SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.71 número1Psicossomática: um fenômeno entre o saber e o gozo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i1p.184-195 

ARTIGOS

 

Qualidade de vida e satisfação com a imagem corporal de transexuais

 

Quality of life and satisfaction with the body image of transsexuals

 

Calidad de vida y satisfacción con la imagen corporal de transexuales

 

 

Leonardo de Oliveira BarrosI; Carolina Rodrigues Bueno LemosII; Rodolfo Augusto Matteo AmbielIII

IDoutorando em Psicologia. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade São Francisco (USF). Campinas. Estado de São Paulo. Brasil
IIPsicologa. Universidade São Francisco (USF). Campinas. Estado de São Paulo. Brasil
IIIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade São Francisco (USF). Campinas. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa teve por objetivo investigar a percepção de qualidade de vida e a satisfação com a imagem corporal de pessoas transexuais. Participaram 88 pessoas com idade média de 25,65 anos, sendo 51 do gênero masculino, 31 do gênero feminino e seis não binários. A coleta ocorreu de forma on-line e os participantes responderam ao Instrumento Abreviado de Avaliação da Qualidade de Vida da Organização Mundial de Saúde (WHOQOL-Bref), Escala de Satisfação com a Imagem Corporal e o Questionário de Identidade Corporal. Os resultados indicaram que a qualidade de vida é diretamente influenciada pelo nível de satisfação corporal. Além disso, pessoas com orientação sexual pansexual e de gênero não binário apresentaram maior satisfação com o corpo. Reforça-se a importância do acolhimento das angústias inerentes ao processo de transformação corporal, bem como da rede de suporte psicossocial no desenvolvimento de ações para melhoria de qualidade de vida da pessoa transexual.

Palavras-chave: Identidade de Gênero; Desenvolvimento Psicossexual; Avaliação Psicológica; Subjetividade.


ABSTRACT

This research aimed to investigate the perception of quality of life and satisfaction with the body image of transsexual people. Participants were 88 people with an average age of 25.65 years, 51 of male gender, 31 female gender and 6 non-binary gender. The collection took place online and participants responded to the Abbreviated Instrument of Quality of Life Assessment (WHOQOL-Bref), Body Image Satisfaction Scale and Body Identity Questionnaire. The results indicated that the quality of life is directly influenced by the level of corporal satisfaction. In addition, people with non-binary gender and pansexual orientation showed greater satisfaction with the body. It reinforces the importance of receiving the anxieties inherent to the process of corporal transformation, as well as the psychosocial support network in the development of actions to improve the quality of life of the transsexual person.

Keyword: Gender Identity; Psychosexual Development; Psychological Assessment; Subjectivity.


RESUMEN

Esta investigación tuvo por objetivo investigar la percepción de calidad de vida y la satisfacción con la imagen corporal de personas transexuales. Participaron 88 personas con edad media de 25,65 años, siendo 51 del género masculino, 31 del género femenino y 6 no binarios. La recolección ocurrió de forma online y los participantes respondieron al Instrumento Abreviado de Evaluación de la Calidad de Vida de la Organización Mundial de la Salud (WHOQOL-Bref), Escala de Satisfacción con la Imagen Corporal y el Cuestionario de Identidad Corporal. Los resultados indicaron que la calidad de vida es directamente influenciada por el nivel de satisfacción corporal. Además, las personas con orientación sexual pansexual y de género no binario presentaron mayor satisfacción con el cuerpo. Se refuerza la importancia de la acogida de las angustias inherentes al proceso de transformación corporal, así como de la red de soporte psicosocial en el desarrollo de acciones para mejorar la calidad de vida de la persona transexual.

Palabras clave: Identidade de Género; Desarrollo Psicosexual; Evaluación Psicológica; Subjetividad.


 

 

Introdução

As contínuas transformações sociais dos últimos três séculos resultaram em inúmeros discursos sobre a sexualidade, possibilitando investigações acerca das questões identitárias do sujeito. Foucault (2018/1988) ressalta que, a partir do século XVII, com o advento das teorias biológicas da sexualidade, este aspecto foi restringido apenas ao reprodutivo, silenciando, ocultando e passando a considerar anormal outras formas que não a heterossexual. Todavia, as discussões acerca da diversidade sexual e de gênero têm sido pauta constante nos últimos anos, tanto em termos de luta por reconhecimento de direitos civis como na busca por aceitação social (Monteiro, Araújo, Guedelho, Beserra & Machado, 2017).

Para compreender a construção da subjetividade e a expressão psicossocial de gênero dos indivíduos é necessário, inicialmente, diferenciar conceitualmente os termos sexo biológico, orientação sexual e identidade de gênero. De forma geral, o sexo biológico é definido através da combinação das características genitais, cromossômicas e hormonais, inferindo se a pessoa nasceu macho, fêmea ou intersexual (Lanz, 2014). A orientação sexual está relacionada ao gênero/sexo que a pessoa sente atração, ou seja, está ligada à inclinação afetiva, amorosa e sexual. Já o gênero é tido como categorias que são historicamente, socialmente e culturalmente construídos, e são assumidos individualmente por meio de papéis, gostos, costumes, comportamentos e representações. O gênero precisa ser assumido pela pessoa, mas isso não acontece como processo de escolha, mas de construção. Desta forma, a identidade de gênero diz respeito ao gênero com o qual a pessoa se identifica enquanto sujeito, abrangendo a complexidade humana (Rodriguez, 2014).

Na contemporaneidade, as identidades sexuais e de gênero rompem com o padrão do binarismo tradicional que restringiam sexo a homem e mulher e orientação sexual a heterossexual e homossexual (Peres, & Toledo, 2011). Neste cenário, surgem novas propostas teóricas de entendimento da constituição do gênero e da orientação sexual, não se limitando a linearidade para além do sexo, gênero e desejo (Butler, 2003; Rodriguez, 2014). Assim, a sexualidade e todos os seus componentes passou a ser uma questão de interesse dos movimentos sociais, pesquisadores, religiosos, políticos, antropólogos e educadores (Louro, 2008).

Dentre os assuntos pautados encontra-se a transexualidade, tema ainda complexo para a sociedade por ser um fenômeno que desafia as convenções sociais, rompendo com o padrão heteronormativo e meramente fisiológico na construção do gênero (Vieira, 2000). A expressão "trans" refere-se a não determinação de fronteiras entre as identidades de gênero, não desrespeitando nem a autoidentificação, nem seus intercruzamentos nos grupos de gênero e sexualidade disponíveis (Rocon, Zamboni, Sodré, Rodrigues, & Roseiro, 2017). Assim, a transexualidade configura-se pelo sentimento intenso de não pertencimento ao sexo anatômico (Arán, 2006), sendo considerada como transexual a pessoa que não se identifica com seus genitais biológicos e suas atribuições socioculturais impostas ao gênero de nascimento (Peres, & Toledo, 2011).

Cabe ressaltar que apesar do sentimento de não pertencimento ao sexo anatômico, a transexualidade não se configura como transtorno mental, psicopatologia desvio ou inadequação como reiterado pelo Conselho Federal de Psicologia (Resoluçao Nº 1, 2018). Nesta perspectiva, o órgão esclarece que as expressões e identidades de gênero são possibilidades da existência humana e que não se restringem ao caráter cisgênero - no qual a pessoa está em conformidade com o sexo biológico atribuído a ela (Lanz, 2014) -, e heterossexual, devendo ser considerado a autodeterminação e autonomia na constituição individual da identidade de gênero. De tal modo, torna-se importante o desenvolvimento de ações de combate à transfobia, bem como medidas para auxiliar a pessoa a ter plena participação social.

O posicionamento do CFP (Resoluçao Nº 1, 2018) é um passo importante para a despatologização e pode ser considerado mais progressista do que a própria American Psychiatric Association (APA) que, embora tenha retirado a transexualidade do quadro de transtornos de gênero, ainda a mantém no Diagnóstico de Saúde Mental (APA, 2014) classificado como Disforia de Gênero, isto é, a angústia que uma pessoa sofre por não se encontrar identificada com as características anatômicas e culturais do seu sexo biológico. Todavia, ativistas transexuais lutam pela retirada de classificações ainda existentes nos manuais de psiquiatria, afirmando que as identidades trans não são uma doença (Sampaio, & Coelho, 2012).

Em termos de serviços de atenção à saúde da pessoa transexual, no Brasil vigora a Política Nacional de Atenção Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013) no Sistema Único de Saúde. Embora a Política garanta o tratamento hormonal, cirúrgico e pondere os fatores psicossociais desta experiência (por exemplo: saúde mental, drogadição, alcoolismo, depressão e suicídio), é possível perceber que pouco tem se abordado a partir da ótica dos(as) próprios(as) transexuais. É importante averiguar o que essas pessoas pensam a respeito dos processos que lhes dizem respeito, de modo que se possa incluí-las na discussão do tema (Sampaio, & Coelho, 2012).

Torna-se importante, também, incluir a sociedade como um todo neste debate com intuito de que a transfobia e suas consequências danosas sejam rompidas. O Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de travestis e transexuais, sendo que no ano de 2017 - ainda que com subnotificações - foram registrados 179 assassinatos de travestis ou transexuais, com predominância da vítima pertencente ao gênero feminino (94%) e com maior incidência na região nordeste (Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA, 2018). Além da violência física, há a exclusão desta população no mercado de trabalho, fazendo com que recorram à prostituição de rua e fiquem vulneráveis à violência sexual e ao estupro corretivo (Brasil, 2016). No âmbito escolar, adolescentes travestis ou transexuais dificilmente conseguem terminar os estudos e evadem do sistema de ensino por não conseguirem aceitação dos demais em relação às suas diferenças e seus corpos (Dinis, 2011).

Neste contexto, entende-se que é necessário considerar como objetivo de intervenção na assistência a pessoas transexuais a criação de meios para melhorar a qualidade de vida da população (Amaral, 2011), bem como fortalecer a autoestima e satisfação com a imagem corporal, aspectos diretamente associados a melhores percepções de qualidade de vida (Minayo, Hartz, & Buss, 2000). Um estudo (Figueiredo, Schwach, Wolfe, McBritton & Marquezine, 2018) constatou que a mudança do nome social adequado ao gênero gerou repercussões positivas nos participantes, melhorando a qualidade de vida, possibilitando a inserção no mercado de trabalho, assim como, melhor autoestima e menos ansiedade para a realização da cirurgia de transexualização.

Em relação à satisfação com a imagem corporal, a angústia ou repulsa pelo corpo inadequado pode ser extrema a ponto de ocorrerem automutilações ou uso inadequado de hormônios sem acompanhamento médico (Silva et al., 2016). A insatisfação com o corpo, atrelada às precariedades sociais de aceitação da pessoa trans, pode gerar intenso sofrimento psíquico, resultando em tentativas de suicídio, depressão e transtornos alimentares como verificado com transexuais que procuraram o atendimento de um hospital para realização de cirurgia de transgenitalização (Arán, Zaidhaft, & Murta, 2008).

Assim, torna-se importante realizar estudos que considerem as questões psicossociais a partir da perspectiva da pessoa transexual (Sampaio, & Coelho, 2012). Além disso, é necessária a construção de conhecimentos que auxiliem a romper com as situações de transfobia e exclusão da pessoa transexual (Resolução Nº 1, 2018). De tal modo, os profissionais da Psicologia devem buscar formação e produzir conhecimento para entender as transformações subjetivas envolvidas nas mudanças de identidade de gênero e na relação estabelecida com a autoimagem (American Psychological Association - APA, 2015). Buscando contribuir com as discussões sobre a temática, o presente estudo teve como objetivo avaliar a qualidade de vida e a satisfação com a imagem corporal de pessoas transexuais. Além disso, pretendeu-se verificar associações entre os construtos e diferenças em função de variáveis sociodemográficas.

 

Método

Participantes

Participaram desta pesquisa 88 pessoas, com idades entre 18 e 54 anos (M = 25,65, DP = 8,398). Destas, 62,5% (n =55) atribuíram-se biologicamente ao sexo feminino e 37,5% (n = 33), ao sexo masculino, sendo que, 58% (n = 51) dos participantes declararam se identificar com o gênero masculino, 35,2% (n = 31) com o gênero feminino e 6,8% (n = 6) se identificaram-se como não binário. A respeito da orientação sexual, 68,2% (n = 60) da amostra se declararam heterossexuais, 21,6% (n = 19) bissexuais, 8% (n = 7) pansexuais e 2,3% (n = 2) não responderam. Do total de participantes, 72,7% (n = 64) disseram estar namorando no momento da coleta, 22,7% (n = 20), casados(as) ou vivendo com companheiro(a) e 4,5% (n = 4), separados(as) ou divorciados(as).

Desta amostra, 37,5% das pessoas (n = 33) disseram fazer uso de hormônios para adequação corporal e 20,5% (n = 18) disseram que não fazem uso de nenhum tipo de hormônio. 15,9% dos participantes (n = 14) alegaram fazer apenas o uso de hormônios, destacando que não realizaram nenhum procedimento cirúrgico, 6,8% (n = 6) além da intervenção hormonal se submeteram a algum tipo de cirurgia e 6,8% (n = 6) não sofreram nenhum tipo de intervenção cirúrgica ou hormonal. Uma minoria já havia realizado procedimentos cirúrgicos (3,4%; n = 3) ou estava se preparando para iniciar a utilização de hormônio (transexual Pré-T) (2,3%; n = 2). Uma pessoa declarou-se como travesti e outras cinco não responderam essa questão.

Instrumentos

WHOQOL-bref (WHOQOL Group, 1998): instrumento de autorrelato composto por 24 itens respondidos em uma escala tipo Likert de cinco pontos. Avalia quatro domínios: Físico, Psicológico, Relações Sociais e Meio Ambiente. Além dos 24 itens, o questionário tem duas perguntas gerais acerca da qualidade de vida global. Na resposta ao instrumento, solicita-se que os participantes considerem as duas últimas semanas vividas.

Escala de Satisfação com a Imagem Corporal - ESIC (Ferreira, & Leite, 2002): instrumento de autorrelato composto por 25 itens respondidos em uma escala tipo Likert de cinco pontos que variam entre 1 (Discordo totalmente) a 5 (Concordo totalmente). Tem por objetivo avaliar aspectos de satisfação com a imagem corporal e divide-se em dois fatores: satisfação com a própria aparência e preocupação com o peso.

Questionário de Identidade Corporal - QIC (Cardoso, 2008): instrumento de autorrelato composto por 35 itens respondidos em escala tipo Likert de sete pontos variando entre 0 (nunca) a 7 (muito) com o objetivo de medir a intensidade de eventos relativos à identidade corporal das pessoas. O questionário indica três dimensões: corporeidade, sexualidade e motricidade e é subdividido em dez tópicos: intimidade corporal e genital, percepção corporal, satisfação corporal, pré-disposição sexual, comportamento sexual, orientação sexual, satisfação sexual, experiência motora, orientação motora e identidade infantil.

Procedimentos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Francisco (CAAE: 65238417.0.0000.5514). A aplicação ocorreu de forma on-line, sendo que o protocolo contendo os instrumentos e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi elaborado na plataforma Google Forms. Para acessarem os instrumentos, os participantes deveriam ter 18 anos ou mais, ser uma pessoa transexual e concordar com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O link da pesquisa ficou ativo no período de março a abril de 2017.

Com o intuito de atingir o maior número possível de pessoas, o link foi divulgado em grupos, páginas e comunidades da rede social on-line Facebook, sendo que a pesquisadora pediu autorização para participar dos grupos e também para postar o convite de participação da pesquisa. Ao longo da coleta de dados, o questionário sociodemográfico sofreu alterações na forma de escrita das perguntas a partir de sugestões e solicitações dos participantes que se sentiram incomodados com algumas perguntas. Como exemplo, os participantes questionaram o uso da palavra sexo em vez de gênero, o fato de não ter sido elencado outras possibilidades de orientação sexual além de heterossexual, homossexual e bissexual e a utilização do termo transexual parcial para aqueles que não haviam completado o processo cirúrgico. Assim, por meio da contribuição e diálogo com os participantes o formulário foi readequado, de modo a ficar mais coerente com as percepções do público investigado e sem alterar o objetivo das perguntas. Esse diálogo foi parte importante do processo, pois contribuiu de forma significativa para que o estudo fosse referenciado e apoiado pelos participantes.

Análise de dados

Os dados foram analisados por meio do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 21. Foram utilizadas estatísticas descritivas para caracterização da amostra e estatísticas inferenciais por meio do teste t de Student, Análise de Variância (ANOVA), prova de Tukey e Correlações de Pearson.

 

Resultados

Inicialmente buscaram-se diferenças nas médias de respostas aos instrumentos em função das variáveis sociodemográficas. Na comparação em função do estado civil não foram encontradas diferenças com significância estatística. Ao analisar as pontuações em função do sexo biológico, os resultados foram significativos apenas para a questão "Como você avaliaria a sua qualidade de vida" e Domínio Meio Ambiente da WHOQOL-Bref, sendo que pessoas do sexo biológico masculino obtiveram maiores médias quando comparadas às do sexo biológico feminino na questão e no Domínio Meio Ambiente. Na comparação em função do gênero (masculino, feminino, não binário), utilizando-se a Análise de Variância (ANOVA) e Prova de Tukey, foram obtidos resultados significativos para fatores da ESIC, WHOQOL-Bref e QIC, como apresentado na Tabela 1.

Observa-se que, embora com diferenças significativas estatisticamente, apenas em dois fatores do QIC houve formação de subconjuntos diferenciando os grupos, sendo que pessoas do gênero não binário apresentaram maiores médias quando comparadas ao gênero feminino em Satisfação com o Corpo. Já no fator Identidade Infantil, pessoas do gênero masculino obtiveram maiores médias diferenciando-se do gênero feminino. Nos Domínios Físico e Meio Ambiente da WHOQOL-Bref e fator Percepção com o Corpo (QIC), pessoas do gênero feminino tiveram as maiores médias quando comparadas com os demais, porém, sem formação de subconjunto. No fator Satisfação com a Aparência (QIC) pessoas do gênero não binário obtiveram maiores médias sem diferenciação dos demais grupos.

Na comparação em função da orientação sexual, foram obtidos resultados significativos estatisticamente apenas para o Fator Satisfação com o Corpo (QIC). Verificou-se que pessoas com pessoas com orientação pansexual obtiveram maiores médias diferenciando-se daquelas com orientação bissexual que tiveram as menores pontuações. Em seguida, foram realizadas Correlações de Pearson entre os domínios da WHOQOL-Bref, como apresentado na Tabela 2. Ressalta-se que a frase completa das perguntas 1 e 2 da WHOQOL-Bref constantes na tabela estão na legenda. Observou-se que a maioria das correlações foram estatisticamente significativas, em sentido positivo e com magnitudes variando entre moderado e forte.

Pergunta 1: Como você avaliaria sua qualidade de vida?; Pergunta 2: Quão satisfeito(a) você está com a sua saúde? Nota: **p<0,001

A pergunta "Como você avalia sua qualidade de vida?" correlacionou-se significativamente com todos os domínios avaliados pelo instrumento. Assim, pessoas que avaliam positivamente sua qualidade de vida global tendem a ter percepção mais positiva em relação aos aspectos de saúde física e psicológica e melhor estabelecimento de relações com o meio cultural e social. Na sequência foram correlacionados os fatores da ESIC e do QIC e os resultados são apresentados na Tabela 3.

As correlações entre os fatores dos instrumentos demonstraram resultados significativos, em sentido positivo e com magnitude para Satisfação com a Aparência da ESIC com os fatores Percepção com o Corpo (magnitude forte) e Satisfação com o Corpo (magnitude fraca) da QIC. Neste sentido, é possível notar que quanto melhor a percepção do próprio corpo e a satisfação com o mesmo, maior é a satisfação com a própria aparência. Por fim, foram realizadas Correlações de Pearson entre os fatores da QIC e ESIC com os domínios da WHOQOL-Bref como observa-se na Tabela 4. Ressalta-se que a frase completa das perguntas 1 e 2 da WHOQOL-Bref constantes na tabela estão na legenda.

Observa-se que os coeficientes de correlação que foram significativos estatisticamente variaram entre fraco e forte em magnitude e todos em sentido positivo. Foram obtidas correlações entre todos os domínios da WHOQOL-Bref e os fatores Satisfação com a Aparência (ESIC) e Percepção com o Corpo (QIC). Assim, pessoas mais satisfeitas com seu corpo e com a própria aparência tendem a ter melhores índices de qualidade de vida em todas as perspectivas. De acordo com os resultados apresentados, infere-se que para a população transexual a qualidade de vida está diretamente associada à satisfação estética, além de aspectos psicológicos mais saudáveis indicando que quanto mais satisfeito se está com o próprio corpo, mais autoestima e sentimentos positivos se têm, além de melhor rede de apoio social e atividade sexual.

 

Discussão

Este trabalho teve por objetivo avaliar a qualidade de vida e a imagem corporal da pessoa transexual uma vez que tal fenômeno se apresenta de forma complexa, ao considerar que a transexualidade afirma que os gêneros precisam ser assumidos pela pessoa, não ocorrendo num processo de escolha. Assim, os processos subjetivos indicam que este não é um sistema dado, ou seja, não se nasce com o conhecimento de ser homem ou mulher, demonstrando que o binarismo não é a única possibilidade de gênero (Rodriguez, 2014).

Considerando os resultados encontrados, é possível verificar que a relação com o corpo está diretamente ligada às percepções de qualidade de vida, isso porque tais condições envolvem o bem-estar físico, mental, psicológico e emocional, bem como os relacionamentos sociais (Minayo et al., 2000). Observou-se que quanto melhor a percepção do próprio corpo, melhor a satisfação corporal, o que interfere diretamente na qualidade de vida, isso porque as relações subjetivas do indivíduo dependem primeiramente da experiência direta da pessoa e indica como esta percebe sua própria vida, felicidade e satisfação, além do ajuste da pessoa no ambiente em que está inserida. De tal modo, intervenções que visem ressiginificar a relação estabelecida com o corpo podem atuar como aspecto protetivo, uma vez que a insatisfação corporal é motivo potencial para automutilação (Silva et al., 2016), depressão e suicídio (Arán, 2006).

A capacidade de transformações dos corpos é uma variável intrínseca nos processos de saúde e enfermidade de pessoas transexuais (Rocon et al., 2017), uma vez que a aparência física é um aspecto que contribui para o nível de socialização do indivíduo. Nesse sentido, ao observar o resultado de que pessoas do gênero não binário, ou seja, aquelas que não se consideram exclusivamente homem e/ou mulher possuem uma melhor satisfação com a aparência e satisfação com o corpo, é possível hipotetizar que não se enquadrar na perspectiva linear (Butler, 2003), pode fazer com que o indivíduo não sofra com o cissexismo. O oposto parece ocorrer com pessoas transexuais que buscam o reconhecimento binário, pois apresentaram menores índices de satisfação, fato que pode estar associado com a vontade de readequação corporal e a angústia inerente a visão de um corpo incompatível com sua autoimagem (Peres, & Toledo, 2011).

Além disso, percebeu-se também que pessoas transexuais com orientação sexual pansexual, caracterizadas pelo interesse nos diferentes tipos de sexualidade, sem distinção de sexo ou gênero, também possuem melhor relação e maior satisfação com o próprio corpo. Dessa forma, nota-se que, assim como as pessoas com gênero não binário, aquelas com a orientação pansexual têm uma melhor percepção de si, bem como conseguem estabelecer relações com o outro em suas diferentes formas de ser e existir no mundo, sem se preocupar com o limite imposto pela sociedade, pois rompem com o padrão heteronormativo do gênero (Vieira, 2000). Tal dado reforça a ideia de que a liberdade de constituir e atuar com sua própria identidade sexual, de gênero e de desejo (Butler, 2003) pode melhorar o nível de qualidade de vida do indivíduo, uma vez que, não fica restrito aos paradigmas sociais vigentes.

O achado de que o gênero feminino apresentou resultados mais positivos no Domínio Físico e Domínio Meio Ambiente (WHOQOL-Bref) reforçam a importância da qualidade nos níveis psicossociais para melhores percepções de qualidade de vida (Arán, 2006). Nesta direção, percebe-se que os mecanismos internos para a capacidade de enfrentamento das situações diárias e a satisfação com o meio social e laboral no qual a pessoa está inserida são mais presentes para o gênero feminino. Pode-se pensar que assim como as mulheres cisgênero, as mulheres transexuais acabam socializando-se melhor e criando redes de apoios, ao contrário dos homens transexuais que apresentaram menor qualidade de vida nestes aspectos. Assim, pode-se hipotetizar que há uma incorporação da lógica heteronormativa (Louro, 2008) e machista na qual os homens não podem expressar-se livremente nos ambientes em que está inserido.

Além disso, o gênero feminino teve melhor resultado na Percepção Corporal, fator que avalia como o indivíduo percebe seu corpo em relação a beleza, sensualidade, e como este acredita que esteja sendo visto pelas outras pessoas na mesma medida em que se percebe. Já o gênero masculino teve maior índice em relação à Identidade Infantil, demonstrando que tiveram sua identidade de gênero já percebida desde a infância. Desta forma, evidencia-se que mesmo que os transexuais masculinos tenham tido essa identificação mais cedo, as transexuais femininas têm melhor percepção de si, proporcionando a elas uma melhor relação com o próprio corpo. Essa personificação que as mulheres transexuais trazem para a identidade de gênero, não só contradizem as normas sociais estabelecidas, mas também expõe que tudo neste contexto está sujeito a uma reinterpretação (Rodriguez, 2014), uma vez que a imagem que se tem de si próprio é parte primordial na identidade pessoal não se restringindo apenas à forma do corpo, mas envolvendo também sentidos, ideias e sentimentos referentes ao corpo (Sumiya, & Tada, 2016).

Assim, este estudo contribuiu para avançar as discussões acerca da importância de auxiliar a pessoa transexual na identificação e satisfação com o próprio corpo, uma vez que, tais aspectos estabeleceram relações diretas com o nível de qualidade de vida. Deste modo, é importante que os profissionais estejam atentos para estas demandas no acolhimento da população transexual nas diversas esferas de serviços de saúde. Somente pela compreensão integral, pautada no princípio da dignidade e da individualidade (Resolução Nº 1, 2018) é que será possível minimizar as angústias e os fatores de riscos psicossociais subjacentes à transexualidade.

De tal modo, a Psicologia pode contribuir com investigações e práticas que favorecem o desenvolvimento integral das pessoas, e especificamente no caso da transexualidade, a auxiliar de compreensão subjetiva e histórica na constituição do gênero (Arán et al., 2008). Ressalta-se que tal atuação não deve limitar-se ao espaço clínico, mas ser amplamente abordada em todos os contextos de atuação do psicólogo, principalmente no campo do trabalho e educação, nos quais a pessoa transexual tem seus direitos rompidos em função do preconceito decorrente da sua imagem vista como inadequada pela sociedade (Antra, 2018; Brasil, 2016).

A título de agenda de pesquisa, sugere-se a realização de novos estudos com uma amostra maior e, principalmente, com maior variabilidade em relação aos tratamentos medicamentosos e cirúrgicos realizados a fim de permitir verificar qual impacto de cada um dos procedimentos no nível de qualidade de vida, satisfação com o corpo e com a identidade corporal. Sugere-se ainda que sejam realizados estudos considerando outras variáveis, como, rede de suporte social, escolaridade, situação laboral e renda, no intuito de verificar como as diferenças econômicas e culturais impactam também na constituição e aceitação da identidade de gênero. Tal como apontado por Sampaio e Coelho (2012), seria de grande importância contar com a colaboração de pessoas transexuais na elaboração das pesquisas, bem como adotar uma postura aberta ao diálogo para readequar termos e questões que não condizem com a situação real da população como as sugestões realizadas pelos participantes durante a coleta de dados desta pesquisa.

 

Referências

Amaral, D. M. (2011). Os desafios da despatologização da transexualidade: Reflexões sobre a assistência a transexuais no Brasil (Tese de doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.         [ Links ]

American Psychiatric Association - APA. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre, RS: Artmed.         [ Links ]

American Psychiatric Association - APA. (2015). Guidelines for psychological practice with transgender and gender nonconforming people. American Psychological Association, 70(9), 832-864. https://doi.org/10.1037/a0039906        [ Links ]

Arán, M. (2006). A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 9(1), 50-61. https://doi.org/10.1590/S1516-14982006000100004        [ Links ]

Arán, M., Zaidhaft, S., & Murta, D. (2008). Transexualidade: Corpo, subjetividade e saúde coletiva. Revista Psicologia & Sociedade, 20(1), 70-78. https://doi.org/10.1590/S0102-71822008000100008        [ Links ]

Associação Nacional de Travestis e Transexuais - Antra. (2018). Mapa dos assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em 2017. Curitiba, PR: o autor. Recuperado de https://antrabrasil.org/        [ Links ]

Brasil. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. (2016). Relatório de violência homofóbica no Brasil: Ano 2013. Brasília, DF:.o autor. Recuperado de http://www.mdh.gov.br/assuntos/lgbt/dados-estatisticos/Relatorio2013.pdf        [ Links ]

Brasil. Ministério da Saúde. (2013). Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília, DF: o autor. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf        [ Links ]

Butler, J. (2003). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. (R. Aguiar, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Cardoso, F. L. (2008). Questionário sobre identidade corporal (QIC). Santa Catarina, SC: Universidade do Estado de Santa Catarina.         [ Links ]

Dinis, N. F. (2011). Homofobia e educação: Quando a omissão também é signo de violência. Educar em Revista, 27(39), 39-50. https://doi.org/10.1590/S0104-40602011000100004        [ Links ]

Ferreira, M. C., & Leite, N. G. D. M. (2002). Adaptação e validação de um instrumento de avaliação da satisfação com a imagem corporal. Avaliação Psicológica, 1(2), 141-149.         [ Links ]

Figueiredo, R., Schwach, K., Wolfe, B. M., McBritton, M., & Marquezine, I. M. (2018). Mudança de nome social de pessoas transgêneras: Identidade de gênero para além da biologia. Bagoas - Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, 11(17), 318-339.         [ Links ]

Foucault, M. (2018). História da sexualidade 1: A vontade de saber (2a ed). São Paulo: Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1988).         [ Links ]

Lanz, L. (2014). O corpo da roupa: A pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero (Dissertação de mestrado). Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.         [ Links ]

Louro, G. L. (2008). Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte, MG: Autêntica.         [ Links ]

Minayo, M. C. D. S., Hartz, Z. M. D. A., & Buss, P. M. (2000). Qualidade de vida e saúde: Um debate necessário. Ciência & Saúde Coletiva, 5(1), 7-18. https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000100002        [ Links ]

Monteiro, F. S. C. T., Araújo, A. M. M. D., Guedelho, C. J. L., Beserra, C. V. E. A., & Machado, C. D. S. (2017). Transexualidade infantil na psicologia: Uma revisão bibliográfica. Revista Mangaio Acadêmico, 2(3), 61-68.         [ Links ]

Peres, W. S., & Toledo, L. G. (2011). Dissidências existenciais de gênero: Resistências e enfrentamentos ao biopoder. Revista de Psicologia Política, 11(22), 261-277.         [ Links ]

Resolução Nº 1, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Rocon, P. C., Zamboni, J., Sodré, F., Rodrigues, A., & Roseiro, M. C. F. B. (2017). (Trans)formações corporais: Reflexões sobre saúde e beleza. Saúde e Sociedade, 26(2), 521-532. https://doi.org/10.1590/S0104-12902017171907        [ Links ]

Rodriguez, A. M. M. (2014). Experiências de atenção à saúde e percepções das pessoas transgênero, transexuais e travestis sobre os serviços públicos de saúde em Florianópolis/SC (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.         [ Links ]

Sampaio, L. L. P., & Coelho, M. T. Á. D. (2012). Transexualidade: Aspectos psicológicos e novas demandas ao setor saúde. Interface (Botucatu), 16(42), 637-649. https://doi.org/10.1590/S1414-32832012000300005        [ Links ]

Silva, L. O., Leandro, J. F., Santos, A. C. B., Brito, R. O., Abreu, S. R. T., & Rocha, J. V. C. (2016). Direitos humanos e sexualidade: Transgêneros no município de Arapiraca-Alagoas. Diversitas Journal, 1(2), 192-196. https://doi.org/10.17648/diversitas-journal-v1i2.357        [ Links ]

Sumiya, A., & Tada, P. C. (2016). Avaliação da satisfação com a imagem corporal e peso de estudantes de fisioterapia. Cadernos de Educação, Saúde e Fisioterapia, 2(4), 38-45. https://doi.org/10.18310/2358-8306.v2n4p37        [ Links ]

Vieira, T. R. (2000). Adequação de sexo do transexual: Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos. Psicologia: Teoria e Prática, 2(2), 88-102.         [ Links ]

Whoqol Group. (1998). Development of the World Health Organization WHOQOL-BREF quality of life assessment. Psychological Medicine, 28(3), 551-558.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Leonardo de Oliveira Barros
leonardobarros_lob@hotmail.com

Carolina Rodrigues Bueno Lemos
caroolemos@hotmail.com

Rodolfo Augusto Matteo Ambiel
rodolfo.ambiel@usf.edu.br

Submetido em: 06/08/2018
Revisto em: 31/12/2018
Aceito em: 16/01/2019

Creative Commons License