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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i1p.112-127 

ARTIGOS

 

Acolhimento psicológico com sujeitos marginalizados: tensões entre o tradicional e o instituinte

 

Psychological attention with marginalized people: tensions between the traditional and the instituent

 

Acogida psicológica con sujetos marginados: tensiones entre lo tradicional y lo instituyente

 

 

Érico Douglas VieiraI; Roberta Carvalho RomagnoliII

IDocente. Universidade Federal de Goiás (UFG). Jataí. Estado de Goiás. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto pretende problematizar as práticas clínicas com moradores de rua, em uma proposta que se afasta da clínica tradicional. Para tal, utiliza a teoria da Análise Institucional como interlocutora para abarcar o campo de forças do instituído e do instituinte, que emerge através dos analisadores, efeitos que sustentam essa relação antagonista. Os analisadores encontrados foram: (1) Inserção do plantão psicológico na instituição: demandas e tensões; (2) Dificuldades, bloqueios e entraves vividos nos plantões psicológicos e (3) Espaço clínico como encontro com a alteridade. Concluímos que há uma insuficiência dos modelos tradicionais de Psicologia no contato com outros arranjos clínicos, o que convoca a emergência de outra clínica, instituinte e potente.

Palavras-chave: Subjetividade; Prática Clínica; Análise Institucional; Acolhimento Psicológico; População de Rua.


ABSTRACT

This article intends to problematize clinical practices with homeless people, in a proposal that departs from the traditional clinic. For this, it uses the theory of Institutional Analysis as interlocutor to encompass the field of forces of the instituted and the instituent, which emerges through the analyzers, effects that sustain this antagonistic relationship. The analyzers that were found include: (1) Insertion of the psychological duty in the institution: demands and tensions; (2) Difficulties and obstacles experienced in psychological duties; and (3) Clinical space as encounter with otherness. We conclude that there is an insufficiency of the traditional models of Psychology in the contact with other clinical arrangements, which justifies the emergence of another clinic, instituent and potential.

Keywords: Subjectivity; Clinical Practice; Institutional Analysis; Psychological Attention; Homeless People.


RESUMEN

Este artículo pretende problematizar las prácticas clínicas con los moradores de la calle, en una propuesta que se aparta de la clínica tradicional. Para ello utiliza la teoría del Análisis Institucional como interlocutora para abarcar el campo de fuerzas del instituido y del instituyente, que emerge a través de los analizadores, efectos que sostienen esa relación antagonista. Los analizadores fueron: (1) Inserción el cambio psicológico en la institución: demandas y tensiones; (2) Dificultades, bloqueos y obstáculos vividos en los plantones psicológicos y (3) Espacio clínico como encuentro con la alteridad. Concluimos que hay una insuficiencia de los modelos tradicionales de Psicología en el contacto con otros arreglos clínicos, lo que convoca la emergencia de otra clínica, instituyente y potente.

Palabras clave: Subjetividad; Práctica Clínica; Análisis Institucional; Acogida Psicológica; Población de Calle.


 

 

Introdução

Uma parcela de profissionais e pesquisadores da Psicologia Clínica busca romper com a dominância histórica de práticas não só privadas, mas também individualizadas que insistem em uma subjetividade universal, gerindo a vida e buscando igualar tudo o que é diferente, resultando em uma normalização assídua do patológico, como nos lembra Donzelot (1980). Práticas muitas das vezes acríticas e que cada vez menos se adequam às demandas contemporâneas que são feitas aos psicólogos. A necessidade de questionar novamente esse fazer psicológico centrado no indivíduo e descontextualizado aflora no Brasil, mais recentemente a partir da inserção maciça dos psicólogos nas políticas públicas, mais atualmente no Sistema Único de Assistência Social, última política a ganhar corpo depois da constituição de 1988. Nessas inserções, novas práticas aparecem, juntamente com reflexões e indagações teóricas. Nesse sentido, atualmente somos convidados a nos reinventarmos, em atuações repletas de desafios, possibilidades e incertezas. E experimentamos embates que ora tendem a reproduzir nossos conhecimentos e práticas, ora nos impelem a sustentar novas formas de intervir e de pensar, desvelando um campo de grandes tensionamentos.

Em sintonia com esses questionamentos e essas tensões, este artigo relata o percurso investigativo realizado a partir de práticas clínicas com moradores de rua, andarilhos e outros sujeitos em situação de vulnerabilidade social. Não podemos nos esquecer que a vulnerabilidade se funda na desigualdade social, presente em nosso país desde a época colonial em que havia uma parte da população excluída socialmente, amparados pela igreja e pela caridade (Lobo, 2008). Aos poucos a sociedade brasileira foi criando direitos sociais para essas pessoas, por meio das políticas públicas. Vemos, assim, a transformação dos negros e miseráveis da colônia em "assistidos sociais", em vulneráveis. Nesse cenário, devemos estar atentos a não atuarmos para uma naturalização da pobreza, em uma postura acrítica que desconsidera a lógica perversa que a produz. A ideia de subjetividade universal, que vimos acima, ao sustentar a cisão entre indivíduo e social, favorece a manutenção da desigualdade social e também a visão moralista da vulnerabilidade.

Considerando esses riscos, desde 2015, um projeto de extensão é realizado numa instituição de acolhimento, com o objetivo de oferecer uma escuta clínica para os usuários na modalidade do plantão psicológico. A partir desse projeto foi construída uma proposta de pesquisa para investigar os desafios, as potencialidades e as especificidades da escuta clínica com sujeitos que fazem parte de um grupo de pessoas que são vistas como o refugo humano da contemporaneidade, tendo como base as ideias de Bauman (1998). Com a desregulamentação contemporânea da sociedade de consumo, percebe-se a constituição de toda uma subclasse de homens e mulheres vistos como inadequados, inúteis e incapazes de atender às seduções do mercado (Bauman, 2007). Essas ideias dialogam com Lobo (2008) ao considerar a realidade brasileira e a produção da pobreza na história do nosso país. Os dois autores apontam para a lógica perversa e capitalista que sustenta essa exclusão. Dialogando com as questões sociais e institucionais, os resultados parciais dessa investigação são apresentados e discutidos nesse trabalho.

Nos encontros clínicos efetuados, esses "vulneráveis" compartilham vivências de humilhações, diversos desamparos e violências sofridas, possuem vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e relatam vivências de grande exposição dos seus corpos, aspectos que se manifestam em sujeitos com trajetória de rua (Decreto nº 7.053, 2009). Nesse contexto, torna-se relevante a discussão sobre o espaço clínico direcionado para tal população, tendo em vista que na literatura pesquisada os atendimentos na modalidade do plantão psicológico são direcionados para pessoas de camadas médias da população, que estariam menos expostas a situações de humilhações, violências e exclusão social (Lo Bianco, Bastos, Nunes, & Silva, 1994; Furigo, 2006; Schmidt, 2006; Mahfoud, 2012; Vieira, & Boris, 2012; Breschigliari, & Jafelice, 2015).. Para se constituírem análises das tensões entre o instituído-instituinte presentes nesta clínica, além da literatura supracitada, foram adotados estudos que concebem a subjetividade constituída por práticas culturais, sociais e relações de poder. (Hunning, & Guareschi, 2005; Bauman, 2007; Silva, & Carvalhaes, 2016; Souza, 2017).

Os plantões psicológicos foram realizados na cidade de Jataí (GO) no Nosso Lar - Casa de Apoio que busca prestar cuidados relacionados à alimentação - fornecendo refeições diárias -, local para higiene pessoal, fornecimento de roupas e sapatos e realização de palestras educativas. Trata-se de uma associação sem fins lucrativos fundada em 2008 que, de acordo com seu estatuto, tem por finalidade:

Prestar gratuitamente apoio, orientação e assistência a qualquer indivíduo necessitado, de ambos os sexos, com idade acima de 18 anos, que se encontra em situação de vulnerabilidade social e/ou com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas, não fazendo qualquer discriminação de raça, cor, sexo, religião ou ideologia política.1

O público-alvo da instituição é constituído por moradores de rua, trabalhadores precários (garis), "trecheiros" ou andarilhos (pessoas que percorrem várias cidades sem residência fixa), desempregados ou excluídos do mercado de trabalho e pessoas com dependência química. Alguns dos usuários também frequentam a rede de saúde mental do município para cuidados em relação ao sofrimento mental e trazem diagnósticos de psicoses e depressões graves. A equipe de extensão e pesquisa pertence ao curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás (UFG) - Regional Jataí. Os plantões psicológicos são ofertados de segunda a sexta, de 10:00 às 12:00, horário de maior fluxo no estabelecimento, na medida em que o almoço servido às 12:00 é o principal serviço prestado. A direção do estabelecimento concedeu uma sala exclusiva para a realização dos plantões. Próximo da sala fica um pátio com sofás, mesas e cadeiras, representando um local de convivência onde os usuários chegam aos poucos para esperar a hora do almoço. O professor coordenador e os discentes participantes têm como diretriz a democratização do acesso da população a um serviço psicológico de qualidade, fortalecendo a rede de saúde mental e de cuidados em promoção da saúde. Um espaço de escuta, acolhimento e reflexão sobre processos de subjetivação é oferecido para pessoas com trajetória de rua e nomadismo, que trazem uma problemática relacionada ao uso e abuso de álcool e drogas, bem como um histórico de vínculos familiares e sociais rompidos.

Na atuação cotidiana do projeto, há uma tensão constante entre a equipe de extensão e pesquisa e os membros da instituição. Há, por parte da equipe, estranhamento e incômodo em relação ao caráter assistencialista e moralista na interação dos voluntários e da direção do estabelecimento com os usuários. Nas chamadas palestras educativas, que são pequenos discursos feitos por algum voluntário antes de serem servidas as refeições, as falas são sempre direcionadas para que os usuários mudem suas condutas em relação ao consumo de álcool, sejam mais ativos para buscarem melhores condições de vida. Mesmo que a equipe da UFG valorize a tentativa solidária de prestação de cuidados à população de rua e outras pessoas em situação de pobreza, avalia-se que essa assistência é permeada por julgamentos e certa opressão, sustentados pela dissociação da vulnerabilidade e das condições que a fabricam, além de uma visão moralista da pobreza.

Nas discussões entre a equipe e em nossa prática cotidiana, percebemos a insuficiência dos modelos tradicionais de Psicologia no contato com outros arranjos de vida, proporcionado pelo encontro com grupos periféricos. A ideia era ousar experimentar e inventar novos modos de atuação, como pontuam Silva e Carvalhaes (2016) sobre a necessidade de ampliação das clínicas psicológicas, e até mesmo sobre outras leituras da subjetividade que possam acompanhar os deslocamentos das inserções dos psicólogos em cenários outros. Pontos indispensáveis para refletir sobre a nossa própria formação e a complexidade que atravessa as questões que demandam intervenção, muitas delas que remetem às contradições estruturais do capitalismo como produtoras de desigualdades sociais, vulnerabilidades e risco. Nessa direção, a equipe buscou questionar modelos de assistência psicológica fundamentados na cura, além de se desvencilhar do caráter de correção do desvio presente na instituição. A equipe permaneceu atenta ao que Donzelot (1980) aponta que se instaurou com a criação dos agentes "psi": a vigilância constante para a gerência da vida, quer seja no que se refere à definição do que é normal ou patológico, quer seja no que se refere às medidas aplicadas para sanar as problemáticas por eles diagnosticadas.

Geralmente, os plantões psicológicos são espaços de escuta clínica oferecidos em instituições em horários e locais predeterminados, de forma contínua. A escuta é uma ferramenta importante e implica em uma presença atenta do clínico em si mesmo e no desvelamento da experiência do cliente. O plantonista cultiva uma atitude de disponibilidade em receber a narrativa do outro, como forma de facilitar ao cliente o exame cuidadoso da sua experiência. A concepção de que o clínico acolhe a experiência do cliente em vez de enfatizar seu problema é uma diretriz importante (Mahfoud, 2012). Além destes aspectos mais tradicionais da clínica psicológica, o plantão psicológico se insere na perspectiva de uma clínica mais ampliada e relacionada com a dimensão social, a partir da imersão no contexto institucional ou comunitário. Pretende se constituir como uma clínica da urgência e do inesperado, mobilizando no clínico a necessidade de criação de ações singulares para um acolhimento pontual, diferentemente da clínica processual (Scorsolini-Comin, 2015). Os plantões psicológicos podem ainda promover uma articulação entre a Psicologia Clínica e as políticas públicas ao se inserir na comunidade e buscar transcender uma escuta ligada somente a demandas individuais. Na verdade, com as questões sociais mais evidentes nos plantões, a escuta clínica pode ser um lugar de expressão dos efeitos das desigualdades sociais (Vieira, & Boris, 2012). É necessário pensar também uma clínica que não seja somente da escuta do sofrimento, mas uma clínica que vise combater a massificação, que busque a invenção, a produção do novo, não somente pela escuta do sofrimento, mas também pela convocação da potência da vida.

Em nossos encontros com os moradores de rua, somos impelidos a buscar e elaborar outros fatores que potencializem essa clínica, para além da escuta e do acolhimento que são heranças da psicoterapia processual realizada com segmentos sociais que estão menos expostos a algumas vivências de humilhação ou desvalorização mais presentes nas camadas populares. Como apontam Silva e Carvalhaes (2016), o contato com populações "vulneráveis" coloca em evidência de maneira marcante que os processos de subjetivação são atravessados por marcadores sociais de classe, raça e gênero, desestabilizando uma noção de sujeito descontextualizado, universal e homogêneo, ainda dominante na formação em Psicologia. Além disso, o trabalho com essas pessoas já nos coloca em uma hierarquia superior, na medida em que estamos em uma posição privilegiada frente a esses marcadores que também circulam na relação, reforçando essas diferenças.

A partir da complexidade e da realidade multideterminada que os plantões psicológicos convocam, desestabilizando os clínicos e as teorias, fomos também instigados a abarcar a ideia de subjetividade como fundamentada nas relações, afetada pelos encontros e atravessada pelas práticas culturais (Hunning, & Guareschi, 2005). Em vez de se pensar a subjetividade como resultante de processos de construção interna ligada às relações familiares primárias e ao conceito de personalidade, assume-se que o campo sociocultural interpela os corpos cotidianamente com discursos, relações de poder, práticas institucionais produzindo determinados tipos de sujeitos. Através das práticas culturais cotidianas que ocorrem em meio a relações de poder, num campo de tensões e lutas, modos de existência são produzidos. O contato com grupos periféricos coloca em xeque uma ideia de subjetividade individual, ahistórica e com pouca vinculação com o campo sociocultural (Silva, & Carvalhaes, 2016). Neste contexto, entendemos que se torna necessária outra clínica que seja resistente e inventiva, que convoca para a saída da clausura individual-familiar, muito enfatizada nos meios "psi", em direção ao encontro com a alteridade que nos conduz inevitavelmente ao social e ao político (Romagnoli, 2006).

 

Método

Nesse texto vamos problematizar a necessidade de práticas emergentes que convocam a construção de modelos outros em contraposição aos modelos tradicionais de Psicologia, abordando essas tensões a partir da Análise Institucional.

A leitura institucionalista considera a sociedade como uma rede, um tecido de instituições que se associam para ordenar a vida social e as relações dos homens mesmos entre si (Baremblitt, 1992). Para executar essas funções, a instituição, ao mesmo tempo, mantém o instituído, vigorando para organizar as atividades sociais da vida coletiva, mas também sustenta deslocamentos, mudanças instituintes. Dessa maneira, a instituição se apresenta estável e dinâmica, espaço de contradições, expressando forças que tentam manter o que está estabelecido e que trazem formas inéditas. Movimentos que fazem e desfazem, desvelando a sociedade como um conjunto aberto de processos institucionais em movimentos contínuos.

Para acompanhar esses movimentos com seus embates, Lourau (1975) propõe a análise dialética do conceito de instituição, tanto no âmbito teórico como prático, sustentando a essência intrinsecamente contraditória da realidade. Toda instituição se produz por interação dialética, que não é diretamente visível, mas inerente a todo processo de institucionalização e se encontra na interface entre conservação e mudança. Desse modo, ao processo de institucionalização corresponde um jogo de intensidades em que o instituído suprime o instituinte em nome da disciplina, do rigor, da manutenção da segurança e da ordem, objetivando assegurar aos cidadãos os "direitos" inerentes à sua condição. Ao mesmo tempo em que o instituinte, força também presente na instituição, sustenta processos que negam essa ordem e trazem questionamentos que fazem irromper práticas inéditas. Ou seja, a instituição é um processo, um moto-contínuo, caracterizada por todos esses momentos e essas forças.

Essas contradições das instituições emergem no tecido social através dos analisadores que podem ser entendidos como situações, efeitos desse campo de forças antagônicas, elementos que desvelam conflitos. Os analisadores irrompem nas organizações de forma a produzir fissuras, brechas, evidenciando que, frente à reprodução, encontra-se também a produção do impensado, o conflitivo, revelando o embate da força do instituído e da força do instituinte. "Essas manifestações de não conformidade com o instituído são elas mesmas reveladoras da natureza do instituído". (Lourau, 2004, p. 69), sustentadas pela dialética. De forma processual, os analisadores questionam o estático, exercendo seu poder de transformação, indicando tanto as forças ocultas da dominação do instituído quanto a rebeldia do instituinte. De acordo com Baremblitt (1992), os analisadores podem ser espontâneos, quando emergem no cotidiano, nos grupos ou na sociedade ou podem ser artificiais quando construídos pelos analistas institucionais em determinada intervenção, como dispositivos para explicitar conflitos e suas soluções. O analisador torna visível não só o que é reproduzido pelas instituições, mas também a produção do novo, do que gera conflito, confirmando que ambas as forças são parte da instituição e responsáveis pelos seus processos e deslocamentos.

Assim, tomamos nossa experiência no projeto de extensão como campo de análise, situação escolhida para aplicar este aparelho conceitual, a partir dos tensionamentos que vivemos nesse processo, dos conflitos experienciados entre os modelos instituídos e a emergência de propostas instituintes no campo da Psicologia Clínica, como analisadores espontâneos de nossas experimentações. Entendemos esse embate como um processo de institucionalização. Para se conhecer um processo de institucionalização é preciso se relacionar com seus agentes, com suas práticas e deixar que a instituição "fale" através de suas incoerências (Monceau, 2010). Assim, nos propomos a pensar o processo de institucionalização de práticas clínicas com populações vulneráveis, apostando que o conhecimento se constitui na interface entre os modelos abstratos e a concretude cotidiana, o saber e o fazer, na tentativa de contribuir com novas práticas clínicas.

Para o processo de produção de dados, utilizamos contatos diários informais com os estudantes e com os membros do estabelecimento. Vale ressaltar aqui que, na perspectiva institucionalista, as instituições se referem à dimensão abstrata que regula as atividades humanas e que se materializam sob formas sociais em organizações, que concretizam o que a instituição enuncia e são compostas por unidades menores, os estabelecimentos. Em sua circulação no estabelecimento, a equipe produziu diários de campo para registro de informações do que ocorria nos encontros clínicos, nas discussões das supervisões e o que a imersão na instituição suscitava. Os dados dos diários de campo foram analisados buscando-se tensões, relações de poder e embate de forças entre a forma tradicional do fazer clínico trazida do meio acadêmico e outras possibilidades de concepção e prática clínicas que a realidade convocava a equipe.

Nesse campo de análise emergiram três analisadores: (1) Inserção do plantão psicológico na instituição: demandas e tensões; (2) Dificuldades, bloqueios e entraves vividos nos plantões psicológicos e (3) Espaço clínico como encontro com a alteridade. Os analisadores são apresentados a seguir, com reflexões sobre as tensões entre a formação acadêmica e as intensidades e desestabilizações que a prática da extensão possibilitou.

 

A prática clínica e seus tensionamentos

Inserção do plantão psicológico na instituição: demandas e tensões

Aqui tratamos dos fluxos de procura pelos plantões psicológicos, da forma de chegada ao atendimento, das motivações, expectativas e compreensões dos usuários sobre as possibilidades do espaço clínico. Como os plantões se fundamentam nas noções de emergência e urgência, é importante examinar como se deu a mobilização dos usuários para os atendimentos. Além disso, é necessário refletir sobre as implicações que os atravessamentos institucionais podem ter nos encontros clínicos.

Em algumas situações o contexto institucional e a vertente instituída e dominante da Psicologia atravessaram os plantões. Alguns usuários chegavam ao plantão dizendo que um voluntário da Casa de Apoio o havia encaminhado ao atendimento. Essa espécie de "triagem" se dava quando um membro da instituição percebia que algum usuário estava muito triste ou, principalmente, nos casos em que o usuário tinha alguma dependência química. Muitos usuários que frequentam a Casa de Apoio fazem uso (em alguns casos, compulsivo) de álcool e drogas. A instituição é gerida por pessoas ligadas ao segmento religioso e, em decorrência disso, existe um forte viés filantrópico e moralista. A interdição moral religiosa coloca a questão das drogas como correlata à produção de verdade sobre os prazeres do corpo, mais especificamente, sob o signo do pecado. A questão foi recolocada como doença com o advento dos saberes médicos, adquirindo uma conotação de ameaça de degenerescência do indivíduo e da sociedade (Souza, 2014). Na imersão na instituição, percebeu-se a circulação de concepções moralistas através de práticas que pareciam direcionar os usuários para a adotarem uma vida mais organizada e sem vícios. Havia uma visão da dependência química como um vício, como um mal a ser combatido, misto de pecado, doença e desordem.

Nesse sentido, a concepção sobre a clínica psicológica se deu como uma clínica da cura, como se a Psicologia pudesse "consertar" alguém que está no caminho indesejado. Essa clínica da cura, que ainda se encontra presente na formação em Psicologia, é também a visão difundida na sociedade sobre a prática do psicólogo. A clínica psicológica em sua gênese é uma clínica herdeira do modelo médico que buscava tratar e curar, distante de uma prática ética e política comprometida com a realidade social (Moreira, Romagnoli, & Neves, 2007). Essa visão higienista da clínica psicológica estava presente na instituição e ainda persiste como uma concepção hegemônica no meio psi. As psicologias tradicionais se ancoram na referência às normas e na busca da correção de determinados modos de vidas (Hunning, & Guareschi, 2005). Por outro lado, no caso da prática aqui analisada, houve um tensionamento entre a instituição e a equipe de plantonistas, que apostavam na autonomia dos sujeitos e não queriam lutar contra o desvio, mas permanecerem disponíveis para o encontro com o outro. Adotou-se a concepção do cuidado que se efetua no encontro com a diferença, no qual forças e afetos podem produzir vida, distanciando-se de práticas morais que resultam em assujeitamento e que maltratam a vida (Romagnoli, 2015). Alguns dos encontros clínicos nos quais os usuários foram encaminhados pelos membros da instituição não foram inventivos, talvez devido à falta de mobilização ou porque os usuários tinham a sensação de que seria uma outra prática de tutela e não de abertura ou de potencialização. Em outras escutas, foi possível desconstruir a encomenda do estabelecimento e estabelecer uma relação clínica produtora de vida e não de assujeitamento; de potências e não de vulnerabilidades.

Houve também situações em que os plantonistas não ficavam somente esperando na sala de atendimento, iam até o pátio de convivência e convidavam as pessoas para irem aos plantões. Quando não havia procura espontânea, o plantonista anunciava que estava disponível para fazer a escuta e alguns usuários se prontificam a partir desse convite. A equipe de plantonista entende que essa atitude demonstra interesse e abertura. Além destes convites, o projeto se pauta na questão da divulgação. Foram confeccionados cartazes e panfletos de divulgação e, esporadicamente, quando há grande concentração de usuários no pátio de convivência próximo da hora do almoço, os plantões são divulgados verbalmente. É preciso pontuar que, no processo de institucionalização de novas formas de intervenção clínica, temos que prestar atenção na relação oferta de serviços e demandas. Usualmente só podemos ofertar o que conhecemos, o que aprendemos nos nossos cursos de graduação e em nossa especialização. De acordo com Romagnoli (2012), baseada nas ideias da Análise Institucional, só podemos entender a demanda de serviços pelos usuários e por quem encaminha, ela sempre é criada pela oferta e não dada a priori. A equipe buscou refletir acerca da oferta do plantão como um processo de criação da demanda ofertada aos usuários, até que estas que essas propostas fossem buscadas e solicitadas de forma mais fluida.

O tipo de procura que mais potencializou os atendimentos ocorreu quando os usuários buscavam o espaço mobilizados para lidar com questões subjetivas e relacionais. Alguns usuários buscaram o plantão para conversar sobre a Psicologia, para saber como era uma conversa com um psicólogo, para pensar sobre diagnósticos recebidos na rede de saúde mental ou para conversar sobre relacionamentos significativos. Tais tipos de demandas vão na contramão de um certo imaginário social de que pessoas de camadas pobres não são subjetivadas, sustentando forças instituintes, que concebem a pobreza também com afetividade. Souza (2017) aponta que, no caso brasileiro, há uma concepção de que as camadas populares teriam uma marca de inferioridade, de serem uma espécie de "subgente", portadora de uma subcultura da pobreza, posto que são percebidas como corpo em contraposição às outras classes ligadas ao espírito. Os usuários procuravam os plantões com muita mobilização e interesse em buscar possibilidades para lidar com o próprio sofrimento, desmontando a ideia instituída de certa passividade e trazendo movimentos instituintes que os percebem como sujeitos com autonomia, que são acolhidos em sua diferença, em relações que tentam convocar a horizontalidade e sustentar os seus saberes acerca do cotidiano, geralmente desqualificados. Nesse sentido, o psicólogo é convocado a construir práticas que escapem de condições de classe que colocam as classes populares como incapazes de gerenciar a própria vida ou como pessoas inadequadas perante modos de vida vistos como normais (Silva, & Carvalhaes, 2016).

Em alguns casos, os usuários já iniciavam o atendimento muito mobilizados, expressando com um discurso emocionado suas fragilidades e a necessidade de compartilhar suas angústias. Pareciam compartilhar um sofrimento da ordem do insuportável, como um processo de luto, um término de uma relação ou mesmo uma sensação de desterritorialização, de sentir-se "perdido". Este acolhimento psicológico das urgências subjetivas representou uma força instituinte que traz novos desafios ao profissional psi que precisa contribuir com uma significativa disponibilidade pessoal para lidar com situações de crise (Mahfoud, 2012). O plantão psicológico, diferentemente de uma psicoterapia processual, presta um cuidado pontual, convocando o plantonista a inventar ações singulares diante do inesperado. Encarar a exclusão de outra forma, convocar a potência que essas pessoas "vulneráveis" possuem, sustentar relações de troca de saberes são movimentos sustentados por forças instituintes, são movimentos de não conformidade com o que está posto pela clínica tradicional e pelas leituras dominantes. Trata-se de uma permeabilidade do terapeuta que comparece ao encontro clínico com seu corpo disponível para experimentar afetos inéditos ou desestabilizadores, incômodos, dúvidas, invenções (Mansano, 2011).

A inserção nos estabelecimentos, característica dos plantões, sempre traz tensionamentos, seja potencializando ou dificultando os encontros clínicos, seja na influência ou na tensão que uma equipe de plantonistas gerano próprio estabelecimento. Esse campo de forças nos leva a indagar até que ponto a profissionalização do nosso saber como algo dado e natural nos afasta da problematização necessária de "[...] questionar em nossa prática nosso papel de peritos" (Rodrigues, & Souza, 2002, p. 40). Assim notamos que, para além da imposição da necessidade de tratamento, quando a busca pelos encontros foi feita a partir da autonomia dos sujeitos, tal busca revelou-se a ponte mais fértil entre usuários e plantonistas. Postura que dribla a tutela que podemos oferecer aos usuários de nossos serviços, em nome da promoção da saúde e do cuidado. Afinal, quanto mais a clínica se desvencilha do tradicional, mais tende a fazer da prática do psicólogo um dispositivo que opere a favor da singularidade de seus usuários e não a favor do modelo teórico utilizado ou a favor do especialista. No jogo de forças instituintes do campo psi, existem práticas psicológicas que tecem críticas a atuações disciplinadoras que buscam a adaptação social e que contribuem para produzir e legitimar a multiplicidade de formas de existência (Silva, & Carvalhaes, 2016).

Dificuldades, bloqueios e entraves vividos nos plantões psicológicos

Nesse item são descritos obstáculos e dificuldades encontrados nos atendimentos que deixavam aflorar ora o instituído, ora o instituinte. Algumas sensações de incapacidade dos plantonistas, aspectos do usuário e barreiras institucionais colocaram obstáculos para a invenção de novas formas de existência e para o estabelecimento de um vínculo potente. A sensação de incapacidade pode se dar pela referência ao instituído, quando o modelo não cabe na prática exercida, dada a distância entre a formação em Psicologia e a complexidade de uma clínica que acolhe urgências subjetivas com sujeitos marginalizados, diversa de uma clínica que ainda hegemônica embasada em um sujeito universal e descontextualizado. Entendemos que o mapeamento dos fracassos terapêuticos, dos desafios e das desestabilizações produzidas no encontro também são fatores importantes de serem descritos pois evidenciam as vicissitudes do trabalho clínico real.

Na medida em que os plantões foram destinados para pessoas tratadas com descrédito pela sociedade, tal desvalorização parece se manifestar em trajetórias caóticas, discursos delirantes e subjetividades fragmentadas que impactam de algum modo os plantonistas. Lidar com a precarização da vida traz alguns desafios. Apesar da abertura ao diferente e ao estranho ter sido uma busca da equipe, houve muitos incômodos e cansaços experimentados no contato com discursos desorganizados e subjetividades nômades. As dificuldades para lidar com algumas características ou formas de ser do usuário representaram desafios significativos na lida com a diferença, na tentativa de driblar os julgamentos. Pode ser que as humilhações vividas e a maior exposição de seus corpos ocasionadas pela trajetória de rua produzam formas relacionais mais agressivas e defensivas, presas em circuitos de violência e de maus tratos. Quando os sujeitos se apresentavam desta maneira nos encontros, tal vivência impactava o plantonista com afetos de incômodos, dúvidas, intimidação e, consequentemente, um encolhimento na capacidade de estar disponível para o encontro. A equipe resolveu acolher os que procuravam atendimento mesmo estando alcoolizados, como forma de entrar nas referências existenciais deles. A embriaguez é um estado comum para quem dorme nas ruas ou está excluído do mercado de trabalho. Pode ser uma automedicação para lidar com as humilhações e com a sensação de se verem sem futuro e faz parte da subjetividade de nossos usuários (Souza, 2017). O acolhimento da diferença perpassou as escutas clínicas de modo a possibilitar encontros potentes entre pessoas de classes sociais distintas e em condições pouco usuais, apostando nas forças instituintes que daí poderiam surgir, deixando que o conflitivo nos lance em estados que remetem ao que escapa aos modelos hierárquicos e transcendentes. Esse outro fazer clínico provoca desestabilizações ao nos lançar em territórios desconhecidos, com novas possibilidades de ação, transformando a relação entre cientista/psicólogo e usuário (Silva, & Carvalhaes, 2016).

Foi possível constatar que existem diferenças entre a demanda do usuário e as expectativas de quem está oferecendo ajuda, como em situações nas quais o plantonista esperava que o usuário quisesse resolver algum problema, quando na verdade este utilizava-se do espaço para fazer reflexões sobre algo desestabilizador. Tal desencontro pode se dar quando os psicólogos ainda carregam uma concepção de clínica como resolução imediata de problemas e não como um encontro com a diferença (Mansano, 2011). Nesse sentido, o plantão psicológico é concebido como um espaço de escuta do sofrimento no qual o clínico se defronta com o imprevisível e busca enfatizar mais a experiência do usuário do que um problema a ser resolvido (Mahfoud, 2012). Além disso, a equipe constatou que existe uma busca pelo espaço clínico pelos usuários para relatarem suas histórias de vida. Ao contrário do esperado na clínica tradicional, que seria a busca para tratar de uma demanda específica, muitos usuários buscaram os plantões para contarem sobre suas habilidades profissionais, suas estratégias de sobrevivência nas ruas. Buscando, enfim, um resgate do reconhecimento como sujeitos, diferentemente do que ocorre em outros espaços sociais onde são tratados com descrédito. Pode ser, portanto, a busca de uma nova relação de valorização com pessoas de outras classes sociais, representados pelos plantonistas.

Os usuários apresentaram algumas dificuldades de expressar as próprias histórias no espaço clínico. Às vezes, os usuários pediam ao plantonista para fazerem perguntas. Houve situações em que os usuários se diziam muito frustrados porque esperavam respostas e direcionamentos do plantonista. Alguns pensavam que no plantão acontecia uma palestra, ou seja, parece que ele não tem algo a dizer, somente deveria ficar na posição de escutar algo de alguém especializado. Alguns usuários se diziam tímidos para falar de si e outros pareciam ter dificuldade em se expressar por terem uma vida de isolamento. O esforço para acessar a história do usuário trouxe cansaço ao final de alguns encontros. As humilhações sociais vividas instauram uma falta de poder sobre a própria vida, falta de poder de iniciativa daqueles a quem não se autoriza a palavra. Estas mensagens de rebaixamento e de desautorização vividas no cotidiano social ecoaram nos encontros clínicos (Delfin, Almeida, & Imbrizi, 2017). Não é tarefa simples se implicar na própria narrativa e sair da posição de assujeitamento que a sociedade coloca às pessoas marginalizadas e ditas vulneráveis, exclusão sustentada pela desigualdade social que muitas vezes é naturalizada por todos. Nesse sentido, potencializar os vulneráveis e a nós mesmos no encontro com a miséria é um desafio constante.

Nos diários de campo, os plantonistas refletiram honestamente sobre os momentos em que estavam indisponíveis para estabelecerem uma relação acolhedora. O contato com sujeitos que já cometeram crimes ou que fazem uso problemático de drogas endureceu os plantonistas que foram atravessados por afetos de distanciamento e de julgamento. Um encontro clínico chamou a atenção, no qual o usuário estava muito mobilizado para falar sobre a instituição e as questões que ele não concordava. A plantonista não acolheu essa demanda, e permaneceu perguntando sobre sua relação com a família, talvez impregnada pela crença de que somente o sujeito inserido no mundo privado interessa à Psicologia. A imersão sociocultural do sujeito através da vivência na instituição e suas relações de poder foi desconsiderada, devido ao atravessamento de uma concepção de subjetividade individual e situada somente nas relações primárias da família (Silva, & Carvalhaes, 2016). A centralização no indivíduo e na valorização da dimensão privada, lógica mantida pela força do instituído, ainda persiste na formação em Psicologia, mas percebemos que esta pode ser insuficiente para o trabalho com moradores de rua. A força instituinte, por sua vez, aponta para uma lógica relacional, dimensão que se fez entre os plantonistas, o supervisor, os moradores de rua e o social, e que acolheu desestabilizações e interferências, conectando-se com desassossegos e deslocamentos.

O trabalho real clínico revela que existem momentos em que o plantonista não sabe o que fazer. O fazer clínico do plantonista/terapeuta também está atravessado por limitações pessoais, fracassos e incapacidades, assim como também se liga a uma lógica individual, diluindo questões que podem ser da necessidade de invenção de uma nova clínica. O que os afetamentos convocam no terapeuta? Lidar com vulnerabilidades pode fazer ressoar neles sua própria vulnerabilidade e a própria fragilidade da clínica instituída nesses contextos. Quando os usuários relatavam sofrimentos muito intensos, como a perda recente de um filho ou relatos de pensamentos suicidas e tentativas de suicídio, por exemplo, os plantonistas sentiram uma sensação de incapacidade momentânea. O contato com a intensidade da vida pode muitas vezes nos endurecer na tentativa de neutralizar os afetos convocados, anestesiar nossa sensibilidade. Paulon e Romagnoli (2018) apontam que a ressonância das vulnerabilidades pode produzir inseguranças e angústias nos profissionais que atuam com grupos vulneráveis e que permanecer no desconhecimento desse processo pode resultar em reverberações de desmotivação e de ressentimento.

A complexidade do encontro clínico com vidas precarizadas demonstra a insuficiência dos modelos tradicionais da Psicologia. Os plantões colocaram os clínicos em contato com subjetividades dispersas, fragmentadas, compulsivas e delirantes, bem como com a interferência direta das questões sociais. Os plantonistas perceberam que as fragmentações e compulsões não eram manifestações meramente individuais, mas tinham relação com a desigualdade social. Como já dito, o alcoolismo, por exemplo, pode ser uma tentativa de fuga diante da falta de perspectivas de integração social (Souza, 2017). A vulnerabilidade circulou no espaço clínico produzindo sensações de incapacidade nos plantonistas e usuários, o que demonstra o real do trabalho clínico, que às vezes é constituído por fracassos, incertezas e impotências. Tais aspectos também apontam para o processo de institucionalização da clínica, no qual forças instituídas e instituintes coexistem, de forma processual e dinâmica (Lourau, 2004). A institucionalização se dá nesse jogo de conservação do instituído e da emergência do instituinte que aponta para a construção de novas práticas no cotidiano.

Espaço clínico como encontro com a alteridade

Neste item, pretende-se refletir sobre o espaço clínico como criação de possibilidades para a produção de alteridades. Mais especificamente, foram mapeadas atitudes e intervenções do plantonista/terapeuta e as formas de participação do usuário que facilitaram a realização de um atendimento fluido e que promoveram um vínculo fértil. Um espaço clínico com fluidez rompe com discursos/intervenções disciplinadores, muitas vezes instituídos e busca o encontro com a alteridade, a diferença, constituindo-se em espaço instituinte de novas situações clínicas. Alguns elementos clínicos estiveram atuantes como o alcance de novas perspectivas, a oportunidade de alívio ou catarse, a ressignificação do sofrimento, dentre outros.

Os plantonistas buscaram estabelecer com os usuários uma relação não hierarquizada, horizontal, calcada na circulação de saberes diferentes, ou seja, do saber da vida do sujeito e do saber do clínico. Os plantonistas souberam lidar de forma acolhedora com as reações que os usuários despertavam neles, ou seja, lidaram com os afetamentos suscitados pelo encontro, sem terem atitudes morais ou hierárquicas, calcadas no saber. Algumas interações em que os usuários colocavam seus preconceitos ou pareciam querer manipular o plantonista foram problematizadas pela equipe de extensão como reações aprendidas por eles em seus contextos de vida. A aceitação da diferença do usuário possibilitou ao plantonista romper com algum afeto de incômodo e permanecer disponível ao encontro. O fazer clínico do terapeuta é permeado pela complexidade e por esses movimentos, pois ele requer uma disponibilidade em experimentar afetos diversos em si e no outro, como sensações, dúvidas, incômodos, que em um segundo momento podem mesmo ser capturados em sentimentos (Mansano, 2011). Acolher o desconhecido que se insinua na alteridade, sabendo lidar com os incômodos, é um desafio que se apresenta para quem se dispõe à escuta do sofrimento.

Nesse contexto, o espaço de escuta foi considerado como significativo e como um espaço de liberdade, permitindo a coexistência do instituído e do instituinte. Uma questão importante é quando o uso dessa escuta serve para formatar e quando serve para favorecer a produção de estados inéditos. Muitos usuários disseram ao final do atendimento que estavam se sentindo muito bem e que foi muito importante alguém tê-los escutado. Alguns usuários já diziam no início que estavam retornando ao plantão porque gostaram muito de conversar com os plantonistas. O vínculo estabelecido, mesmo que durante uma única sessão, promoveu a escuta da experiência do usuário. Os plantonistas adotaram uma postura de envolvimento e mobilização diante das narrativas dos usuários. A postura de abertura em se deixar afetar pelo sofrimento dos usuários proporcionou um forte envolvimento com os dramas relatados. Em algumas situações, houve um esforço para "entrar no mundo" do usuário como, por exemplo, numa situação em que um usuário dizia que era um profeta enviado por Deus e que sua idade era próxima da idade de Jesus. Nesse caso, foi possível estabelecer um vínculo na medida em que o plantonista permanecia aberto às fantasias do usuário, se abstendo de qualquer tipo de julgamento. Os plantonistas perceberam que o espaço terapêutico deveria promover um acolhimento da experiência delirante do usuário, se necessário. Imersos numa precarização da vida através do embotamento de suas capacidades pela exclusão social, tais sujeitos apresentam desvios, inacabamentos e funcionamentos diversos, distantes da excelência requerida pelo capitalismo (Paulon, & Romagnoli, 2018).

O plantão representou um espaço de promoção de saúde, um lugar no qual podiam circular coisas outras. A diminuição da angústia e de pensamentos suicidas, o fortalecimento diante do uso problemático de drogas, a conquista de um maior cuidado de si e o resgate de atividades de lazer foram alguns elementos celebrados pelos usuários e que foram facilitados pelos plantões psicológicos. Tais aberturas produzidas foram possibilitadas pela busca da equipe em romper com práticas tradicionais da Psicologia que normatizam e disciplinam, na aposta do encontro que potencializa a produção de alteridades (Hunning, & Guareschi, 2005). Nesse caso, a clínica psicológica está comprometida com a experimentação e invenção que potencializam seus participantes na direção da invenção de novos modos de vida (Mansano, 2011).

Os plantões representaram um espaço de ruptura do isolamento e uma composição com a alteridade. Um usuário que vivia muito isolado, sem relações interpessoais disse que as únicas pessoas que ele tinha contato na época era com os plantonistas e que ele precisava desse espaço onde ele podia "desabafar com alguém de confiança". O plantão funcionou como um espaço de conexão e de inclusão social também para outros sujeitos. Um usuário comparecia todas as semanas e relatava sempre as mesmas histórias, parecendo buscar uma inserção no mundo de trocas relacionais. Um senhor que também comparecia regularmente disse que ir aos plantões era como "sair do escuro para a luz". A ruptura do isolamento contribui para diminuir a vulnerabilidade social dos sujeitos atendidos, pois melhora a rede de proteção social com a tessitura dos vínculos de cuidado (Romagnoli, 2015).

Houve uma busca ativa dos plantonistas em não fazerem do espaço clínico somente um setting de relato de sintomas e dificuldades, mas também uma via para circular as potencialidades e virtudes revertendo a marca de incapacidade e fracasso que envolve esses modos de existir. Houve interações nas quais o plantonista buscava tratar o usuário com dignidade, demonstrando a importância das suas percepções. Por exemplo, quando o plantonista disse que as opiniões do usuário eram importantes, esse fez uma revelação importante, relatando que tem uma filha e que sua ex-companheira morreu de forma trágica. Tal episódio sugere que o reconhecimento pode aprofundar o vínculo, gerando uma abertura para discursos significativos. Esse fragmento clínico demonstra que o reconhecimento pode ser uma atitude significativa no trabalho clínico com pessoas que são alvo de humilhações e descrédito, que trazem o sofrimento ético-político de serem tratados como inferiores (Sawaia, 2011). As humilhações sociais têm escassos espaços para serem expressadas e reverberam na subjetividade dos excluídos, que são inscritos socialmente no imaginário da inutilidade, da vagabundagem ou da ameaça à ordem. O próprio sujeito pode se culpabilizar pela própria situação, posto que possui poucos recursos para contestar as humilhações. Por outro lado, a mensagem de quem se sente reconhecido instaura a possibilidade de construção de novos modos de subjetivação, distante do inútil ou marginal (Delfin, Almeida & Imbrizi, 2017). A escuta do sofrimento ético-político, que está fortemente presente nas classes populares, coloca o clínico em contato direto com a questão social que produz a subjetividade do usuário, convocando outros tipos de escuta e de intervenção que a clínica tradicional não oferece. De fato, a questão das classes sociais e de outros marcadores sociais como gênero e raça, dificilmente são aspectos desenvolvidos na literatura de Psicologia Clínica, embora interfiram fortemente na produção subjetiva dos clientes (Silva, & Carvalhaes, 2016).

O espaço da supervisão e a psicoterapia dos plantonistas foram apontados como fatores que fortalecem o clínico diante dos impasses, tendo em vista que estes espaços favorecem a construção da singularidade, ao possibilitar o desvencilhar de modelos acadêmicos preestabelecidos e experimentar conexões com essas vidas precarizadas. A escuta e as trocas exercidas nesses espaços favorecem a invenção de outras modalidades de ação e reflexão. Durante a escuta do relato do usuário, lembravam de algum aspecto do trabalho clínico que foi discutido na supervisão e essa reflexão fornecia uma sensação de segurança. Por exemplo, quando um usuário que retornou ao plantão algumas vezes, trazendo um discurso repetitivo de suas queixas, a plantonista se lembrou que na supervisão foi discutido que a repetição é constitutiva do trabalho clínico. Ela também refletiu sobre as vezes em que seu discurso foi repetitivo na sua própria psicoterapia. O estudo da literatura especializada também foi um fator apontado pelos plantonistas como facilitador para a realização dos atendimentos. Diante do material emergente do usuário, recapitular alguns conceitos estudados pode ajudar a lidar com a complexidade dos discursos emocionados trazidos para a relação terapêutica.

O espaço dos plantões se tornou uma referência na qual os usuários podiam rever suas perspectivas a partir da liberdade em dividir suas narrativas e seus processos de subjetivação. Os plantonistas se propuseram a estar com o outro através de uma presença atenta e acolhedora. Os usuários se abriram para o encontro com as possibilidades reflexivas que os plantões potencializavam, favorecendo novas composições existenciais. Em relação ao embate entre conservação e mudança na clínica psicológica, a questão não é a desqualificação do instituído, como se ele fosse a priori nocivo, mas sim a sustentação dessas duas forças para que os deslocamentos se exerçam no uso do que já existe de forma nova, sobretudo no processo de institucionalização na qual coexistem a clínica tradicional e clínica emergente. Devemos lembrar que a clínica tradicional já foi um dia instituinte e sem esses novos impasses estaria arcaica e estática.

 

Considerações finais

Considerando-se que os usuários fazem parte de um grupo social frequentemente desqualificado, algumas intervenções e atitudes dos plantonistas se deram na direção da promoção da dignidade como forma de atenuar o sofrimento de ser visto como inferior nos demais espaços do cotidiano. Assim, os plantonistas promoveram a validação existencial do usuário tentando apontar virtudes e aspectos potentes dos sujeitos. A relação terapêutica parecia promover um espaço de aceitação e de reconhecimento dos usuários. A presença com uma escuta afetiva e acolhedora ofertada a sujeitos com trajetórias marcadas por rupturas, abandonos e humilhações foi algo significativo.

O plantão foi se consolidando como um espaço de escuta dos discursos que são interditados no cotidiano social, o que proporcionou um senso de liberdade e alívio, escuta instituída apontando para construções instituintes. Em algumas situações os usuários disseram que estavam se sentindo mais leves ao final do atendimento ao poder "desabafar" sobre assuntos que julgam não poderem se expressar com as pessoas nas relações cotidianas. Parece que o trabalho dos plantões funciona como um espaço de inclusão dos discursos excluídos, proibidos, interditos na sociedade. O alívio proporcionado também está conectado com a construção do plantão como espaço de continência da emergência psicológica. Alguns usuários procuraram o atendimento quando estavam em um processo agudo de sofrimento, sendo os casos mais frequentes a recaída com relação à dependência química. Nesses casos, foram compartilhadas narrativas repletas de culpa e arrependimento.

Os plantonistas precisaram se desapegar do modelo clínico tradicional da psicoterapia realizada em consultório particular, para sustentar atuações outras convocadas pelas especificidades do atendimento. Houve uma flexibilização para atender usuários que estavam visivelmente alcoolizados e, às vezes, escutar pessoas fora da sala que temos à disposição. Nesse caso, as narrativas de vida do usuário se deram no local de convivência em meio a outros usuários da instituição. Portanto, os plantões psicológicos trazem uma expansão para a Psicologia Clínica ao colocar o plantonista/terapeuta com o desafio de realizar uma interação terapêutica com pessoas que estão alcoolizadas, com um discurso fragmentado, às vezes sujas e no meio de outras pessoas, dimensões instituintes de uma velha prática. A prática dos plantões psicológicos, ao se distanciar da clínica da cura, se constitui como um espaço de abertura para reflexões, novos posicionamentos, maior consciência de questões sociais, para usuários e plantonistas. Nesse sentido, há uma horizontalidade que coloca plantonistas e usuários como participantes de um processo de ampliação reflexiva, ao mesmo tempo em que se cria uma relação de troca, um espaço de experimentação no qual afetos circulam, alterando a todos.

 

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Endereço para correspondência:
Érico Douglas Vieira
ericopsiufg@gmail.com

Roberta Carvalho Romagnoli
robertaroma1@gmail.com

Submetido em: 30/05/2018
Revisto em: 10/09/2018
Aceito em: 24/09/2018

 

 

1 Estatuto social do Nosso Lar - Casa de Apoio de Jataí-GO. 2008.

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