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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2019

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.84-98 

ARTIGOS

 

O olhar da Medusa: reflexões sobre crack e internação compulsória1

 

The gaze of Medusa: thoughts on crack and compulsory hospitalization

 

La mirada de la Medusa: reflexiones sobre crack e internación obligatoria

 

 

Cezar Augusto Vieira Jr.I; Adriane RosoII; Hector Omar Ardans-BonifacinoIII

IMestre. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIILivre-docente (USP). Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio trata de uma discussão teórico-crítica sobre o dispositivo de internação compulsória, especificamente nos casos relacionados ao uso de crack. A construção teórica partirá de algumas reflexões sobre o olhar do outro como parte integrante desse fenômeno, através de uma analogia com o mito da Medusa. A análise terá como base a perspectiva existencialista de Jean-Paul Sartre, trazendo para a discussão o contexto neoliberalista, liberdade, campo dos possíveis, má-fé, estigma e o ser-para-outro. Dessa discussão, emerge o questionamento da internação compulsória como medida de tratamento para pessoas que fazem uso de crack. Essas pessoas, sob o olhar do outro, já têm suas possibilidades barradas em função do uso da substância, sendo que a imposição desse tratamento culmina em seu assujeitamento e objetificação.

Palavras-chave: Internação Compulsória; Sartre; Crack; Má-fé; Estigma.


ABSTRACT

This essay is about a theoretical-critical discussion about the compulsory hospitalization device, specifically in cases related to the use of crack. The theoretical development will start from some thoughts about the gaze of the other as an integrating part of this phenomena, through the analogy with the Medusa myth. The analysis will have as a basis the existentialist perspective of Jean-Paul Sartre, bringing to the discussion the neoliberalist context, freedom, possible fields, bad faith, stigma and being-for-others. From this discussion, the debate of compulsory hospitalization as an action of treatment for people who use crack emerges. These people, under the gaze of the other, already have their opportunities restrained as a result of the use of the substance, since the imposition of this treatment culminates in their antipersonification and objectification.

Keywords: Compulsory Hospitalization; Sartre; Crack; Bad-Faith; Stigma.


RESUMEN

Este ensayo trata de una discusión teórico-crítica sobre el dispositivo de internación obligatoria, específicamente en los casos relacionados con el uso de crack. La construcción teórica partirá de algunas reflexiones sobre la mirada del otro como parte integrante de ese fenómeno, a través de una analogía con el mito de la Medusa. El análisis tendrá como base la perspectiva existencialista de Jean-Paul Sartre, trayendo para la discusión el contexto neoliberalista, libertad, campo de los posibles, mala fe, estigma y el ser-para-otro. De esta discusión, emerge el cuestionamiento de la internación obligatoria como medida de tratamiento para personas que hacen uso de crack. Esas personas, bajo la mirada del otro, ya tienen sus posibilidades barradas en función del uso de la sustancia, siendo que la imposición de ese tratamiento culmina en su sometimiento y objetivación.

Palabras clave: Internación Obligatoria; Sartre; Crack; Mala fe; Estigma.


 

 

Existem diversas versões do mito de Perseu e Medusa, mas a mais conhecida delas é trazida a nós por Grimal (2005). As górgonas eram monstros cuja cabeça era rodeada por serpentes, tinham grandes presas semelhantes às de javali, mãos de bronze e asas de ouro, que permitiam que elas voassem. Seu olhar cintilante era tão penetrante que transformava em pedra aqueles em que se fixasse. Perseu, por sua vez, no intuito de presentear o rei Polidectes, inicia sua jornada em busca da cabeça de Medusa, a única mortal dentre as górgonas. Em sua busca, o herói grego contava com os conselhos da deusa Atena, seu escudo, sandálias aladas e uma foice de aço, presenteadas por Hermes, e o elmo de Hades, que lhe concedia o poder da invisibilidade. Encontrando o covil das górgonas, Perseu eleva-se no ar com as sandálias voadoras e decepa a cabeça de Medusa, guiado pelo reflexo em seu escudo polido, evitando fitá-la diretamente para não ser petrificado. Guarda a cabeça do monstro em seu alforje e escapa do covil equipando o elmo de invisibilidade, evitando que as demais górgonas, imortais, partissem em seu encalço.

O mito ainda nos conta as aventuras vividas por Perseu em seu regresso, mas é para o trecho apresentado que voltamos nossa atenção, na tentativa de construirmos uma reflexão acerca do olhar do outro, aspecto fundamental no fenômeno da internação compulsória de pessoas que fazem uso de crack. Entendemos que esta relação com o outro é parte constitutiva do processo de construção do sujeito, por isso é necessário compreender em que medida, e por que, esse olhar do outro pode subjugar o sujeito, restringindo suas possibilidades de ser e negando sua liberdade, ou seja, tomando-o como objeto, petrificando-o. Nesse sentido, a analogia feita por Sartre (1943/2014) com o mito da Medusa, ao expor a constituição do ser-para-outro, nos indica o caminho a trilhar para a construção de uma compreensão crítica dessa medida de internação forçada.

Assim, tendo como objetivo compreender criticamente o fenômeno internação compulsória e uso de crack, à luz do existencialismo sartriano e da psicologia social crítica, partiremos de uma contextualização desse fenômeno, expondo como se efetiva essa medida de tratamento, além de traçar reflexões sobre o crack, seus usos, os olhares sobre a substância e para a pessoa além daquela. Em seguida, a partir do existencialismo sartriano e da psicologia social crítica, delinearemos uma compreensão não apenas do sujeito em relação ao olhar do outro, mas também deste olhar, que visa e enquadra o sujeito. Por fim, tendo como base a construção teórica realizada, retomaremos a discussão sobre a internação compulsória de pessoas que fazem uso de crack, tecendo reflexões críticas sobre tal fenômeno e o mito apresentado.

 

A internação compulsória e o uso de crack

A internação compulsória é uma medida utilizada para "assegurar" o acesso à saúde àquelas pessoas que, por algum motivo, não poderiam buscar por si mesmas esse cuidado. Este procedimento encontra amparo na Lei no 10.216 (2001), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, também redirecionando o modelo de assistência em saúde mental. Mais especificamente, o Art. 6º, parágrafo único, inciso III, da referida lei, indica que a medida de internação compulsória é determinada pela justiça, sem o consentimento da pessoa que será internada.

Numa tentativa de garantir um atendimento adequado, que respeite a integridade e os direitos dessa pessoa, a lei ainda propõe, em seu Art. 4º, que quaisquer modalidades de internação só serão indicadas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Infelizmente, essa ressalva legal parece utópica diante da realidade apresentada pelos serviços de saúde que, de forma cada vez mais frequente, utilizam a internação compulsória como um recurso inicial, senão único, como indica Roso (2013).

O argumento da internação como "direito à saúde" mostra-se falacioso, pois, se a saúde é um direito, seu exercício é facultativo às pessoas, e não um dever, conforme afirma Skromov (2013). A autora salienta ainda o caráter violento das internações forçadas, indicando a internação compulsória como um método ineficaz de tratamento. Em consonância, Valença (2013) afirma que, em se tratando de internação compulsória, as taxas de recaída chegam a 95%, indicando que os tratamentos ambulatoriais podem proporcionar melhores resultados.

É inquietante a subversão do dispositivo constante na lei que deveria sustentar a Reforma Psiquiátrica Brasileira, mas vem se consolidando como um meio de judicialização da saúde. Isso fica evidente quando nos deparamos com ações policiais tais como a ocorrida na cracolândia, em São Paulo (Gonçalves, 2017), que, para além do contraditório uso da Lei no 10.216 (2001) na imposição da internação compulsória, expõem o caráter higienista da ação. Somando-se a essa discussão, Azevedo e Souza (2017) criticam o movimento médico-judicial ligado às internações compulsórias, sobretudo no que diz respeito à sua utilização como estratégia de "cuidado" de pessoas que fazem uso de crack e encontram-se em situação de rua. Nas palavras dos autores:

Não há como negar a contradição presente nessa complexa situação social. Destaca-se um artigo da lei reformista e utiliza-se como um dos componentes do mecanismo de produção de uma prática sobre as populações e atenção a sua saúde, calcada não nos preceitos da Reforma Psiquiátrica, mas nos preceitos do higienismo, não nos termos da reabilitação, mas nos da exclusão (Azevedo, & Souza, 2017, p. 503).

A imediata proposição de afastamento às pessoas que fazem uso de crack, possibilitada pela internação compulsória, encontra amparo na posição de destaque que a substância ocupa atualmente nas discussões sobre drogas. Albuquerque (2010) indica que ela é apontada como a responsável por diversos problemas de nossa sociedade, enquanto problemas estruturais e mesmo o uso de outras drogas (incluindo medicamentos) acabam ficando em segundo plano. A ideia que nos é colocada é de que existe uma epidemia do crack, como demonstram Romanini e Roso (2012), em que o consumo aumenta exponencialmente e de forma descontrolada, deixando a população refém da substância.

Porém, a pesquisa realizada recentemente pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), no período entre 2012 e 2013, apresenta-nos uma realidade diferente. O objetivo foi retratar o cenário e o perfil da população usuária de crack e outras formas similares de cocaína fumada (pasta base, merla e "oxi") no Brasil como um todo. Os resultados apontam que nas capitais do país e no Distrito Federal há em torno de 370 mil usuários. Nesses municípios, estima-se que há aproximadamente um milhão de usuários de drogas ilícitas (exceto para maconha), ou seja, somente 35% são usuários de crack e/ou similares. Em nível regional, nas capitais do Sul, o estudo apresenta 37 mil pessoas que fizeram uso regular de crack e/ou similares nos últimos seis meses (Fiocruz, 2013).

Vige sobre nós o discurso de guerra às drogas, que busca indicar um culpado para as questões que seriam facilmente justificadas pelas desigualdades resultantes do sistema que rege a sociedade. Assim, um dos bodes expiatórios eleitos na atualidade é o crack. Dias (2012) enfatiza a presença das metáforas militares nessa guerra às drogas, no combate ao crack, que acabam justamente sustentando modelos de ação unilaterais que negam a escuta dos atores sociais envolvidos diretamente nessa questão (usuário, familiar, profissional). A autora vai além, reconhecendo que o fenômeno que envolve o crack merece a devida atenção,

mas profetizá-lo pela via da ameaça (para além dos riscos prováveis) é incitar o medo (e o medo distancia), é fomentar preconceito ao usuário, potencializando marginalização e exclusão, enquanto o propósito de tratamento da questão reside no seu oposto, ou seja, em estratégias de aproximação, integração e circulação de experiências e saberes (Dias, 2012, pp. 36-37).

Colocar o crack como agente da violência e causador de um problema social é colocar as consequências como anteriores às causas, desconsiderando contextos sociais excludentes e a limitação de possibilidades para a pessoa que faz uso. Assim, precisamos perceber que as questões que perpassam esse tema dizem respeito a todos nós, pois dizem da sociedade como um todo. Se o crack tem o poder de tornar-se sujeito, agindo sobre aquele que o usa e alienando-o, precisamos analisar criticamente esse fenômeno, pois, como argumentou Albuquerque (2010), destacar o crack como culpado dos problemas contemporâneos seria uma forma de desresponsabilizar a sociedade.

O questionamento que ecoa após essa reflexão é o seguinte: se na relação entre o crack e a pessoa que faz o uso, o crack ocupa o lugar de sujeito, que lugar resta para essa pessoa? É inegável o fato de que existe uma pessoa nessa relação, mas o que é passível de negação é percebê-la. Compreendê-la a partir de sua subjetividade e "aceitá-la" na situação em que está. A dificuldade em situarmos essa pessoa como sujeito de si reside no fato de que isso evidencia as mazelas de nossa sociedade. Fazer isso é reconhecer que na periferia do sistema capitalista existem pessoas que sentem, que desejam, que têm uma história de vida que não se resume ao instante "fotografado" pelos noticiários ou pelas pesquisas. Reconhecer isso é, finalmente, perceber que naquela pessoa há uma subjetividade que designa a posição privilegiada que ocupamos nesse sistema, reconhecer que somos todos parte de uma sociedade na qual a exclusão de muitos é o "motor" para a inclusão de poucos; logo, se não estamos inseridos naquele contexto de exclusão, então estamos "incluídos", utilizando-se dessa engrenagem do sistema. E é difícil reconhecer/aceitar isso. Guareschi (1992, p. 11) contempla nossa reflexão, ao afirmar:

[...] definir a realidade através da análise das relações ali existentes é tarefa muito mais completa e abrangente do que simplesmente tirar uma fotografia dessa mesma realidade. Eu posso apenas descrever os fenômenos e classificá-los, mas sua verdadeira constituição esconde-se por detrás dessa aparência.

Desconsiderando a teia de relações que constitui a realidade em que se insere a pessoa que faz uso de crack, fica fácil apontá-la como se ela fosse um objeto, assujeitada, e petrificá-la naquela situação, naquele instante. E sendo assim, poderíamos decidir sobre ela, como tratá-la para enquadrá-la novamente ao sistema. Eis aqui o "amparo social" da internação compulsória.

Iniciamos, então, nosso percurso na busca da compreensão desse fenômeno. Com o intuito de (des)construir uma relação do olhar do outro com a pessoa que é internada, partimos para uma discussão que visa possibilitar novos olhares sobre o contexto abordado.

 

Sobre a construção do contexto

Para a composição de nossa reflexão sobre o tema estudado, primeiramente lançaremos nosso olhar para o contexto neoliberal no qual nos inserimos. A sociedade contemporânea (sobretudo a ocidental) fundamenta-se numa cosmovisão liberal individualista, como nos apresenta Guareschi (2004/2012). Isso significa dizer que a ênfase da realização material encontra-se no indivíduo mesmo, transformando as relações pessoais em competição, na qual os "vencedores" podem usufruir de quaisquer meios disponíveis para sua realização pessoal e satisfação material. Aos "perdedores", por sua vez, resta o desejo do consumo e de alcançar posições sociais superiores, o que segue alimentando essa competição.

O que se deixa de lado, a partir dessa cosmovisão, é que não existe equidade entre as pessoas, não existem condições sociais justas que possibilitem o crescimento e a satisfação para todos. Isso resulta em uma superficialidade nas relações, de maneira que não percebemos a relação com o outro como constitutiva de quem somos. Porém, ainda que essa relação não tenha o devido reconhecimento, o olhar do outro ainda permeia a construção do sujeito. Um olhar que destaca uma pessoa entre os objetos, e que, sem a devida reflexão também a objetifica, "petrificando-a" na situação em que se apresenta.

Sartre (1943/2014) relaciona esse olhar com o mito da Medusa para tentar explicar a relação com o outro. Para entendermos essa posição do autor, precisamos compreender alguns conceitos utilizados por ele, que nos auxiliarão em nosso percurso.

O fundamento do ser humano é a liberdade, para Sartre (1943/2014). Mas é importante salientar que a liberdade a que se refere o pensador francês não diz respeito à noção política do neoliberalismo, tampouco ao conceito popular de "ser livre", algo como "sou livre para fazer o que quero". Mais adequado, então, seria afirmar que "sou livre para querer o que faço", no sentido de que, ainda que tenhamos possibilidades barradas no cotidiano, a escolha sempre recai sobre nós mesmos, pois não somos definidos por uma natureza humana. O conceito existencialista de liberdade não diz respeito ao êxito, mas sim à faculdade de escolher.

A partir do existencialismo sartriano, a liberdade significa apenas que não há uma predeterminação de o que o ser humano tornar-se-á, ou seja, a partir das relações que estabelece e das escolhas que faz, ele traçará seu próprio caminho. Conforme Schneider (2011, p. 168), "ser é escolher-se e essa escolha se dá como ação no mundo. Portanto, ser é agir - a liberdade é nossa ação sobre o mundo". Assim, a liberdade de escolha pode ser considerada a principal característica da condição humana, pois somente a partir dela podemos nos fazer diferentes daquilo que foi feito de nós (Sartre, 1960/1987).

Por outro lado, não podemos confundir a liberdade com uma gratuidade do acaso, como se o processo de escolher(-se) independesse das possibilidades oferecidas pelo contexto que nos rodeia. Esse campo de possíveis é designado pela história, ou melhor, pela ação do ser humano no mundo, através de uma sequência de gerações, como nos explicam Marx e Engels (1932/2007, p. 40):

A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente diferente as antigas condições.

Assim, compreendemos que o contexto histórico e social no qual estamos inseridos é o produto das ações (escolhas) de uma geração passada, e que esse nos oferecerá determinadas possibilidades que traçarão caminhos para uma expansão do campo dos possíveis, ou para alienação a essa realidade. Nas palavras de Sartre (1960/1987, p. 153): "É superando o dado em direção ao campo dos possíveis e realizando uma possibilidade entre todas que o indivíduo se objetiva e contribui para fazer história".

Para Sartre (1940/1996), é através do imaginário que o campo dos possíveis se abre para o ser humano como superação de uma situação dada, ou seja, negar, e com isso transcender sua condição atual, em direção à possibilidade de fazer-se diferente. Porém, essa função imaginária do sujeito se dá a partir de sua relação com o contexto social e cultural no qual ele está inserido. Logo, todo o estigma que permeia o imaginário social sobre as pessoas que fazem uso de crack acaba servindo como um pano de fundo para o imaginário do próprio sujeito nessa condição, de maneira que a exclusão que ele vivencia e seus problemas com o consumo da substância aparecem como que "reafirmando" seu lugar e a dificuldade em projetar algo diferente. Como escrevem Schneider e Antunes (2010, pp. 84-85):

O imaginário constitui-se, dessa forma, de elementos antropológicos e sociológicos que, ao constituírem as macros e microculturas, estabelecem a mediação simbólica dos sujeitos, possibilitando a configuração da função noemático-noética, quer dizer, a relação das coisas sobre os sujeitos, posto que, sob este horizonte de experiências simbólicas, as coisas ganham o poder de afetar as pessoas singulares. Sendo assim, não temos como evitar o imaginário, pois não há como não estarmos imersos em um contexto cultural que define nosso campo de possibilidades de ser, que faz a mediação das diferentes racionalidades.

Por outro lado, o que podemos observar hoje é um aumento progressivo desse meio circundante através das relações cada vez mais globalizadas, produto da massificação das mídias de comunicação e da popularização da internet. Nesse sentido, Koselleck (2014, p. 86) afirma que "o mundo reconfigurado pela ciência, a técnica e a indústria conhece processos de aceleração que modificam radicalmente as relações espaçotemporais, tornando-as mais fluidas". Desse modo, tal aceleração do nosso espaço temporal faz com que o mundo se apresente a nós inteiramente como transformador de nossa experiência. Não é só o meio vivenciado de forma imediata que acaba participando da construção do sujeito, mas todos os meios interligados por essa circulação de informações, como se estivéssemos presos em uma grande teia em constante transformação. A organização social contemporânea naturaliza cada vez mais as relações de exploração, exclusão e discriminação. Nas palavras de Santos (2001, p. 6):

A economia é, assim dessocializada, o conceito de consumidor substitui o de cidadão e o critério de inclusão deixa de ser o direito para passar a ser a solvência. Os pobres são insolventes [...]. Em relação a eles devem adotar-se medidas de luta contra a pobreza, de preferência medidas compensatórias que minorem, mas não eliminem, a exclusão, já que esta é um efeito (e, por isso, justificado) do desenvolvimento assente no crescimento econômico e na competitividade a nível global.

Ao lançarmos mão da proposição de Sartre (1960/1987, p. 152) sobre o projeto existencial do sujeito, como sendo o que "ele chega a fazer daquilo que se fez dele", precisamos ter em mente não apenas a ideia do encadeamento de gerações para constituir um campo de possíveis. É preciso, antes de mais nada, compreender a amplitude desse campo e o contexto excludente que ele pode engendrar.

Ainda, não há como desconsiderar o neoliberalismo, que através de sua política de "livre mercado, eliminação dos gastos públicos pelos serviços sociais, desregulação, privatização, eliminação do conceito de bem público ou comunidade" (Vargas Hernández, 2007, p. 80), despeja possibilidades de ser, identidades prontas e normatizadas, que simplesmente encaixam-se no sistema. Podemos pensar isso como uma "mercadorização" do campo dos possíveis, na qual inúmeras possibilidades estão disponíveis àqueles que podem pagar por elas. Inversamente, restam aqueles periféricos a esse sistema, que precisam suportar uma redução de alternativas para suas escolhas, tendo em vista a redução também de seu poder de consumo.

O exercício da liberdade de escolher acaba ficando cada vez mais restrito, pois mesmo esse movimento pode enquadrar-se em uma produção massiva de má-fé, ou sujeitos alienados, como veremos adiante. Isso acontece porque para cada possibilidade de escolha disponível, o sistema neoliberal parece entregar uma espécie de "guia", mostrando como devemos ser, fazer, amar, lutar, produzir... Enfim, tudo para afastar a angústia frente à incerteza da liberdade, ou mesmo para suprir e enquadrar os mais diversos desejos. Assim, temos uma infinidade de ofertas de "ser" despejadas sobre nós por meio de discursos publicitários e institucionais altamente sedutores, mas que não nos concedem nada além de má-fé disfarçada de liberdade.

 

O processo de petrificar-se: má-fé e estigma

Para entendermos do que trata a má-fé no pensamento sartriano, retomaremos a questão da liberdade. Se o ser humano não apresenta uma natureza previamente definida, ele precisa construir-se através das escolhas que realiza no decorrer da sua vida, ou seja, ele vai deparar-se com situações nas quais precisa fazer uma coisa, ou outra, pois a sua liberdade lhe permite que ele mesmo faça algo da situação em que se encontra. Porém, a liberdade não é gratuita, trazendo consigo o peso da responsabilidade de escolher(-se). Resulta disso a angústia sobre a escolha, pois ninguém além da própria pessoa irá responsabilizar-se por seu movimento. Para além de indicar a responsabilidade por uma escolha imediata, a angústia também situa a experiência da condição humana, indicando a liberdade "como possível destruidora daquilo que sou, no presente e no futuro" (Sartre, 1943/2014, p. 81).

Podemos fazer uma breve diferenciação entre o termo má-fé utilizado no senso comum, ou mesmo no Direito, e do estado de má-fé, proposto pelo pensador francês. No primeiro caso, podemos entender que a má-fé diz respeito a fazer algo que se sabe estar errado, mas ocultar esse erro em benefício próprio. Como exemplo podemos citar o ato de uma pessoa internada para tratamento da dependência à droga substituir sua urina pela de um colega no exame toxicológico, beneficiando "erroneamente" a si mesmo. Tendo conhecimento deste erro e do benefício que receberá, a pessoa oculta esse fato e assume o resultado do exame como se fosse seu, "fingindo" que agiu corretamente. Assim, no senso comum, agir de má-fé significa conhecer a situação e o erro, e escolher agir mesmo nesse sentido, "mentindo" e tirando proveito da situação.

Por outro lado, no estado de má-fé delineado por Sartre (1943/2014), a pessoa não está ocultando um erro do qual tem conhecimento, com o objetivo de beneficiar-se disso. Na perspectiva existencialista, a má-fé só é possível devido à liberdade. Isso significa dizer que, pelo fato do ser humano constituir-se através de sua liberdade de escolha, cabe a ele mesmo a responsabilidade pelo que ele faz daquilo que foi feito dele (Sartre, 1960/1987). Porém, a angústia resultante dessa responsabilidade pode tornar-se um fardo pesado demais, tendo em vista as possibilidades barradas no cotidiano, as restrições impostas pelo sistema capitalista, ou mesmo a dificuldade em compartilhar essa angústia. Portanto, a má-fé não é só a ocultação de um erro visando um benefício, mas um estado espontâneo que possibilita escapar da angústia, negando a liberdade.

Podemos compreender a má-fé comparando-a com o ato de, espontaneamente, assumirmos uma identidade rígida, negando a liberdade e as possibilidades. Também podemos considerá-la uma tentativa de fuga da condição de liberdade, pois no momento em que designamos um "ser" para nós mesmos, deixamos em suspenso a responsabilidade pela escolha. Esse movimento volta-se espontaneamente para situações vivenciadas no cotidiano ou papéis sociais exercidos, tomando-os como idênticos a quem somos, como se fôssemos única e exclusivamente o momento indicado. Por isso a má-fé possibilita um sentimento de segurança, pois ao assumirmos uma identidade rígida, negando a liberdade, não precisamos nos haver com a angústia e a responsabilidade. Ainda, é importante salientar que essa situação vivenciada espontaneamente também participa de nossa construção como sujeito, mas é apenas um aspecto da totalidade de nossas vivências.

A partir da compreensão da má-fé como esse enrijecimento espontâneo da identidade, podemos tecer uma relação com o conceito de estigma, apresentado por Goffman (1963/2013), quando uma pessoa que poderia relacionar-se normalmente em seu cotidiano apresenta uma determinada característica que é percebida antes de qualquer outra (por exemplo, o uso de crack). Essa característica vai impor-se à atenção daqueles que a encontram, afastando-os e impossibilitando a atenção a outros de seus atributos. Nas palavras do autor:

[...] acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social (Goffman, 1963/2013, p. 15).

A estigmatização, então, é esse movimento que "vem de fora", a partir do olhar do outro, que enquadra uma pessoa e salienta uma de suas características acima de todas as outras, como se fosse essa a que melhor lhe define. Tal característica é percebida como uma marca, reduzindo a pessoa visada a esse estigma, que lhe toma o lugar de sujeito.

Tendo suas possibilidades barradas pelo estigma, não resta espaço para que a pessoa escape a essa designação, ainda que de posse de sua liberdade. Fecha-se o cerco em torno dela, pois todos os olhares que a ela se dirigem são antes filtrados pelo estigma. Assim, tendo sua identidade já restringida e designada por esses olhares, a única escolha possível é assumir essa marca como sua e tornar-se aquilo que lhe designam. Esse movimento, que vem da pessoa mesma, é a má-fé. Eis o processo de petrificação: a estigmatização, a partir do outro; e a má-fé, a partir de si.

Se no estigma existe um "engessamento" de uma identidade a partir do olhar do outro, tão forte e persistente que a pessoa sob esse olhar passa a se reconhecer a partir de sua marca e assumir o estigma como seu, a má-fé é o elemento que integra esse reconhecimento ao projeto existencial. É como se já não houvessem possibilidades de ser algo diferente do que lhe é apontado: deixa-se de ser "uma pessoa", tornando-se "o indivíduo-que-usa-crack". Guareschi (2004/2012) apresenta uma concepção de indivíduo que contempla essa ideia: divisium a quolibet alio, o ser humano entendido como indivíduo, separado de tudo o mais, isolado.

Essa identidade, então, permeará toda e qualquer escolha que o sujeito realizará. Ele já não se constrói mais fundamentado em sua liberdade, pois tal identidade passa a ser a base de seu projeto, amarrando suas possibilidades para que elas confirmem a posição escolhida: sou "usuário-de-drogas".

 

O olhar petrificante da Medusa: o ser-para-outro

Para abordar a relação com o outro, Sartre (1943/2014) trata do ser-para-outro, que vai designar um dos aspectos constitutivos do sujeito. Nas palavras do pensador francês: "o outro é um mediador indispensável entre mim e mim mesmo" (Sartre, 1943/2014, p. 290). O outro, então, participa de nossa construção enquanto sujeitos, fazendo a mediação da nossa compreensão do mundo, de nossas vivências e interação com os objetos. O ser-para-outro realiza uma "função mediadora entre o sujeito e as coisas, o sujeito e seu corpo, o sujeito e a temporalidade", como afirma Schneider (2011, p. 147).

Sartre (1943/2014) defende que a relação com o outro nos revela aquilo que somos, mas também nos apresenta um novo tipo de ser, que deve sustentar qualificações novas. Ainda assim, esse novo ser que aparece diante do outro, não reside nele, pois nós é que somos responsáveis por ele. De certa forma, o outro se apodera de nosso ser através do seu olhar, que nos visa e enquadra no mundo, como um objeto entre outros objetos.

Eu sou, para-além de todo conhecimento que posso ter, esse eu que outro conhece. E esse eu que sou, eu o sou em um mundo que o outro me alienou, porque o olhar do outro abraça meu ser e, correlativamente, as paredes, a porta, a fechadura; todas essas coisas-utensílios, no meio das quais estou, viram para o outro uma face que me escapa por princípio (Sartre, 1943/2014, p. 336).

O olhar do outro não nos destaca do mundo, nos capta na situação em que nos encontramos, na ação que realizamos, entre os objetos que utilizamos. E ali, nessa situação mesma, nosso ser escoa em direção ao outro, que nos designa um ser a partir de suas próprias elaborações, um ser relativo à situação dada. Evidentemente, em nós mesmos, não somos limitados por esse ser que nos é designado, pois somos sempre possibilidades de ser. Por outro lado, ao mesmo tempo, essas possibilidades são suspensas por esse olhar que nos "aprisiona" no instante. Nesse momento, temos o conflito entre nossa liberdade e a liberdade do outro.

Sartre (1943/2014) relaciona com o mito da Medusa essa objetivação imposta pelo olhar do outro, pois todos aqueles que ficavam sob o olhar desse ser mitológico eram transformados em pedra. Dessa forma, o olhar do outro nos "petrifica", enrijece nossa liberdade, e somos tidos pelo outro como objeto. Mas ao mesmo tempo em que essa objetivação repele, ela também atrai, pois nos concede algo inalcançável: a estabilidade de uma identidade fixa. Essa estabilidade daria conta da angústia decorrente da liberdade, do movimento constante em busca de preencher uma falta. Sob o olhar do outro somos percebidos tal qual um objeto, portanto, estaríamos completos, nossa construção estaria finalizada e não haveria preocupações com possibilidades e responsabilidade. Porém, essa perfeição jamais é atingida, pois somos liberdade e construção contínua, não há uma natureza que nos limita, nem uma essência que nos define, somos movimento. Assim, essa estabilidade instantânea sempre fracassa, pois é dada pelo olhar do outro, ou seja, vem de fora. Temos enrijecida e escravizada nossa liberdade, pelo olhar e qualificação do outro.

É como se, diante do olhar do outro, já não tivéssemos controle sobre a situação, pois estamos em contato com a liberdade alheia. Nesse sentido, podemos considerar a afirmação de que:

Para o outro, eu existo como um homem-objeto, mas sem poder atingir o meu mundo e os meus valores. Ele pode me julgar, enquanto é um ser livre. Assim, ser-visto me constitui como um ser sem defesa para uma liberdade que não é a minha liberdade. Como estamos sem defesas diante do olhar alheio, então podemos considerar-nos "escravos" (Reyes, 2007, p. 29).

Esse considerar-se "escravo" designa uma condição humana que Sartre (1943/2014, p. 344) explica: "Sou escravo na medida que sou dependente em meu ser do âmago de uma liberdade que não é a minha e que é a condição mesmo do meu ser". A partir do momento em que somos objeto da avaliação de outro ser, conforme sua própria escala de valores, podemos ser tidos como escravos, pois não apenas não temos como conhecer essa escala de valores, mas também não podemos agir sobre a qualificação que nos é atribuída.

Dessa forma, vivemos um constante enfrentamento entre consciências no mundo, que buscam, cada qual, exercer sua liberdade. Quando nossas expectativas estão de acordo com o olhar do outro, há uma trégua nesse conflito. Caso contrário, o olhar do outro sempre apontará minhas falhas e mentiras.

 

Medusa e Perseu: olhares e reflexões

Pensarmos a respeito do olhar do outro contempla especialmente a questão do uso de drogas, mais ainda no caso específico do crack. Esse olhar que participa da construção do sujeito assume um caráter estigmatizante, como afirma Goffman (1963/2013), que deixa de considerá-lo como uma pessoa comum para reduzi-lo a uma criatura deteriorada, afastando as possibilidades de que outros de seus atributos sejam percebidos.

O olhar da Medusa não apenas "petrifica" essa pessoa, objetivando-a no mundo, mas restringe suas possibilidades de ser algo diferente do que o estigma lhe impõe. Esse olhar enquadra o sujeito em uma determinada posição de impotência, subjugado pelo saber do outro, que toma para si a liberdade da pessoa que faz uso de crack. Assim, em oposição à pessoa "petrificada", fragilizada pela droga, está o outro. Aquele que olha e aponta para o ser objetificado, concedendo-se o poder de decidir o que é melhor para esse ser, a que "tratamento" ele deve ser submetido e o que ele precisa para retomar seu status de sujeito.

Por outro lado, a droga, para o usuário, não é um objeto apenas; metaforicamente, é comparável a essa Medusa que petrifica. Mas uma questão importante é por que petrifica a alguns e a outros não? Por que o olhar da Medusa (ou o efeito da droga) parece paralisar os projetos de vida de um sujeito e para outros não? Precisamos lembrar que estamos sempre inseridos em uma situação, cercados por possibilidades, somos relação. Não é possível colocar no centro do fenômeno "uso de crack" apenas a substância em si mesma, pois a construção de tal fenômeno se dá a partir da relação que a pessoa estabelece com o crack, conforme asseguram Tomm e Roso (2013). Nesse sentido, Nery Filho (2013) afirma que o que deve ser levado em conta nessa relação, em primeiro lugar, é o consumidor, não o produto, pois, ao colocar o eixo da questão sobre o consumidor, é possível compreender quais relações ele estabelece com o produto e quais dispositivos podem ser considerados em seu cuidado.

Ao mesmo tempo, podemos pensar que a Medusa é o próprio olhar do outro em direção ao consumidor de drogas - o olhar que discrimina é aquele que petrifica... A "liberdade" do outro em julgar é paradoxal, pois não é a "liberdade" que satisfaz os desejos do usuário de drogas.

Ora, podemos então supor, como uma das possibilidades, que a Medusa é esse duplo: a droga e o outro ao mesmo tempo, de tal modo que o outro é também a droga - droga-se para que se tenha esse outro, que o julga, que escraviza. Ao consumir a droga o sujeito se funde ao outro e volta a uma posição primária em que não há separação entre o eu e o outro, podendo, em certo ponto, emperrar a busca de um projeto existencial, pois passa a viver a ilusão de que está completo, como se fosse possível que a droga o completasse. Mas a busca por essa completude é um movimento incessante, que acontece no encontro com as sensações experimentadas através do uso de certa substância, mas nunca se resume a ela mesma, pois se dá sempre em relação. Nas palavras de Nery Filho (2012, p. 20), "cada humano consumirá essa ou aquela droga, na medida de suas necessidades subjetivas e sociais. Não são as drogas que fazem os humanos - já foi dito; são os humanos que fazem as drogas".

No processo de internação compulsória, o campo dos possíveis fica disponível apenas para o outro, aquele que vai visar a pessoa que faz uso de crack e decidir sobre ela. Mais uma vez, a pessoa nessa situação tem sua liberdade alienada ao desejo do outro: petrificada.

Podemos inverter tal situação para que possamos compreendê-la por outro ângulo: aquele que é internado também é um outro para aquele que interna, logo, se é este que olha, suspendendo uma liberdade alheia e decidindo sobre a internação, esse não é o movimento de sua liberdade? Ele tem diante de si uma certa situação sobre a qual precisa fazer uma escolha que trará consequências principalmente para o outro: a imposição de um tratamento forçado que representa um retrocesso no processo da reforma psiquiátrica, criminalizando e estigmatizando a pessoa que faz uso de drogas, apontando-a como indesejada e inimiga da sociedade, como afirma Amarante (2013). Temos aí uma questão ética, na qual a possibilidade de escolha de um vai interferir na vida de outro, e vice-versa.

Ao experienciar seu contexto sociológico e antropológico (a relação com seu campo de possibilidades e o olhar do outro), o sujeito desenvolve seu saber de ser, que é a maneira que ele reconhece seus impasses psicológicos, a sua forma singular de posicionar-se frente ao mundo e às suas escolhas: para Schneider (2006, p. 308), esse processo é:

[...] decorrente da articulação de um conjunto de ocorrências objetivas, fruto das escolhas livres do sujeito, mas a forma como o sujeito se sabe sendo nessas situações não é simplesmente fruto de sua escolha, mas a imposição de um teorema, que advém dos arranjos sociológicos com os quais convive e que são apropriados ativamente pelo sujeito, tornando-se sua dinâmica psicológica.

Assim, as reflexões em torno desse movimento de petrificação mais uma vez nos colocam diante de um certo contexto, que há tempos já era exposto pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2003), ao apresentar os principais fatores que reforçam a exclusão das pessoas que fazem uso de drogas, entre eles: a associação do uso de drogas com a delinquência, a dificuldade da participação social organizada por parte dos usuários, além da desigualdade do "tratamento legal" da questão e das alternativas de intervenção. Diante disso, na tentativa de esboçar uma compreensão acerca de um lugar ocupado pelos usuários de crack no contexto social contemporâneo, Nery Filho (2013, p. 35) refere-se a eles como "os excluídos dos excluídos dos excluídos", em função da sua invisibilidade, constituindo assim uma nova categoria social, para muitas pessoas, insuportável.

Os discursos sobre o crack acabam gerando a segregação e o ódio, baseados nas abordagens superficiais e reducionistas por parte da mídia, como expõe Saback (2012). Bastos e Alberti (2018) complementam a discussão, afirmando que esse imaginário social (permeado pelo estigma) acaba por gerar pânico na população, reafirmando a aprovação irrefletida de medidas segregacionistas, como a internação compulsória.

Mas podemos ir além. Quando Perseu corta a cabeça do monstro Medusa refletido em seu escudo, não seria possível pensarmos que este reflexo espelhado diante dele é o próprio Perseu? Que num ato libertador, o herói mitológico derrota a si mesmo, decepando a cabeça monstruosa, e com ela todas as ideias entrelaçadas que ameaçavam petrificá-lo? Podemos pensar que as serpentes que se entrelaçam, compondo a cabeça de Medusa representam o conjunto de ideias e discursos que sustentam a lógica de segregação para pessoas que fazem uso de crack, que as assujeitam, criminalizando-as, estigmatizando-as. Todas essas forças culminam no poder de petrificar aquele que é visado, mas a reflexão possibilita o reconhecimento das relações que permeiam esse poder e o questionamento dos contextos que o engendram. Questionar (-se) é abrir (-se) para outras possibilidades.

 

Conclusões

Partimos de um mito para tentarmos ilustrar um fenômeno da realidade, tal como fizeram os antigos. Como na mitologia de forma geral, essas histórias abrem-se para inúmeras interpretações, cada qual tentando iluminar algum aspecto de temas diversos. A compreensão do mito de Perseu e Medusa aqui discutida buscou dar conta do fenômeno apresentado neste estudo (olhar do outro, uso de crack e internação compulsória). Ressaltamos que a interpretação apresentada aqui não é uma questão fechada, mas sim um convite à constante reflexão (sobre o fenômeno, sobre o mito, sobre si mesmo), o que é peremptório para uma psicologia social crítica.

Tentamos lançar alguns questionamentos sobre a internação compulsória, principalmente no que diz respeito à objetificação da pessoa internada. Fica saliente a necessidade de uma reflexão constante não apenas sobre esse tema, mas sobre o uso de drogas como um todo, que cada vez mais tende a ser abordado de forma superficial pela mídia, pela ciência e pelo senso comum.

Nós, enquanto sociedade capitalista, personificamos, ao mesmo tempo, o monstro (Medusa) e o herói (Perseu). De uma forma cada vez mais presente, infelizmente, a sociedade representa o papel do monstro, petrificando sem questionamento as possibilidades de ser daqueles que não se enquadram no status quo. Se olharmos diretamente para os problemas sociais (como o uso de crack, por exemplo), corremos o risco de elegermos um inimigo e petrificá-lo naquela situação, justificando os discursos que permeiam nosso cotidiano. A pessoa que faz uso torna-se o problema, não pensamos sobre contextos sociais, sócio-históricos, culturais e políticos, as relações que ela estabelece, as possibilidades que lhe são negadas. Questionar o que está dado é o movimento necessário para uma atenção adequada às pessoas que fazem uso de crack. Talvez não nos reconheçamos na figura heroica que decepa a cabeça da Medusa, mas, ainda assim, a reflexão pode ser o primeiro passo para não transformarmos a sociedade num jardim de estátuas.

 

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Endereço para correspondência:
Cezar Augusto Vieira Jr.
cezaugjr@gmail.com

Adriane Roso
adriane.roso@ufsm.br

Hector Omar Ardans-Bonifacino
omardans@gmail.com

Submetido em: 07/06/2018
Revisto em: 10/09/2018
Aceito em: 01/09/2018

 

 

1 Agradecemos ao CNPq pelo subsídio financeiro através da concessão de bolsa de produtividade em pesquisa, e à Capes, pela concessão da bolsa de mestrado. Este ensaio compõe a dissertação de mestrado intitulada "Projeto Existencial, Internação Compulsória e Uso de Crack", que faz parte do projeto de pesquisa "PROCUIDADO - O Cuidado que Nós Desejamos: Uso de Crack e Representações em Saúde. Experiências de Internação Compulsória".

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