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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i1p.128-142 

ARTIGOS

 

A supervisão na clínica-escola como báscula para a psicanálise na universidade

 

The supervision on clinical training school as a counterweight for psychoanalysis in the university

 

La supervisión en la clínica-escuela como báscula para el psicoanálisis en la universidad

 

 

Carlos Henrique KesslerI; Fernando Marcial Ricci AraujoII

IDocente. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIMestre em Sociologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo parte da elaboração sobre a experiência de trabalho como supervisor em uma Clínica-Escola de Psicologia. Indaga-se sobre as formas através das quais a supervisão pode emergir como espaço privilegiado de transmissão da psicanálise. Procede-se a uma revisão bibliográfica sobre a supervisão na história da psicanálise e no contexto das Clínicas-escola em seu tensionamento com a universidade. A partir de vinhetas clínicas de supervisão, delineamos uma reflexão por duas vias: a respeito da formação dos praticantes e da sua função de suporte na condução dos tratamentos. Finalmente, argumenta-se que a supervisão pode emergir, a partir do discurso do analista, como báscula e que este pode encontrar ali terreno fértil para exercer sua função de operar giros nos discursos, os quais coexistem na Universidade. Conclui-se que a supervisão pode gerar efeitos de transmissão que presentifiquem a ética da psicanálise em extensão, ou seja, presente no mundo para além dos consultórios.

Palavras-chave: Psicanálise; Supervisão; Clínica-Escola; Transmissão; Psicanálise em Extensão.


ABSTRACT

The article emerges from the elaboration of an experience of some years working with supervision in a clinical training school. We investigate the ways in which supervision can emerge as a privileged space for psychoanalytical transmission. Thus, a bibliographic review is carried out looking forward to highlight the supervision's role in the history of psychoanalysis and in the context of the clinical training schools, questioning the relationship psychoanalysis-university. Starting from supervision's clinical vignettes, we delineate a reflection in two ways: concerning the training of practitioners and its function as support role in treatments' conduct. Finally, it is argued that supervision might emerge from the analyst's discourse as a counterweight in which he may find fertile ground for the exercise of his function of operating turns in discourses, which coexist, including in the University. It is concluded that the supervision can produce effects of transmission that presents the ethics of psychoanalysis in extension, that is, present in the world beyond the offices.

Keywords: Psychoanalysis; Supervision; Clinical Training School; Transmission; Psychoanalysis in extension.


RESUMEN

El artículo parte de la elaboración sobre la experiencia de trabajo como supervisor en una Clínica-Escuela de Psicología. Se indaga sobre las formas a través de las cuales la supervisión puede emerger como espacio privilegiado de transmisión del psicoanálisis. Se procede a una revisión bibliográfica sobre la supervisión en la historia del psicoanálisis, y en el contexto de las Clínicas-escuela en su tensión con la universidad. A partir de viñetas clínicas de supervisión, delineamos una reflexión por dos vías: acerca de la formación de los practicantes y su función de soporte en la conducción de los tratamientos. Finalmente, se argumenta que la supervisión puede emerger, a partir del discurso del analista, como báscula y que éste puede encontrar allí terreno fértil para ejercer su función de operar giros en los discursos, los cuales coexisten en la Universidad. Se concluye que la supervisión puede generar efectos de transmisión que presentifiquen la ética del psicoanálisis en extensión, o sea, presente en el mundo más allá de los consultorios.

Palabras clave: Psicoanálisis; Supervisión; Clínica-Escuela; Transmisión; Psicoanálisis en Extensión.


 

 

Introdução

Desde Freud, passando por Lacan e até os dias atuais, as relações entre a psicanálise e a universidade constituem um importante campo de reflexão. O impossível da profissão de psicanalista situado por Freud (1937/1996) já no interior do dispositivo dentro do qual ela foi formulada - o consultório do psicanalista -, faz com que a psicanálise encontre uma complexidade ainda maior quando se instala na Universidade. Quase não se encontram na obra freudiana indicações a respeito das formas através das quais a psicanálise pode compor arranjos possíveis com a sua presença no seio da instituição universitária. No texto sobre "O ensino da psicanálise na Universidade", Freud (1919/1976) não recusa explicitamente o ensino da psicanálise na Universidade, mas, por outro lado, tampouco adere completamente à possibilidade de concebê-lo. Desta feita, esta imprecisão produz uma abertura no texto freudiano que, por sua vez, permite o delineamento de um interessante campo de reflexão no centro do qual a questão a respeito das possibilidades de transmissão da psicanálise na Universidade, levantada por Freud já em 1919, segue em relevo.

Posteriormente, com as contribuições de Jaques Lacan, principalmente no que diz respeito à disjunção entre saber e verdade (Lacan, 1965/1998) e, ainda, às teorizações relativas aos quatro discursos (Lacan, 1969-70/1992), a psicanálise ganha um novo fôlego para tensionar a sua presença no espaço universitário. Assim, com Lacan e sua teoria sobre os discursos, os impasses relativos à presença da psicanálise na Universidade puderam ser re-pensados a partir de uma estrutura de relações fundamentais e estáveis entre elementos comuns a qualquer estrutura de linguagem, o que traz à luz o avanço conceitual de Lacan. Desta forma, as relações entre psicanálise e universidade puderam ser pensadas a partir da antinomia entre discurso do analista e discurso do universitário. Esta antítese diz respeito à diferença de posição do saber em relação ao lugar da verdade em cada discurso que, colocado desta forma, permitiu apreender os impasses trazidos pela presença da psicanálise na Universidade. Nestes termos, o discurso do analista, tendo o objeto a na posição de agente e aceitando a verdade como um semidizer, abdica do ideal de recobrimento do real e considera como fracassada toda tentativa de apreender um saber que dê conta da verdade do mundo nos termos de uma totalidade. Especificidade que opõe o discurso do analista ao discurso do universitário, cujo Saber (S2) ocupa a posição de agente e, assim, orienta-se pela máxima: "continua a saber sempre mais" (Lacan, 1969-70/1992). Disto decorre que, no discurso universitário, "toda pergunta sobre a verdade é, falando propriamente, esmagada, silenciada" (Lacan, 1969-70/1992, p. 101). Desta dissonância, surge uma série de impasses a partir dos quais pode-se buscar alguma articulação teórica sobre as condições de possibilidade da psicanálise na Universidade. Esta discussão parece ser especialmente oportuna em contextos como o brasileiro no qual a Universidade desempenha um papel importante na trajetória de analistas que tiveram contato com a psicanálise a partir dos cursos de graduação em psicologia, como atestam diversos trabalhos especializados (Roudinesco, 2000; Dias, 2003; Fontenele, 2006; Dunker, 2015).

É diante deste cenário que o presente artigo tem como intuito refletir a respeito das condições de possibilidade de que algum efeito de transmissão possa se dar no âmbito do espaço de supervisão da prática clínica na Universidade. Assim, este estudo parte de uma revisão sobre a discussão acerca da supervisão na teoria psicanalítica e no contexto de Clínicas-Escola de Universidades brasileiras. Em seguida, com a ajuda de fragmentos de duas supervisões, busca-se refletir acerca da função da supervisão tendo como horizonte, por um lado, sua dimensão de ato na promoção de um deslocamento pontual da posição de aluno em direção à posição de praticante e, por outro lado, a função do supervisor em transmitir aos supervisionandos algo derivado da ética da psicanálise a partir da experiência de ter sido analisante (Lacan, 1967-681).

Nestes termos, articulamos a hipótese de que a supervisão possa ser pensada como báscula para a psicanálise na Universidade, na medida em que eventualmente permita operar um giro nos discursos alçando o objeto a - causa de desejo - à posição de agente do discurso (Lacan, 1992). Assim, o espaço de supervisão emerge na sua função de suporte de uma escuta clínica advertida, apontando para a produção de efeitos de transmissão, tanto aos praticantes quanto aos que por eles são escutados. Desta forma, nos situamos no campo da psicanálise em extensão, tal como Lacan denomina em sua "Proposição de Outubro de 1967" (Lacan, 1967/2003).

 

Considerações acerca da supervisão

Como já indicamos anteriormente (Kessler, 2009), ainda que a supervisão componha um dos três elementos considerados indispensáveis à formação do analista é notável o déficit existente no que concerne à produção teórica relacionada à prática de supervisão comparativamente à análise pessoal e ao estudo teórico. Já em 1919 Freud estabelece como um dos elementos essenciais à formação do analista:

No que diz respeito à experiência prática, além do que adquire com a sua própria análise pessoal, pode consegui-la ao levar a cabo os tratamentos uma vez que consiga supervisão e orientação de psicanalistas reconhecidos (Freud, 1919/1976, p. 217).

Esta é a passagem onde surge, pela primeira vez no texto freudiano, o termo "kontrolle" também traduzido por "supervisão". Que esta passagem seja oriunda de um texto basilar para a discussão a respeito das relações entre a psicanálise e a Universidade talvez não seja por acaso. Contemporânea de Freud, Helène Deutsch (2001/1927) situa a origem da supervisão no campo das ramificações médicas a partir do qual tem-se a possibilidade de uma experiência prática com pacientes, sob a direção e o ensino de um professor. Neste contexto, já se pode perceber o paradoxo da dupla tarefa imposta aos didatas: terapeuta e professor.

Pouco tempo depois, em 1930, a publicação do relatório do Instituto de Berlim indica como a IPA (International Psychoanalytical Association) foi levada a normatizar os requisitos para a formação dos analistas (Sachs, Eitingon, Boehm, Hárnick, & Horney, 1985). Neste contexto, a instituição impõe a supervisão por parte de analistas por ela reconhecidos como o segundo tempo da formação dos novos analistas, relacionando-a, portanto, a um controle eminentemente relacionado à técnica da psicanálise (Benetti, 1992). Assim, tornada parte de um protocolo burocrático para formação dos analistas, a supervisão passa a ser referenciada nos termos do discurso médico/universitário como uma passage obligé para a formação dos analistas. No entanto, alguns autores (Moraes, 1992) mencionam que a incorporação da supervisão como prática obrigatória à formação também pode ser apreendida como uma preocupação legítima dos analistas a respeito da correção de suas práticas e não como a expressão de uma padronização pura e simples. Já a Escola de Budapeste, com forte influência em Kovacs, considerava a supervisão uma continuação da própria análise (Leclaire, 1991). Aqui, trata-se menos de controlar o tratamento de um paciente do que examinar a transferência do lado do analista e a maneira como esta interfere na análise do candidato em controle.

Uma série de trabalhos enfocam o nascimento da prática da supervisão nos termos de trocas informais e conversas amistosas entre analistas que, assim fazendo, demandariam a um outro a escuta de seu ato (Leclaire, 1991; Benetti, 1992; Safouan, Julien, & Hoffmann, 1996). Situando a supervisão à istância de um protocolo, Mannoni (1992) lembra que Freud introduziu a noção mais nos termos de uma interrogação crítica de si do que de uma noção de modelo, mesmo que esta última tenha acabado prevalecendo no âmbito das instituições ligadas à IPA.

Benetti (1992) salienta que à supervisão caberia o foco no manejo da transferência e na reflexão a respeito da forma através da qual o analista pode ir contra a transferência, por emergir enquanto sujeito na situação analítica, em vez de ir pela via do desejo do analista, ou seja, a partir da metáfora do "cirurgião" evocada por Freud nos textos sobre a técnica (Freud, 1912/2010).

Já com Lacan (1976) a questão da supervisão assume novos contornos. Este começa a conceber a prática da supervisão como efeito da própria análise. Assim, o sujeito deixaria de estar alienado aos protocolos das instituições para demandar supervisão a analistas mais experientes como um gesto de responsabilização pelos riscos de sua própria prática. Lacan sublinha a dimensão de ato de quem busca por supervisão e que, ao fazê-lo, anuncia ser um analista:

Eu, frequentemente, nos meus controles - no início deles ao menos -, eu o encorajo a seguir seu movimento. Eu não penso que seja sem razão que... alguém vem lhe contar qualquer coisa em nome simplesmente de que alguém lhe diz que ele é um analista. Não é sem razão, porque ele escuta alguma coisa... (Lacan, 1976, p. 46).

No seminário XXIII, Lacan sublinha a dimensão do equívoco, encorajando que algo do significante ressoe no corpo e que o supervisionando possa tirar proveito do "erro" na condução da transferência:

Acontece que eu me dou ao luxo de supervisionar, como se diz, um certo número de pessoas que se autorizam por si mesmas, segundo minha fórmula, a ser analistas. Há duas etapas. Há aquela em que elas são como o rinocerante. Fazem mais ou menos qualquer coisa, e sempre dou-lhes minha aprovação. Com efeito, sempre têm razão. A segunda etapa consiste em tirar proveito desse equívoco que poderia liberar algo do sinthoma (Lacan, 1975-76/2007, p. 18).

Neste movimento, retoma uma reflexão que data dos primeiros anos do seu seminário no qual diz que é compromisso do supervisionando evitar entender demasiadamente (Lacan, 1953-54/1986).

A ênfase no equívoco permite pensar a supervisão como espaço relativamente desapegado do relato do caso no interior do qual possa se abrir um intervalo onde algo novo possa ser produzido. Nesses termos, a supervisão também seria portadora de um sentido mais estrito que diz respeito ao "fazer funcionar as orelhas, não para ouvir, mas sim para fazer localizar aquilo que deve ser ouvido" (Tizio, 2003, p. 57).

Aqui reside algo importante do ensino de Lacan a respeito da supervisão. É notório que estas reflexões tragam à luz a sua preocupação em pensar a supervisão em função mais da posição do praticante (e suas inflexões) do que do desejo do analista, que seria material para a análise. Esta ênfase do papel da supervisão incidindo sobre a posição do praticante é de primeira importância para os fins da reflexão que propomos sobre a supervisão no contexto da clínica-escola.

Safouan (1975), em uma importante intervenção na Escola Freudiana de Paris, salienta a dimensão terceira da supervisão, uma vez que o analista fala da análise de uma pessoa a um terceiro. Ele sublinha que é preciso que se considere a dimensão de sujeito do analista apontando o lugar onde este resiste a escutar por conta de suas próprias questões subjetivas. Nesses termos, é essencial que o desejo do analista, enquanto desejo de agarrar a oportunidade, seja afirmado, ao menos do lado do analista controlador, viabilizando assim que não se deixe escapar a ocasião de penetrar no território das transferências. Safouan, Julien e Hoffman (1996) também agregam importantes elementos a este debate sobre supervisão ao considerá-la como realizadora de laço social na medida em que se transmite algo derivado da ética da psicanálise a outrem a partir de sua própria experiência de análise.

Nota-se, portanto, a vasta gama de noções relacionadas à prática da supervisão. Não é do nosso interesse efetuar aqui uma revisão exaustiva dos seus sentidos possíveis, uma vez que ela própria parece emergir como uma noção em disputa na história do campo psicanalítico. No entanto, cabe ressaltar que, no ensino de Lacan, a importância da supervisão recai sobretudo na posição do praticante, indicação que nos será de grande valia para interrogar as condições de possibilidade de transmissão da psicanálise no contexto da supervisão em uma clínica-escola.

A supervisão e a pesquisa no contexto da clínica-escola

Uma das dificuldades que a presença da psicanálise na Universidade coloca em cena diz respeito à especificidade da sua metodologia de pesquisa. Na medida em que Freud funda seu dispositivo clínico afirmando a impossibilidade de aceder aos dados positivos e obtidos em condições controláveis (Bianco, & Sá, 2006), isso coloca em cena o corte epistemológico com o paradigma hipotético-dedutivo sobre o qual a ciência moderna se apresenta (Koyré, 1991; Biazin, & Kessler, 2017). O gesto freudiano expressa-se na sua dimensão de ato teórico (Lacôte, 1998), ao passo que estabelece a origem de um método investigativo que vai se ocupar dos restos, daquilo que, do sujeito, opera como causa, e que não se pode controlar, escapando, portanto, do campo da ciência no interior do qual o sujeito e seu ato ficam elididos. Daí a máxima lacaniana segundo a qual o sujeito sobre o qual opera a psicanálise não é outro senão o sujeito da ciência, ou seja, o sujeito como causa sobre o qual a ciência não quer saber, este sujeito que fica elidido do campo da ciência moderna no ato mesmo da sua fundação (Lacan, 1965/1998).

Assim, na medida em que a psicanálise faz do inconsciente o seu objeto de estudo, tomando para si o campo do recalcamento do desejo no qual o objeto está fundamentalmente perdido, este objeto de estudo só se deixa circunscrever em transferência, o que pressupõe a atividade clínica. Dito de outra forma, a dimensão clínica da pesquisa psicanalítica é parte fundamental das próprias condições de possibilidade da existência da psicanálise como uma ciência que progride no ritmo da transferência. Assim, o seu ensino desarticulado da dimensão clínica consiste em uma importante descaracterização (Elia, 1999; Bianco, 2003; Escars, 2006).

A clínica figura, portanto, como via privilegiada tanto de formação quanto para a pesquisa no interior da qual algo do discurso psicanalítico resiste na contramão do imperativo de "tudo saber" do discurso universitário. Nesse contexto, é importante considerar a especificidade dos cursos de graduação em psicologia no Brasil que, por regulamentação, são obrigados a contar com uma clínica ou serviço-escola para o exercício de estágio supervisionado que faz parte da grade curricular obrigatória.

É neste cenário que diversos analistas com experiência em clínicas universitárias se interrogam a respeito das condições de transmissão, pela via da clínica, da psicanálise na Universidade. Advém daí um importante campo de reflexão que tem como pano de fundo a clínica sob supervisão no interior das clínicas-escola. Uma série de autores brasileiros parece concordar com o fato de que a prática clínica supervisionada surge como um espaço privilegiado para "aprender a partir da psicanálise", constituindo, assim, um ensino desde a perspectiva psicanalítica e não apenas um ensino sobre a psicanálise.

Como afirma Maurano (2006), na esteira de Lacan, nem tudo o que ocorre na Universidade é integrante do discurso universitário, o qual, aliás, tem sua função e pertinência assegurado no contexto em que se instala. Da mesma forma, não é função da Universidade formar analistas, e nem está entre as suas competências a pretensão de fazê-lo. Figueiredo e Vieira (2000) distinguem o trabalho de ensino em sala de aula (que levaria no máximo a um saber sobre a psicanálise), da supervisão clínica, espaço deste ponto de vista privilegiado na medida em que permite a experiência singular do trabalho analítico.

Barros e Oliveira (2003), por seu turno, também concordam que a supervisão figura como um espaço importante para que se possa aprender "a partir da psicanálise". As autoras destacam que o estágio-supervisionado muitas vezes reverbera na busca por análise pessoal e em uma intensificação do estudo em psicanálise por parte dos alunos. Já Dias (2003), por sua vez, enfatiza a instalação de uma relação de transferência na medida em que o supervisionando endereça ao supervisor uma demanda de saber, seja sobre a teoria; sobre o caso; sobre o diagnóstico; sobre o manejo da transferência; ou sobre questões relativas à técnica. Assim, o "desamparo teórico" por parte dos supervisionandos opera como causa a partir da qual abre-se a dimensão de enigma e, consequentemente, as possibilidades de construção de um outro tipo de saber, balizado pela experiência clínica. No mesmo sentido aponta a o argumento de Figueiredo (2008), segundo a qual, quando se desenvolve um trabalho clínico, é possível que se opere um "furo no saber como semblante" que marca o discurso universitário. Nestes termos, o maior desafio do ensino residiria em, a partir do que é endereçado ao supervisor, transformar um saber sobre a psicanálise em um saber psicanalítico propriamente dito.

Já Pinheiro e Darriba (2010) pensam a questão da supervisão a partir de um impasse específico: o da prerrogativa de que os atendimentos do estágio curricular tenham uma data fixa para o seu término. Especificidade relativa à temporalidade da Universidade que, via de regra, está em dissonância com o tempo da experiência clínica. Neste contexto, os autores assinalam que o deslocamento da posição de estudante para a posição de analista pode ser observado na medida em que muitos dos estagiários respondem ao término dos atendimentos sustentando o desejo de mais saber sobre o que se atualiza em cada encontro clínico. Nesta mesma linha, Drezi e Marcos (2013), por seu turno, asseveram o quanto o espaço de supervisão pode correr o risco de ganhar um sentido pedagógico fazendo emergir sua dimensão de controle, vigilância e maestria, já que compõe uma atividade obrigatória prevista pelo currículo. Nesse sentido, portanto, os autores argumentam que as questões e as demandas referentes à condução de um caso devem ser colocadas em relação a uma práxis e não a um sentido. Assim, concluem que a supervisão tem sua potência assegurada na possibilidade de subverter a relação do sujeito (supervisionando) ao saber.

Lustoza e Pinheiro (2014) propõem cotejar a sistemática do discurso da avaliação vigente na Universidade com a estrutura do discurso universitário. De acordo com as autoras, o sistema de avaliação universitário mede sobretudo "o valor de um trabalho intelectual" e, assim fazendo, impele os alunos à busca da produção de um saber a partir do paradigma da eficiência. Nestes termos, o conhecimento é buscado a partir do seu valor de troca, o que se pode ganhar com ele: boas notas; boa colocação nos rankings da excelência universitária; alijando, assim, o valor de verdade que este saber eventualmente possa ter para o sujeito. Neste contexto o espaço de supervisão emerge como uma possibilidade para que se produza aí um mal-estar diante do qual possa ser produzido um outro saber, que indague a respeito da presença do sujeito e sua ausência de representação adequada na linguagem. Assim, a presença do analista no espaço da supervisão pode produzir o que os autores chamam de ato de reconhecimento, ou seja, a criação das condições para que o ambiente massificado da instituição universitária possa, eventualmente, abrir-se para um outro discurso no interior do qual a pergunta sobre o sujeito não seja silenciada e possa vir à tona em sua dignidade.

Em algumas reflexões precedentes também nos debruçamos sobre a questão da psicanálise na Universidade a partir de diversos exemplos de experiências de prática clínica. Nestes termos, uma série de questões foram abordadas, como por exemplo: i) a questão da afirmação do desejo de formação em psicanálise em um contexto de um curso de especialização (Kessler, & Ortmann, 2012); ii) as condições de possibilidade de sustentação de um trabalho clínico conduzido por estudantes ainda não formados, na clínica da universidade e baseado na psicanálise (Pereira, & Kessler, 2016); iii) a posição do analista em uma Clínica pública (Heck, & Kessler, 2015) e, ainda, iv) as possibilidades e os limites para a realização de pesquisa em psicanálise na Universidade por parte de estudantes de graduação (Kessler, & Bessa, 2017).

Supervisão: corte, giro no discurso e função terceira

Nesta seção partiremos de dois fragmentos de experiências de supervisão que tiveram lugar na Clínica-Escola da nossa Universidade para pontuar no seio deste debate um fenômeno que nos parece de grande relevância: a inflexão da posição do estudante em direção à posição de praticante e, ainda, a forma através da qual a supervisão produz efeitos de transmissão na condução dos atendimentos realizados por não analistas que, não obstante a condição de estudantes, com ajuda do suporte da supervisão, sustentam uma posição de escuta advertida pela ética da psicanálise.

Da maestria à autorização: condição para o início do tratamento

A vinheta a seguir trata de uma experiência de supervisão no interior da qual a supervisionanda contrasta a sua prática na Clínica da Universidade com uma experiência anterior realizada em outro local. A experiência é descrita em uma monografia de conclusão de Especialização (Greganich, 2008). No seu relato, emergem indícios de uma mudança de posição a partir da "nova prática" de supervisão que, como veremos a seguir, é narrada pela própria autora nos termos de uma inflexão.

Em sua experiência de clínica anterior, as supervisões ocorriam em grupo, com um mesmo supervisor para todos os casos, sendo que este era designado pela instituição, não era possível que a pessoa responsável pelo atendimento pudesse vir a escolhê-lo. Como é praxe em diversos lugares de formação, o material trazido deveria ser previamente redigido, em formato de sessão dialogada com duas cópias: um para o supervisor e outro para o supervisando. A partir deste material o supervisor dava orientações de como prosseguir com o caso, o que pontuar, como interpretar, avaliando se as intervenções estavam adequadas ou não.

De acordo com a própria autora, "neste modelo de supervisão, o supervisor ocupa o lugar de maestria numa posição de saber ou de poder (ou ambas)" (Greganich, 2008, p. 21). O que temos aí, portanto, senão um exemplo de colocação do saber no comando, com a suposição da possibilidade do ensino-aprendizado de uma técnica?

No entanto, esta percepção teria se dado apenas a partir da experiência da "nova" prática de supervisão desenvolvida na Clínica da nossa Universidade. Nesta experiência, já no primeiro encontro de supervisão, que se deu após poucas sessões de atendimento, ocorreu uma intervenção que chamou sua atenção, tendo operado no sentido de deslocar a posição do supervisor do lugar de mestre detentor de um "tudo saber". Após ela ter feito o relato do material clínico e mediante indagações através das quais demandava orientações de como proceder, a intervenção se deu nos seguintes termos:

A paciente não entrou em tratamento, tu tens que fazer com que ela entre em tratamento. Eu não vou te dizer como fazer isso..., tu tens experiência clínica anterior, tens anos de análise. Na próxima supervisão tu me contas o que tu fizeste.

Esta intervenção procurava seguir a indicação de Lacan de que, em supervisão, deve-se encorajar os praticantes a seguir seu movimento. Esta intervenção leva a terapeuta, em um primeiro momento, a narrar a experiência nos seguintes termos: "saí chocada desta primeira supervisão, pois esperava que o supervisor produzisse um saber sobre o caso e me desse a melhor orientação para este" (Greganich, 2008, p. 22).

O "choque" da primeira supervisão acontece na medida em que esperava, segundo o modelo que conhecia, que o supervisor produzisse um saber especial sobre o caso e lhe desse a melhor orientação, levando em consideração as especificidades do caso. E o que se passa, no entanto, é precisamente o contrário. O supervisor, na medida em que apontou para a sua responsabilidade na condução do tratamento acaba por operar um deslocamento. Assim, a supervisionanda menciona no seu trabalho a forma como na "nova" prática de supervisão realizava-se uma aproximação à "via da chave"2 do discurso da histérica, que se trata do discurso que põe no lugar do agente o sujeito dividido; no lugar do outro, o significante mestre, no lugar da verdade o objeto a e no lugar da produção, o saber.

No momento em que escreve o trabalho, a terapeuta relata que estava esperando no espaço da supervisão, uma orientação que, conforme veio a se dar conta, após o trabalho de supervisão, descaracterizaria a particularidade da psicanálise. A supervisão teria sido fundamental para que ela se autorizasse, em consonância com o que indica Lacan (1976) quando aponta que em supervisão, ao menos em um primeiro momento, se trata de encorajar que o praticante prossiga em seu próprio movimento. Esse relato nos permite colher a impressão de alguém que fez este contraste entre duas formas de trabalhar a supervisão e que pôde "operceber" (Lacan, 1992) que diferentes formas da supervisão implicam diferentes consequências clínicas. Produziu-se aí um "choque", como ela própria diz, um corte que permite um reposicionamento e coloca em cena a função da supervisão como presentificadora do discurso do analista e sua potência de produzir um giro pontual nos discursos e, consequentemente, na posição do clínico.

O caso atendido pela supervisanda em questão se trata de uma paciente de 38 anos cujo nome substituiremos aqui pela letra inicial J. A paciente centrava seu discurso na queixa acerca dos homens: seu ex-marido, seu atual companheiro e, ainda, do filho - que estava em tratamento na Clínica da Universidade quando J. começa o seu. Segundo relatos da paciente, o filho é muito agressivo e, quando não obedece à mãe, os dois "se agarram nos socos". Ele é filho do primeiro casamento de J que, por sua vez, tendo sido abandonada pelo primeiro marido ainda grávida, se aproxima do atual companheiro que assume o filho como se fosse seu, configurando um segredo dos dois diante do menino que só vem a saber sobre a sua verdadeira paternidade no curso de seu tratamento.

De forma bastante teatral, J circula entre estes três homens dando explicações "psicológicas" sobre o que ocorre entre os três. A paciente acaba sempre se relacionando com homens que a "sacaneiam", mentem, traem, roubam seu dinheiro etc. Por outro lado, se diz uma expert em sexo, que é a melhor mulher na cama e que faz tudo muito bem. Acredita segurar os homens pelo sexo e pelo dinheiro. Durante os atendimentos ela segue com estes relatos, apresentados como constatações fechadas, prontas. A terapeuta, a partir do que colhe como efeito das supervisões, busca promover condições clínicas para que alguma elaboração seja possível. Enuncia que só há sentido em ela seguir vindo à Clínica se quiser trabalhar-se a partir da abertura de questões.

Nesse momento, algo de importante ocorre no curso do tratamento: a terapeuta decide, por si, dobrar o valor da sessão. Neste ponto, a paciente deixa de vir à Clínica, faltando às sessões. Depois de um mês de ausência, aponta-se em supervisão que a intervenção talvez tenha causado um possível acirramento do sintoma, tocando-o com muita agudeza, o que fez a paciente recuar e manter-se estagnada em termos de trabalho subjetivo.

Depois dessa intervenção, busca-se retomar o contato com a paciente, que retorna à clínica. A terapeuta decide voltar atrás e volta a atendê-la pelo valor que ela se propõe a pagar, com a condição de que ela seja tão sincera quanto possa no espaço terapêutico.

Operou-se aqui um novo giro no discurso. Percebe-se isto pelos seus efeitos: a paciente passa a associar ao falar da mãe, da vergonha que sente perante uma mãe tão idealizada, da dificuldade em ser aceita por essa mãe. O discurso começa a deslizar, levando-a à efetivamente encerrar as entrevistas preliminares, "entrando" em tratamento. Sai da queixa (quanto aos homens), e da autoexaltação (de sua habilidade sexual) para a interrogação sobre si.

Assim, percebe-se que, em supervisão, não se trata de privilegiar a obediência às normas técnicas. Até um aparente equívoco (como, por exemplo, dobrar intempestivamente o valor das sessões e depois recuar em relação a isso), na medida em que presentifique algo do desejo do analista também pode ser decisivo para a operação de giro nos discursos. Para que isso ocorra é fundamental, como diz Freud (1919/1976), o acompanhamento - "o controle" - de um analista mais experiente ou, ainda, no dizer de Lacan (1967-1968), o acompanhamento de alguém que porte a marca da experiência de ter sido analisante e esteja, assim, em um lugar terceiro (Safouan, 1975).

Ruptura identificatória

O relato de supervisão a seguir trata de um caso de maior duração, atendido durante dois anos, por uma terapeuta iniciante, no período de seu estágio e especialização.

De uma família do interior do estado, com situação financeira oscilante, F. é criada numa casa de pais separados. Aos dois anos, os pais se separam e a paciente passa a morar na casa dos avós maternos. Até ali, vivera em uma situação financeira bastante favorável na casa do pai. O motivo da separação envolve uma trama de traições e ocultações. O avô paterno, assim como o pai, traíra a esposa, a qual apenas em idade avançada consegue levar a cabo uma separação. A linhagem de homens da família é situada pela paciente como "os homens que partem e não voltam".

No caso da avó, apenas após consumada a separação ela conseguiu tomar as rédeas da vida e perseguir seus sonhos. Ingressa na faculdade e passa a buscar um trabalho fora de casa. A menina toma como referência a avó materna, cujo sobrenome, de origem estrangeira, ela adota como seu.

Durante o ensino médio surge uma oportunidade que marcará a sua vida: nesta época, embarca para um intercâmbio em um país europeu. Vive então "um ano de sonho", passando a reconhecer ali uma referência longe da qual a vida parecia impossível. Da mesma forma, a família que lhe hospeda passa a ser considerada como o modelo de família ideal. Aos poucos, uma pressuposta identidade nacional do país em questão passa a ser tomado pela paciente como signos da única forma de vida interessante.

Quando F. chega à Clínica, se queixa de um profundo sentimento de angústia diante do risco de não conseguir retornar ao país onde vivera a experiência do intercâmbio. Era este o principal motivo que lhe trazia às sessões. Passa a considerar que a vida só teria início "quando estivesse lá". O pai e a madrasta consideram este como sendo um "sonho bobo". Posteriormente, em um contexto no qual não contou com o apoio do pai durante um conflito com a madrasta, resolve sair de sua casa.

Termina a graduação e imediatamente ingressa no mestrado na mesma Universidade. Angustia-se em não ter prestado seleção para o mestrado no país do intercâmbio. Passa a ter uma vida regradíssima, em todos os planos, tendo como horizonte o retorno àquele país. Suas preocupações giram em torno da organização necessária para retornar. Assim, desfruta de pouco dinheiro e tempo, bem como restringe consideravelmente sua vida social. Em função disso, propõe pagar menos às sessões, passa a faltar por qualquer motivo e reclamar de dores no corpo. Se dizia fechada para relacionamentos porque o que desejava era apenas "morar fora". A vida só era possível do lado de lá.

Isto leva a terapeuta responsável pelo caso a buscar supervisão. Chega alegando uma preocupação de que o atendimento que efetuava já há algum tempo não progredia. Identifica as falas do paciente nos termos de queixas circulares e sentia-se incapaz de produzir alguma intervenção que viesse a surtir algum efeito. Ocorre ao supervisor intervir destacando exatamente que parecia que a vida de F. estava em stand by, como se ela só fosse possível "lá", e no entanto, a vida já começou, aqui, e está em pleno curso. A terapeuta é convidada a falar menos descritivamente das sessões. Isto a leva a incluir no seu dizer o fato de que também ela havia feito um intercâmbio, quando mais jovem, para o mesmo país para o qual fora a paciente, o que também lhe havia marcado profundamente.

Ao que tudo indica, a intervenção em supervisão produz um efeito de ruptura na posição da própria terapeuta que até então compartilhava um ideal comum derivado da experiência de intercâmbio vivido pelas duas. Desta forma, a desmontagem desta posição de identificação entre terapeuta e paciente permitiu o "destravamento" do atendimento. Isto acontece na medida em que a terapeuta se permite intervir tendo como horizonte conduzir a paciente a escutar a história da sua vida como algo que já havia começado e que o tão sonhado retorno ao país estrangeiro, se ocorresse, seria o desdobramento de uma caminhada que já estava em curso. Assim, o deslocamento da posição de escuta da terapeuta também produz a constituição de um horizonte para o tratamento em questão. Este horizonte apontava na direção de permitir que F. escutasse a sua própria história como portadora de uma dimensão valorosa de "projeto contínuo", restituindo, assim, o sentido dos seus esforços aqui e dissolvendo, portanto, a fixidez ligada à ideia de que "a vida só começaria lá". Dito que, por sua vez, portava uma enunciação ao mesmo tempo causa e consequência do seu sintoma.

Dali em diante F. passa a falar mais de si, passa a ter uma outra percepção a seu respeito, não mais como "sonhadora", mas como introspectiva e "batalhadora", e recupera a positividade destes valores em consonância com a herança da linhagem feminina da sua família. Neste movimento, retoma a proximidade com as pessoas que viviam por perto: a mãe, a avó, as irmãs, inaugurando um novo movimento de inserção no interior da família.

Faz uma viagem com sua mãe e irmã para o país do intercâmbio, o que produz novos desdobramentos. Começa a perceber-se como objeto de admiração da mãe e irmãs pelo percurso que construiu. Reencontra uma amiga europeia com quem morou quando esteve lá. Esta costumava lhe colocar em uma posição infantilizada, outorgando à F. a posição de quem ainda não teria saído daquele "ano sabático", atitude que a desagrada e que lhe faz não querer voltar a morar com esta amiga caso retornasse. Aos poucos, passa a conseguir dizer não e a se tornar protagonista da sua história. Consegue olhar para este possível futuro retorno como ligado a um projeto de vida e de trabalho e não apenas pelo simples fato de "estar lá". Defende a dissertação de mestrado no Brasil e alguns meses depois, consegue a bolsa para o curso de doutorado no exterior. No último mês de atendimento, confessa sentir receio de não vir a ter mais o espaço do tratamento.

Neste caso, portanto, nos parece que a supervisão também teria operado como função terceira (Safouan, 1975), possibilitando um corte na formação, similar a uma massa freudiana (Freud, 1921/1976) "a dois", entre terapeuta e paciente, ambas idealizando a vivência de intercâmbio no extrangeiro. A interposição dessa distinção permitiu reposicionar a ambas, cada qual retomando a sua função. Opera-se um giro nos discursos na medida em que a praticante consegue sair do impasse identificatório em que se encontrava ("o caso não progredia"). Este lugar terceiro só é possível, como vimos argumentando ao longo deste artigo, na medida em que alguém marcado pelo resto deixado pela experiência psicanalisante (Lacan, 1967-68)3, ou seja, advertido de que "a" está no comando, possa assim operar desde o discurso do analista (Lacan, 1992). Assim, é na medida em que o praticante encontre um supervisor situado nesse lugar que consideramos ser plausível que venha a se produzir um certo efeito de transmissão.

 

Considerações finais

Procuramos ao longo do artigo trazer elementos a respeito dos possíveis efeitos de formação e transmissão que podem ser vislumbrados a partir da presença de analistas na universidade. A injunção advinda da prática clínica confronta o até então aluno a se posicionar, pois desde então ele terá que se fazer responsável por dirigir tratamentos. Enquanto praticante, opera-se um giro, e neste ponto ele precisa ter como recorrer, na situação de supervisão, àqueles que, mais experientes e com análises mais avançadas, tenham como situar, marcados por "terem sido analisantes", o interesse de considerar o objeto a, causa do desejo, como agente do discurso.

Como vimos a partir do relato das supervisões que destacamos, nestas e em outras supervisões houve momentos em que foi preciso a positivação de um saber, de uma conceituação produzida pela teoria psicanalítica. Se trata, portanto, nestes termos, de indicar que há um sujeito do inconsciente que precisa ser suposto, que decide coisas que o eu do sujeito em atendimento não admitiria, mas que devemos depreender daquilo que ele acaba fazendo, repetindo, insistindo. Assim, conforme o momento, todos os discursos podem se fazer necessários, inclusive - por que não? - o universitário. É preciso haver uma avaliação clínica permanente e simultânea à intervenção.

Um dos raros consensos no meio psicanalítico é o de que cada analista deve inventar seu próprio estilo de intervenção. Não existem fórmulas prontas para fazer o sujeito passar a falar o que lhe vem a cabeça, condição o mais próxima possível do sonhar (ou do devanear). Esse seria um pré-requisito para a emergência daquilo que concerne ao inconsciente, uma vez que, falando sem pensar previamente, se está confrontado ao inantecipável, ao que pode surpreender. Lacan afirma que o analista não se autoriza a não ser de si mesmo. No entanto, quando acrescenta que isto acontece na presença de alguns outros, reforça, então, a função necessária da supervisão. Deriva daqui, portanto, como trabalho do supervisor, a função de sustentar o discurso do analista para além da especificidade do consultório. E a esse respeito, buscamos ressaltar que a função do discurso do analista - não só na Universidade - talvez esteja mais próxima de um fazer operar o giro nos discursos que coexistam do que alçar-se à posição de discurso dominante, o que descaracterizaria a natureza efêmera e pontual da sua presença, como tudo aquilo que diz respeito à experiência do inconsciente.

Da mesma forma, concordamos que a Universidade não é o lugar da prática da psicanálise estrita, em intensão. Mas sabe-se igualmente que mesmo no consultório do analista muitas são as vezes em que a demanda também não será necessariamente por uma psicanálise. Não vemos porque deixar de tensionar, portanto, na clínica da universidade, a riqueza de possibilidades que podem surgir, na via da análise em extensão (Lacan, 1967/2003). É dessa forma, portanto, que a supervisão pode emergir como via privilegiada de pesquisa, formação e, ainda - como pretendemos demonstrar neste artigo - presentificação da ética da psicanálise no mundo.

 

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Endereço para correspondência:
Carlos Henrique Kessler
carloshkessler@yahoo.com.br

Submetido em: 09/03/2018
Revisto em: 12/07/2018
Aceito em: 19/11/2018

 

 

1 Lacan. J. (1967-1968). O seminário, livro 15: O ato psicanalítico. Seminário não-publicado.
2 O termo é utilizado por Lacan no Seminário 10 no sentido de enfatizar um certo estilo de ensino que ele visaria adotar: "A chave é a forma segundo a qual deve operar ou não deve operar a função significante como tal".
3 Lacan. J. (1967-1968). O seminário, livro 15: O ato psicanalítico. Seminário não-publicado.

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