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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2019

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i1p.174-183 

ARTIGOS

 

Psicossomática: um fenômeno entre o saber e o gozo

 

Psychosomatics: a phenomenon between knowledge and jouissance

 

Psicosomática: un fenómeno entre el saber y el goce

 

 

Rafaela Brandão AlvesI; Deise Matos AmparoII; Daniela Scheinkman ChatelardIII

IDoutoranda. Programa da Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Universidade de Brasília (UnB). Brasília. Distrito Federal. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Universidade de Brasília (UnB). Brasília. Distrito Federal. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Universidade de Brasília (UnB). Brasília. Distrito Federal. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo se propõe a investigar o fenômeno psicossomático na clínica psicanalítica a partir das proposições freudo-lacanianas. Primeiramente, diferenciaremos o sintoma conversivo na histeria do acometimento corporal na psicossomática, apresentando a distância entre um sintoma e um fenômeno clínico. Entendemos que a psicossomática diferentemente do sintoma não porta uma mensagem passível de interpretação, é, antes, efeito de uma escrita que não pode ser lida. Uma escrita que sem a devida ascensão ao simbólico, mantém-se cristalizada no campo do gozo, portanto, sem representação psíquica. Para empreendermos essa discussão traremos a noção de letra em Lacan e, por fim, problematizaremos as possibilidades de atuação da psicanálise nos casos de psicossomática.

Palavras-chave: Psicossomática; Sintoma; Histeria; Escrita; Letra.


ABSTRACT

The present article proposes to investigate the psychosomatic phenomenon in the psychoanalytic clinic from the Freudo-Lacanian propositions. First, we will differentiate the converting symptom in the hysteria of the bodily affection in psychosomatic, presenting the distance between a symptom and a clinical phenomenon. We understand that psychosomatics differently from the symptom does not carry a message that can be interpreted, it is rather an effect of a writing that cannot be read. A writing that, without the proper ascent to the symbolic, remains crystallized in the field of jouissance, therefore, without psychic representation. In order to undertake this discussion, we will bring the notion of letter in Lacan and, finally, we will problematize the possibilities of psychoanalysis in the cases of psychosomatics.

Keywords: Psychosomatics; Symptom; Hysteria; Writing; Letter.


RESUMEN

El presente artículo se propone investigar el fenómeno psicosomático en la clínica psicoanalítica a partir de las proposiciones freudo-lacanianas. Primero diferenciaremos el síntoma conversivo en la histeria del acometimiento corporal en la psicosomática, presentando la distancia entre un síntoma y un fenómeno clínico. Entendemos que la psicosomática diferentemente del síntoma no porta un mensaje pasible de interpretación, es, antes, efecto de una escritura que no puede ser leída. Una escritura que sin la debida ascensión a lo simbólico, se mantiene cristalizada en el campo del goce, por lo tanto, sin representación psíquica. Para emprender esa discusión traemos la noción de letra en Lacan y, por fin, problematizaremos las posibilidades de actuación del psicoanálisis en los casos de psicosomática.

Palabras clave: Psicosomática; Síntoma; Histeria; Escritura; Letra.


 

 

Introdução

A clínica psicanalítica é uma práxis em constante reinvenção. Para além do sentido de práxis desenvolvido por Marx (Sánchez Vásquez, 2007), entendido como a unidade entre teoria e prática, acrescentamos o sentido lacaniano apresentado no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de 1964, donde a psicanálise é uma práxis porque ela trata o real1 pelo simbólico. Nesse sentido, o real impõe limites à representação e incita o saber psicanalítico a estar sempre em vias de construção, empreendendo tentativas de abordar esse real.

Algumas experiências clínicas extrapolam o "arroz com feijão" conhecido pelos analistas, a histeria e a neurose obsessiva, o que, claramente, não retira a particularidade e a também provocação desses casos. Não obstante, alguns casos clínicos impõem dificuldades que estão para além do manejo transferencial, pois, justamente, colocam desafios à instauração da transferência. Estamos falando do fenômeno da psicossomática, este acontecimento no corpo do sujeito que chega até o setting clínico se queixando de dor em alguma parte do corpo ou mesmo de alguma alteração assintomática, como em alguns casos de dermatoses. Assim, não há correspondência entre o fenômeno psicossomático e a dor, um pode estar presente sem o outro. Vale ressaltar ainda que nem sempre o sujeito chega com a demanda de tratar a afecção psicossomática que possui, podendo ela ficar em segundo plano e só no decorrer do processo advir como uma questão.

Para pensarmos esse fenômeno, vamos abordá-lo a partir das produções de Freud e Lacan. É um campo de rica teorização, no qual cada psicanalista se orienta por uma linha teórico-prática, muitas vezes referente a alguma Escola Psicanalítica. Assim, deixamos claro que as reflexões presentes neste artigo são apenas uma forma de ver o fenômeno, mas certamente não a única.

O corpo foi o chamariz para a construção da psicanálise. Através do corpo falante das histéricas, Freud se questionou sobre a causa de um sofrimento sem qualquer notação orgânica. Desse corpo sem danos orgânicos que impunha um limite à intervenção médica surgiu a cura pela fala, bastando que um médico sensível à escuta desses corpos supusesse que ali havia alguma mensagem a ser escutada. A histérica de Freud o mandou silenciar-se e colocou-se a falar o que seu corpo já estava gritando (Freud, 1895/1996).

O que o psicanalista vienense descobre desde o começo de suas observações clínicas é que na formação do sintoma, como na conversão histérica, há a formação de um representante simbólico. Em outras palavras, concomitantemente à operação do recalque de alguma representação proibida, dá-se a formação de uma representação que vem substituir na consciência o elemento recalcado. Assim, se a consciência tem acesso ao elemento A, mas não tem à B, pode-se descobrir num processo de análise que A está associado à B em uma cadeia inconsciente, ou seja, A é uma mensagem de B (Freud, 1895/1996).

O corpo da histérica, portanto, envia ao outro uma mensagem, já que no recalque da moção pulsional um elemento é representado, há uma formação simbólica associada ao recalcado. Por isso o sintoma conversivo precisa ser escutado enquanto uma carta cifrada enviada para ser lida, logo, ela contém tanto o endereçamento quanto a intenção de ser desvendada. O sofrimento do corpo histérico, por esta via, segue as leis do inconsciente, deslocamento e condensação, é uma formação do inconsciente e uma forma do sujeito obter a satisfação de algum desejo proibido.

Assim, com o reconhecimento dessa mensagem vinculada ao sintoma conversivo, temos uma forma muito particular de pensar esse corpo. Segundo a psicanálise, ele é erogeneizado pela palavra do outro, pelo investimento do outro sobre um corpo que inicialmente é um saco de órgãos. A partir da nomeação e da suposição de que ali há um sujeito, a mãe, por exemplo, investe o corpo do bebê, fazendo dele um mapa dos rastros dessa erogeneização, constituindo as zonas erógenas espalhadas por todo o corpo.

No texto O Eu e o Id (1923/2007), Freud destaca que a formação do Eu está intimamente relacionada com a libidinização do corpo, assim, na medida em que o corpo se faz objeto de investimento da pulsão, seja pela via autoerótica ou através do Outro, dá-se a estruturação do Eu. Nas palavras de Freud, temos que: "Assim, o Eu é sobretudo um Eu corporal, mas ele não é somente um ente de superfície: é, também, ele mesmo, a projeção de uma superfície" (p. 38). De acordo com ele, o corpo envia percepções e sensações, tanto de fora quanto de dentro, sendo, portanto, um delimitador desse entre/fora e uma via pela qual temos acesso aos nossos órgãos internos, principalmente no adoecimento e na dor.

Na dor temos notícias de um funcionamento que não depende de sabermos dele para que ele funcione, contudo, há casos nos quais um órgão em específico, ou uma parte do corpo, são excessivamente investidos por uma catexia pulsional, a ponto de se fazerem vistos e ouvidos. O que não significa que saibamos o que eles estão tentando dizer e mostrar, pois eles diferem do sintoma corporal da histérica onde é possível encontrarmos uma representação inconsciente. Há, portanto, uma radical distância entre a expressão de um sintoma histérico e o acometimento psicossomático, diferença que perpassa justamente a presença de um saber inconsciente sobre o sintoma, seja ele envolto de dor ou não.

Para desenvolvermos essa discussão, abordaremos inicialmente a psicossomática enquanto um fenômeno e não um sintoma que guarda uma mensagem, em seguida traremos o conceito de letra em Lacan, pois como veremos, o fenômeno psicossomático pode ser interpretado como uma escrita de traços para não ser lido. Por último, proporemos uma via de atuação do analista diante dessa clínica que coloca limites à associação livre. Como escutar o que se expressa mudo?

Um fenômeno mudo

O enigma do sofrimento psicossomático está no paradoxo de sua estrutura, pois ao mesmo tempo em que ele é uma forma de expressão, ou seja, algo ali comparece, ele se apresenta mudo. Na histeria o sintoma se alicerça na fantasia, é, portanto, efeito de uma cena inconsciente que encontra vazão na associação livre e pode ser interpretado. Na psicossomática, por outro lado, o sujeito não consegue seguir o fluxo dos pensamentos quando a fala tangencia o sofrimento do órgão, é como se ocorresse um curto-circuito na cadeia de representações, impossibilitando a intervenção do analista na fala do analisante, seja através da interpretação ou da produção de equívocos significantes.

De acordo com Nicolau (2008) no texto Psicossomática e a escrita do real, muitas vezes os analisantes chegam até o analista depois de terem passado pelo saber médico, carregando consigo uma classificação que dificulta a entrada do analista, pois eles ficam identificados ao nome, por exemplo, fibromialgia, e acham que ali mais nada pode ser significado. O sujeito fica alienado a este significante médico e não dá vazão para que novos significantes sejam produzidos, significantes estes que diriam do seu lugar de sujeito do inconsciente.

A fixação no significante é sinal de uma outra fixação, a de um excesso de libidinização no órgão, ou seja, a pulsão toma-o como objeto e intensifica a catexia naquela região. E o aumento da excitação é traduzido pelo psiquismo como desprazer, provocando dor (Freud, 1895/1996). Em termos lacanianos esse órgão ou região do corpo seriam objeto de gozo, fontes inconscientes de prazer na dor, "Pode-se constatar com isso que o corpo nem sempre fala pela via simbólica do sintoma. Às vezes cala e, no lugar onde falta a angústia, um órgão pode ser lesionado, aparecendo o fenômeno psicossomático" (Nicolau, 2008, p. 969).

O órgão lesionado é consequência da ausência de simbolização, em outras palavras, algo marcou este corpo, mas não produziu efeito de significância, restou desertado de sentido. A lesão então parece vir de fora, ela é estranha ao sujeito, uma vez que ele não pôde se apropriar da sua representação. Assim, o corpo na psicossomática é recortado e a parte extraída é aquela que ficou excluída de representação.

De acordo com Roussillon (2012), essa parte do corpo excluída de representação pode ser fonte de extremo sofrimento e dor, uma dor igualmente física e psíquica, ainda que sem sentido. Tais situações extremas são traumáticas porque irrepresentáveis, impensáveis e sem uma lógica que venha apaziguar o sujeito em sofrimento. Diante desse excesso, ele se sente sem recursos.

Encontramos, em Lacan, alguns momentos nos quais ele aborda a discussão sobre a lesão psicossomática não possuir representação psíquica, sendo um deles a Conferência de Genebra, em 1975. Nesta conferência, Lacan é interpelado sobre a posição do significante em relação à psicossomática e se nesses sujeitos podemos ver uma assunção ao simbólico. Segundo Lacan, a psicossomática é da ordem do escrito, algo nos é dado como enigma, mas somos impossibilitados de lê-lo, "Há algo para ler ante o qual, frequentemente boiamos" (Lacan, 1975, p. 15). Ainda assim, haveria ali algo da ordem de uma assinatura, ou seja, algo que é específico da história do sujeito, mas que se apresenta como uma escrita mais próxima do real do que do simbólico.

O corpo é uma substância gozante e sobre ele nada podemos falar, já que não há palavra que o represente (Lacan, 1972-73/2008). Todavia, há uma relação muito próxima entre a escrita, o corpo e gozo na psicanálise lacaniana. Essa relação entre corpo e escrita é articulada por Caldas (2007) no texto Uma caligrafia cinematográfica: sobre escrita, corpo, cinema e psicanálise, no qual ela diz que corpo é escrita, já que proveniente dela; e da mesma forma, a escrita é do corpo, pois não há escrita sem corpo. Logo, a escrita é causa do corpo, mas também seu produto. Caldas (2007) diz mais sobre a implicação entre corpo e escrita:

Para a psicanálise, há uma conjunção conceitual entre corpo e escrita. O corpo se constitui como um campo sobre o qual se depositam cacos de significantes que não significam coisa alguma fora do sistema linguístico, mas que produzem efeitos de gozo. Essas peças soltas da linguagem, presentes antes mesmo da instauração da língua como sistema para a criança, constituem o que Lacan chamou de alíngua a responsável pela montagem do corpo erógeno sulcando bordas e mapeando vias de gozo (p. 86).

Com efeito, o corpo é um território marcado por vias de gozo, sulcamentos traçados pela escrita das letras, que chegam à criança não apenas pelas palavras daqueles que a cercam, mas dos olhares, da voz, dos toques, dos sabores e cores com que cada gesto é a ela oferecido. O que a criança faz com esse mapeamento em seu corpo e com esse gozo que a constitui? Caldas (2007) inclui a importância da leitura dessa escrita, pois, para que a criança advenha enquanto sujeito é preciso que ela se empenhe em ler aquilo que de texto seu corpo foi feito. A criança deve se implicar nessa leitura, o que não significa que ela o lerá, já que é uma escrita para não ser lida (Lacan, 1973/2003). É exatamente a isso que Lacan se referia quando diz que o inconsciente é um saber-fazer com o escrito:

Trata-se de uma escrita de gozo que em parte organiza o sentido, e, em parte, não o tem. Uma escrita que causa a história de uma falasser com seus sentidos e enigmas; uma escrita pela qual ele se fala, escreve-se e se diz nos álbuns de suas fotos, textos, documentos, cartas através de sua prole, de sua obra. Ou seja, tudo o que deriva de seu corpo, o produto deste, compõe uma escrita, permite uma narrativa, é material para histórias (Caldas, 2007, p. 87).

Não obstante, o que fenômeno psicossomático nos apresenta é que nem todo o escrito se converte em uma narrativa, há um tanto dessa escrita de traços que não produz sentido e fica preso ao gozo. Conforme disse Ventura (2013):

Nessa clínica, depara-se com uma escritura que remete a um gozo da letra que diz respeito ao registro da linguagem, mas que, paradoxalmente, não lhe pertence. O trabalho do analista, nesses casos, consistirá em possibilitar que o enigma no corpo do paciente acometido pela afecção psicossomática seja decifrado, sendo necessário que o sujeito construa um sintoma analítico, dado que só se vale de uma resposta, que é a sua doença (p. 79).

Antes, porém, de pensarmos como o analista pode incidir sobre o acontecimento psicossomático precisamos abordar a noção de letra proposta por Lacan e assim compreendermos porque essa escrita que não é para ser lida, pode tanto produzir sentido ascendendo ao campo do simbólico, como não produzir representação mantendo-se no registro do real, fixado a um gozo do órgão.

Uma fronteira sem garantias

O corpo é marcado por traços significantes que vêm do Outro. A inscrição dessas marcas se aproxima da elaboração teórica de Freud (1895/1996), no texto Projeto para uma Psicologia Científica, sobre a formação do inconsciente, pois, para ele, quando a intensidade dos estímulos for maior do que a capacidade de defesa, tais estímulos farão inscrições, traçando e, simultaneamente, estruturando o inconsciente com os caminhos das marcas mnêmicas. O inconsciente é um texto escrito por tais marcas, e em constante construção. Por fim, os traços são marcas iniciais que serão a posteriori revividas, reinvestidas e rememoradas no campo do simbólico, sendo assim suscetíveis de significação.

A teoria lacaniana viria, posteriormente, desenvolver a proposta freudiana de constituição do psiquismo, pensando que a inscrição primária de tais traços comporia a escrita posterior do sujeito, presente no conceito de letra. Lacan (1971/2009), no texto Lituraterra, aborda a noção de letra retirando-a de sua visada simbólica, como vinha fazendo nos textos anteriores. Daí ele ser indispensável quando nos propomos a pensar a letra e a escrita na teoria psicanalítica.

Lituraterra é uma criação lacaniana. Mais um neologismo elaborado por ele para dizer daquilo que as palavras em uso corrente não conseguem dizer. É, como ele diz, uma "aliteração nos lábios e inversão no ouvido", um artifício poético que provoca efeitos naquele que fala e naquele que ouve. A respeito das palavras lino, litura, liturarius, usadas para compor o neologismo lacaniano, Mandil (2003) diz que a raiz latina lino dá origem ao termo litura, que tem sentido de cobertura, rasura, correção e que dessa raiz se forma a palavra liturarius, como um escrito que possui rasuras.

O neologismo, como podemos ver, contém em si uma variedade de sentidos. As interpretações que se destacam é a face de rasura do escrito e de litoral. Segundo Rego (2006), o enigma do texto está na primeira parte, litura, em que Lacan faz uso dos dois sentidos, letra-litoral e letra-rasura.

As duas acepções - litoral e rasura - nomeadas por Rego (2006) como cena lacaniana da escrita são trabalhadas pelo psicanalista como faces contíguas do funcionamento da letra no processo de escrita. As duas são ilustradas na imagem descrita por ele durante uma viajem realizada ao Japão, passando na volta pela Sibéria. Sobrevoando essa região, ele observou os sulcos provocados pelo contato da força da água no solo, sulcos que refletiam de longe o traçado na planície. Não é que as águas caíssem exatamente e somente no sulcamento; elas banhavam todo o território, mas as valas vão se abrindo com o tempo, provocando o trilhamento por condições do próprio solo. É como se os rastros da terra molhada lateralmente ao sulco fossem apagados.

A inscrição da letra, portanto, se faz em dois tempos: no sulcamento e no apagamento daquilo que não se pôde inscrever, o real. Essa face de rasura da letra demarca a presença-ausência do real, uma vez que o que se escreveu estava justamente se esforçando por escrever o real, que não se escreve. A outra face litoral também é vislumbrada nessa metáfora, em que o sulcamento define dois territórios estrangeiros e o traçamento faz fronteira entre campos heterogêneos, não recíprocos entre si - o campo do gozo e do saber. A letra bascula entre esses dois campos, como via de acesso tanto ao gozo quanto ao saber, não sem antes demarcar o furo que há entre os territórios, reforçando a descontinuidade entre eles (Lacan, 1971/2009).

Vimos que o conceito de letra faz litoral entre dois registros, o simbólico e o real, marcando, assim, uma hiância íntima a eles, de modo que a letra demarca uma relação ternária no que inicialmente seria dualista (Andrade, 2016). Temos então na letra uma forma de escrita que contém em si mesma o real, tanto porque ela se funda ao mesmo tempo no traço que se inscreve e no excesso que não se escreve; e, também, porque ela, na condição de litoral, faz bascular esses dois registros.

Desse modo, a escrita da letra pode ser concebida como uma tentativa do falante de captar o real, de tentar alcançá-lo e representá-lo. E por estar nessa proximidade com o real, Lacan (1974) a localiza como da ordem do real, distinguindo-a do significante, que seria da ordem do simbólico. Uma das características dos efeitos da letra é que eles não têm a ver com significado, com conteúdo; ela vem, antes, registrar o que fica apagado, a saber, o real (Azevedo, 2007).

Dizer que a letra não tem que ver com o significado não significa dizer que o sujeito não tentará significá-la. O trabalho do inconsciente estaria justamente em elaborar um saber sobre o que ficou registrado enquanto impossível de se registrar. Parece complicado, mas é nessa tensão que o inconsciente deve ser concebido, como um saber possível sobre o impossível, fazendo-se sempre um saber parcial. Esse real que escapa à inscrição no inconsciente tem seu suporte na letra e comparece no psiquismo em sua insistência em não se escrever.

Ou seja, não é porque o impossível (outro nome dado ao real por Lacan) não se inscreve que ele deixa de comparecer, sendo a própria tentativa de leitura da letra uma outra forma de escrita e, assim, uma tentativa de dizer esse impossível: "É da natureza da linguagem - não digo da fala, digo da própria linguagem - que, no que concerne à abordagem do que quer que seja que o signifique, o referente nunca é o certo, e é isso que cria uma linguagem" (Lacan, 1971/2009, p. 43). Assim, o referente é sempre o real, justamente porque impossível de se designar.

O psicanalista francês acrescenta ainda que quando falamos estamos relendo o que foi escrito em nós, logo, o ato de falar já é uma elaboração, uma tentativa de alcançar esse escrito anterior (trazido acima com a escrita dos traços/letra na formação do psiquismo). Rinaldi (2007) também diz sobre isso:

O significante é uma invenção a partir de alguma coisa que já está lá para ser lida. Não se trata, portanto, na experiência analítica, apenas de escuta, mas do que se lê no que se escuta. Poderíamos dizer que se trata de uma releitura, já que a própria fala do sujeito, seus sonhos, sintomas e fantasias são da ordem uma primeira leitura das marcas primordiais que recebeu do Outro, ao fazê-las suas. (p. 275)

Essa releitura também é pensada por Costa (2015) como o que inscreve o sujeito em seu ato, como a via de se fazer sujeito, não ficando, assim, alienado ao que recebeu do Outro. A própria estruturação do inconsciente pode ser entendida como uma releitura desses traços, quando reportados a um terceiro, ou seja, quando o falante se reconhece uma relação ternária com a linguagem. Neste momento, se sobressai um ponto relevante nessa relação escrita/fala, sublinhado por Lacan, a saber, a letra é para ser lida como uma carta.

O endereçamento ao outro é indispensável à releitura da própria escrita. Visto que toda carta possui um remente e um destinatário, a letra para ser lida como uma escrita também deve ser destinada a um terceiro. Apesar da potência da letra em abrir vias à significação, não há garantias de que ocorrerá a leitura desses traços. Assim, sendo a letra uma inscrição do real que permite ao sujeito bascular entre o simbólico e o real, entre o saber e o gozo, pode acontecer de determinado fragmento dessa escrita não ascender ao movimento, permanecendo fixado ao gozo.

Concluímos, portanto, ser este o caso do fenômeno psicossomático, pois ele é uma escrita que, para além de não ser lida, não produz nenhum sentido, não produz cadeia significante, ou seja, o traço fica excluído do simbólico, investido de gozo. Diante de tais conclusões teóricas, o que podemos pensar sobre a intervenção analítica nesses casos?

 

Considerações finais

O sofrimento que o corpo infringe ao sujeito adoecido pela psicossomática convoca o saber psicanalítico à produção de vias para a sua escuta e tratamento. Ainda que a psicanálise não tenha como pretensão a cura dos sintomas, o que seria certamente um entrave à escuta do sujeito de desejo, ela pode acontecer como um efeito do processo de tratar o real pelo simbólico. Fazendo surgir, através da transferência, um saber inédito e não sabido.

Isto é, ao nos desligarmos do furor sanandi orientado por um ideal de saúde e bem-estar, encontramos vias de escutar e ler o que essa escrita muda tenta nos dizer através da dor/expressão no órgão. Mesmo que não seja possível uma interpretação, podemos encontrar na noção de transliteração a possibilidade de manejo analítico. A transliteração, passagem de uma escrita para outra escrita, é uma via para lidarmos com o impossível de dizer sem excluí-lo, como acontece na medicação desacompanhada da fala (Ventura, 2003).

Cabe a nós, analistas, saber dirigir, manejar o tratamento visando a acolher o sofrimento deste corpo que lateja, inflamado pela lesão, pela constituição de um espaço de continência de sua angustia, bem como um espaço simbólico que suporte a premência do organismo doente e que lhe dê legitimidade para que, por "doses de conta-gotas", o corpo pulsional possa se fazer presente no discurso do paciente (Teixeira, 2006, p. 32).

Por fim, cabe a cada analista no seu fazer clínico, entendido como um espaço de criação no um a um com cada analisante, encontrar um manejo que dê lugar ao corpo pulsional do sujeito, para que isso lhe faça questão. De sua assinatura muda ele pode construir um enigma endereçado ao analista e então significações poderão ser construídas. Logo, se não podemos falar em trazer à consciência o que estava recalcado, no fenômeno psicossomático podemos falar na possibilidade de edificação de um saber que ainda não fora sabido, mas que pode ser produzido em transferência.

 

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Endereço para correspondência:
Rafaela Brandão Alves
brandaoalvespsi@gmail.com

Deise Matos Amparo
deise.amparo.matos@gmail.com

Daniela Scheinkman Chatelard
dchatelard@gmail.com

Submetido em: 20/02/2018
Revisto em: 16/08/2018
Aceito em: 19/11/2018

 

 

1 Real aqui entendido como uma das categorias elaboradas por Jacques Lacan no decorrer de sua produção para, ao lado do Imaginário e do Simbólico, abordar o inconsciente freudiano. O real é o impossível, o incognoscível, o que faz resistência à linguagem e insiste em não se representar, tal categoria aproxima-se do desenvolvimento conceitual de pulsão de morte em Freud.

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