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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2020v72i2p.3-7 

EDITORIAL

 

Da crise à pandemia: da letalidade como política às políticas editoriais de resistência

 

 

Pedro Paulo Bicalho; Claudia Henschel de Lima; Jessica da Silva Davi

 

 

Ao longo do ano de 2019, redigimos três editoriais em que chamamos a atenção da comunidade científica da psicologia em sua diversidade para os 70 anos de Arquivos Brasileiros de Psicologia (Bicalho, & Henschel de Lima, 2019; Henschel de Lima & Bicalho, 2019; Portugal, Henschel de Lima, & Bicalho, 2019). Foi um ano importante, pois tínhamos diante de nós a prova de que boas equipes editoriais, engajadas na árdua tarefa da editoração científica, poderiam resistir às dificuldades financeiras e manter a sobrevivência de um periódico científico. Ao mesmo tempo, jamais deixamos, nos editoriais, de abordar o quanto a redução da verba para a ciência em nosso país seria letal para seu desenvolvimento e divulgação por meio dos periódicos científicos. No entanto, não contávamos com o fato de a natureza impor um custo terrível para o mundo: a pandemia de COVID-19. Da letalidade da redução da verba para desenvolvimento e divulgação da pesquisa científica, rapidamente passamos para a velocidade de contaminação viral e sua letalidade, e rapidamente ingressamos em um quadro de emergência humanitária determinado por uma pandemia.

A COVID-19 irrompeu no mundo em dezembro de 2019. Provocada pelo vírus SARS-COv-2, primeiramente, foi identificada como uma epidemia regional, localizada na província de Wuhan, na China. Na época, parecia distante da Europa, da África e das Américas. No entanto, em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o surto da COVID-19 como uma emergência de saúde pública de magnitude e importância internacional, alertando para o alto risco de contaminação de todo o mundo. Em 9 de março de 2020, o governo italiano anunciou medidas emergenciais severas de contenção do vírus; em 11 de março de 2020, a OMS decreta como pandêmica a COVID-19. Assim, da Ásia à Europa, à África e às Américas, foram apenas três meses, sucumbindo o mundo em uma emergência humanitária veloz, dado o grau de contaminação pelo SARS-CoV-2.

No Brasil, desde janeiro de 2020, a OMS dá suporte ao Ministério da Saúde para a produção de respostas à COVID-19. Nosso primeiro caso foi registrado em São Paulo, em 26 de fevereiro de 2020. Desde então, a COVID-19 impôs um alto custo à população brasileira ultrapassando, no exato momento em que redigimos esse editorial, a marca de 1.000 mortes por dia, segundo os dados oficiais publicados pelo Ministério da Saúde.

A OMS sugeriu que o mundo deveria parar e se isolar para lentificar o processo de contaminação e não sobrecarregar os sistemas de saúde. Entretanto, diante de sistemas de saúde já sobrecarregados e sucateados, o que fazer? Nos últimos anos, desde a aprovação da Emenda Constitucional no 95, que congela os investimentos em áreas sociais como a saúde e a educação, sofremos com a intensificação do sucateamento das políticas públicas. Para muitos, o colapso social já começava analisando essa questão. Mas, é importante ir além: diante da realidade continental e desigual do Brasil, na qual muitos trabalham informalmente para garantir diariamente o que comer, como adotar tais medidas de restrição, principalmente diante de um governo negligente? Como afirma a psicóloga boliviana Galindo (2020): na América Latina o coronavírus escancara a ordem colonial do mundo. "Aqui a sentença de morte estava escrita antes da COVID chegar em avião de turismo" (p. 124). Talvez, numa análise mais profunda, possamos descobrir que, no Brasil, a pandemia nunca foi sobre os mais ricos. Na verdade, ela não é sobre os mais pobres também, mas evidencia os requintes de crueldade que a nossa forma de reprodução social da vida imprime na sociedade.

Invisível e ainda desconhecido, o coronavírus foi tido inicialmente como "um vírus democrático" - expressão que compôs muitos escritos e noticiários televisivos no início da disseminação. Uma enfermidade amplamente alastrada que atingiria a todos e de maneira igualitária; que fez evaporar a segurança da nobreza, e o medo da sua contaminação extrapolou as fronteiras territoriais e econômicas, com uma ideia de comunhão, de um possível mundo mais solidário onde o vírus venceria o capital e a competitividade nele emaranhada. "Este vírus é democrático e não distingue entre pobre e ricos ou entre estadista e cidadão comum" (Zizek, 2020, p. 25). Como um vírus pode ser "democrático" (Zizek, 2020) em um país tão desigual? Sem contar que as informações acerca dos cuidados, que muitas vezes chegam enviesadas e desmoralizam a gravidade da doença, tratam-na como uma "gripezinha" (Löwy, 2020). Controlar a contaminação nos países ditos democráticos poderia ser um desafio, aponta Santos (2020), uma vez que, cada pessoa é "livre" para decidir sobre sua circulação e outros aspectos de operacionalização da vida. "De-mo-cra-ci-a": cinco sílabas e uma fonética elaborada, mas que, às vezes, não articula e é ineficiente para representar o direito à igualdade e ao exercício livre e participativo da vida nas mais diferentes classes sociais (Bicalho, 2013).

A contabilidade de contaminações e mortes afetou drasticamente nossa forma de entender a passagem do tempo, transformando o registro da passagem de dias, semanas e meses do ano. Desde o primeiro caso em Wuhan, dias e meses no mundo todo se converteram em semanas epidemiológicas, em torno das quais os levantamentos sobre número de contaminados, mortos e sobreviventes são registrados e amplamente publicizados.

A semana em que demos o início da elaboração deste Editorial (29 de maio de 2020) é contada como SE 21 de 2020, no mundo. Entre a SE 21 e a SE 22, registrava-se 5.701.337 de casos confirmados de COVID-19 no mundo, com 357.688 óbitos. Nesse mesmo período, que vai da SE 21 à SE 22, o Brasil registrara 465.166 casos confirmados e 27.878 óbitos. O impacto desses números sobre nós não é pequeno, e impõe que recoloquemos a interrogação sobre o que são os nossos dias e o protagonismo da ciência em nossos dias. A pandemia colocou essa necessidade para a própria comunidade científica brasileira na forma da seguinte pergunta: como investigar a estrutura do vírus, sua forma de ação, sua amplitude de contaminação e letalidade, em um contexto político de austeridade, que se reflete sobre a pesquisa brasileira, pela restrição de verbas? Como fazer vigorar a orientação científica em um contexto onde a opinião comum passa a ter valor de verdade?

Uma entrevista recente ao jornal francês Le Monde, com Descola (2020), é bastante sugestiva. O antropólogo francês considera a pandemia de COVID-19 como um fato social total, sendo um reagente que condensa os traços do projeto político que vigora no mundo contemporâneo: as políticas que aprofundam a degradação do meio ambiente e que resultam na aproximação entre espécies selvagens e seres humanos; uma política econômica de concentração de renda e de produção de desigualdade social cuja vulnerabilidade fica exposta na situação da pandemia; o descaso com políticas públicas de saúde coletiva que impacta diretamente nas condições críticas de saneamento básico das populações e com a concorrência de mercado que, diante da escassez de equipamentos de saúde para dar suporte aos pacientes acometidos pela COVID-19, revela o comportamento individualista, assumido pelos países, na contramão do multilateralismo e da solidariedade entre os povos, defendidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela OMS.

A comunidade científica brasileira não está alheia a esse quadro. A Marcha Virtual pela Ciência no Brasil, realizada em todo o país de no dia 7 de maio, conduziu amplo debate sobre a importância da ciência no enfrentamento da pandemia e suas implicações sociais, econômicas e para a saúde das populações. Com isso, fica nítido que a crise de saúde física da escala que vem sendo provocada pelo vírus não é independente desses traços que definem nossos dias, afetando diretamente a forma como cada ser humano reage à pandemia a partir das políticas desenvolvidas para o enfrentamento (ou a negação) do vírus.

Atualmente, ainda não dispomos nem de medicamentos específicos para a remissão dos sintomas e cura e nem de uma vacina que previna a contaminação pela COVID-19, de tal forma que o isolamento social ainda é o método hegemônico para conter a contaminação. Essa conjuntura desenha um cenário difícil para um horizonte muito próximo. E sabemos que a saúde mental das populações será diretamente afetada por essa conjuntura.

A declaração do secretário-geral da ONU, Guterrez, para o lançamento do relatório COVID-19 and the Need for Action on Mental Health (2020), vai neste sentido, deixando claro que a pandemia de COVID-19 produz uma ampla crise de saúde mental com potencial de agravamento da miséria do mundo já existente. O documento da Fiocruz - Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19: Recomendações Gerais (Brasil, 2020) - ressalta a amplitude desta crise desencadeada pela COVID-19, considerando a data de início do primeiro trimestre em cada região:

1. Medo: de adoecer e de morrer pela doença; de infectar outras pessoas; de perder entes queridos; de perder os meios de subsistência e a renda; de ser excluído socialmente ou por ter a doença ou por ser um profissional da linha de frente.

2. Sensação de incerteza quanto ao futuro, impotência frente aos acontecimentos, desamparo, solidão, tristeza, luto e ansiedade.

3. Alteração comportamental: alimentar (ter mais apetite ou menos apetite) e no sono (insônia ou sono em excesso, pesadelos).

4. Agravamento de conflitos interpessoais com familiares e no trabalho.

5. Alteração no pensamento: pensamentos recorrentes sobre a pandemia, a saúde dos entes queridos, a morte e o morrer.

A partir dessas considerações, a equipe editorial de Arquivos Brasileiros de Psicologia vê a necessidade de preservarmos a regularidade de nossa publicação. Essa decisão não se baseia apenas na possibilidade de manter as atividades editoriais por via remota, mas, principalmente, no entendimento de que os rumos que o mundo tomará a partir da pandemia de COVID-19 passam pelas interrogações que estabelecermos hoje. E, nesse ponto, a ciência e, por extensão, as publicações científicas ocupam um lugar importante tanto na resposta urgente às questões que a pandemia nos coloca, quanto na produção de um futuro com o qual precisamos nos comprometer.

A necessidade de responder rapidamente ao surto viral tem feito com que pesquisadores do mundo inteiro compartilhem resultados, protocolos e dados relevantes o mais rápido possível. Os principais editores acadêmicos e instituições financiadoras têm incentivado que todas as pesquisas relacionadas à COVID-19 sejam publicadas em acesso aberto - isto é, disponíveis gratuitamente para todos.

Até as maiores e mais tradicionais editoras de ciências biomédicas, como a SpringerNature e a Elsevier, cujas publicações são frequentemente lançadas sob a proteção de um paywall, disponibilizaram os artigos relacionados a COVID-19 de forma gratuita. Há um esforço global de coletivização do conhecimento para a produção de uma cura que, se tratando de uma pandemia, precisa ser coletiva para funcionar.

Nesse ponto, é preciso frisar que, embora seja precipitado prever como serão os próximos meses e anos, restringir o debate à epidemiologia do vírus não dá conta dos efeitos e transformações que essa crise de saúde tem produzido no mundo. Multiplicam-se as manchetes dizendo que a COVID-19 é democrática à medida que a infecção pode acometer qualquer pessoa. No entanto, essa afirmação tentadora ignora as desigualdades raciais, de gênero, de classe e tantas mais no acesso à saúde e até mesmo as estratégias de prevenção e segurança durante o isolamento social. A mobilização em torno do vírus precisa passar também pela política, pela economia, pela saúde mental, pelas políticas editoriais, pelas questões minoritárias e por diversos outros âmbitos da sociedade atual.

É nesse sentido que, no contexto atual, de ataque à legitimidade e investimento, de desvalorização e desmonte das ciências, em especial das ciências humanas e sociais, manter a regularidade da publicação de nossa revista não é apenas uma questão logística. Trata-se de uma decisão ético-política.

O papel da Arquivos Brasileiros de Psicologia - revista septuagenária - nesse momento passa pela abertura de um espaço de respostas ao vírus que leve em conta os diversos efeitos psicossociais e coletivos que a pandemia tem produzido. E é nesses termos que reafirmamos a nossa política de publicação científica aberta e, portanto, acessível a todas e todos e alinhada à busca pela democratização não só do conhecimento produzido, mas também da possibilidade de colocar novas questões ao mundo e ser interpelado de volta. Em vista disso, comunicamos que, a partir de 72.2., contaremos com uma seção especial em cada número de Arquivos Brasileiros de Psicologia, sobre a COVID-19 e seu impacto nas políticas de saúde mental, na clínica psicológica, nas relações sociais e no estudo de propriedades psicométricas de instrumentos de avaliação. Convidamos a comunidade científica de colaboradores - autores, pareceristas, leitores de língua nacional e estrangeira - a contribuir com a revista encaminhando seus manuscritos no tema da COVID-19.

 

Referências

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