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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

ARTIGOS

 

Judicialização e sujeição social: uma análise dos direitos das mulheres no marco constitucional de 1988 e seus retrocessos1

 

Judicialization and Social Subjection: an analysis of women's rights in the 1988 Constitutional Framework and its setbacks

 

Judicialización y Sujeción Social: un análisis de los Derechos de las Mujeres en el Marco Constitucional de 1988 y sus retrocesos

 

 

Laila Maria Domith Vicente

Docente. Bolsista Produtividade UNESA. Universidade Estácio de Sá (UNESA). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo se apresenta como um ensaio sobre as relações de Gênero e Direito na história do Brasil contemporâneo. Assim é que iniciaremos uma análise de como, após o marco constitucional de 1988, foi possível a formulação de projetos de lei e propostas de emenda à constituição que visam a retirada sistemática de direitos das mulheres, direitos estes que foram formalmente conquistados com o movimento constituinte de 1987. Aliaremos ainda a esta análise os questionamentos do que chamamos de judicialização da vida, assim como uma discussão de como pode se dar a relação entre sujeito de direitos/assujeitamento na sociedade contemporânea. Tais reflexões perpassarão os estudos de Michel Foucault e Judith Butler. O artigo está dividido em três momentos: o primeiro que pensa os direitos conquistados e a tentativa de retirá-los após 1988, depois uma breve passagem no estado da arte sobre os temas do assujeitamento e sujeição social, segundo os autores referidos, e, por fim, um olhar inicial sobre um projeto de lei denominado Estatuto do Nascituro, que é objeto da temática do artigo.

Palavras-chave: Relações de gênero; Direito, Constituição Federal de 1988; Poder Constituinte; Judicialização da vida.


ABSTRACT

The present article is a study about the relations of gender and law in the history of contemporary Brazil. This is how we will begin an analysis of how, after the 1988 constitutional framework, it was possible to formulate bills that aim at the systematic withdrawal of women's rights, which were formally won by the constitutional movement of 1987. We will also ally with this analysis the questionings of what we call the judicialization of life, as well as a discussion of how the relation of subject of rights/social subjection in contemporary society can be given, reflections that will span the studies of Judith Butler and Michel Foucault. The article is divided into three parts: the first one to think about women`s rights and the attempt to withdraw them after 1988, then a brief passage in the state of art on the subject of rights and social subjection, according to the authors mentioned, and finally, an initial look at the bill that is the central topic of this thematic essay.

Keywords: Gender relations; Law, Federal Constitution of 1988; Constituent Power; Judicialization of life.


RESUMEN

El artículo se presenta como un ensayo sobre las relaciones de Género y Derecho en la historia del Brasil contemporáneo. Así es que vamos a iniciar un análisis de cómo, tras el marco constitucional de 1988, fue posible la formulación de proyectos de ley y propuestas de enmienda a la constitución que apuntan a la retirada sistemática de derechos de las mujeres, derechos estos que fueron formalmente conquistados con el movimiento constituyente de 1987. Aliaremos aún a este análisis los cuestionamientos de lo que llamamos judicialización de la vida, así como una discusión de cómo puede darse la relación entre sujeto de derechos/sometimiento en la sociedad contemporánea. Tales reflexiones pasarán a los estudios de Michel Foucault y Judith Butler. El artículo está dividido en tres momentos: el primero que piensa los derechos conquistados y el intento de retirarlos después de 1988, después un breve paso en el estado del arte sobre los temas del sometimiento y sujeción social, según los autores referidos, y, una mirada inicial sobre un proyecto de ley denominado Estatuto del Nonato, que es objeto de la temática del artículo.

PalabrasClave: Relaciones de género; Derecho, Constitución Federal de 1988; Poder Constituyente; Judicialización de la vida.


 

 

A constitucionalização dos cireitos das mulheres no Brasil

Para nós, mulheres, o exercício pleno da cidadania significa, sim, o direito à representação, à voz, e à vez na vida pública, mas implica ao mesmo tempo a dignidade na vida cotidiana, o que a lei pode inspirar e deve assegurar, o direito à educação, à saúde, à segurança e à vida familiar sem traumas. O voto das mulheres traz consigo esta dupla exigência: um sistema político igualitário, e uma vida civil não autoritária
(Carta das Mulheres à Assembleia Constituinte de 1987).

As legislações vigentes a cada momento histórico estão materialmente relacionadas às relações sociais, às relações de poder e aos processos de subjetivação que as permeiam. Com isso não queremos dizer que a legislação define a vida, mas sim que a lei, sendo um tipo específico de discurso, é heterogênica, polifônica, ou seja, composta por muitas vozes e utilizada para fins diversos e por vezes contraditórios.

Se nos atentarmos brevemente às legislações anteriores à Constituição Federal de 1988 (Senado Federal, 1988), concernentes à vida civil, trabalhista e previdenciária das mulheres, depararemos com uma gama restritivas de direitos, já que, na sociedade brasileira ao longo dos séculos, se fez presente, ao seu modo colonial, o patriarcado como a base das relações sociais. Ou podemos dizer: a relação assimétrica e, por vezes, violenta do homem-branco-heteronormativo sobre as outras figuras que o rodeiam (mulheres, pessoas negras, trabalhadorxs/escravxs, minorias sexuais e de gênero - LGBTI -, crianças e/ou outras formas diversas de ser e estar no mundo), estabelecendo relações hierarquizadas de dominação e violência. A título figurativo, podemos perquirir raízes do chamado patriarcalismo na organização social da antiga sociedade romana, possuindo a sua concretização na legislação do pátrio poder2. É instigante frisar que esta expressão perdurou até recentemente no Ordenamento Jurídico brasileiro, tendo em vista que o Código Civil de 1916, que só foi substituído em 2002, no capítulo VI do livro I, tratava diretamente do pátrio poder, utilizando o mesmo termo, ainda que a sua abrangência fosse outra.

Neste passo, além do instituto do pátrio poder, a legislação de 1916, vigente até 2002, trazia uma série de normas que definiam o lugar subalternizado das mulheres nas mais diversas relações. Na relação familiar, Basted e Garcez (1999, p. 17) nos ajudam a pontuar:

O texto de 1916 privilegiou o ramo paterno em detrimento do materno; exigiu a monogamia; aceitou a anulação do casamento face à não-virgindade da mulher; afastou da herança a filha mulher de comportamento "desonesto". O Código também não reconheceu os filhos nascidos fora do casamento. Por esse Código, com o casamento, a mulher perdia sua capacidade civil plena, ou seja, não poderia mais praticar, sem o consentimento do marido, inúmeros atos que praticaria sendo maior de idade e solteira. Deixava de ser civilmente capaz para se tornar "relativamente incapaz". Enfim, esse Código Civil regulava e legitimava a hierarquia de gênero e o lugar subalterno da mulher dentro do casamento civil.

Do mesmo modo, nas relações sucessórias, as mulheres possuíam restrições, uma vez que não poderiam, sem autorização do marido, aceitar ou refutar herança, litigar em juízo e exercer profissão, e mesmo na Justiça Trabalhista a mulher deveria ter assistência do marido para pleitear seus direitos (Basted, & Garcez, 1999).

No que se refere ao Direito Penal, tal questão de gênero se faz presente tanto nas condutas que são criminalizadas - criminalização primária - quanto na forma como os tribunais tratam as mulheres - criminalização secundária3. As condutas de interrupção da gravidez (art. 124, e seguintes, Código Penal - CP) e de infanticídio (art. 123, CP) são aquelas em que a mulher é expressamente o sujeito ativo e são também aquelas que diretamente se relacionam com a precípua função social delegada pelas relações sociais de gênero às mulheres: a função de procriação, ou melhor, de produção, reprodução e regeneração da força de trabalho (procriação, maternidade e cuidados domésticos) que, desde este ponto de vista, são partes de uma atividade socioeconômica (Federici, 2014). Entretanto, são mantidas com o viés da naturalização, mistificadas como um recurso natural feminino que, por fim, colocam as mulheres em uma condição não-assalariada e à mercê dos desmandos masculinos e do capital. "Deveria acrescentar que Marx nunca poderia haver suposto que o capitalismo pavimentava o caminho para a libertação humana se houvesse olhado a história desde o ponto de vista das mulheres" (Federici, 2014, p. 25)4.

A criminalização de tais práticas faz parte de uma política populacional, ou biopolítica - como se referiria Foucault (2005a) -, uma vez que foi necessário, em determinados períodos históricos, manter/aumentar o nível populacional propenso à mão de obra. É também nestes mesmos momentos que a intervenção direta nos corpos das mulheres é mais pungente. Citamos dois exemplos: o primeiro no século XII, que abarcou as crises europeias da Grande Fome (1315-1322) e da consequente peste negra (1347-1352) que dizimou entre 30% e 40% da população europeia do período, ocasionando colapsos nas dinâmicas sociais e de trabalho. Estas crises na Europa Medieva foram contemporâneas ao início da caça às bruxas da Santa Inquisição que, entre outras, perseguiam as práticas de interrupção da gravidez, conhecimentos compartilhados e circunscritos entre as mulheres da época (Federici, 2014).

No mesmo sentido, como o outro exemplo, temos no Brasil as políticas populacionais do Governo Vargas, em 1940, em que o incentivo ao aumento populacional se mostrava nos discursos estatais de exaltação à "família brasileira" e à procriação, com a instituição de novos direitos como o salário família, o auxílio e a licença maternidade; medidas protetoras para as trabalhadoras gestantes e a obrigatoriedade de creches em empresas empregadoras de mulheres em idade reprodutiva (Barsted, 1999). Se por um lado tal política populacional trazia benefícios às mulheres que desejassem a maternidade, por outro estabelecia um controle rígido sobre os corpos de todas as mulheres, uma vez que o Código Penal e a legislação restritiva referente à interrupção da gravidez datam da mesma época - 1940. A necessidade do aumento populacional se mostrava neste momento tanto para preencher os espaços que a urbanização e a modernização do Brasil necessitavam, quanto para ter "carne para o canhão"5 (Leite, 1984, p. 335) em virtude do período das grandes guerras.

Por outro lado, o marco jurídico-constitucional de 1988 nos traz a afirmação da luta pela consolidação dos Direitos Fundamentais das mulheres no Brasil. O Art. 5º (Senado Federal, 1988)- que trata especificamente dos direitos fundamentais e é cláusula pétrea (Art. 60 § 4º) - nos mostra com nitidez a constatação da importância que tais direitos adquirem na denominada virada democrática que se consolida com o movimento constituinte:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

Art. 226. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher6.

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Tal consolidação normativa de Direitos fundamentais referentes às mulheres é resultado das pressões dos movimentos feministas, que participaram diretamente tanto da luta pela democratização do país (Teles, 2010) - tendo sido as mulheres muitas vezes sufocadas, torturadas, violentadas pelo regime ditatorial e autoritário7 - quanto do movimento constituinte de 1987/1988, vide a Carta das Mulheres ao Constituinte de 1987.

O movimento feminista brasileiro foi um ator fundamental nesse processo de mudança legislativa e social, denunciando desigualdades, propondo políticas públicas, atuando junto ao Poder Legislativo e, também, na interpretação da lei. Desde meados da década de 70, o movimento feminista brasileiro tem lutado em defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres, dos ideais de Direitos Humanos, defendendo a eliminação de todas as formas de discriminação, tanto nas leis como nas práticas sociais. De fato, a ação organizada do movimento de mulheres, no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, ensejou a conquista de inúmeros novos direitos e obrigações correlatas do Estado, tais como o reconhecimento da igualdade na família, o repúdio à violência doméstica, a igualdade entre filhos, o reconhecimento de direitos reprodutivos, etc. (Barsted, 2001, p. 35).

Como os mais diversos tipos de luta política, a do movimento feminista no processo constituinte de 1987 atinge vários aspectos da vida social e é uma luta pela consolidação de Direitos, mas também por uma vida cotidiana menos autoritária. Entretanto, as configurações sociais são sempre provisórias e, ao lado dos estudos de Foucault (1995) sobre as relações de poder, podemos propor que uma vitória democrática hoje, ainda que registrada, legislada, tornada cláusula pétrea na Constituição Federal de um país, deve ser mantida cotidianamente, uma vez que as relações e configurações do poder são sempre instáveis.

E o que chamamos atualmente de judicialização da vida refere-se, neste sentido, ao protagonismo que os movimentos sociais, e as pessoas de forma geral, depositam no Poder Judiciário e na formalização legal dos Direitos para a resolução das questões sociais. Efeito reverso é o aumento da intervenção direta da lei, e dos agentes judiciais e policiais, nas minúcias da vida cotidiana.

Portanto, devemos sempre estar atentas, pois a formalização de uma luta social na lei nem sempre equivale a uma vida cotidiana menos autoritária, conforme a postulação da luta das mulheres em 1987.

Assim é que, para construirmos um arsenal teórico que nos ajude a compreender a judicialização da vida no que se refere à constitucionalização dos Direitos das mulheres, assim como a possibilidade de um campo de emergência de discursos que retiram direitos das mulheres no contemporâneo, traremos ao texto os pensamentos de Michel Foucault e Judith Butler sobre a sujeição social e o assujeitamento.

 

Assujeitamento e sujeição social nos estudos de Michel Foucault e Judith Butler

Foucault (1995) afirmou, no texto "O Sujeito e o Poder", que as suas pesquisas sempre se voltaram para construir diferentes histórias de como os seres humanos são objetivados enquanto sujeitos. Ateve-se primeiramente ao âmbito que se diz científico e a como se objetivam - transformam-se em objeto de estudo - os sujeitos falantes na filologia ou linguística, ou os sujeitos do trabalho na economia ou na sociologia, ou ainda o simples fato de estar vivo na biologia. Em outro momento, o filósofo pensou a objetivação do sujeito nas denominadas "práticas divisórias", práticas de normalização e suas relações de poder, como a divisão de sujeitos entre sãos e loucos, delinquentes e cidadãos...; em seus últimos estudos, por sua vez, a questão que o norteava era o modo como os seres humanos tornam-se sujeitos, por ele denominados "processos ou modos de subjetivação". Neste sentido, afirmou que, de forma geral, existem três tipos de lutas: 1) Contra as formas de dominação, em que a Idade Feudal é a maior referência no que tange às dominações raciais, religiosas, sociais; 2) Contra as formas de exploração, cujo grande exemplo são as lutas que visavam a mudanças nas formas estatais e de propriedade privada, já que separavam o indivíduo daquilo que produz por meio do seu trabalho; 3) Lutas contra a sujeição ou contra as formas de subjetivação. Estas últimas, segundo o autor, constituem a forma de luta da contemporaneidade.

A palavra sujeito, que deriva etimologicamente8 do latim subjectus, mesma procedência da palavra sujeição, liga-se a uma forma de poder que faz os seres humanos sujeitos: sujeitos a alguém e/ou sujeitos a sua própria identidade, uma interioridade que o sujeito ocidental moderno se vê submetido a (auto)conhecer e (re)conhecer por uma série de mecanismos e técnicas sobre os quais Foucault, em seus últimos escritos, se debruçou a analisar.

Não é sem razão, portanto, que Foucault nos diz que desde o princípio de seus escritos o que ele pretendia era pensar o sujeito, e não o poder. Reconhece que é verdade que gastou muito tempo pensando o poder. Mas o que o movia era justamente a necessidade de instrumentos que tornassem possíveis as análises das relações complexas e multifacetadas de poder entre as pessoas - chamamos de poder os mecanismos que se colocam em ação para conduzir a atitude de outro(as) com que se está em relação. Assim, a partir daí, seria possível analisar a subjetivação, ou construir uma história para pensar "o modo como os seres humanos tornaram-se sujeitos" (Foucault, 1995, 231), sujeitos por controle ou dependência de alguém - relações de poder - e sujeitos a uma interioridade inserida em relações ainda mais complexas com um "si", uma relação consigo em que o ser humano se reconhece como sujeito e que, por fim, assegura o assujeitamento ou submissão aos outros. Ainda que esta relação com os "outros" esteja imbricada em uma complexa interdependência, conforme veremos mais adiante. Parece-nos importante apontar que, até o fim da vida, Foucault buscava delinear as práticas de liberdade9 que ele acreditava que também poderiam se construir a partir desta subjetivação.

Neste sentido, uma importante contribuição que Foucault nos traz por meio de seus estudos é o pensamento sobre como o poder atua não apenas reprimindo - esta que até então era, de forma geral, a postulação dos estudos acerca do poder - e que o poder não é apenas uma instância que diz não, mas que o poder produz, é produção de mundos e de relações complexas, assim como é um mecanismo de produção de subjetivação. É neste sentido que podemos entender os escritos de Foucault quando este diz que o poder, a partir do que ele caracteriza como Sociedade Disciplinar10, tem o carácter de "fazer viver".

Questionando em sintonia e reflexionando a partir de Foucault, Butler (2017) intenta traçar o caminho pelo qual a sujeição entrelaça o sujeito por meio do que ela denominou mecanismos psíquicos do poder ou a vida psíquica do poder. A pergunta que se faz e nos propõe é: como é possível a constituição do sujeito no mesmo processo de sua subjugação, ou, ainda, como um vínculo apaixonado por aquilo que o subjuga?

Mas tal delineamento, Butler (2017) o desenrola à sua maneira, em sua polifonia habitual, mesclando vozes diversas e muitas vezes em tensão. É o que ocorre nesse escrito em que, para dar conta da proposta de pensar o sujeito e a sujeição a partir de mecanismos psíquicos e do poder junto aos estudos de Foucault, Butler tensiona a este vozes como as de Freud, Hegel e Althusser. A nossa proposta, neste momento, será a de usar a contribuição de Butler para pensar os mecanismos de subjetivação em meio às questões referentes às relações de gênero no Brasil após a Constituição Federal de 1988.

Para Butler (2017), a sujeição é o processo em que nos tornamos subordinados ao poder e, ao mesmo tempo, devimos sujeitos sociais. A constituição do sujeito se dá no mesmo processo de sua subordinação, ou seja, a própria formação do sujeito ocorre junto, e mesmo depende, da subordinação ao poder. É o paradoxo e a ambivalência da autonomia e da submissão. É aqui, portanto, que se mostra de suma importância a construção de Foucault, que torna possível pensar os mecanismos de poder não apenas vinculados aos mecanismos de repressão. Neste sentido, segundo Butler:

Como forma de poder a sujeição é paradoxal. Uma das formas familiares e angustiantes como se manifesta o poder está no fato de sermos dominados por um poder externo a nós. Descobrir, no entanto, que o que "nós" somos, que a nossa própria formação como sujeitos, de algum modo depende deste mesmo poder, é outro fato bem diferente (Butler, 2017, p. 09).

Se por um lado pode nos parecer sufocante pensar o poder como constitutivo do que podemos vir a ser em uma dinâmica social, ou, dito em outras palavras, pensar o submetimento e a submissão como a maneira de devirmos sujeitos, por outro, pensar a interdependência social dos seres humanos também nos parece uma outra maneira de pensar as relações sociais dentro de uma perspectiva feminista e potente. Inclusive porque a independência, a autonomia e o individualismo são ideias burguesas de surgimento recente e limitadas à concepção de indivíduo inteligível dentro do contexto social moderno e burguês do século XVII em diante.

É neste sentido que a vinculação ao poder, e também a judicialização da vida, pode nos parecer mais interessante. Desde que nascemos, a nossa dependência subjetiva é elementar - a partir do que entendemos como produção de subjetividade -; porém, junto a isso, a nossa dependência também se refere a aspectos de necessidade e sobrevivência. Entretanto, se enganam aqueles que pensam que a interdependência das pessoas sujeitas termina com a sobrevivência e superação das necessidades das etapas primárias dos seres humanos. Diversas técnicas e tecnologias se compõem para que seja possível habitarmos os dias ao longo de nossas vidas. Técnicas que são repetidas cotidianamente e que, para nós, tomam aspectos de suposta natureza, mas que dependem de técnicas criadas ao longo dos tempos e que, repetidas à exaustão, se inserem no modo coletivo de ser e estar no mundo.

Cortázar (2001, p.11), com suas instigantes formas de nos fazer ver, nos propõe pensar alguns aspectos impensados de nossos dias, como o trecho do texto a seguir:

Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis. [] As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada em baixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé).

Este aspecto de natureza que a repetição da técnica nos apresenta é o que faz com que alguns modos de estar no mundo possam ser legítimos e inteligíveis, assim como ter um mundo mais facilmente manejável a seu dispor, o que se apresenta como uma noção de independência que eclipsa a interdependência de que somos parte. Toda a técnica de subir escadas é desenvolvida para seres humanos que: tenham pés, movam os joelhos, movam a parte debaixo da cintura sem ajuda de outros instrumentos, tenham olhos e visão - ainda que esta seja com ajuda de instrumentos11. Subir escadas em uma segunda-feira ordinária não deixa estes seres, que possuem o biotipo adequado para tanto, perceberem que este gesto se trata de uma fundamental interdependência que vai desde as regras estabelecidas e interiorizadas de como subir degraus - mecanismo que nos causa estranhamento ao ver o delinear de tais regras em um manual literário como o que Cortázar nos apresenta - até a construção de escadas, que depende de um trabalho em conjunto com regras matemáticas de engenharia civil, projetos e muito trabalho humano12.

Pensar a nossa interdependência enquanto corpos e enquanto subjetividades em produção pode também nos possibilitar uma maneira de pensar a nossa sujeição, entretanto, com outro viés. É neste sentido que Butler (2006) vai problematizar as respostas midiáticas e estatais dos Estados Unidos após o fatídico 11 de setembro de 2001. O questionamento que ela nos traz e que pode nos servir para pensar aqui a produção de subjetividade é: como acontecimentos violentos como este podem, além de gerar como única resposta a violência, nos fazer pensar a vulnerabilidade que nos compõe enquanto coletivo? Como responder politicamente a um ato de violência que, no caso dos Estados Unidos em 2001, pôs à mostra a sua vulnerabilidade enquanto seres sociais? "A ferida ajuda a entender que existem outros dos quais depende a minha vida, gente que não conheço e que talvez nunca conheça. Esta dependência fundamental de um outro anônimo não é uma condição da qual posso me desfazer quando quero" (Butler, 2006, p. 14)13. E, assim, construir uma relação mais ética com a vulnerabilidade que nos interconecta.

Neste passo, concebemos que o poder não se mostra como algo externo que submete alguém; indo além, o poder é concernente à própria formação do sujeito, ou seja, faz parte do processo de subjetivação, conforme viemos traçando até aqui. Em virtude de sermos produzidos por meio de agenciamentos, composição de partes interligadas por linhas tênues, o mecanismo que faz com que nos atenhamos a uma identidade, é a repetição de normas e de técnicas, técnicas de si (Foucault, 1994), é a reiteração destes mecanismos no que viemos a chamar de sujeito. "Para que as condições do poder persistam, elas devem ser reiteradas; o sujeito é justamente o local de tal reiteração, uma repetição que nunca é meramente mecânica" (Butler, 2017, p. 22)14. É por não serem uma repetição mecânica, e sim estarem em meio a um jogo de possibilidades complexas nas quais estamos envolvidos, que tais repetições abrem espaço para resistências.

Se somos, portanto, lançados em um mundo pleno de técnicas reiteradas e se somos agenciados em uma subjetivação que nos torna sujeitos, porém, ao mesmo tempo, interdependentes, isso resulta da naturalização de técnicas desenvolvidas que nos levam a ver-nos como corpos apartados - individuais - da rede de que somos parte. Interessa-nos, pois, agora, pensar sobre tais técnicas de construção de si; entretanto, faremos um recorte para o presente trabalho. Pensaremos em como nos emaranhamos em técnicas e práticas que nos tornam sujeitos de gênero, como tomamos para o si uma identidade de gênero, ou, falando de outro modo, como podemos pensar a separação entre homens e mulheres que se nos (im)põe e de que somos parte, mas sem nunca chegarmos a sê-lo15, já que se trata de uma norma inatingível.

A identidade, portanto, é um dos aspectos da produção de subjetividade; podemos dizer que é a maneira como esta se forma frente ao social como um registro do si apartado que nos age e interage. E o gênero é uma forma estilizada do corpo que, construída performativamente em meio ao social, e reiterada, dá lugar a uma aparência de um "eu permanente marcado pelo gênero" (Butler, 2013, p. 200). É, portanto, um aspecto da produção da identidade do sujeito, a identidade de sexo e/ou de gênero. De acordo com Butler (2013, p 59): "O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser".

Ou ainda, nas palavras de Preciado (2011, p. 21), "A identidade sexual não é a expressão instintiva da verdade pré-discursiva da carne, mas sim um efeito de re-inscrição das práticas de gênero no corpo"16.

 

O Estatuto do Nascituro: as forças que agem pela manutenção da mulher no âmbito da inclusão pela exclusão ou o assujeitamento sem direitos

Conforme propusemos no presente artigo, algumas formas e modos de vida são constituídas politicamente ao largo, vidas politicamente desqualificadas em maior ou menor grau, uma vez que não se configuram no padrão homem-branco-heteronormativo-sem deficiências. Estas vidas politicamente desqualificadas, muitas vezes, serão incluídas no ordenamento jurídico, ou no Estado de Direito, apenas por exclusão, ou seja, serão incluídas no âmbito de restrições e punições ou abandono, e não enquanto sujeitos de direitos. Podemos verificar, portanto, que em determinados momentos históricos se abre um campo onde o ordenamento jurídico se suspende e se retira, e a vida nua (Agamben, 2004a) sobra por excluída (ex capere - capturada fora): ou, nas palavras do filósofo italiano Agamben (2004b, p. 26), "Aquilo que está fora vem aqui incluído não simplesmente através de uma interdição ou um internamento, mas suspendendo a validade do ordenamento, deixando portanto, que ele se retire da exceção, a abandone".

Em nossa construção conceitual junto a Foucault (2005c), entendemos que as relações de poder se dão de forma sempre instáveis, em uma rede de forças em constante tensão. Compreendemos os discursos como atos de fala17 (Austin, 1990) e, ainda, aqueles referentes às leis e aos ordenamentos jurídicos, como atos de fala que se diferenciam por possuírem força-de-lei, no caso dos projetos de lei, conforme o que analisaremos a seguir, pretendentes de ter força-de-lei.

Portanto, dentro das construções teóricas feitas até aqui, partiremos para uma inicial análise acerca de um projeto de lei (PL), atualmente em discussão na Câmara dos Deputados Federais, que dentre os projetos de lei e propostas de emenda a constituição já identificados18 que visam a redução dos direitos das mulheres após a promulgação da CF/88, o presente, chamado Estatuto do Nascituro, é o que merece as nossas considerações mais urgentes. Portanto, o faremos a partir de agora.

"O Estado é laico, não pode ser machista, o corpo é nosso e não da bancada moralista, as mulheres estão na rua por libertação, lugar de estuprador não pode ser na certidão".

A frase supracitada consiste em um canto retirado dos Movimentos Sociais, que é ouvido recorrentemente desde que foi trazido ao conhecimento público o Projeto de Lei no 478 de 2007, chamado de "Estatuto do Nascituro". Este último pretende a proibição da interrupção da gravidez em caso de estupro (uma das únicas possibilidades de aborto legal hoje no Brasil) e uma pensão mensal para a mulher, paga pelo estuprador19, que, consequentemente, é obrigado a reconhecer a paternidade na certidão de nascimento.

Uma análise a ser feita, observando o projeto de lei supracitado, é que este coloca como sujeito de direitos20, primeiro, o que chama de "nascituro", que nada mais é que o feto, organismo ainda não nascido que se forma e faz parte do corpo da mulher, e, segundo, o sujeito de direitos é o homem violador, o estuprador, que, inclusive, possuiria o direito, concedido pelo Estado, de reconhecimento de sua "paternidade". Violada e sujeitada por todos, pelo Estado, pelo ser que ainda não nasceu e pelo estuprador, sem em momento algum ser "sujeito de direitos", estará a mulher, o "sexo estrangeiro" segundo Despendes (2011), sem direitos sobre o próprio corpo, nem antes, e menos ainda depois da violação sexual. A banalização e naturalização do estupro aparecem muito claramente nos termos do texto do projeto de lei denominado "Estatuto do Nascituro", inclusive pela cortês denominação "genitor" dada ao violador. Segue o texto da lei:

Art. 12. É vedado ao Estado ou a particulares causar dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores.

Art. 13. O nascituro concebido em decorrência de estupro terá assegurado os seguintes direitos:

I - direito à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da mãe;

II - direito de ser encaminhado à adoção, caso a mãe assim o deseje.

§ 1º Identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, será este responsável por pensão alimentícia nos termos da lei.

§ 2º Na hipótese de a mãe vítima de estupro não dispor de meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde do desenvolvimento e da educação da criança, o Estado arcará com os custos respectivos até que venha a ser identificado e responsabilizado por pensão o genitor ou venha a ser adotada a criança, se assim for da vontade da mãe (grifo nosso).

Dentro da análise realizada até aqui, quando discutimos a partir de Butler (2017) a formação do sujeito em sua ambivalência: sujeição e pertencimento, interdependência e autonomia, percebemos no citado Projeto de Lei a tentativa de consolidar legalmente o assujeitamento das mulheres sem a inclusão destas no âmbito dos direitos. A inclusão, portanto, no âmbito da interdependência apenas pela exclusão, na possibilidade de punição penal para as mulheres em virtude da não aceitação do seu lugar primordial dentro das relações de gênero, qual seja, o de geradora e regeneradora da vida produtiva.

Pois, nesta visada inicial, já se percebe o quanto o Projeto de Lei no 478/2007 nos traz a retirada de Direitos Fundamentais das mulheres, inclusive retirando destas a qualidade primordial de sujeito de direitos. Pois o discurso de tal Projeto de Lei reconhece preliminarmente os direitos do feto e posteriormente os direitos do estuprador, mas deixa à margem os direitos da mulher, inclusive sobre o seu próprio corpo, retrocedendo não só quanto aos direitos conquistados na Constituinte de 1988, como quanto aos anteriores a esta, já que desde o Código Penal de 1940 é permitido às mulheres a interrupção da gravidez, entre outros, no caso do estupro (Art. 128, II do Código Penal).

Portanto, levando em consideração o postulado até aqui, compreendemos a importância de uma luta social que ultrapasse os termos da judicialização. Estar em relação direta com a lei não necessariamente nos coloca protegidas por ela. Entretanto, consideramos o âmbito legislativo como um lugar também de disputa, em que retrocessos, como o Estatuto do Nascituro, devem ser combatidos para que possamos seguir lutando por um sistema político igualitário e uma vida civil não autoritária. Assim é que se mostra na necessidade de analisar, compreender e disputar os espaços sociais e legislativos no momento presente do Brasil.

 

Considerações finais

Apenas a título de conclusão prévia e parcial, entendemos que o atual momento histórico no Brasil, no que se refere aos direitos das mulheres, é de muita atenção e vigília, uma vez que percebemos as condições de possibilidade que fizeram com que o discurso do projeto de lei trazido à baila, o Estatuto do Nascituro, se fizesse viável, inclusive dentro do âmbito legislativo.

Tendo como parâmetro de análise os escritos de Foucault (2005b) sobre as relações de poder, e aqueles referentes ao discurso como atos de fala (Foucault, 2005d), assim como os escritos de Butler (2017) sobre a sujeição em seu processo de ambivalência, compreendemos que a existência de um projeto de lei como o estudado, que pretende retirar das mulheres a sua posição de sujeito de direitos, deixando-as na dinâmica da inclusão pela exclusão (Agamben, 2004), trata-se de um grande retrocesso, se levarmos em consideração dialética, o discurso que se fez possível no movimento constituinte de 1987/1988, assim como em sua concretização na Constituição Federal de 1988.

 

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Endereço para correspondência:
Laila Maria Domith Vicente
lailamdv@gmail.com

Submetido em: 30/04/2018
Revisto em: 04/11/2018
Aceito em: 06/11/2018

 

 

1 A presente análise é parte da pesquisa da autora vinculada ao Programa Pesquisa Produtividade da Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro (Unesa), perante o qual a autora é bolsista.
2 O instituto do pa
́trio poder no Direito Romano se referia ao direito de vida e morte do patriarca sobre seus escravos, sua mulher e seus filhos, de acordo com Engels (1991, p. 50): "Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família 'id est patrimonium' (isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles" (grifo nosso).
3 Sobre o assunto, verificar texto escrito em outra ocasião (Vicente, & Ribeiro, 2012).
4 Tradução livre da citação: "Debería agregar que Marx nunca podría haber supuesto que el capitalismo allanaba el caminho hacia la liberación humana si hubiera mirado su historia desde el punto de vista de las mujeres".
5 A expressão é retirada de um trecho do texto "Amai
e não vos multiplicai", datado de 1931, da feminista e anarquista Maria Lacerda de Moura. Segue o trecho completo: "é um esforço no sentido de esclarecer a necessidade de não produzir 'carne para canhão' como queriam os governos totalitários" (Leite, 2004, p. 335).
6 O Art. 226 é a formulação expressa do afastamento do pátrio poder em seus termos latinos.
7 Tal momento histórico do feminismo no Brasil se caracterizou por ser de guerrilhas, em que as mulheres se encontravam muitas vezes clandestinamente e lutavam pelas possibilidades de mudanças sociais e políticas, pelo fim de um autoritarismo de Estado que, em seus diversos aspectos, se apresentava como um sexismo de general, violento e violador. "Em especial, a tortura perpetrada à mulher é violentamente machista." Palavras de Coimbra (2011, p. 44), que foi presa e torturada por três meses e meio desde agosto de 1970: "Nós mulheres que atuamos - na vanguarda ou na retaguarda, não importa - naquele intenso e terrível período, derrubamos muitos tabus, vivemos visceralmente a presença assustadora da morte, a ousadia de desafiar e enfrentar um Estado de terror, a coragem de sonhar e querer transformar esse sonho em realidade. Acreditávamos... Sim, queríamos um outro mundo, outras relações, outras possibilidades... e queremos hoje" (Coimbra, 2011, p. 45).
8 O substantivo sujeito e o verbo sujeitar derivam "do Latim SUBJECTUS, particípio passado de SUBICERE, 'colocar sob, abaixo de', formado por SUB-, 'sob', mais a forma combinante de JACERE, 'lançar, atirar'". Disponível em http://origemdapalavra.com.br/palavras/sujeito/, acesso em 20/10/2013. No mesmo sentido a etimologia da palavra sujeito presente no Dicionário Houaiss: "Sujeito provém do latim clássico subjectus, a, um, "colocado debaixo, em posição inferior". Designava o escravo, o submisso, o vassalo, o subjugado".
9 Foucault, no desenrolar da construção de seu último projeto, "A História da Sexualidade", muda o percurso que inicialmente pretendia desenvolver - uma análise histórica da sexualidade no ocidente contemporâneo - para pensar as práticas de liberdade e subjetivação no cuidado de si (epiméleia heutou) que analisou na Grécia Antiga. A nosso ver, assim buscava práticas de resistência ao assujeitamento desmensurado e práticas de liberdade que pudessem contar outras histórias. Não deixamos de considerar aqui que ademais de esta busca por práticas éticas de liberdade, Foucault intentava construir a história da relação de si para consigo e das formas através das quais "o indivíduo se constitui e se reconhece como sujeito" (Foucault, 2003, p. 11).
10 Foucault propõe que o poder soberano, aquele anterior à época chamada de moderna na Europa, se manifestava no "direito de vida e morte" do soberano sobre seu súdito - um poder de causar a morte. Deixava-se viver e fazia-se morrer. O poder possuía um caráter negativo, se exercia, como disse Foucault (2005a, p. 128), "como instância de confisco, mecanismo de subtração, direito de se apropriar de uma parte das riquezas; extorsão de produtos, de bens, de serviços, de trabalho e de sangue imposta aos súditos." Ao contrário do que se passou a partir da modernidade, quando temos o poder em seu caráter positivo, muito antes que negativo. Neste momento, o poder tinha outras funções, como as "de incitação, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração, e de organização de forças [...] um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e ordená-las..." (Foucault, 2005a, p. 128) O poder agora tinha o caráter de "fazer viver". Estas novas inter-relações sociais deram condições de possibilidade, como nos mostrou Foucault, a duas formas presentes nas sociedades modernas e contemporâneas: a disciplina e o biopoder. A disciplina, que já é perceptível em meados do século XVII, se refere a um ajustamento dos mecanismos de poder sobre os corpos dos indivíduos, processo realizado por meio das instituições espalhadas na sociedade, como a família, a escola, o quartel, a indústria, o convento, e àqueles escapam a estas, o hospício ou a prisão. Isso para trabalhar nos corpos individual e localmente: hierarquias, submissão, regras, aumento da potência física, além da criação de um espaço para a produção dos saberes sobre humanos, ou como queiram chamar, ciências humanas. Por um outro lado, e cerca de um século depois, no final do século XVIII, pode-se verificar a preocupação e a tentativa de dar conta, da população e de seus processos de vida (biopoder), como o nascimento, a morte, a doença, e que procuram o equilíbrio global de uma massa humana. Relações de poder, pois, que se fazem presentes local e globalmente, sendo a primeira uma tecnologia de treinamento e a segunda, de previdência. Neste sentido, ver: Vicente, 2018.
11 Claro que é possível subir escadas, assim como ocupar a cidade e fazer dela um espaço de vida, ainda que não se esteja dentro desta normalização do corpo. Apenas pretendemos apontar como os espaços urbanos são plenos de técnicas de corpo que são coletivas, ainda que muitas vezes adaptadas e restritivas para o tipo específico de corpos que importam, excluindo-se os demais.
12 A presente análise da interdependência e inteligibilidade de certos corpos para ocupar a cidade, assim como a exclusão de outros, foi feita em sintonia e inspiração no filme de Astra Taylor - A Vida Examinada (2008), em que temos um diálogo e um caminhar em conjunto de Judith Butler e Sunara Taylor.
13 Tradução livre feita da citação: "La herida ayuda a entender que hay otros afuera de quienes depende mi vida, gente que no conozco y que tal vez nunca conozca. Esta dependencia fundamental de un otro anónimo no es una condición de la que puedo deshacerme cuando quiero".
14 Tradução livre feita da citação: "Para que puedan persistir, las condiciones del poder han de ser reiteradas: el sujeto es precisamente el lugar de esta reiteración, que nunca es una repetición meramente mecánica".
15 Aqui escutamos as vozes dos questionamentos que Butler (2013) lança a Simone de Beauvoir quando esta diz que "não se nasce mulher, chega-se a sê-lo." Butler, em seu livro "Problemas de Gênero", nos aponta como não se nasce mulher e tampouco se chega a sê-lo, já que a norma que provém da matriz heterossexual é um ideal inatingível.
16 Tradução livre da citação: "La identidad sexual no es la expresión instintiva de la verdad prediscursiva de la carne, sino un efecto de reinscripción de las prácticas de género en el cuerpo".
17 Tivemos a oportunidade de fazer este debate de forma mais ampla em outro momento, para ter acesso conferir: Vicente (2018).
18 Podemos citar, a título de exemplo, os seguintes: PL n5069/2013, PL n4703/1998, Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n164/2012, PEC n29/2015.
19 Por este motivo, tal pensão ficou conhecida socialmente como "bolsa estupro".
20 "Sujeito de direitos", segundo a doutrina jurídica, refere-se aos sujeitos que entram em relações de direitos e obrigações, tendo a lei como parâmetro.

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