade por meio de certas técnicas éticas de si, que se desenvolveram deste a antiguidade até aos nossos dias?" Ou, para esta análise específica, como é que a infância se constitui diretamente por meio da técnica ética de si que é o brincar? Ou, ainda, como é que o brincar se definiu como uma técnica ética de si que constitui diretamente o agenciamento do que é ser criança?

Esta ideia duma essencialidade infantil expressa na sua ação "natural" de brincar atravessa as várias infâncias. Com isto quero dizer que esta ação se constituiu ligada ao "estar-a-ser-criança", ou seja, formou, definitivamente, o par criança-brincar que ainda hoje nos acompanha de forma transversal e inquestionável. Seja na distinção de trabalho e lúdico, seja na forma como se pensa o brincar e o jogo, o que está em causa é um agenciamento que torna o brincar uma "inevitabilidade" do "ser-criança" para aí residir o trabalho de subjetivação da sua alma. Penso que é possível encontrar neste processo três ideias que comunicam com o "ocupar-se de si mesmo" de Foucault (2017, p. 78). Em primeiro lugar, os textos com que este trabalho dialoga são atravessados pela ideia do brincar constituir-se como um tempo e um espaço onde a criança deve "tornar-se soberana de si" própria, "exercer um domínio perfeito sobre si" própria, "ser totalmente independente" e "pertencer plenamente a si" própria. Perpassa, também, que o brincar é um alicerce para que a criança possa "desfrutar de si", "ter prazer consigo" e "encontrar a satisfação do seu desejo em si" própria, ou seja, é o tempo e o espaço de fruição, de ludicidade. Finalmente, é uma forma da criança desenvolver e aprender o que lhe é útil para "combater durante toda a vida" (Foucault 2017, p. 78) já que através do brincar se pode adquirir o que é necessário para superar desafios. Se quisermos simplificar, esta ação, que se assumiu hegemónica do tempo da puerícia, traduz um espaço para o desenvolvimento da autonomia e do governo de si através de práticas associadas ao prazer e orientadas para uma finalidade interior de superação do próprio.

São precisamente estes aspetos que me levam a propor e a pensar que o brincar se assumiu, integralmente, uma técnica ética de si (Foucault, 2004) que, à semelhança de outras, foi integrada nas sociedades contemporâneas "em técnicas educacionais, pedagógicas, médicas e psicológicas" (Foucault, 2017, p. 82). Isto é, o brincar aparece não mais como uma ação de "entretenimento" e "recreio da alma" da criança, que existe em si e por si, para se afirmar como um tempo e um espaço ao serviço do seu desenvolvimento e da sua aprendizagem. Dito de outra forma, deixa de ser uma técnica ética de si ocupada pelo entretenimento como forma de cuidar e aprimorar a alma, para passar a ser um entretenimento como forma de subjetivação a alma. Com isto, instala-se, simultaneamente, uma inevitabilidade (todas as crianças brincam e isso é da ordem da sua natureza) e,um agenciamento (o todas as ações se convertem em ganhos de competências que aproximam, progressivamente, o "ser-criança" ao "ser-adulto"). É sobre este duplo eixo que acabo de mencionar que todo o dispositivo da cientificidade do conhecimento ocupa o brincar não mais como um recreio da alma, ou um entreter-se, mas como um trabalho encapotado de ludicidade. Ou seja, o brincar assume-se, em certa medida, como o oficio da infância para aperfeiçoar-se (as suas competências, os seus conhecimentos, a sua autonomia, etc.). O brincar e o jogo tornam-se, simultaneamente, um "direito" que esconde um "dever", um oficio permanente, o oficio de subjetivação da alma infantil em relação ética com o outro. Essa é, no meu entender, a plataforma sobre a qual o trabalho de afinamento da alma infantil se estende a uma visão científica do brincar que se confunde com um certo senso comum, inquestionável e imperativo, que se instala sobre o tema: "a criança tem de brincar e esta é a atividade mais importante que pode fazer no seu dia-a-dia".

Para a criança, o brincar é a atividade principal do dia-a-dia. É importante porque dá a ela o poder de tomar decisões, expressar sentimentos e valores, conhecer a si, aos outros e o mundo, de repetir ações prazerosas, de partilhar, expressar sua individualidade e identidade por meio de diferentes linguagens, de usar o corpo, os sentidos, os movimentos, de solucionar problemas e criar. Ao brincar, a criança experimenta o poder de explorar o mundo dos objetos, das pessoas, da natureza e da cultura, para compreende-lo e expressá-lo por meio de variadas linguagens. Mas é no plano da imaginação que o brincar se destaca pela mobilização dos significados. Enfim, sua importância se relaciona com a cultura da infância, que coloca a brincadeira como ferramenta para a criança se expressar, aprender e se desenvolver (Kishimoto, 2010, p. 1).

Esta afirmação ilustra os enunciados que, na atualidade, incorporam e justificam, por um lado, a ideia de brincar como algo que é da ordem da infância e, por outro, a sua utilidade como ferramenta ao serviço do desenvolvimento e da aprendizagem das crianças. Um discurso que se justifica pela racionalidade técnica (Canário, 2005) e pela "atitude científica" (Sutton-Smith, 1995, p. 8) que lhe estão associados. O discurso converte-se numa "verdade", expressa através de "práticas" que enquadram os usos do brincar e do jogar, os seus conteúdos e a sua expressão. A este propósito, o autor de The Ambiguity of Play define sete "retóricas", construídas a partir deste dispositivo da "verdade", que assumem, mais do que demonstram, as vantagens do brincar e do jogar (Sutton-Smith escreve play) nas mais diversas áreas da vida da criança.

O que se pode então problematizar, e é esse movimento que se tenta capturar neste texto, é que o brincar encerra, à época, uma técnica de governo da infância que se autojustifica, por um lado, a partir duma ideia que não se questiona e que nos constituiu integralmente, e, por outro, que essa ideia é justificada por uma "racionalidade técnica" e uma "atitude científica" que expressam o tipo de adulto que queremos que a criança devenha. O brincar é, por hipótese, uma forma possível de governar o "por vir" da criança onde é acometida à "satisfação das suas faculdades pessoais", mas também prisioneira do "vocabulário e das técnicas que [a] obrigam e responsabilizam socialmente", incorporando e inculcando "o que lhe é exterior" (Ó, 2006, p. 91). Um por vir que traduz no "estar-a-ser-criança" uma certa contemporaneidade do mundo adulto que viabiliza "a emergência de um tipo de cidadão definido essencialmente a partir da relação moral que pôde estabelecer consigo mesmo" (p. 90).

Desta forma, o brincar e o jogar deixam de ser um tempo e espaço do "estar-a-ser-criança" para passarem a ser um tempo e espaço da infância que é legitimado pelo poder do adulto, que valida ou não o que é legítimo a partir dum conhecimento que determina a sua expressão e o seu conteúdo. Dá-se aqui uma justificação instrumental que tem sido uma linha de continuidade ao longo do tempo, isto é, independentemente do conteúdo e da forma, brincar aparece associado, a partir do iluminismo de Rousseau e, com especial preponderância no projeto educacional de Froebel, a uma "psicologização" e "pedagogização" da ação infantil e da "consciência de si". Repito, independentemente da forma e da expressão, o brincar passa a ser o espaço e o tempo de ação da infância onde os adultos legitimam e enquadram a liberdade de exploração das crianças. A meu ver, instala-se um dispositivo que define como é que a criança deve brincar para melhor se desenvolver e aprender, limitando, de certa forma, a sua liberdade e a sua autonomia no como e com o que brincar. Este enclausuramento do brincar é justificado por uma legitimidade científica que define, binariamente, o que é bom e mau, adequado e desadequado, certo e errado.

Por último, os brinquedos assumiram-se, por um lado, como instrumentos que concretizam um determinado agenciamento e, por outro, uma possibilidade de negócio no século XX (Manson, 2002) que explora, a partir do valor que a infância assume para Estado, sociedade e família o seu lado comercial. Não me debruçando sobre o segundo aspecto, gostaria de destacar que, independentemente da época e da forma concreta dos brinquedos, os temas da competição, do cuidar, do criar, do aprender e da socialização moral estão expressas, numa lógica desenvolvimentista, nessa subjetivação da alma infantil. Dito isto, poder-se-á considerar que os brinquedos resultam da necessidade de regular o brincar, numa projeção integral da "perspectiva do adulto" (Benjamin 1928/2017b, p. 100) sobre o que permite uma "verdadeira introdução ao mundo" (Amado, 2002, p. 193). Os soldadinhos de chumbo cumprem a mesma função dos robôs. As bonecas de porcelana, dos Nénucos, os jogos de competição tipo bayblades fazem as vezes do pião. O brincar e os brinquedos tornam-se o lugar e as ferramentas onde se subjetiva a infância numa cultura específica que, de certo modo, representa uma plataforma para a "adultização" que cada um de nós representa. Uma plataforma de aproximação ao "ser-adulto" através da aquisição de competências (mais autónomo, mais autorregulado, mais concentrado, mais pró-social, etc.) que se espelham e afinam através do brincar. Este processo traduz-se numa reconfiguração e transformação, sempre em movimento, do "estar-a-ser-criança". Um "estar-a-ser-criança" ocupado, atualmente, pelo trabalho de aprimoramento de si. No fundo, ao projetar o brincar e os brinquedos das crianças, os adultos estão "interpretando a seu modo a sensibilidade infantil" (Benjamim, 1928/2017a, p. 92), impregnando "o mundo da percepção infantil" e os "seus jogos" com "vestígios da geração mais velha (Benjamin, 1928/2017b, p. 96).

O meu ponto é, por isso, que se possa pensar o brincar não como o espaço e tempo com uma relação "essencialmente com o conhecimento" e com o desenvolvimento, em que a criança "desvela, liberta, desenterra a realidade escondida do si" para se afirmar como espaço e tempo, na sua dimensão plena, em que a criança se entretém enquanto trata do "recreio da alma", explorando e descobrindo o mundo à sua volta, como plataforma para "elaborar novos tipos, novos géneros de relações conosco próprios" (Foucault, 2017, p. 82), isto é, como plataforma para promover "novas formas de subjetividade, rejeitando o tipo de individualidade que nos foi imposto durante vários séculos" (Foucault, 2006, p. 91). Neste caso, que rompa com a tradição incorporada do agenciamento uma-criança-brincar-devir-adulto (Almeida, no prelo)2. Nas palavras de Benjamin (1928/2017a) encontrar um tempo e um espaço em que se "possa esperar uma superação efetiva daquele equívoco básico que acreditava ser a brincadeira da criança determinada pelo conteúdo imaginário do brinquedo" (p. 93). Um tempo e um espaço em que o brincar e o brinquedo não são dados à partida, mas criados ou transformado pela ação da criança, pois "quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva" (Benjamin, 1928/2017a, p. 93). Um tempo e um espaço de "estar-a-ser" autónomo, livre e como forma de entretenimento exploratório que antecede ou alterna com os jogos que, mantendo o seu carácter lúdico, introduzem, porém, a regra na estruturação dessa outra atividade que se pode engendrar enquanto se brinca. Um tempo e um espaço transformados pela criança, ora a caminho do jogo, ora interrompendo o jogo, ora criando jogos, brincadeiras ou outras formas de fugir aos brinquedos impostos, mais do que propostos, pela sociedade de consumo.

 

Referências

Amado. J. (2002). O universo dos brinquedos populares. Coimbra: Quarteto.         [ Links ]

Arce, A. (2002). A Pedagogia na 'Era das Revoluções': uma análise do pensamento de Pestalozzi e Froebel. Campinas, SP: Autores Associados.         [ Links ]

Ariès, P. (1988). A criança e a vida familiar no antigo regime. Lisboa: Relógio de Água.         [ Links ]

Blow, S. E. (1912). Letters to a mother on the philosophy of Froebel (International Education Series, Vol. 45). New York, NY: D. Appleton        [ Links ]

Benjamin, W. (2017a). História cultural do brinquedo. In W. Benjamin, Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (p. 89-94). São Paulo, SP: Editora 34. (Original publicado em 1928).         [ Links ]

Benjamin, W. (2017b). Brinquedos e jogos: Observações marginais sobre uma obra monumental. In W. Benjamin, Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (p. 95-102). São Paulo, SP: Editora 34. (OriginaL publicado em 1928).         [ Links ]

Boto, C. (1996). A escola do homem novo: Entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo, SP: Unesp.         [ Links ]

Brougère, G. (1998). A criança e a cultura lúdica. In T. Kishimoto (Org.), Brincar e as suas Teorias (pp. 19-32). São Paulo: Pioneira.         [ Links ]

Canário, R. (2005). O que é a Escola. Lisboa: Porto Editora        [ Links ]

Coménio (2006). Didáctica magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Original publicado em 1627-1642).         [ Links ]

Deleuze, G. (1999). O ato de criação. São Paulo, SP: Folha de São Paulo. (Original publicado em 1987).         [ Links ]

Deleuze, G. (2008). Conversações (1972-1990). São Paulo, SP: Editora 34.         [ Links ]

Deleuze, G. (2016). Dois regimes de loucos: Textos e entrevistas (1975-1995). São Paulo, SP: Editora 34.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (2007). Mil planaltos: Capitalismo e esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio Alvim.         [ Links ]

Foucault, M. (2004). A tecnologia política dos indivíduos. In M. Foucault, Ética, sexualidade, política (Ditos e Escritos V; pp. 301-318). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2006). A hermenêutica do sujeito. São Paulo, SP: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (2008). Vigiar e Punir. Lisboa: Edições 70        [ Links ]

Foucault, M. (2010). O nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Foucault, M. (2017). A cultura de si. In M. Foucault, O que é a crítica seguido de A cultura de si (pp. 69-91). Lisboa: Edições Texto e Grafia.         [ Links ]

Froebel, J. H. (1885). The education of man. Boston: J. S. Cushing.(Original publicado em 1826)        [ Links ]

Heidegger, M. (2014). Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação Gulbenkian.         [ Links ]

Huizinga, J. (2015). Homo Ludens. Lisboa: Edições 70. (Original publicado em 1928).         [ Links ]

Kishimoto. T. (2010). Brinquedos e brincadeiras na educação infantil. Seminário nacional: Currículo em movimento: Perspectivas atuais (pp. 1-20), Belo Horizonte, MG, Brasil, 1.         [ Links ]

Locke, J. (2014). Ensaios sobre o entendimento humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Original publicado em 1689).         [ Links ]

Machado, J. P. (2003). Dicionário etimológico da língua portuguesa (Vol. 2). Lisboa: Livros Horizonte.         [ Links ]

Manson, M. (2002). História do brinquedo e dos jogos: Brincar através dos tempos. Lisboa: Editorial Teorema.         [ Links ]

Montaigne, M. (1993). Três ensaios: Do professorado, da educação das crianças, da arte de discutir. Lisboa: VEGA.         [ Links ]

Morais Silva. A. (1959). Grande dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Confluência.         [ Links ]

Ó, J. (2006). O governo de si mesmo. Educa: Lisboa.         [ Links ]

Ó, J. (2017). Seminário de investigação e orientação: A escrita científica e a formação avançada (trabalho). Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portuguesa.         [ Links ]

Pestalozzi, J. H. (1894). How gertrude teaches her children and an account of the method. London: Butler and Tanner. (Original publicado em 1801).         [ Links ]

Pestalozzi, J. H. (1827).Letters on early education. London: Sherwood, Gilbert, And Piper. (Original publicado em 1818).         [ Links ]

Rousseau, J. J. (1972). Emílio, ou da educação. São Paulo: Difel. (Original publicado em 1762).         [ Links ]

Silva, A. N. (2017). Brincar e aprender: Aprender a brincar. In. T. Sarmento, F. I. Ferreira, R. Madeira (Orgs.), Brincar e aprender na infância (pp. 11-37). Porto: Porto Editora.         [ Links ]

Soetard, M. (2010). Johann Pestalozzi (Colecção Educadores). Recife: Fundação Joaquim Nabuco.         [ Links ]

Sutton-Smith, B. (1995). The ambiguity of play. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Tiago Almeida
tiagoa@eselx.ipl.pt

Submetido em: 13/06/2018
Revisto em: 17/09/2018
Aceito em: 18/09/2018

 

 

Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/CED/04853/2016
1 Almeida, T. (no prelo). Currículos e agenciamentos do devir: trânsitos ao redor de Deleuze na delimitação da infância a partir de Emílio de Rousseau. FRACTAL Revista de Psicologia, 30.
2 Almeida, T. (no prelo). Currículos e agenciamentos do devir: trânsitos ao redor de Deleuze na delimitação da infância a partir de Emílio de Rousseau. FRACTAL Revista de Psicologia, 30.

Creative Commons License