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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.71 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i3p.48-63 

DOSSIÊ: ESPECIAL 70 ANOS DE ARQUIVOS BRASILEIROS DE PSICOLOGIA
ARTIGOS

 

A crise da psicologia social brasileira: apontamentos históricos

 

The crisis of Brazilian social psychology: historical notes

 

La crisis de la psicología social brasileña: apuntes históricos

 

 

Gervásio de Araújo Marques da Silva

Doutorando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho histórico investigou a psicologia social brasileira na década de 1970, período conhecido como "crise da psicologia social". Narrativas apontam que modelo hegemônico, o cognitivo-experimental, foi questionado e emergiu a preocupação com a transformação social. O objetivo foi identificar as críticas nas publicações da disciplina durante a "crise". A metodologia foi a pesquisa documental. Analisou-se três periódicos: o Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, o Boletim de Psicologia e o Psico. A análise demonstrou a hegemonia do modelo cognitivo-experimental e as críticas, direcionadas principalmente à metodologia experimental e à irrelevância social. Poucos artigos apresentaram modelos alternativos - alguns eram formas hegemônicas sob outra denominação. O modelo psiquiátrico humanitário e comunitário surgiu como uma nova forma de saber psi. Por fim, destacamos que a transformação social não apareceu em nenhum texto.

Palavras-chave: Psicologia Social; História; Crise; Crítica; Transformação Social.


ABSTRACT

This historical work investigated Brazilian social psychology in the 1970s, a period known as the "crisis of social psychology". Narratives point out that the hegemonic model, the cognitive-experimental, was questioned and concern about social transformation emerged. The objective was to identify criticism in the discipline's publications during the "crisis". The methodology was documentary research. Three journals were analyzed: the Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, the Boletim de Psicologia and the Psico. The analysis demonstrated the hegemony of the cognitive-experimental model and some criticisms, mainly directed at the experimental methodology and the social irrelevance. Few articles presented alternative models - some were hegemonic forms under another denomination. The humanitarian and community psychiatric model has emerged as a new way of knowing psi. Finally, we emphasize that social transformation did not appear in any text.

Keywords: Social Psychology; History; Crisis; Criticism; Social Transformation.


RESUMEN

Este trabajo histórico investigó la psicología social brasileña en la década de 1970, un período conocido como "crisis de la psicología social". Las narrativas señalan que el modelo hegemónico, el cognitivo-experimental, fue cuestionado y surgió la preocupación por la transformación social. El objetivo era identificar las críticas en las publicaciones de la disciplina durante la "crisis". La metodología fue la investigación documental. Se analizaron tres revistas: el Archivo Brasileño de Psicología Aplicada, el Boletín de Psicología y el Psico. El análisis demostró la hegemonía del modelo cognitivo-experimental y las críticas, principalmente dirigidas a la metodología experimental y la irrelevancia social. Pocos artículos presentaron modelos alternativos, algunos eran formas hegemónicas bajo otra denominación. El modelo psiquiátrico humanitario y comunitario ha surgido como una nueva forma de saber psi. Al final, enfatizamos que la transformación social no apareció en ningún texto.

Palabras clave: Psicología Social; Historia; Crisis; Crítica; Transformación Social.


 

 

Introdução

Este trabalho é um estudo de história da psicologia social brasileira, que investigou a década de 1970, período denominado de "crise da psicologia social". Analisamos como as críticas deste tempo de "crise" se expressaram em publicações nos principais periódicos de Psicologia da época.

Os primeiros cursos de psicologia social no Brasil ocorreram na década de 1930, com Raul Briquet (1887-1953) em 1933 na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo e resultou na obra Psicologia Social, "primeiro livro acadêmico em Psicologia Social, editado em 1935" (Bomfim, 2003, p. 128). O segundo foi ministrado Arthur Ramos (1903-1949) em 1935 na Escola de Economia e Direito da extinta Universidade do Distrito Federal (UDF) e se tornou o livro Introdução à Psycologia Social no ano de 1936 (Bomfim, 2003; 2004). Outros acadêmicos continuaram a ministrar cursos de psicologia social ao longo dos anos 1940 e 1950. Em 1960 ocorre a consolidação da psicologia social, enquanto uma disciplina ligada à psicologia. Este processo é atribuído à regulamentação da profissão de psicólogo em 1962, que incluiu a matéria de psicologia social como obrigatória na formação em psicologia no Brasil (Bomfim, 2003; Jacó-Vilela, 2007).

Narrativas históricas apontam que a perspectiva teórica-metodológica hegemônica entre as décadas de 1930 e 1970 foi uma vertente individualista e positivista de ciência, desenvolvida nos EUA e exportada ao ocidente, após a Segunda Guerra Mundial expressa no modelo cognitivo-experimental. A "crise da psicologia social" inicia na Europa na década de 1960, quando o modelo cognitivo-experimental começa a ser criticado, e chega ao Brasil na década de 1970, período denominado de "crise da psicologia social" brasileira e, para outros, "crise" de toda a psicologia. A "crise" levou à busca por alternativas, por isto a década de 1970 é considerada um marco para a diversificação dos seus pressupostos teórico-metodológicos e emergência de perspectivas críticas na psicologia social brasileira (Lane, 1981/2006; Yamamoto, 1987; Bernardes, 2001; Molon, 2001; Bomfim, 2003; Jacó-Vilela, 2007; Lacerda Junior, 2013). Segundo Bernardes (2001), na "crise da psicologia social" na América Latina, a "palavra de ordem era a transformação social" (p. 31).

Este trabalho buscou identificar na psicologia social dos anos 1970 esta "palavra de ordem": houve perspectivas e posicionamentos críticos compromissados com a transformação da realidade social do Brasil? A "crise" levou à emergência de novas elaborações teóricas, metodológicas e práticas? É possível identificar alguns posicionamentos da psicologia social brasileira diante da realidade do país?

Há algumas análises sobre a "crise da psicologia social" brasileira na década de 1970. Lane e Bock (2003) destacaram a importância dos Congressos da Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP), quando a partir de meados de 1970 surgiram críticas à psicologia social cognitivo-experimental estadunidense, hegemônica na América Latina, bem como a importância do I Encontro Brasileiro de Psicologia Social em 1979. Machado (2016) e Bomfim (2003) destacaram a importância do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ou apenas Setor, tendo Célio Garcia como fundador e diretor, onde se discutiam e desenvolviam novas formas de psicologia social, como psicossociologia francesa, ecologia humana, análise institucional, inclusive realizando contato com países estrangeiros e visitas internacionais trazendo novas perspectivas ao Setor. Molon (2001) mostrou a importância do papel de Silvia Lane e do curso de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), dos trabalhos em comunidades e dos Congressos da SIP. Jacó-Vilela (2007) aponta que as respostas surgidas no período de "crise" ainda são atuais, como a psicologia sócio-histórica, representações sociais, análise institucional e a Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso). Lacerda Junior (2013) apresentou como as transformações na sociedade brasileira na década de 1970, com a retomada das lutas sociais contra a ditadura, promoveram transformações na psicologia, especialmente a partir do campo da psicologia social, especificamente dos debates sobre a "crise". Yamamoto (1987) apontou que a "crise" era de toda a psicologia, surgida dos questionamentos sobre a função social do psicólogo, geradas devido à crise no mercado de trabalho e restringida a uma "crise de consciência", resultando em respostas agrupadas em dois eixos: (1) psicologia alternativa, que reunia propostas em contraposição ao tradicional e possuem duas tendências, a (a) busca por originalidade sem a preocupação de não reproduzir ou não os problemas da psicologia tradicional, como as abordagens corporais e a que (b) procura uma saída para a Psicologia por meio do alcance à maioria popular que não era alcançada pela psicologia; (2) contrapsicologia, com críticas e busca por uma redefinição da Psicologia.

A narrativa da "crise" e da transformação social em torno dela foi o que levou à realização desta pesquisa. Com exceção do trabalho de Yamamoto (1987), que analisou publicações do início dos anos 1980, não encontramos análises que demonstram como a "crise" da psicologia e/ou da psicologia social brasileira se manifestou em publicações. É o que buscamos apresentar aqui. Nossa preocupação não é com o conceito de crise ou seus usos historiográficos, mas com as críticas e as alternativas expressas neste período.

O objetivo geral foi identificar quais os posicionamentos críticos da psicologia social durante o seu período de "crise" na década de 1970. Os objetivos específicos são: (1) compreender a relação entre a psicologia social nos anos 1970 e a realidade social do país; (2) compilar as elaborações teóricas, metodológicas e práticas das publicações da psicologia social do período; (3) identificar propostas de psicologia social visando contribuir com processos de transformação social.

 

Metodologia

A metodologia utilizada foi a pesquisa documental: se lançou mão da análise de artigos publicados em alguns dos principais periódicos de Psicologia da época, já que não havia periódicos específicos de psicologia social nos anos 1970.

A busca dos periódicos antigos de Psicologia é um desafio para a pesquisa histórica, já que não há sistematização dos periódicos de psicologia no Brasil. A nossa seleção dos periódicos de Psicologia teve dois momentos, um de levantamento e outro de seleção.

Primeiro levantamos os principais periódicos, começando pelos dois mais antigos: o Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (com este nome de 1949 a 1968, depois denominado de Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada entre 1969 e 1978 e, a partir de 1979, Arquivos Brasileiros de Psicologia) da Associação Brasileira de Psicotécnica; e o Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de São Paulo, ambos criados no ano de 1949 (Conselho Federal de Psicologia [CFP])1. Para nos referirmos aos dois primeiros periódicos, utilizaremos suas iniciais: ABPA e BP. Ampliamos os dados após consulta presencial ao precioso acervo do Laboratório de História e Memória da Psicologia - Clio-Psyché, do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde encontramos periódicos (além dos já citados) com publicação nos anos 1970, como o Boletim do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Rádice - Revista de Psicologia, editada por um grupo de psicólogos e estudantes de psicologia, a Revista de Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Gama Filho (UGF), o Boletim do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o Psico, criado em 1971 como "órgão oficial de divulgação das atividades acadêmicas do Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul" (Editorial, 1971, p. 7). Apenas este último com publicação contínua na década de 1970.

É possível que outros periódicos tenham ficado fora do levantamento devido ao motivo já pontuado: ausência de estudo histórico dos periódicos de psicologia. Isto se coloca enquanto uma limitação durante uma pesquisa histórica, mas abre um campo de investigação na Psicologia: sistematizar suas publicações periódicas, cujos resultados serão de extrema importância para o conhecimento psi e, consequentemente, ampliação da historiografia documental de suas produções.

Esta pesquisa utilizou os seguintes critérios para a seleção dos periódicos: (a) os mais antigos e/ou (b) a publicação contínua durante a década de 1970.

Foram selecionados três periódicos. Seguindo os dois critérios, selecionamos: (1) o ABPA e (2) o BP. Seguindo o segundo critério selecionamos o (3) Psico. Estes periódicos mantêm contínuas suas publicações desde que foram criados, sendo, assim, de grande importância para os estudos históricos da psicologia brasileira.

O levantamento dos artigos nos periódicos ocorreu pela busca de descritores no título, a saber: "psicologia social", "social", "sociais", "sociedade", "psicologia comunitária", "comunitária(s)", "comunidade(s)", "psicologia de grupos", "dinâmica de grupo", "grupo(s)", "realidade social", "realidade(s)", "instituição(ões)" e "institucional(is)" e "crise". Assim, encontramos 66 artigos. Estes descritores foram utilizados porque: (a) eram temas da época e/ou (b) representavam o que posteriormente foi denominado de psicologia social crítica.

Para selecionarmos os artigos foi realizada uma leitura flutuante de todo o levantamento para confirmar sua adequação à pesquisa, pois na época não era comum a existência de resumo nos textos. Feito isto, chega-se ao total de 43 artigos, que foram analisados: sendo 30 artigos da ABPA, 12 do BP e 11 do Psico.

 

A crise da psicologia social brasileira na década de 1970

As narrativas sobre a crise da psicologia social

Após a Segunda Guerra Mundial o modelo hegemônico de psicologia social estadunidense, o cognitivo-experimental, buscou apresentar soluções pacíficas para os conflitos sociais do mundo a partir de suas pesquisas experimentais (Lane, 2006; Machado, 2016). No entanto, os problemas sociais continuavam demonstrando a inviabilidade da proposta e, consequentemente, gerando críticas, caracterizadas como "crise da psicologia social" (Lane, 2006).

A "crise" iniciou-se na Europa na década de 1960, quando psicólogos sociais denunciaram o caráter ideológico e reprodutor do status quo da psicologia social cognitivo-experimental estadunidense, e chegou ao Brasil na década de 1970, quando psicólogas(os) brasileiras(os) e latino-americanos apresentaram questionamentos quanto à artificialidade da metodologia experimental e à irrelevância social da disciplina para a resolução dos problemas da realidade latino-americana (Lane, 2006; Bomfim, 2003; Lane, & Bock, 2003; Jacó-Vilela, 2007).

Na década de 1970 no Brasil e na América Latina, o hegemônico na psicologia social era o modelo cognitivo-experimental (Molon, 2001; Bomfim, 2003; Lane, 2006; Jacó-Vilela, 2007).

Afinal, o que é a psicologia social cognitivo-experimental? Segundo Krüger (1986), que foi um importante representante deste modelo aqui no Brasil, suas características são: o individualismo, em que o social é a soma de indivíduos; o experimentalismo, sendo experimentos de laboratório ou de campo planejados e controlados; a microteorização, pois não há teorias abrangentes e sim o uso conceitos; o etnocentrismo, a ciência enquanto uma produção do e para o ocidente, europeu e estadunidense; o utilitarismo, (ou pragmatismo), colocando a ciência a resolver problemas sociais; o cognitivismo, é a cognição que assume de forma racional o controle do comportamento; e o a-historicismo, consideração apenas do momento e do contexto situacional do comportamento e depois generaliza os resultados.

Além das críticas realizadas na Europa e que chegaram ao Brasil nos anos 1970, Lacerda Junior (2013) aponta que as transformações ocorridas na sociedade brasileira contribuíram para a transformação na psicologia (social). As mudanças na ciência psi brasileira não estiveram alheias aos acontecimentos da realidade social, pois as perspectivas críticas se desenvolveram especialmente a partir de 1970 por influência/consequência do início da abertura democrática. Isto resultou em uma conjuntura de "desmoralização do regime militar, a reorganização do movimento pela Anistia e a (re)democratização da sociedade brasileira, assim como pelo ressurgimento do movimento estudantil e, especialmente, do movimento operário" (Lacerda Junior, 2013, p. 226).

Ao destacar a "crise" como de toda a psicologia, Jacó-Vilela (2007) apontou que foi por meio da psicologia social que "novos problemas, novos objetos, novas abordagens e métodos se apresentam à psicologia neste momento de crise" (p. 49).

Para Lane e Bock (2003), o descontentamento com a psicologia social positivista e a postura crítica e engajamento de muitos profissionais psi resultaram na criação da Abrapso. Fundada em 10 de julho de 1980 na UERJ, durante a 32ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Abrapso aglutinou os questionamentos em relação à importação de modelos e sua irrelevância para os problemas sociais do país, a necessidade de uma psicologia social que partisse da realidade social e a busca por transformar o conhecimento científico em práxis. Assim, a Abrapso emergiu enquanto entidade que coloca em questão a ciência positivista, neutra e despolitizada, aglutina uma diversidade de perspectivas que se apresentam como alternativas aos modelos hegemônicos da psicologia social e busca contribuir com a transformação da sociedade (Lane, & Bock, 2003).

Este panorama breve não esgota o debate sobre a "crise" da psicologia social. Estas narrativas são ponto de partida para uma investigação de análise de publicações de psicologia social na década de 1970, a qual apresentamos a seguir.

A "crise da psicologia social" a partir de alguns periódicos

Analisamos um total de 43 artigos de psicologia social publicados na década de 1970 em três periódicos de Psicologia: ABPA, BP e Psico. A seguir, discorreremos sobre: (1) as críticas à psicologia social, (2) as principais teorias em voga, (3) os modelos alternativos, (4) a relevância social e (5) a relação entre a psicologia social com a realidade do país.

Em nossa análise identificamos que a "crise" da psicologia social aparece pela primeira em publicações no ano de 1971, na ABPA. As publicações desta edição é fruto do Forum de Psicologia Social, promovido pela Associação Brasileira de Psicologia Aplicada, na cidade do Rio de Janeiro, entre 26 e 29 de outubro de 1970, na PUC-Rio. Aroldo Rodrigues era presidente da Associação e foi o coordenador do Forum.

As críticas à psicologia social durante os anos 1970

Dez artigos discorrem sobre as críticas à psicologia/psicologia social, em seus aspectos teóricos, metodológicos e relevância social (Angelini, 1971; Crespo, 1971; Garcia, 1971a; Rodrigues, 1971, 1976, 1977, 1978a; Almeida, 1976; Batitucci, 1978; Schneider, 1978).

As críticas apresentadas apontavam alguns aspectos específicos que eram vistos como problema na psicologia social experimental. Alguns apresentaram críticas à concepção de ser humano, colocando em questão a fragmentação entre individual, social e cultural (Angelini, 1971) e a ênfase individualista e psicologista (Batitucci, 1978).

Quanto à metodologia positivista-experimental, as críticas giraram em torno de dois pontos: (1) o etnocentrismo das pesquisas e (2) a irrelevância social (Angelini, 1971; Crespo, 1971; Garcia, 1971a; Rodrigues, 1971, 1976, 1977, 1978a; Almeida, 1976; Batitucci, 1978; Schneider, 1978).

Os principais referenciais teórico-metodológicos

Os modelos teóricos produzidos pela psicologia social estadunidense foram os dominantes nas publicações analisadas aqui. No entanto, é preciso cuidado para não generalizar a psicologia social dos EUA. Suas produções são sistematizadas dentro de dois conjuntos gerais: (1) a perspectiva psicológica, com os estudos sobre a relação entre indivíduo e sociedade utilizando como unidade de análise o indivíduo, nos seus aspectos cognitivos ou comportamentais; e (2) a perspectiva sociológica, com os estudos adotando o coletivo, o social, como unidade de análise (Martín-Baró, 2017; Farr, 2008; Portugal, 2015; Garrido, & Álvaro, 2007).

Foi a psicologia social estadunidense de perspectiva psicológica a predominante nas publicações da psicologia social brasileira, como o cognitivismo, o behaviorismo, a sociometria, a rogeriana e a psicologia intercultural. O cognitivismo foi a mais frequentemente utilizada, sendo adotada em 19 artigos (Franchi, 1970; Moscovici, 1970; Novaes, 1970; Garcia, 1971b; Rodrigues, 1971; 1976; 1977; 1978a; 1978b; Tréz, & Cunha, 1972; Marques, 1972; 1974; Pires, Hausen, Thomaz, Netto, Arenhart, & Camara, 1972; Souza, 1972; Peretti, 1974; 1976; Silva, 1976; Almeida, 1978; Galper, 1978). Dois artigos de Schneider adotavam uma postura eclética, juntando: (a) o cognitivismo e o behaviorismo (Schneider, 1971); (b) o cognitivismo, o behaviorismo e as ciências sociais, com ênfase sociológica (Schneider, 1978). Um artigo adotou o behaviorismo como referencial (Almeida, 1976). A sociometria foi fundamento de dois artigos (Carvalhaes, 1971; Garcia, 1971c). A teoria rogeriana foi adotada em dois textos (Ferrara, 1970; Puente, 1973). E a psicologia intercultural foi adotada em um artigo (Angelini, 1971).

A psicologia social estadunidense de perspectiva sociológica apareceu em uma publicação, sobre o Interacionismo Simbólico2 (Guareschi, 1976). No artigo de Ramos (1975) foi utilizado como referencial a teoria do caráter de Riesman. Buscamos o nome do sociólogo estadunidense David Riesman (1909-2002) no índice de autores e índice analítico/remissivo do manual de Garrido e Álvaro (2007) e do livro de Michener, DeLamater e Myers (2005), mas o autor não é citado enquanto teórico da psicologia social de perspectiva sociológica, diferentemente de alguns outros teóricos da sociologia. Podemos apontar que a teoria de Riesman é uma expressão da perspectiva sociológica, pois toma o social como unidade de análise (Ramos, 1975).

Em nove textos não é possível identificar o referencial teórico utilizado. Destes, quatro apresentam relatos de experiência sem apontar quais as teorias utilizadas (Garcia, 1971d, 1971e; Winge, & d'Avila Neto, 1976; Peregrino, Peixoto & Noblat, 1978). Dois não deixam claro ao longo do texto o referencial teórico, e não há referências bibliográficas (Anthony, 1974; Monaco, 1974). Um é editorial (Seminério, 1971). Outro aponta que é preciso construir uma psicologia partindo da realidade social do país, sem apresentar algum modelo que faça isto ou propor uma forma de fazer (Crespo, 1971). Por fim, um texto destacou a "crise da psicologia social" na Europa nos anos 1960, mas afirmou que "dificilmente" a psicologia social latino-americana "poderá contribuir com algo realmente original, no sentido de que a informação trazida por pesquisas entre nós realizadas inove este ou aquele aspecto das teorias em voga nos Estados Unidos e Europa" (Garcia, 1971a, p. 71).

Dois artigos apresentam referenciais teóricos que denominamos aqui de psiquiatria crítica, pois discorrem sobre alternativas ao modelo hospitalocêntrico-manicomial da psiquiatria clássica para o tratamento psiquiátrico. Em um, o médico Corrêa (1970) aponta como alternativa a comunidade terapêutica; em outro, o psicólogo Zini Filho (1977) apresenta o trabalho comunitário preventivo e a socioterapia.

Por fim, três artigos apresentam como referencial: o teste de inteligência não verbal do francês Pierre Weil como fundamento para aplicação em analfabetos brasileiros (Crosara, 1971); a psicologia empresarial como alternativa para uma psicologia alinhada às necessidades da realidade social e do povo (Batitucci, 1978); e a religião cristã como fundamento para uma análise psicossociológica da vida comunitária defendendo a democracia como melhor modelo societário (Finkler, 1971).

O que é apresentado enquanto alternativas ao modelo hegemônico de psicologia social?

Em dez artigos há reflexões sobre a "crise" da psicologia social ou críticas (citando ou não a "crise") em geral. Diante da "crise" ou das críticas, oito artigos apresentaram como alternativa pressupostos já existentes, modelos desenvolvidos nos EUA, como a Psicologia Intercultural (Angelini, 1971), a tecnologia social-método experimental (Rodrigues, 1971, 1976, 1977, 1978a), a análise experimental do comportamento social (Almeida, 1976), a psicologia empresarial (Batitucci, 1978) e a mescla de teorias e metodologias, juntando o cognitivismo, o behaviorismo e as ciências sociais de ênfase sociológica, bem como várias metodologias sem se limitar apenas ao método experimental (Schneider, 1978). Um artigo apresenta a necessidade de novas formulações a partir da própria realidade social do país, no entanto, não apresenta nenhum modelo teórico-metodológico alternativo (Crespo, 1971). Outro artigo aponta que a psicologia social latino-americana "dificilmente" apresentará novas teorias (Garcia, 1971a).

Nestes dez artigos houve três posicionamentos em relação à psicologia social hegemônica: (1) defesa do método experimental de laboratório (Rodrigues, 1971, 1976, 1977, 1978a; Almeida, 1976); (2) combinação de métodos, utilizando o experimento e outros métodos (Angelini, 1971; Crespo, 1971; Garcia, 1971a; Schneider, 1978); e (3) rejeição ao método experimental de laboratório (Batitucci, 1978). O que se apresenta enquanto alternativas aqui não são alternativas: as duas primeiras posições buscam reafirmar o que existia e, inclusive, estava sendo criticado. A terceira posição rejeita o método experimental, mas não apresenta qual e como deveria ser um método alternativo. Ou seja, alternativas que não alternam.

Outros dois artigos apresentam uma perspectiva psiquiátrica humanizada e comunitária como formas alternativas em relação ao tratamento psiquiátrico (Corrêa, 1970; Zini Filho, 1977). Estes autores apresentam novas concepções de tratamento aos chamados doentes mentais e sua relação com a instituição psiquiátrica e com a comunidade. São aspectos caros à psicologia social, ao romper com o olhar individualizante/psicologizante e trazer para o debate e a prática da saúde mental os mediadores instituição e a comunidade.

Há uma carência de propostas alternativas ou contra hegemônicas nas publicações. A exceção ocorre dentro do que chamamos saberes psi, em que dois textos sobre instituições psiquiátricas apresentam outras formas de práxis psiquiátrica, em oposição à psiquiatria clássica (Corrêa, 1970; Zini Filho, 1977). Estes textos abordam o tratamento psiquiátrico, o que diz respeito à instituição psiquiátrica, que é um dos locus de trabalho do profissional de psicologia e, portanto, considerados enquanto modelos alternativos que se apresentam à psicologia (social).

A relevância social

O que os artigos expressam sobre a relevância social? Isto se refere ao quanto a psicologia social contribuía para a resolução dos problemas da sociedade. Este debate está relacionado especialmente à discussão sobre o método, que girava em torno de duas posições gerais: (1) a que defendia a elaboração de teorias a partir de experimentos em laboratórios, para depois aplicá-la na realidade (primazia do laboratório); e (2) a que defendia a necessidade de tomar a realidade social como ponto de partida para a elaboração da teoria (primazia da realidade).

Há três posições nas publicações: (a) primazia do experimento e depois sua aplicação (Angelini, 1971; Rodrigues, 1971, 1976, 1977, 1978a; Almeida, 1976); (b) combinação entre a primazia do experimento e primazia da realidade, não defendendo nem uma posição nem outra (Garcia, 1971e; Schneider, 1978); e (c) primazia da realidade (Crespo, 1971; Batitucci, 1978). Em todos há a preocupação com a resolução de problemas sociais. Os que defendem os experimentos de laboratório ou combinação entre experimento e outros métodos (as duas primeiras posições) partem de uma concepção positivista da ciência, em que mudando os indivíduos ou pequenos grupos muda-se a realidade. Estes não realizam mais do que uma adaptação dos indivíduos e grupos à realidade. A terceira posição, na qual criticam o experimento, os autores afirmam que este tem uma perspectiva artificial, alienada dos problemas da realidade e descontextualizada. Estes não aprofundam as críticas ao método experimental e não apresentam propostas de como partir da realidade e transformá-la.

Como se expressou os problemas políticos, econômicos e sociais da realidade brasileira nas publicações? Dois artigos fizeram menção geral à situação do desenvolvimento social: um destacando que o Brasil é "um país que luta desesperadamente contra o fantasma do subdesenvolvimento" (Batitucci, 1978, p. 139) e outro destacando a necessidade de ampliar o campo de atuação da psicologia social para o "desenvolvimento social" e "promoção do desenvolvimento" (Crespo, 1971, p. 44), sem especificar o que seria este "desenvolvimento" ou quais aspectos da realidade do país precisa de "desenvolvimento".

A preocupação com o povo brasileiro aparece em quatro artigos: no de Batitucci (1978), que afirma ser a psicologia uma profissão "de elite, de desvio e de exceção" e pouco relevante à "massa" brasileira. No de Crespo (1971), apontando que um dos campos de trabalho a serem conquistados e ocupados pelos psicólogos sociais é o de contribuir no "desenvolvimento comunitário". Nos dois artigos sobre instituições psiquiátricas e há a preocupação com o tratamento humanizado dos pacientes em substituição ao processo desumanizador e de degradação psíquica das instituições clássicas; e que o cuidado com os pacientes esteja acima de interesses econômico-políticos capitalista (Corrêa, 1970; Zini Filho, 1977).

Nos artigos, a preocupação com a mudança social não perpassa a reflexão sobre as causas estruturais dos problemas sociais. A relevância social parece depender das boas intenções do psicólogo social, e não de sua capacidade de resolução de problemáticas na sociedade.

A realidade brasileira e a psicologia social: os tempos sombrios da ditadura civil-militar

Nas publicações, a preocupação com o povo, a massa, raramente foi expressa e a demonstração da capacidade de resolução dos problemas sociais por meio da psicologia social foi nula. Para analisarmos um pouco mais a relação entre a psicologia social e a realidade do país, é necessário começamos pelo contexto da época.

Durante a década de 1970, o Brasil vivia sob o regime civil-militar, quando a oposição ao regime foi proibida, perseguida, presa e, consequentemente, torturada e/ou morta. Após a instalação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, houve a suspensão de todos os direitos constitucionais e individuais e imposição da censura. Em 1970, a violência do Estado foi institucionalizada com a criação do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército (DOI/CODI) e ocorreu o extermínio de toda a oposição de guerrilha (Gorender, 1987).

A repressão e os assassinatos ocorreram ao lado do "milagre brasileiro" e, consequentemente, do clima ufanista, propagando a imagem do país do milagre, do consumismo, da "modernização". Estes processos traduzem-se em subjetividades guiadas pela importância ao consumismo e ascensão social, sendo esta dependente da meritocracia. Assim, ocorre, no plano social e individual, a proliferação do conformismo, da submissão e do medo das autoridades (Coimbra, 2004).

Coimbra (2004) analisou algumas práticas psi, especialmente a psicanálise, demonstrando como atuaram durante os anos 1970 colaborando para a "criação, manutenção e fortalecimento de subjetividades hegemônicas que sustentaram muitos aspectos do estado de terror que se abateu sobre o Brasil naqueles anos" (p. 45). Segundo a autora, a concepção científica, de homem e de mundo dessas práticas era o positivismo.

A forma hegemônica da psicologia social brasileira desta década ditatorial era fundamentada no positivismo, expressa no modelo cognitivo-experimental, assim como pudemos observar na análise das publicações. Este modelo contribuía para a individualização de processos sociais, a naturalização da realidade social e, consequentemente, a manutenção do status quo; ou seja, a psicologia social acabava contribuindo com as práticas psi apologéticas do Estado de terror implantado no Brasil com golpe de 1964. É o que Coimbra (2004) denomina de "psicologização do cotidiano, na qual tudo se torna psicologizável, os acontecimentos sociais são esvaziados e analisados unicamente pelo prisma psicológico-existencial" (p. 46). A psicologia social brasileira (re)produz tal processo ao tomar como seu principal referencial teórico, por exemplo, o cognitivismo, reduzindo à cognição os fenômenos psicossociais (psicologismo). Ao adotar o método experimental como o modelo de produção de conhecimento, em que se isola o indivíduo dos aspectos sociais e culturais que o constitui, ocorre a naturalização do indivíduo e da realidade social.

A "crise" da psicologia social brasileira se expressa nos textos publicados na década de 1970 enquanto críticas à psicologia social e sua concepção individualista de homem e, especialmente, ao método experimental e à sua irrelevância social. As críticas não se expressaram enquanto questionamentos ao modelo social imposto à população pelo regime militar. A relação entre os saberes científicos e a realidade social não foi acompanhada de uma crítica ao modelo societário ou uma reflexão entre o meio e o comportamento social. Apenas um artigo, o do Padre Finkler (1971), defendia abertamente o modelo democrático enquanto melhor sistema para se viver em sociedade, o que em nossa análise se apresentou enquanto oposição ao regime ditatorial, por mais que isto não estivesse escrito no texto, já que um posicionamento aberto contra o regime poderia resultar em perseguição, tortura e/ou morte.

As poucas propostas alternativas e o afastamento da psicologia social com os problemas do país podem estar ligadas a algumas explicações, como: (1) a censura imposta pela ditadura civil-militar contra a liberdade de expressão e recrudescida pelo Decreto-lei no 1.077, de 1970, que estabeleceu a censura prévia (Soares, 1989); (2) o temor da brutalidade ditatorial, que acabava gerando paranoia e autorrepressão nas pessoas contrárias ao regime (Machado, 2016); (3) tradição intelectual brasileira, que tem como traço o afastamento da realidade do país - desde a Colônia os jovens abastados realizavam sua formação no exterior, se afastando das "condições e peculiaridades da realidade nacional" (Massimi, 2015, p. 90); (4) imperialismo científico dos EUA na América Latina (Farr, 2008; Machado, 2016).

Apesar dos fatores apontados acima que resultam em determinadas formas societárias e modo de subjetivação individualista, sob a égide do sistema capitalista, é necessário destacar que sempre há a possibilidade de vazamentos, escapes e fugas. Por exemplo, em duas publicações da área de psiquiatria, os autores se posicionam contra a psiquiatria clássica e apresentam modelos alternativos. O médico psiquiatra Corrêa (1970) propõe o modelo de comunidade terapêutica para romper o modelo hospitalocêntrico e passivo de paciente, apontando a necessidade de um posicionamento crítico do psiquiatra: "O que não afronta poderosos para defender o doente mental quando privado de qualquer de seus sagrados direitos a assistência e proteção - por comodismo, interesse pessoal ou receio de represálias - não é psiquiatra!" (p. 82). A outra crítica proposta é realizada pelo psicólogo Zini Filho (1977), ao apontar a necessidade de tratamento preventivo na comunidade ou socioterapia, que rompa com o modelo de instituições totais, ferramenta para a manutenção do status quo e reprodução do sistema - individualista e consumista. Estes autores nos apresentam escapes e fugas ao modelo hegemônico de tratamento dos doentes mentais. Essas possibilidades não se manifestaram em outros textos.

A psicologia social brasileira durante os anos 1960 e 1970 consolida um modelo de psicologia social cognitivo-experimental, fruto da iniciativa imperialista dos EUA nas ciências no território latino-americano (Farr, 2008; Machado, 2016). Este modelo importado acabou afastando os psicólogos brasileiros da realidade social do país, pois centraram seus esforços na replicação de teorias e experimentos da psicologia social estadunidense e seus problemas sociais e se alienando da realidade latino-americana e brasileira ou olhando para a realidade a partir de uma lente ideológica que naturaliza o ser humano e a realidade social, em vez de mostrar sua historicidade.

Uma determinada forma de sociedade contribuía para a produção de determinado modo de ser humano: individualista, meritocrático, consumista, submisso. E a psicologia contribuiu neste processo (Coimbra, 2004). Como pudemos analisar nas publicações, a psicologia social não produziu saberes e práticas em oposição a isto; pelo contrário, suas produções reforçavam o status quo.

 

Considerações finais

Os artigos publicados ao longo dos anos 1970 contendo críticas à psicologia/psicologia social ou à sua "crise" e que apresentaram propostas de modelos alternativos podem ser agrupados no que Yamamoto (1987) denomina de alternativas que não alternam, pois apresentam um caráter assistencialista-adaptativo e não se propõem à reflexão e/ou mudança das causas estruturais que produz e reproduz a desigualdade e, consequentemente, os problemas sociais.

A "crise da psicologia social" foi apresentada no Forum de Psicologia Social em outubro de 1970 e, de acordo com nossa análise, apareceu pela primeira vez em publicações no ano de 1971(a), em um texto do Garcia. Também em 1971, Angelini expôs críticas direcionadas à psicologia social, em especial à sua (ir)relevância social e individualização do homem.

As críticas expressas nos artigos não ficaram restritas à psicologia social, mas a toda a psicologia. E nem sempre vinham acompanhada do debate sobre a "crise".

As narrativas históricas sobre a psicologia social brasileira utilizadas aqui têm como consenso que o nascimento da Abrapso aglutinou as críticas realizadas à psicologia social dominante e apresentou uma diversidade de alternativas críticas (Molon, 2001; Bomfim, 2003; Lane, & Bock, 2003; Jacó-Vilela, 2007; Lacerda Junior, 2013).

Ainda sobre as narrativas, nossa pesquisa foi de encontro ao que havia sido afirmado de que a "crise" da psicologia/psicologia social brasileira se inicia nos anos 1970. No entanto, algumas narrativas apontam que nesta década surgem propostas alternativas críticas, o que deve ser analisado com cuidado. Nas publicações analisadas não conseguimos identificar propostas alternativas como as que se expressaram na década de 1980, como o materialismo histórico-dialético, a análise institucional, a psicologia social comunitária, citando alguns exemplos. No entanto, identificamos dois artigos que criticam a psiquiatria clássica e apresentaram alternativas para a sua superação a partir de transformação na instituição e com tratamento humanitário aos pacientes (Corrêa, 1970; Zini Filho, 1977). Esses modelos alternativos, vindo dos saberes psi médico-psiquiátrico, se apresentando em periódicos de psicologia e para/na psicologia, expressam a importância e a necessidade de rompimento da fragmentação e especialização do conhecimento, superando a divisão do trabalho científico. Lacerda Junior (2013) já havia destacado a luta antimanicomial como espaço fundamental para a psicologia brasileira, campo de "desenvolvimento de práticas críticas da psicologia" (p. 231).

Nos artigos analisados verificamos críticas à psicologia social nos seus aspectos: metodológicos, referentes à artificialidade dos métodos de laboratório e etnocentrismo, com as problemáticas de replicação de pesquisas em outras culturas; teórico, sobre a individualização-psicologização dos indivíduos e dos problemas sociais; e de aplicação-relevância social, sobre a irrelevância social das pesquisas para resolver problemas da realidade brasileira.

A transformação social, termo em voga nos movimentos sociais e na sociedade em geral durante a ditadura (Gorender, 1987), e tida com a "palavra de ordem" da crise da psicologia social latino-americana (Bernardes, 2001), não foi expressa nas publicações. O mais próximo desta temática foram algumas publicações que discorreram sobre mudanças sociais.

Nas propostas que afirmavam a necessidade de contribuir com mudanças sociais, não se apontavam quais eram os problemas sociais e nem as mudanças a serem realizadas. O uso do termo "desenvolvimento social" servia para manter a abstração da realidade brasileira e uma suposta ideologia de que a ciência contribui ou é caminho para tal. Não houve nenhuma proposta de contribuição com processos de transformação social. A psicologia social que encontramos nos periódicos era predominantemente conservadora.

Se por um lado nos artigos analisados não apareceu a preocupação com a transformação social, por outro, os questionamentos na psicologia social durante o que foi chamado de sua "crise" certamente contribuíram para que perspectivas críticas e compromissadas com processos de transformação social se fizesse presente na década seguinte, nos anos 1980. Por exemplo, o aparecimento de modelos alternativos para tratamento em instituições psiquiátricas foi fundamental para a reforma psiquiátrica.

Com exceção das propostas de tratamento psiquiátrico em um modelo humanizado e comunitário (Corrêa, 1970; Zini Filho, 1977), não encontramos modelos de psicologia social que promovem uma mudança teórico-metodológica em relação aos modelos hegemônicos e/ou se apresentem como alternativas.

A análise realizada aqui não dá conta da complexidade da psicologia social do período, visto que analisamos as publicações periódicas. Afinal, a Abrapso surgiu em 1980 e reuniu perspectivas críticas de psicologia social, agrupadas no que foi chamado de psicologia social crítica (Lane, & Bock, 2003; Lacerda Junior, 2013). Pode ser que em livros e teses e dissertações apareçam as propostas alternativas que algumas narrativas apontam que surgem na década de 1970.

 

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Endereço para correspondência:
Gervásio de Araújo Marques da Silva
gervasioams@gmail.com

Submetido em: 26/11/2019
Revisto em: 19/12/2019
Aceito em: 21/12/2019

 

 

1 Conselho Federal de Psicologia (n.d.). Cem anos da psicologia no Brasil [Cartaz]. Brasília, DF: Autor.
2 Guareschi (1976) apresenta o Interacionismo Simbólico como uma terceira via entre as perspectivas psicólogicas e sociológicas, afirmando que ela está entre as duas, pois não separa o individual e o social. Esta visão é diferente das de outros autores, que apontam a Escola do Interacionismo Simbólico como uma forma sociológica de psicologia social (Farr, 2008; Portugal, 2015). Destacamos aqui como exemplo de terceira via, que articula as perspectivas psicológicas e sociológicas, a Psicologia Social de perspectiva dialética (Martín-Baró, 2017).

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