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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.24-33 

ARTIGOS

 

Tempo e desejo: perspectivas em psicopatologia psicanalítica

 

Time and desire: perspectives in psychoanalytic psychopathology

 

Tiempo y deseo: perspectivas en psicopatología psicoanalítica

 

 

Maria Regina Martinez

Docente. Universidade Federal de Alfenas (Unifal). Alfenas. Estado de Minas Gerais. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O diagnóstico psicopatológico permite o planejamento terapêutico e oferece perspectivas prognósticas. A neurose, enquanto diagnóstico psicanalítico, inclui as formas de subjetividade em que predominam dificuldades no campo do objeto do desejo, sendo dividida em duas vertentes possíveis: neurose histérica e neurose obsessiva. No sofrimento psíquico há um rompimento com a referência cronológica e a percepção subjetiva da passagem do tempo ganha valor para determinação do diagnóstico diferencial e da conduta terapêutica. O obsessivo utiliza o tempo a favor do seu masoquismo, contando obsessivamente o tempo que falta para atingir seu desejo, enquanto que na histeria o tempo é utilizado a favor da vitimização, em que o sujeito se volta para um momento de sofrimento e se fixa nele, revivendo-o repetidas vezes. O manejo do tempo no tratamento permite que haja produção do inconsciente, oferecendo a oportunidade do resgate do desejo, permitindo a simbolização e afastando o sofrimento psíquico.

Palavras-chave: Psicanálise; Psicodiagnóstico; Desejo; Tempo Subjetivo.


ABSTRACT

The psychopathological diagnosis allows therapeutic planning and prognostic perspectives. In the psychoanalytic diagnosis, neurosis includes forms of subjectivity in which the difficulties predominate in the field of the object of desire, being divided into two ways: hysteria and obsessive neurosis. In mental suffering there is a rupture with the chronological time reference and the subjective perception of the time becomes valuable for determining the differential diagnosis and the therapeutic conduct. The obsessive uses the time for his masochism, obsessively counting the time that he/she takes to achieve his/her desire. In the hysteria, the time is used for victimization: a moment of suffering is fixed and lived again and again. The management of time in the treatment allows the production of the unconscious, offering the opportunity of the rescue of the desire, allowing the symbolization and distancing the psychic suffering.

Keywords: Psychoanalysis; Psychodiagnosis; Desire; Subjective Time.


RESUMEN

El diagnóstico psicopatológico permite la planificación terapéutica y ofrece perspectivas predictivas. La neurosis, como diagnóstico psicoanalítico, incluye las formas de subjetividad en que predominan dificultades en el campo del objeto del deseo, siendo dividida en dos vertientes posibles: neurosis histérica y neurosis obsesiva. En el sufrimiento psíquico hay un rompimiento con la referencia cronológica y la percepción subjetiva del paso del tiempo gana valor para la determinación del diagnóstico diferencial y de la conducta terapéutica. El obsesivo utiliza el tiempo a favor de su masoquismo, contando obsesivamente el tiempo que falta para alcanzar su deseo, mientras que en la histeria el tiempo se utiliza a favor de la victimización, en que el sujeto se vuelve a un momento de sufrimiento y se fija en él, reviviéndolo repetidas veces. El manejo del tiempo en el tratamiento permite que haya producción del inconsciente, ofreciendo la oportunidad del rescate del deseo, permitiendo la simbolización y alejando el sufrimiento psíquico.

Palabras clave: Psicoanálisis; Psicodiagnóstico; Deseo; Tiempo Subjetivo.


 

 

Introdução

O estudo de psicopatologia dispõe de uma abrangente literatura que, a despeito disso (ou por causa disso), não deixa de ser controversa, apresentando diversos problemas conceituais e filosóficos. No entanto, na perspectiva da prática clínica, é importante que se determinem sinais e sintomas que possam oferecer subsídios para o diagnóstico psicopatológico diferencial, permitindo uma orientação no tratamento e manejo terapêutico adequados.

A Psicologia é uma ciência da saúde aplicada que exige uma classificação dos fenômenos que estuda e trata. Nesse sentido as características da doença devem ser descritas de uma maneira lógica e científica, permitindo o estabelecimento de um diagnóstico capaz de direcionar seu manejo terapêutico (Paris, 2015).

O estabelecimento do diagnóstico permite o planejamento da terapia, suas implicações em relação ao prognóstico, contribui para a proteção dos sujeitos em tratamento, capacita o terapeuta na transmissão de empatia e reduz a probabilidade da não aderência ao tratamento (McWilliams, 2014).

O estudo empírico do diagnóstico nas ciências médicas, ou nosologia, tem como objetivo fundamentar a classificação categórica de doenças em dados científicos. A partir de sinais e sintomas que são validados por biomarcadores, isto é testes sanguíneos e sorológicos, imagens, biópsias ou autópsias, é possível se descrever o processo do adoecimento e se obter uma conclusão diagnóstica objetiva e com uma estreita margem de dúvida. Os diagnósticos, numa condição ideal por assim dizer, deveriam se basear em processos patológicos específicos relacionados a vias etiológicas específicas, permitindo uma explicação de como e por que as pessoas adoeceram. No entanto, em psiquiatria, as doenças não são classificadas da mesma forma que em outras condições de saúde e adoecimento (Paris, 2015).

Uma das estratégias disponíveis ao psicólogo para determinar o diagnóstico diferencial é a utilização do escopo teórico da Psicanálise, que se importa com o discurso do sujeito e considera as manifestações do inconsciente. A Psicanálise interessa-se em decifrar o "enigma" que se encontra no inconsciente, focando nas formas de subjetividade e formas de sofrimento psíquico, não submetendo a pessoa a uma observação clínica, a um exame corporal, ou indicando exames subsidiários, mas pedindo-lhe que fale de si mesma sem censura ou crítica (Araújo, 2000; Minerbo, 2013; Priszkulnik, 2000).

Segundo a Psicanálise, o diagnóstico é buscado no registro simbólico, no qual são articuladas as questões fundamentais do sujeito sobre sexo, morte, procriação e paternidade (Quinet, 2009).

Neste ensaio teórico, pretende-se refletir sobre como estabelecer diagnóstico diferencial entre a neurose obsessiva e a histeria a partir dos pressupostos psicanalíticos acerca da percepção do tempo subjetivo, com a finalidade de fornecer subsídios para a condução de um tratamento analítico.

 

A questão do diagnóstico

Pesquisas epidemiológicas têm apontado que o adoecimento mental, de uma maneira ou de outra, mostra-se onipresente na população, colocando em questão as definições de saúde, doença e normalidade (Paris, 2015).

A fronteira entre o normal e o patológico é imprecisa para a coletividade, mas é perfeitamente precisa para um único e mesmo indivíduo considerado sucessivamente. Aquilo que é normal, apesar de ser normativo em determinadas condições, pode se tornar patológico em outra situação, se permanecer inalterado. O indivíduo é que avalia essa transformação porque é ele quem sofre suas consequências, no próprio momento em que se sente incapaz de realizar as tarefas que a nova situação lhe impõe (Canguilhem, 2009).

Qualquer ser humano encontra-se em um "estado normal" quando é capaz de se haver com seus problemas pessoais mais profundos e adaptar-se a si mesmo e aos outros, sem paralisar-se interiormente nem ser rejeitado socialmente, apesar das divergências que possa enfrentar no seu meio (Bergeret, 2006).

As diferenças individuais, isto é, a fuga da norma, não caracterizam a doença, pois são a consequência da variação individual que impede dois seres de poderem se substituir um ao outro de modo completo. O anormal não é o patológico. Patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada. São os doentes que julgam se não são mais normais ou se voltaram a sê-lo. O homem imagina o seu futuro também em função das suas experiências passadas, portanto, voltar a ser normal pode significar retomar uma atividade interrompida, ou uma atividade considerada equivalente, segundo seus gostos individuais ou os valores sociais do meio, mesmo que essa atividade seja mais limitada do que era antes (Canguilhem, 2009).

Inevitavelmente, cada homem constrói e sustenta seu drama individual ao longo de sua vida, fazendo com que a experiência de algum sofrimento seja inevitável à sua existência. No entanto, a superação da fixação no seu mito individual permite que o homem siga em frente na vida, adaptando-se às demandas da história, da cultura e da sociedade, a despeito do sofrimento do seu viver.

Nesse sentido, a normalidade, a anormalidade e o patológico devem ser olhados em perspectiva, pois pode-se dizer que o homem não está jamais com boa saúde: pertence à sua essência ser doente. Lacan sustenta essa assertiva ao afirmar que o louco, "é alguém perfeitamente normal" (Miller, 1996; 2011).

Bergeret (2006) define que:

O verdadeiro "sadio" não é simplesmente alguém que se declare como tal, nem, sobretudo, um doente que se ignora, mas um sujeito que conserva em si tantas fixações conflituais como tantas outras pessoas, que não tenha encontrado em seu caminho dificuldades internas ou externas superiores a seu equipamento afetivo hereditário ou adquirido, às suas faculdades pessoais defensivas ou adaptativas e que se permita um jogo suficientemente flexível de suas necessidades pulsionais, de seus processos primário e secundário nos planos tanto pessoal quanto social, tendo em justa conta a realidade e reservando-se o direito de comportar-se de modo aparentemente aberrante em circunstâncias excepcionalmente "anormais" (p. 24-5).

O adoecimento e o sofrimento psíquicos decorrem de como cada um, em sua subjetividade, lê e interpreta o mundo e a si mesmo e de como se organiza ou se desorganiza diante disso (Minerbo, 2013).

Enquanto, a partir do trabalho desenvolvido por Kraepelin, Bleuler e outros psiquiatras expressivos do seu tempo, um sistema para o diagnóstico e classificação de transtornos psiquiátricos foi codificado tanto na Classificação Internacional de Doenças (CID) quanto no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria, em movimento paralelo a psicanálise retirava a ênfase no diagnóstico e nosologia e na observação cuidadosa de sinais e sintomas (Andreasen, 2007).

As ideias de Freud, desenvolvidas do início à metade do século XX, ofereciam uma alternativa interessante para muitos psiquiatras, que passaram a utilizar das diretrizes psicanalíticas para o tratamento dos seus pacientes. A primeira e segunda versões do DSM, considerando a força do movimento psicanalítico da época, incorporaram diversos dos conceitos freudianos, dentre eles a ênfase no diagnóstico baseado na estrutura (neurose, psicose e perversão), no entanto, o DSM-III, publicado em 1980, mudou completamente a sua fundamentação teórica, dirigindo-se para a medicina baseada em evidências, o que fez substituir as descrições genéricas pelos critérios diagnósticos, com ênfase em sinais e sintomas bastante delimitados e características da doença que envolviam história familiar, história pregressa e atual do adoecimento, resposta a tratamentos e resultados de testes laboratoriais (raramente disponíveis) (Andreasen, 2007).

Pode-se dizer que a terceira versão do DSM, em alguma medida, respondia aos avanços da neurociências e, principalmente, aos avanços da indústria farmacêutica no tratamento da sintomatologia dos transtornos mentais (McWilliams, 2014; Millan, Goodwin, Meyer-Lindenberg, & Ove Ogren, 2015).

No passado, a psiquiatria estava subordinada a um modelo biopsicossocial. Com os avanços dos psicofármacos e da neurociência, a psiquiatria sofreu certo reducionismo biológico que muito tem contribuído para o "sobrediagnóstico" (tradução em português do termo overdiagnosis) e uso abusivo de medicamentos em condições em que os sintomas dizem da estrutura de personalidade do sujeito e não de uma patologia (Paris, 2015).

Em psiquiatria pouco (ou nada) se conta com biomarcadores a despeito do consistente avanço das neurociências. Até mesmo a descrição clínica, está limitada à subjetividade e ao treinamento do profissional que se propõe a estabelecer o diagnóstico (Paris, 2015). No entanto, a partir do DSM-III foi estabelecido um critério de inclusão que exige presença de informações de pesquisa para o transtorno alegado, destituindo a experiência clínica (McWilliams, 2014).

Considerando que ao analista não cabe entender a condição clínica no seu nível molecular ou celular para fazer um diagnóstico, mas, a partir da observação e escuta do sujeito, estabelecer um diagnóstico que permita a determinação da direção de um tratamento, o resgate das bases psicanalíticas para tratar das questões psicológicas e o diagnóstico baseado na estrutura da personalidade torna-se mais proveitoso do que a aplicação dos critérios diagnósticos descritos no DSM.

 

Psicopatologia psicanalítica e diagnóstico

Embora o termo "psicopatologia", advindo da psiquiatria médica, esteja relacionado à identificação, descrição e busca das causas para entidades nosológicas relativas ao psíquico, em psicanálise assume uma conotação mais ampliada, na medida em que dá lugar também ao reconhecimento da subjetividade (Minerbo, 2013).

A noção de estrutura é muito útil na clínica, desde que remete a regularidades que podem ser relacionadas a entidades nosológicas, no entanto, para a psicanálise, o foco ainda é a subjetividade: quando um psicanalista fala em neurose ou estrutura neurótica refere-se a uma forma de subjetividade construída por "uma matriz simbólica relativamente fixa a partir da qual o sujeito lê o mundo e reage a essa leitura". Isso que diferencia a psicopatologia psicanalítica da psiquiátrica (Minerbo, 2013).

O diagnóstico de caráter psicanalítico evoluiu a partir dos primeiros conceitos tecidos por Freud acerca da teoria da pulsão. A partir da biologia, este modelo retomava a centralidade nos processos instintivos e descrevia o desenvolvimento humano como um transcurso por uma ordenada progressão de preocupações corporais que passam de orais a anais, fálicas e genitais (McWilliams, 2014).

A teoria da pulsão postulava que, se frustrada ou gratificada em excesso em um estágio psicossexual precoce, uma criança poderia "fixar sua libido" em algumas das questões biológicas dessa fase e em determinadas representações que se referem a um objeto ou parte do corpo. Portanto, um homem adulto depressivo poderia ter sido negligenciado ou sobrecarregado de gratificações entre o primeiro e segundo ano de vida (fase do desenvolvimento oral); se obsessivo, provavelmente teve problemas entre 1 e 3 anos (a fase anal); se histérico, esperava-se uma rejeição ou superestimulação da sensualidade entre 3 e 6 anos (a fase fálica, posteriormente chamada de edipiana) (McWilliams, 2014).

A partir de 1950 essa teoria foi reformulada por diferentes psicanalistas, como: Erik Erikson, Margaret Mahler, Melaine Klein, Thomas Ogden e, mais recentemente, Peter Fonagy (McWilliams, 2014).

A neurose, enquanto diagnóstico psicanalítico, inclui as formas de subjetividade em que predominam dificuldades no campo do objeto do desejo. Foi a primeira estrutura psíquica a ser analisada e compreendida metapsicologicamente a partir dos trabalhos de Freud, sendo dividida em duas vertentes possíveis: neurose histérica e neurose obsessiva (Minerbo, 2013).

Freud observou atentamente e descreveu essas duas neuroses essenciais e, ao longo de sua obra, preocupou-se em revelar que a diferença estabelecida entre histeria e obsessão são a sua causa e não a manifestações dos seus fenômenos.

Lacan, pelo exame da relação do sujeito com o Outro, a partir da teoria de trauma de Freud, diz de um real causal. A partir, ainda, da lógica do significante, estabelece uma relação entre real, simbólico e imaginário, o que lhe permite inferir que a histérica é aquela que se faz mestre do mestre lá onde falta o Outro do Outro, e o obsessivo é aquele que se faz servo do mestre, a fim de se constituir como Outro do Outro (Lacan, 1989).

Freud tinha o hábito de praticar o que chamava de tratamento de ensaio, um tratamento psicanalítico inicial de pequena duração antes do início da análise propriamente dita, com o objetivo de evitar a interrupção da análise após um certo tempo. Uma das funções desse tratamento de ensaio seria o estabelecimento do diagnóstico. Lacan, posteriormente, nomeou esse tratamento de ensaio de Entrevistas Preliminares (Quinet, 2009).

A partir dos elementos marginais ou dissonantes do discurso e dos elementos não verbais como estilo, estrutura da fala, sua função, clima emocional criado e o que é mobilizado no corpo do analista, é possível situar quais as situações traumáticas e as identificações patológicas a que o cliente se remete (Minerbo, 2013), podendo-se, então, estabelecer uma hipótese diagnóstica após algumas entrevistas preliminares.

Em psicanálise o diagnóstico de neurose é atribuído para aquele que se esforça em submeter-se às exigências do supereu, uma instância psíquica que é capaz de transformar a coerção externa em coerção interna, permitindo a vida harmoniosa em sociedade. Em termos simbólicos, isso tornaria possível reverter a perda subjetiva que se consuma com a passagem pelo Édipo, recuperando-se a unidade com o Outro (Kehl, 2015).

 

Tempo e neurose

A psicanálise subverteu o tempo cronológico, aquele mensurado pelo relógio e que separa passado, presente e futuro. Para a psicanálise, passado, presente e futuro estão em contínuo remanejamento no psiquismo (Vale, & Castro, 2013).

No psiquismo o que se marca é o tempo do afeto: não vemos o tempo passar, mas somos o tempo que passa (Rossi, & Zamboni, 2005). O sujeito modifica o registro dos acontecimentos a posteriori, sendo possível conferir um sentido ao que viveu, muitas vezes um sentido inclusive patogênico (Vale, & Castro, 2013).

No sofrimento psíquico há um rompimento com a referência cronológica, pois o sujeito experiencia algo da ordem da atualidade, do real (Vale, & Castro, 2013), não importando se sua queixa está situada em um acontecimento passado ou que está por vir.

O obsessivo utiliza o tempo a favor do seu masoquismo. Conta obsessivamente o tempo que falta para atingir seu desejo, mas quando atinge o seu objetivo, sente-se esvaziado, sendo incapaz de usufruir das suas realizações, de modo que situa um novo desejo que parece inalcançável e começa a contar obsessivamente o tempo novamente para que algo que lhe traz desprazer termine, mas usufruindo desse sofrimento com grande gozo.

No obsessivo seu desejo se encontra na dependência do desejo do Outro, representando um desejo de gozo que deve ser destruído. Destruindo o desejo, ele se protege dele e o mantém em um horizonte de impossibilidade. O obsessivo anula o desejo e também tudo que o circunda (Solano-Suarez, 2008).

O neurótico obsessivo é um doente do pensamento. Experimenta pensamentos obsessivos em que há um deslocamento do afeto que torna esse pensamento estrangeiro ao sujeito. Dedica-se a pensar o impensável como a duração da vida e a morte, pois pretende dominar o real com seu pensamento. Numa compulsão de entender tudo anula o enigma do desejo do Outro, dando antes que lhe seja pedido, crendo que deve se dedicar a satisfazer toda demanda, sacrificando seu corpo e seu ser. Efetua, então, a anulação e a mortificação do desejo (Solano-Suarez, 2008).

Sua relação com o tempo, então, passa a ser dual: ora antecipando, ora procrastinando. Quando se trata de alcançar o que deseja, procrastina, mantendo seu desejo na impossibilidade. No entanto, na relação com o Outro, antecipa-se, oferecendo-se antes de estar preparado para atender a demanda ou sofrendo por consequências de um elemento causal que ainda não aconteceu ou que a probabilidade de acontecer é remota.

Na sua relação com o tempo perde todo seu senso de lógica que parece tão aguçado nos processos de intelectualização que utiliza frequentemente como mecanismo de defesa.

O neurótico obsessivo é aquele que não se ausenta, não se atrasa e não deixa de produzir incessantemente, tornando-se rapidamente um exemplo de dedicação. No entanto, não encontra tempo para usufruir das suas conquistas e frustra-se constantemente, experimentando um sentimento de vazio que o impulsiona a novos investimentos desmedidos no Outro.

Todo pensamento obsessivo que dê lugar a alguma construção será sempre ligado à sexualidade, comportando uma erotização do pensamento que implica em gozo. O pensamento, portanto, afeta o corpo, trazendo sofrimento.

Durante o seu tratamento, necessita rearranjar o encadeamento do seu raciocínio, afastando as consequências ilógicas obtidas por substituições e deslocamentos metonímicos. O sintoma obsessivo deve ser tomado como um evento que faz gozar, daí a necessidade de se fazer cortes no texto do obsessivo para isolar pelo equívoco o uso do gozo condensado em seu sintoma. Ao conseguir decifrar o que seu pensamento articula de sentido gozado desfaz o patológico que o faz sofrer (Solano-Suarez, 2008).

Na histeria o tempo é utilizado a favor da vitimização. Quando se depara com o seu desejo e a possibilidade de realizá-lo, volta-se para um momento de sofrimento e fixa-se nele, revivendo-o repetidas vezes, sem conseguir se desvincular da cena que faz com que as atenções se voltem para si.

Freud dizia que as histéricas "sofriam da memória". Não podiam ter memória, lembrar de certos fatos, o que as deixava presas na repetição, como "relógios de repetição" (Rossi, & Zamboni, 2005).

A experiência do tempo na contemporaneidade praticamente se resume-se experiência da velocidade. O tratamento psicanalítico oferece a possibilidade de um (re)encontro do sujeito psíquico com a temporalidade perdida, a princípio recuperando a experiência atemporal das manifestações do inconsciente. É uma experiência da temporalidade em que o fio do tempo é tecido pelo sujeito, no seu ritmo (Kehl, 2015).

O inconsciente tem como propriedades a ausência de contradição, a mobilidade das catexias, o caráter atemporal e a substituição da realidade externa pela psíquica. Os processos inconscientes não dão atenção à realidade. Estão sujeitos ao princípio do prazer e o tempo cronológico pouco importa (Freud, 1996). A passagem do tempo não afeta os processos inconscientes, que são atemporais, não se subordinam ao tempo cronológico e não são lineares.

O manejo do tempo no tratamento permite que haja produção do inconsciente. O estabelecimento de limites para a duração de um tratamento e os cortes no discurso fazem emergir o Real na experiência psicanalítica, causando efeitos por abalar a estrutura imaginária e simbólica do sujeito. O corte lógico-temporal, ao causar uma descontinuidade, abala as relações de sentido já estabelecidas, dando possibilidade para o sujeito rever sua posição perante seu sofrimento (Vale, & Castro, 2013).

Lacan explicita que o tempo, em qualquer operação lógica, é constituído por três dimensões: o instante de ver, definido pela experiência psicológica da operação intelectual que é o insight, o tempo para compreender e o momento de concluir (Lacan, 1998). O tempo lógico, diferentemente do tempo cronológico, não corre de maneira uniforme. No instante de ver, é possível ver tudo que está fora de si, vendo os outros, mas não sabendo quem é; no tempo de compreender realiza-se uma asserção de si, acreditando poder dizer quem é, ainda que sem uma convicção estabelecida e alguma hesitação; e, no momento de concluir, cria-se coragem para se posicionar e superar a hesitação, apressando-se para concluir, embora sem garantias e de forma provisória. O ato que impulsiona a uma certeza antecipada é que convoca o sujeito a posicionar-se, a dizer quem é e o que deseja, permitindo que o tempo de compreender culmine no momento de concluir.

O corte lógico-temporal no discurso restringe o tempo de compreender e antecipa o momento de concluir, permitindo ao obsessivo usufruir dos seus investimentos e ao histérico sair da posição de vítima.

Pagar com o tempo adquire um valor na economia libidinal e provoca uma reviravolta na relação do sujeito ao objeto: da perda de tempo, que nada traz, ao tempo que está perdido e não se recupera (Figueiredo, 1997).

A descoberta freudiana do inconsciente é a de que ele comporta o desejo, sobre o qual o sujeito nem sempre quer saber. O desejo é enigmático e impele o sujeito a saber, a desvelar esse enigma que o anima em sua existência (Quinet, 2003). O desejo comporta essencialmente no ser que fala e que é falado um não como todo mundo, um à parte, um desvio fundamental. A psicanálise autoriza o desejo no seu desvio constitucional, atuando, então, como terapêutica (Miller, 2011).

O desejo é marcado pela falta, por aquilo que não se tem. Ao se ficar satisfeito e contente com aquilo que se tem, certamente o desejo se manifestará em outro lugar, pois o desejo é propriamente a falta, é sempre desejo de outra coisa, desliza na cadeia significante. O desejo está no próprio deslizamento do significante que busca se realizar de significante em significante (Quinet, 2003).

Nesse sentido, contra o imperativo do ter, a psicanálise propõe a ética da falta-a-ser, que se chama desejo. O terapeuta se cala e ocupa o lugar de objeto causa de desejo em transferência, fazendo o indivíduo segredar aquilo que ele mesmo nem sabia que sabia (Quinet, 2006). A partir do reconhecimento do seu desejo, o sujeito se reconhece e o terapeuta pode considerar que há um tratamento em ação.

Ao resgatar a dimensão do desejo, a psicanálise abre a possibilidade para que o sujeito tome para si a responsabilidade de se situar em sua condição e, então, transformá-la (Silva, 2005).

Nessa perspectiva, manejar o tempo como um recurso para compreensão diagnóstica e de manejo terapêutico, oferece a oportunidade ao analista de colocar o analisando no rastro do seu desejo, permitindo que o simbolize, afastando-o do sofrimento e do adoecimento.

 

Considerações finais

Embora Freud pouco tenha se remetido ao tempo nos seus trabalhos como um elemento a ser trabalhado no diagnóstico e na terapêutica, suas prerrogativas sempre estiveram presentes nos seus casos clínicos e na sua discussão teórica.

Lacan retoma o tempo relacionando-o com a lógica e a produção inconsciente, possibilitando uma apropriada reflexão sobre o manejo temporal de uma análise.

A fluidez e inconstância contemporâneas, ao imprimir uma nova simbolização e valoração do tempo, resgata o valor libidinal que a passagem do tempo assume na neurose. Em outras palavras, a tensão temporal encontra-se em dependência de uma tensão libidinal e, na medida em que não é considerada, manifesta-se em sintoma.

O ato psicanalítico, ao interferir no campo da passagem do tempo, oportuniza uma mudança de posição do sujeito perante o próprio desejo. Nesse sentido, a compreensão de como o sujeito manifesta inconscientemente sua relação com o tempo e o seu manejo clínico oferece possibilidades no âmbito do diagnóstico e da terapêutica.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Maria Regina Martinez
mariareginamartinez@gmail.com

Submetido em: 14/04/2018
Revisto em: 03/12/2018
Aceito em: 31/01/2019

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