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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro  2018

 

SEÇÃO ABERTA

 

Da guerra civil

 

 

Peter Pal Pelbart

Docente. Departamento de Filosofia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Da guerra civil

Estamos em guerra. Guerra contra os pobres, contra os negros, contra as mulheres, contra os indígenas, contra os transexuais, contra os craqueiros, contra a esquerda, contra a cultura, contra a informação, contra o Brasil. A guerra é econômica, política, jurídica, militar, midiática. É uma guerra aberta, embora denegada, é uma guerra total, embora camuflada, é uma guerra sem trégua e sem regra, ilimitada, embora queiram nos fazer acreditar que tudo está sob a mais estrita e pacífica normalidade, institucional, social, jurídica, econômica. Ou seja, ao lado da escalada generalizada da guerra total, uma operação abafa em escala nacional. Essa suposta normalização em curso, a denegação, a pacificação pela violência - eis o modo pelo qual um novo regime esquizofrênico parece querer instaurar sua lógica, na qual guerra e paz se tornam sinônimos, assim como exceção e normalidade, golpe e governabilidade, neoliberalismo e guerra civil. Nada disso é possível sem uma corrosão da linguagem, sem uma perversão da enunciação, sem uma sistemática inversão do valor das palavras e do sentido do próprio discurso, cujo descrédito é gritante.

Nossa cólera dirige-se contra aqueles que destroem impiedosamente o que nos é caro, devastam nossa riqueza natural, social, subjetiva, afetiva, política. Brutalidade comparável, talvez, ao assassinato dos irmãos de Witt em 1672, que governavam os países baixos no século XVII e que fizeram Espinosa soltar o único grito urrado de que se tem notícia saído daquele homem que diziam ser tão suave e sereno. Cólera, pois, contra o cavalar revanchismo que vai destruindo dia a dia o pouco que se havia conquistado nos últimos anos, numa sede de dilapidação, num desejo de extermínio vindo das várias máfias que se aliaram nessa política de terra arrasada.

 

A guerra civil

É preciso dar nome aos bois. O nome disso é guerra civil. O livro recente Guerres et Capital, de Alliez e Lazzarato (2016), detalhou a lógica necessariamente bélica do capitalismo atual: "O capitalismo e o liberalismo carregam as guerras em seu seio como as nuvens carregam a tempestade" (2016, p. 345). Porém já não se trata, como em séculos anteriores, de uma guerra entre Estados-nação pela conquista de terras supostamente inabitadas, ou visando garantir matéria prima ou disputando mercados, mas de uma guerra contra a própria população, uma guerra de classes, de raças, de sexos, de subjetividades. Esta guerra visa manter e aprofundar as clivagens que atravessam nossas sociedades, agora a nível planetário. Se o modelo de tal guerra vem do colonialismo, já não se dirige contra as populações nativas de terras longínquas, porém dá-se na própria metrópole, num endocolonialismo em escala global. "A população é o campo de batalha no interior do qual se exercem operações contra-insurrecionais de toda ordem que são, ao mesmo tempo e de maneira indiscernível, militares e não militares pois são portadoras da nova identidade entre as 'guerras sangrentas' e as 'guerras não sangrentas" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 345). É onde a paz e a guerra se tornam indistintas.

Nessas condições, a guerra sai das mãos dos militares e se torna a guerra dos políticos, cientistas, banqueiros. "As guerras não são mais somente sangrentas e os meios de as conduzir não são unicamente militares. A economia e notadamente a economia financeira pode substituir os meios militares" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 345). O terrorismo financeiro é o novo poder executivo transnacional, basta lembrar do recente exemplo grego. Surge assim um novo contínuo entre guerra, economia e política.

A fórmula de Clausewitz é então revertida. A guerra não é a continuação da política por meio do sangue: a política do Capital é a continuação da guerra por todos os meios colocados à sua disposição. O sistema de representação, nesse contexto, não passa de um teatro televisivo, e os parlamentos apenas legitimam a guerra do Capital. Mas, paradoxalmente, esta guerra não tem por objetivo a guerra, e "transforma a paz numa forma de guerra para todos".

Os autores assim explicitam suas intenções:

este livro não tem outro objeto senão fazer ouvir, sob a economia e sua "democracia", por trás das revoluções tecnológicas e a "intelectualidade de massa" do General Intellect, o "estrondo" das guerras reais em curso em toda sua multiplicidade... Em suma, tratar-se-ia de extrair lições do que nos apareceu como o fracasso do pensamento 68 do qual somos os herdeiros, até na nossa incapacidade de pensar e de construir uma máquina de guerra coletiva à altura da guerra civil desencadeada em nome do neoliberalismo e do primado absoluto da economia como política exclusiva do capital (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 33).

Já podemos vislumbrar melhor o que os autores entendem por guerra civil generalizada: é o contínuo das "intervenções que conduzem da expropriação a mais violenta da terra e das liberdades de associação que ela gere até o adestramento disciplinar dos corpos... as instituições disciplinares, securitárias e de soberania continuam a guerra civil por todos esses meios" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 33). A presença de Foucault nessa teorização da guerra civil é indiscutível.

 

A política é a continuação da guerra por outros meios?

De fato, já em 1973 Foucault expusera a ideia de que a política seria a continuação da guerra por outros meios, numa clara inversão da proposição de Clausewitz, segundo a qual a guerra é a continuação da política por outros meios. Tratava-se, para Foucault, de pensar o poder à luz das táticas, dos conflitos, das lutas entre aqueles que exercem o poder, indivíduos ou grupos, e aqueles que dele tentam escapar, contestando-o ou o enfrentando, seja de modo local ou global. O exercício do poder, dizia ele no curso A sociedade punitiva, encobre e denega a guerra civil da qual este poder deriva. Se Hobbes pôde falar da guerra de todos contra todos foi no sentido de uma guerra natural que justificaria o pacto de soberania. A guerra civil, no entanto, afirma Foucault, não é a guerra de todos contra todos, é outra coisa,

é o estado permanente a partir do qual se pode e se deve compreender um certo número dessas táticas de luta... A guerra civil é a matriz de todas as lutas de poder, de todas as estratégias do poder e, por conseguinte, também a matriz de todas as lutas pelo e contra o poder (Alliez, & Lazzarato, 2016, p.15).

Foucault insiste em diferenciar a ideia de uma guerra de todos contra todos e a noção de guerra civil. A primeira é pensada a partir dos indivíduos, em princípio iguais, equivalentes, substituíveis, num estado de rivalidade original, em todas as esferas, seja no interior de uma família ou na sociedade como um todo, movidos por suas paixões e apetites naturais. A guerra civil, em contrapartida, é enfrentamento entre elementos coletivos, religiosos, étnicos, comunitários, linguísticos, de classe, etc. A guerra civil envolve sempre massas, corpos coletivos e plurais, e não apenas ela se dá entre grupos, mas ela até mesmo os constitui. É a partir da guerra civil que se produzem novas coletividades, como é o caso, por exemplo, do campesinato no final da Idade Média, que, a partir das sublevações populares que sacudiram a Europa desde o século XV, foi se consolidando como agrupamento ideológico, de interesses, como classe social. É a série de levantes, sedições, tumultos que foi dando coesão a esse personagem tão importante na Revolução Francesa, os sans-culotte. Ele foi forjado através da guerra civil continuada, que não é a guerra de todos contra todos, que desemboca no indivíduo isolado, mas ao contrário, o teatro a partir do qual se consolidaram personagens coletivos. Daí a conclusão: a guerra civil não é o oposto da política, mas seu elemento constitutivo. Assim, é pela guerra civil que certos grupos se apoderam de fragmentos de poder, não no sentido de se apossar de uma fatia, de riquezas, por exemplo, mas de tomar o controle de processos, de formas, de regulamentos que, na sequência, implicam até numa redistribuição da riqueza. A guerra civil não destrói o poder, não o abole, mas o inflete.

 

O poder é uma coisa, a guerra é outra

Ora, alguns anos depois, assistimos a uma reviravolta na teorização do filósofo. O que Foucault vai criticar em 1976 é precisamente o que ele defendia apenas três anos antes, chamando-a retrospectivamente de "hipótese Nietzsche". E anuncia, na primeira aula do curso Em defesa da sociedade, que este será dedicado ao problema da guerra. Mas curiosamente, em ruptura total com seu pensamento anterior, não é para mostrar que a guerra civil é o fundamento da política, mas para se perguntar como surgiu essa ideia. Daí ele perguntar, quase contra si mesmo: "É mesmo exatamente da guerra que se deve falar para analisar o funcionamento do poder? São válidas as noções de 'tática', de 'estratégia', de 'relação de força'? Em que medida o são? O poder, pura e simplesmente, é uma guerra continuada por meios que não as armas ou as batalhas?". E insiste: é "no aspecto da relação belicosa, do lado do modelo da guerra, do lado do esquema da luta, das lutas, que se poderá encontrar um princípio de inteligibilidade e de análise do poder político, do poder político decifrado, pois, em termos de guerra, de lutas de enfrentamentos?" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 26). Não se trata, como mostra a sequência, de abrigar-se no polo oposto, no discurso da soberania e do direito que tiveram "como função dissolver, no interior do poder, o fato da dominação para fazer que aparecessem no lugar dessa dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da soberania, do outro, a obrigação legal da obediência" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 26). É a evicção do fato da dominação que tal discurso da soberania empreende, e não teria cabimento voltar a isso. Para pensar o poder, e as múltiplas formas de dominação, porém, o modelo da guerra lhe parece agora insuficiente: "Em que uma relação de dominação pode se resumir à noção de relação de força ou coincidir com ela? Em que a relação de força pode se resumir a uma relação de guerra?" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 31). Será que a guerra pode servir de matriz para pensar as técnicas de dominação? Será que a relação de poder é em seu fundo uma relação de enfrentamento, de luta de morte, de guerra? A guerra é ainda excessivamente "binária", e agrupa fenômenos tão múltiplos, num antagonismo, rivalidade, enfrentamento excessivamente codificado, seja entre grupos, classes, indivíduos. E ao explicitar o que considera o problema principal que pretende focar, indaga: "como, desde quando e por que se começou a perceber ou a imaginar que é a guerra que funciona sob e nas relações de poder? Quem imaginou que a ordem civil era uma ordem de batalha?" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 54). E nos surpreendemos com a pergunta seguinte: "Quem, no fundo, teve a idéia de inverter o princípio de Clausewitz, quem teve a idéia de dizer: é bem possível que a guerra seja a política praticada por outros meios, mas a própria política não será a guerra travada por outros meios?" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 54). O leitor desavisado que hoje lê a transcrição desse curso tenderia a retrucar que três anos antes ele mesmo havia formulado essa inversão. Mas agora, a pergunta extrapola esse quem, para, numa pirueta, perguntar quem o próprio Clausewitz teria revirado, quem teria formulado o princípio que Clausewitz inverteu? E o curso acaba fazendo a genealogia do princípio de que a própria política é a continuação da guerra por outros meios, bem antes de Clausewitz inverter a fórmula. Isto é, Foucault escavará essa tese difusa que vem de longe e que atravessa a historiografia há vários séculos, que atribui à guerra uma primazia de fundo, detectando-a por toda parte. Guerra antiga, guerra permanente, guerra interminável, que a dialética há de colonizar. Não é a guerra de todos contra todos - novamente há que afastar-se de Hobbes - mas a guerra entre raças, a matriz dessa primazia da guerra. Guerra de raças não é ainda racismo, ela tem antes um caráter histórico-político, e é somente no século XIX que ganhará um cunho biológico, quando for apropriada pelos Estados, já num contexto biopolítico em que se trata de separar as raças que merecem viver das que devem perecer no interior de uma mesma nação.

Ao assinalar, nos cursos dos anos subsequentes, o deslocamento do discurso da batalha para o discurso do governo, nessa série que passa pela sociedade de segurança, pelo poder pastoral, pelo governo das coisas, pela polícia, até a tematização do liberalismo - em suma, que abarca o governo como "arte de governar", como estruturação do campo de possibilidades do outro, como governamentalidade, algo de crucial mudou no seu pensamento. Por exemplo, em O Nascimento da Biopolítica, a questão da guerra desaparece totalmente, justamente quando faz uma análise do capitalismo, e ao ressaltar no neoliberalismo a primazia da arte de governar. Se o neoliberalismo alemão interessa tanto a Foucault, sem dúvida é porque ele implica no surgimento dessa nova "arte de governar", ou "arte liberal de governar", que já não pode ser remetida à definição genérica de "relações de poder". Dito de outra forma, é um deslocamento no método de análise, não no objeto da análise. Ou seja, quando analisava os micropoderes, não se tratava de focar uma esfera específica, minúscula (loucura, delinquência, sexualidade), foco que agora teria se deslocado para o macropoder e as questões do Estado. É o método que agora mudou, e que, por conseguinte, pode ser aplicado a qualquer escala, inclusive minúscula, como os cursos dos anos seguintes o mostrarão. A arte do governo pode ser aplicada para pensar diversos momentos da história, como o poder pastoral, mas também o neoliberalismo - esferas minúsculas ou maiúsculas.

Em todo caso, o leitor que se acostumou com o primeiro e segundo Foucault se pergunta se com essa mudança de método a paisagem já não é inteiramente outra, longe daquele campo de batalha cujos rumores a soberania se encarregava de abafar. Pois agora "a noção de governo" lhe "parece muito mais operatória do que a noção de poder, 'governo' sendo entendido, certamente, não no sentido estreito e atual de instância suprema das decisões executivas e administrativas nos sistemas estatais, porém no sentido amplo, e aliás antigo, de mecanismos e de procedimentos destinados a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens". É à "arte racional de governar" que Foucault vai dedicar seus próximos passos. A fórmula de Foucault nesse momento é lapidar: o poder é uma coisa, a guerra é outra.

 

A rebelião é sempre possível

Ora, é justamente tal postulado que Lazzarato e Alliez tratam de contestar, em Guerres et Capital. Pois a crise atual mostraria a cada dia de maneira mais evidente a imbricação da guerra na política e da política na guerra. E num passo a mais, que Foucault não dera, eles afirmam, sem, no entanto, retornar às análises foucaultianas dos anos 1970:

a governamentalidade não substitui a guerra. Ela a organiza, governa, controla a reversibilidade das guerras e do poder. A governamentalidade é a governamentalidade das guerras, sem o que o novo conceito, muito rapidamente colocado a serviço da eliminação de todas as "condutas" da guerra, entra inevitavelmente em ressonância com o todo poderoso e muito (neo)liberal conceito de "governança" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 156, grifo no original).

Alliez e Lazzarato (2016) torcem a última perspectiva de Foucault ao pensar a governamentalidade como governamentalidade da guerra, chamando a atenção para todo o aspecto "securitário" que Foucault não se cansara de estudar, bem como a priorização do "meio", do "ambiente" a partir do qual se modelam as possibilidades, desejos, modos de pensar, crenças, medos. Se o poder visto sob o prisma da governamentalidade é ainda uma ação sobre ação, conduta sobre conduta, que pressupõe a liberdade do outro - condições da ideia de governamentalidade tal como Foucault a formulou - essa ideia ainda vale na medida em que segundo essa matriz a rebelião sempre é possível, e se trata de detectar os pontos em que uma sublevação está em vias de desenhar-se quando a população se engaja concretamente na guerra civil. O interessante na arte de governar está em sua reversibilidade. Mas, como que desafiando a formulação de Foucault, eles injetam nessa arte de governar a dimensão da guerra. Por exemplo, a ação sobre ação e a conduta sobre conduta envolvem a guerra de subjetividades como um instrumento de produção de subjetividade, o investimento sobre esferas psicológicas, afetivas e micropolíticas como controle das condutas, etc. E também uma dimensão essencial, em nosso contexto em que a Globo é quem decide os próximos passos da política nacional, é uma guerra de percepção, sobre a percepção, e mais do que sobre a população, ela incide sobre o "público" - a guerra midiática deve ser ganha antes mesmo da batalha se dar. A globalização da percepção permite que a guerra já sequer apareça como guerra, confirmando uma intuição de Heidegger, na esteira de Jünger, de que "o elemento 'guerra' não será mais em absoluto sentido como tal ou o elemento 'paz' não terá mais nem sentido nem substância". A guerra contrainsurrecional visa, claro, não a segurança ou a paz, mas a manutenção de um estado de insegurança generalizado, de medo difuso, que justifique precisamente a mobilização incessante, securitária ou salvacionista, mas ainda produz uma espécie de pacificação. Já não é a guerra visando os objetivos políticos do Estado, porém do Capital.

A preocupação dos autores fica clara: combater a apropriação feita por um pensamento neoliberal que, ao confundir governamentalidade e governança, se permite negar a guerra civil a partir de uma utopia neoliberal, aliás tão bem analisada pelo próprio Foucault. A propósito, a microfísica do poder pode ser lida retrospectivamente como uma atualização crítica da "guerra civil generalizada", da "guerra das subjetividades", e eles veem com inquietação o momento em que as relações de poder passam a ser analisadas de maneira descolada da guerra civil generalizada - é quando a teoria da governamentalidade corre o risco de virar uma variante da governança neoliberal. Pois as múltiplas guerras em curso hoje, contra as populações, como em nosso País, atestam que o que se governa hoje são as divisões no seio da população, a distribuição diferencial da precariedade - é isso a biopolítica contrainsurrecional. A matriz dessas guerras continua sendo a guerra colonial, que nunca foi entre Estados, porém uma guerra "dentro e contra a população, onde as distinções entre paz e guerra, entre combatentes e não-combatentes, entre o econômico, o político e o militar nunca tiveram lugar" (Alliez, & Lazzarato, 2016, p. 28). Como o mostrou Achille Mbembe, a escravidão colonial foi o protótipo dessa necropolítica: "a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei e onde a 'paz' costuma ter o rosto de uma 'guerra sem fim'" (Mbenbe, 2017, p. 32).

Na verdade, os autores de Guerres et Capital propõem-se a seguir e a reinventar "a pista anticapitalista do nietzcheanismo francês". Os vencidos de 1968 teriam jogado fora, junto com a água suja do leninismo, o bebê da guerra civil. Trata-se, portanto, de retomá-la, e não ficar na insônia e nos processos destituintes reservados apenas, como eles dizem com ironia, a seus amigos. É preciso fazer ouvir o estrondo das guerras reais em curso, recarregando assim as "massas ou fluxos" de novos possíveis.

 

A máquina de guerra contra a guerra

Não há como deixar de pensar em nosso contexto, ao ler tais análises. Nenhum esforço de pacificação há de calar o estrondo das guerras que subjazem aos golpes sucessivos a que assistimos em nosso contexto, dirigidos sistematicamente contra as mais diversas categorias, segmentos, minorias, subjetividades - contra a população, num endocolonialismo que apenas põe a nu o passado colonial do qual ainda não nos livramos. Isso é válido para o Brasil, para a Argentina, para o Paraguai, talvez para o Chile, numa onda que se vai ampliando da maneira mais inquietante, sem falar nos vizinhos do Norte, mas também numa virada conservadora que atravessa o planeta.

Ainda assim, algumas perguntas se impõem, e eu estou consciente de que sua formulação é ainda muito embrionária, e feita a partir de um ponto muito localizado, e que dá quase vontade de dizer: são perguntas provenientes de uma espécie de geofilosofia. Como entrar numa guerra sem necessariamente aceitar a belicosidade que dela emana? Como combater o adversário sem espelhá-lo? Trata-se de retomar o poder ou de expandir a potência? Não seria o caso, menos de tentar ocupar o lugar daqueles que tomaram de assalto o Estado do que ocupar ruas, praças, escolas, instituições, espaços públicos privatizados, experimentar novas formas de organização, de auto-organização, de sociabilidade, de produção, de subjetivação, mas também, e justamente isso é que parece o mais paradoxal, novas modalidades de despossessão, de deserção, de destituição, de dissidência, de esquiva, de dessubjetivação? Não é essa a combinação mais paradoxal e mais urgente? Daí o impacto de um livro como Aos nossos amigos, que propõe sair do paradigma do governo - não se deixar governar nem querer governar. Desertar uma matriz tão arraigada - contra os que nos governam, governemos nós... Ou desertar de vez o Estado e tudo o que ele implica... É preciso derrubar a corja de bandidos que sequestrou o Estado, quebrar o monopólio das corporações que os sustentam, mas como fazê-lo sem entrar no jogo em que saímos vencidos de antemão, já impregnados pela lógica do adversário, de seus aparelhamentos, das cumbucas endinheiradas, das paixões tristes que isso suscita por toda parte? Talvez ainda não se tenham inventado máquinas de guerra à altura da eficácia da megamáquina financeira, policial, midiática, jurídica que se instalou. Mas tampouco se inventou um modo de combatê-la sem nelas nos enredarmos. Faltam-nos operadores de desativação, como diz Agamben, modos de tornar inoperante, um poder, uma função, não apenas desativando aquilo a que nos opomos, mas também desativando algo de nós mesmos que ainda permanece intacto e que se enreda nos mecanismos vigentes - o Estado-em-nós, o fascista-em-nós. Pois ficamos cativos do que nos aturde ou tortura, num automatismo de ação e reação que corre o risco de espelhar a lógica dos que comandam - somos impelidos a um tipo de revide que relança o jogo, em vez de reinventar as distâncias, os hiatos, os descolamentos, as cesuras, as desmontagens de nós mesmos - um novo tabuleiro onde nem sequer houvesse lugar para um peão chamado eu, muito menos um bispo, um rei, uma rainha, e seus movimentos codificados.

Numa revisão técnica da nova tradução de Nietzsche e a filosofia, encontrei recentemente uma frase de Deleuze que me deixou prostrado. Ali, o filósofo se pergunta, e a partir de Nietzsche, se a própria ideia de luta não está excessivamente comprometida com os valores estabelecidos pelos quais se luta. "Eis o que parece sintomático nessa filosofia da vontade: o conformismo, o desconhecimento absoluto da vontade de potência como criação de novos valores..." (Deleuze, 2018, p. 107). Como se distribuem valores estabelecidos?

É sempre no desfecho de um combate, de uma luta, seja qual for a forma dessa luta, secreta ou aberta, leal ou embusteira. De Hobbes a Hegel, a vontade de potência está engajada num combate, precisamente porque o combate determina aqueles que receberão o benefício dos valores em curso [honra, prestígio, dinheiro, cargos]. É próprio dos valores estabelecidos serem postos em jogo numa luta, mas é próprio da luta conectar-se sempre a valores estabelecidos: luta pela potência, luta pelo reconhecimento ou luta pela vida, o esquema é sempre o mesmo. Ora, não se poderia insistir em demasia no ponto seguinte: quão estranhas a Nietzsche e à sua concepção da vontade de potência são as noções de luta, de guerra, de rivalidade ou até mesmo de comparação. Não que ele negue a existência da luta; mas esta não lhe parece absolutamente criadora de valores... A luta nunca é a expressão ativa das forças, nem a manifestação de uma vontade de potência que afirma; tampouco seu resultado exprime o triunfo do senhor ou do forte. A luta, ao contrário, é o meio pelo qual os fracos prevalecem sobre os fortes, porque estão em maior número. Eis porque Nietzsche se opõe a Darwin: Darwin confundiu a luta e a seleção, ele não viu que a luta tinha o resultado contrário ao que ele acreditava; que ela selecionava, mas selecionava apenas os fracos e assegurava o triunfo destes. Por demais polido para lutar, diz Nietzsche de si mesmo. Ele ainda diz a respeito da vontade de potência: "Abstração feita da luta" (Deleuze, 2018, p. 107, grifos no original).

Haveria imensas coisas a dizer sobre esse parágrafo, desde a redefinição aqui presente entre forte e fraco, na qual o forte não é aquele que detém o poder, mas o que tem a potência de criar - com o que a maioria dos vitoriosos e poderosos são fracos, nada mais que gestores dos valores vigentes e subservientes a eles, embora deem a impressão de dominá-los. Por outro lado, estão os fortes, que no mais das vezes não detêm poder algum, mas que criam novos valores, sendo este o critério último que interessa a Deleuze no jogo social. Eu diria, de maneira muito provocativa, que para nós os Araweté são fortes, e Trump é fraco... Aliás, tudo o que nos traz Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio e sua cosmologia opera entre nós nesse diapasão, como que solapando nosso antropocentrismo ou capitalocentrismo, produzindo um efeito de corrosão ainda imponderável. É uma verdadeira operação de descolonização, pelo menos do pensamento.

Mas volto um segundo ao texto de Deleuze. Porque desqualificar a luta? Será esse texto um libelo contra a luta, uma recusa da luta? Se fosse isso, se fosse uma mera renúncia, ou apologia da desistência, há tempos teríamos deixado de ler Deleuze, ou Nietzsche... Não será antes uma maneira de repensar a ideia de luta, revirá-la do avesso, agregar-lhe dimensões, catapultá-la para além da guerra? Não é a isto que responde o conceito de máquina de guerra, forjado pelo autor anos depois em parceria com Guattari, inspirado nos nômades e em seu modo singular de driblar o embate inevitável contra o Estado e as guerras que ele empreende? Não corresponde isso à diferença entre a guerrilha e a guerra? Ao evitar o confronto direto, como a guerrilha, os nômades não têm a guerra por objetivo, eles visam outra coisa. "Se a guerrilha, a guerra de minoria, a guerra popular e revolucionária, são conformes à essência [da máquina de guerra], é porque elas tomam a guerra como um objeto tanto mais necessário quanto é apenas 'suplementário': elas só podem fazer a guerra se criam outra coisa ao mesmo tempo" Deleuze, & Guattari, 1997, p. 110, grifos no original). O que é essa "outra coisa", senão justamente a criação de novas maneiras de pensar, sentir, amar, trabalhar, distribuir-se na terra, dividir os bens, gerir a doença, acolher os devires, produzir sociabilidades outras, corpos coletivos, conviver com o invisível, em suma, instaurar outras maneiras de viver? Não funcionam as metafísicas canibais como uma máquina de guerra de descolonização? Não é isso que tanto nos atrai, fascina, e que pouco a pouco vai penetrando em nossas perspectivas, ainda mal sabemos como? O impacto do perspectivismo ameríndio não se deve precisamente a essa proeza de ter instaurado um outro plano de discussão, um outro tabuleiro onde as antigas perguntas se estraçalham, os antigos actantes rodopiam?

A máquina de guerra tem sua ambiguidade, é verdade. Ela oscila entre uma dimensão criadora e outra destrutiva, conforme o agenciamento em que se insere. É potência de metamorfose quando se manifesta como máquina teórica, artística, literária, amorosa, revolucionária (Pentesileia, de Kleist) - por vezes feita de velocidade, exterioridade, afeto, em contraposição à gravidade, captura, totalização próprias ao aparelho de Estado e seus sucedâneos. Mas também pode bascular para o outro polo, como as milícias revolucionárias que num certo momento começam a cobrar tributos da população e a tornam refém de redes de tráfico transnacionais, beirando um microfascismo e a militarização geral da existência. Ou o exemplo extremo do nazismo, no qual a máquina de guerra se apropria do Estado, arrastando-o em direção à guerra total, em que matança e suicídio coincidem.

 

A guerra da paz

É onde reencontramos a fórmula de Clausewitz, enunciada também por Deleuze e Guattari, e de forma invertida, como Foucault, porém declinada diferentemente da versão foucaultiana. Dizem eles: a política é a continuação da guerra por outros meios, porém a paz que ela parece proporcionar "libera tecnicamente o processo material ilimitado da guerra total". Essa fórmula não é estranha ao nosso contexto atual. Eis uma paz que libera um processo ilimitado de guerra total. É aí onde a guerra e a paz se alavancam mutuamente. O que se anunciava já no tempo de Deleuze e Guattari era uma época, e isso já há algumas décadas, em que "não havia mais necessidade de fascismo. Os fascistas tinham sido só crianças precursoras, e a paz absoluta da sobrevivência vencia naquilo que a guerra total havia falhado. Estávamos já na terceira guerra mundial". Apoiando-se em Virilio, eles completam:

essa máquina de guerra [e agora é a máquina de guerra no seu sentido negativo] não tinha mais necessidade de um inimigo qualificado, mas... se exercia contra o "inimigo qualquer", interior ou exterior (indivíduo, grupo, classe, povo, acontecimento, mundo); [...] daí saía uma nova concepção da segurança como guerra materializada, como insegurança organizada ou catástrofe programada, distribuída, molecularizada (Deleuze, & Guattari, 1997, p. 170).

Eis onde eles cruzam com Foucault, que justamente tentou entender como a guerra, o pensamento da guerra, o dualismo que ela produz, que começava com o extermínio do inimigo externo, acabou desembocando na guerra contra o inimigo interno, no extermínio que o próprio nazismo empreendeu de todos os seus inimigos internos, aquelas categorias da população que, segundo eles, não mereciam viver. Preservadas todas as diferenças e proporções, é algo dessa ordem que também está em jogo em nosso continente, mas não apenas nele, onde novas hierarquias biopolíticas vão se criando, não só dizimando populações autóctones, pobres, sexualidades minoritárias, mas também abortando tribos que vão se engendrando nas cidades e cuja gramática ainda não ficou suficientemente clara a ponto sequer de ser nomeada.

Não queremos ser apocalípticos. E de fato, talvez nisso concordem as várias perspectivas elencadas, e outras ainda, por maiores que sejam suas diferenças de análise, desde Foucault e Deleuze até Agamben, o Comitê Invisível ou Toni Negri: não há totalização sem resto, chame-se a isto contrapoder, linha de fuga, suplemento de potência, formas de vida, força do comum. Há um avesso, um fora, um irredutível, um inapropriável, ou fluxos que escapam por toda parte e se conjugam em planos aberrantes. É apenas na experimentação multitudinária de tais planos que uma outra correlação entre guerra e paz, constituição e destituição, apropriação e desapossamento, desejo e poder, cólera e alegria podem ser pensadas e ativadas. Essa experimentação se dá no presente, por toda parte, por menos que exercitemos uma certa cartografia em que elas apareçam e emitam sinais de outras possibilidades. Para isso é preciso não apenas uma percepção aguçada, mas uma percepção ancorada numa vitalidade outra, até mesmo numa alegria. Por paradoxal que possa parecer, começamos com a cólera e terminamos com a alegria. Pois a alegria nada mais é do que o efeito de um aumento de potência, conforme o ensinamento espinosano. E ao mesmo tempo, é ela mesma um fator de conversão, um ingrediente crucial que transforma a paixão numa ação, e que é decisiva no aumento e intensificação de nossa potência de agir.

 

Referências

Alliez, E., & Lazzarato, M. (2016). Guerres et capital. Paris: Amsterdam.         [ Links ]

Deleuze, G. (2018). Nietzsche e a filosofia. São Paulo, SP: n-1 edições.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs (Vol. 5). São Paulo, SP: Editora 34.         [ Links ]

Mbembe, A. (2017). Necropolítica. São Paulo, SP: n-1 edições.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Peter Pal Pelbart
pppelbart@gmail.com

Submetido em: 17/06/2018
Revisto em: 24/07/2018
Aceito em: 18/09/2018

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