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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2020v72i2p.25-39 

ARTIGOS

 

Arte e vida entre visibilidade e invisibilidade

 

Art and life between visibility and invisibility

 

Arte y vida entre visibilidad e invisibilidad

 

 

Mônica Botelho Alvim

Docente. Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da obra final de Merleau-Ponty e de suas reflexões sobre visível e invisível, carne e linguagem, arte e vida, neste ensaio abordamos o tema da visibilidade e da invisibilidade. Transitando entre psicologia, arte e filosofia, dialogamos com as propostas de Didi-Huberman sobre ver e ser olhado e de Roland Barthes sobre o fotográfico, tendo em vista pensar a experiência e os processos de produção de subjetividade e de mundo. Tomando como referência duas cenas de performances teatrais protagonizadas por moradores de favelas, discutimos o estatuto da visibilidade e da invisibilidade em relação com a problemática da imagem na produção e reprodução de cultura, subjetividades e modos de perceber. Sendo imagens-clichês sedimentações culturais fixadas que se reproduzem como cópias, perpetuando-se como verdades e promovendo uma espécie de apagamento do invisível, consideramos que a arte traz a possibilidade da experiência de abrir o tempo, visibilizar o invisível e encontrar o outro.

Palavras-chave: Merleau-Ponty; Imagem; Arte; Alteridade; Subjetividade.


ABSTRACT

Considering the last works of Merleau-Ponty and his reflections on visible and invisible, flesh and language, art and life, in this essay we discuss visibility and invisibility. Moving between psychology, art and philosophy, we stablish a dialogue with Didi-Huberman's work on seeing and being seen and Roland Barthes on the photographic, in order to think about experience and the processes of subjectivation. Based on two scenes of theatrical performances by favela dwellers, we discuss the status of visibility and invisibility in relation to the problematic of image in the production and reproduction of subjectivities and ways of perceiving. Considering images-cliché as cultural sedimentation that reproduce as copies, perpetuating themselves as truths and promoting a kind of erasure of the invisible, we argue that art allows a kind of experience capable of opening time, making the invisible visible and encountering otherness.

Keywords: Merleau-Ponty; Image; Art; Otherness; Subjectivity.


RESUMEN

Del trabajo final de Merleau-Ponty y sus reflexiones sobre lo visible y lo invisible, la carne y el lenguaje, el arte y la vida, este ensayo aborda el tema de la visibilidad y la invisibilidad. Moviéndonos entre psicología, arte y filosofía, dialogamos con las propuestas de Didi-Huberman sobre ver y ser mirado y de Roland Barthes sobre lo fotográfico, para pensar sobre la experiencia y los procesos de producción de subjetividad y de mundo. Tomando como referencia dos escenas de performances teatrales realizadas por habitantes de barrios marginales, discutimos el estatuto de la visibilidad y la invisibilidad en relación con la problemática de la imagen en la producción y reproducción de cultura, subjetividades y formas de percepción. Al ser imágenes cliché sedimentaciones fijas culturales que se reproducen como copias, perpetuándose como verdades y promoviendo una especie de eliminación de lo invisible, consideramos que el arte brinda la posibilidad de la experiencia de apertura del tiempo, de visualizar lo invisible y de encontrar al otro.

Palabras clave: Merleau-Ponty; Imagen; Arte; Alteridad; Subjetividad.


 

 

Que importa a paisagem, a Glória, a Baía, a linha do horizonte?

- O que eu vejo é o beco.

(Bandeira, 1936/2000, p. 76)

O tema da visibilidade e invisibilidade está presente na filosofia de Merleau-Ponty e dá nome ao título de sua obra póstuma, "O visível e o invisível" (Merleau-Ponty, 1964/2000), publicada a partir de um esboço deixado inacabado na ocasião de sua morte. Sua ontologia coloca em questão o problema do Ser e da Verdade, promovendo um certo reposicionamento em relação à perspectiva fenomenológica do aparecimento (do fenômeno), classicamente compreendido como dado na percepção. Após um longo percurso filosófico no qual havia colocado o corpo e a dimensão sensível da experiência no lugar de origem e solo sobre o qual repousaria a reflexão (Merleau-Ponty, 1945/1994), o filósofo colocava, naquele momento de sua obra, o desafio de pensar a ideia não mais como oposta ao sensível, mas como sua profundidade. De acordo com ele, "a visibilidade primeira, a dos quale e das coisas não subsiste sem uma visibilidade segunda, a das linhas de força e das dimensões" (Merleau-Ponty, 1945/1994, p. 144). Essa dimensão segunda ou invisível, profundidade que dá sustentação ao visível, seria uma espécie de "armadura interior", estofo ou carne do mundo. O filósofo alude a ela como uma "segunda positividade" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 144) que não poderia ser conhecida se não tivéssemos corpo e sensibilidade, mas que, ao mesmo tempo, não pode ser completamente dominada ou "vista sem véus" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p.145).

Assim, nesse ponto de suas reflexões filosóficas, Merleau-Ponty desvia-se da noção clássica de percepção - concebida pela fenomenologia como um processo temporal que culminaria na constituição de um objeto intencional, ou seja, no aparecimento de algo do mundo a um sujeito - em direção à concepção de um tipo de aparição que se dá como emergência e diferenciação a partir de um fundo comum e que surge como visibilidade, mas não como um objeto para uma consciência. É apenas pela adesão ao mundo, com o qual compartilhamos esse estofo comum ou carnalidade, que podemos ter acesso à sua dimensão invisível e carnal.

É no contexto dessa ontologia da carne que Merleau-Ponty dá centralidade à noção de fé perceptiva, para caracterizar um modo de aproximação do mundo e do sentido que não nos permite tê-lo definitivamente, completá-lo como objeto à nossa frente, mas que se dá como adesão sensível, modo como podemos explorá-lo por dentro. Nossa aproximação com o mundo passa a ser uma questão de fé e não de saber e, como tal, não distingue entre ver e ver o verdadeiro. Como fé, essa adesão ao mundo é sempre "tecida de incredulidade, a cada instante ameaçada pela não-fé" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 37). Ao contrário de um dogmatismo da reflexão que nos promete uma certeza - falsa, já que a reflexão nunca nos permitiria ter esse mundo efetivo -, a fé perceptiva nos dá o "'há' do mundo" efetivo (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 45). Esse mundo que há reúne visibilidade e invisibilidade e a fé perceptiva está, desse modo, implicada com um tipo de abertura ao mundo que não exclui sua dimensão de ocultação e onde o vínculo de visível e invisível, de sensível e inteligível, manifesta e esconde ao mesmo tempo, na profundidade da carne, suas dimensões e linhas de força.

O vínculo entre ideia e sensível que ele propõe, ao assumir o mundo silencioso e ainda não proferido como dimensão carnal, torce a noção de que o acesso à verdade se daria pela via reflexionante, aquela que neutraliza a abertura para o mundo e transforma a percepção do mundo em "percepção-reflexiva" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 46). A percepção que temos das coisas na fé perceptiva é uma percepção bruta, que mantem os laços com o mundo. A expressão e a linguagem teriam como tarefa fazer falar o silêncio, ressaltando aqui que, para Merleau-Ponty, as significações não são inerentes à uma linguagem dada. A linguagem capaz de expressão implicaria, segundo ele: "um esforço, talvez difícil, que as emprega [as palavras] para exprimir além delas mesmas nosso contato mudo com as coisas, quando ainda não são coisas ditas" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 46). Esse mundo silencioso no qual eu mergulho, ao invés de tentar dominar com meu pensamento e teorização prévios, é essa dimensão invisível à qual me abro e que me convoca ao movimento de significar, mas que, ao mesmo tempo, não me permite fazê-lo por completo. O mundo escapa ao meu domínio e é minha interrogação do mundo, pela interrogação da experiência ingênua do olhar, da visão e do tato, que permite que ele se fale em mim, que eu "o faça dizer, enfim, o que em seu silêncio ele quer dizer" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 47, grifos nossos).

Não podemos, segundo essa compreensão, reduzir o verdadeiro ao verosímil, pensar em percepções verdadeiras ou falsas, mas entender cada uma delas como manifestações variantes do mesmo mundo. O ver, o falar, o tato são experiências irrecusáveis que nos permitem reencontrar as referências vivas do mistério do mundo que nos é familiar e inexplicável, ao mesmo tempo. A fé perceptiva implica reconhecer tanto uma abertura ao mundo como interrogação ingênua quanto o fato de que as estruturas corporais não são capazes de esgotar o Ser, que existe um grau de ocultação que não depende de uma delimitação subjetiva. Desse modo, consideramos fundamental sublinhar que essa dimensão oculta e invisível não deve ser pensada subjetivamente, como um inconsciente de um sujeito.

Em uma nota de trabalho de 1959 na qual Merleau-Ponty faz alusão à intersubjetividade e ao problema do outro, ele nos convoca a dar importância, para além das pessoas, aos "existenciais segundo os quais nós as compreendemos" (1964/2000, p. 174). Ali ele discute a noção de inconsciente como "o sentido sedimentado de todas as nossas experiências voluntárias e involuntárias" (1964/2000, p. 174), existenciais que constituem o sentido daquilo que dizemos e ouvimos, segundo os quais compreendemos as pessoas. O que os caracteriza como inconscientes é o fato de não serem objetos, eles são "a armadura deste mundo invisível que, com a fala, começa a impregnar todas as coisas que vemos" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 174). Ele indica essa dimensão como aquela a ser procurada: "[...] este inconsciente a ser procurado, não no fundo de nós mesmo, atrás das costas de nossa 'consciência', mas diante de nós como articulações de nosso campo" (1964/2000, p. 174). Ou seja, essa rede de sentidos sedimentados que compõem a armadura do mundo invisível é uma constelação que nos conecta a todos numa espécie de intermundo. A tarefa da filosofia é aquela de interrogar-se sobre o sentido e, para que isso seja possível, é essa dimensão invisível que deve ser procurada.

O desafio de Merleau-Ponty nesse que foi seu último movimento era, como dissemos, o de pensar as relações entre visibilidade e invisibilidade como um vínculo a partir do qual a ideia e o sensível não se opõem como contrários. Tal como ele afirmou: "Ninguém foi mais longe que Proust ao fixar as relações entre o visível e o invisível na descrição de uma ideia que não é o contrário do sensível, mas que é seu dúplice e sua profundidade" (1964/2000, p. 144). Assim, sua proposta de interrogação implica reabilitar o sensível como um meio do Ser se manifestar sem se tornar objeto, "[...] a persuasão silenciosa do sensível é o único meio de o Ser manifestar-se sem tornar-se positividade, sem cessar de ser ambíguo e transcendente" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 199).

A arte foi um caminho privilegiado para essas explorações e pintura e literatura compuseram um campo de diálogos importantes. Em "O olho e o espírito", última obra publicada em vida, ele dialoga com a pintura em torno dessa questão central: a visão e o pensamento, o sensível e a ideia. A virtude da pintura reside, para ele, em poder manter o devir e dar visibilidade à metamorfose do tempo, buscando "não o exterior do movimento, mas as suas cifras secretas" (Merleau-Ponty, 1964/1992, p. 64). Desse modo, ela nunca está completamente fora do tempo, pois está sempre no carnal e pode manifestar em uma linguagem indireta o sentido silencioso, "faz passar para a obra as formas das coisas 'não descobertas'" (Merleau-Ponty, 1964/1992, p. 64). O pintor, por sua vez, não estabelece uma relação meramente físico-ótica com o mundo, que não está à sua frente por representação, mas é um mundo que ele habita e com o qual ele se encontra entrelaçado. "O pintor nasce nas coisas, como por concentração e vinda a si do visível [...] o quadro rompe a pele das coisas para mostrar como as coisas se tornam coisas e o mundo mundo" (Merleau-Ponty, 1964/1992, p. 56). Em outro trecho, ele afirma:

o olho vê o mundo, e aquilo que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio, e, sobre a paleta, a cor que o quadro espera, e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas (Merleau-Ponty, 1964/1992, p. 25).

Assim, nesse laço sensível onde o olho se comove pelo impacto do mundo e o restitui ao visível através dos traços da mão, o artista vai "conferindo existência visível ao que a visão profana crê invisível" (Merleau-Ponty, 1964/1992, p. 26) e, enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão, pois as coisas do mundo passam por ele, o mundo "gravou nele a cifra do visível" (Merleau-Ponty, 1964/1992, p. 27).

Tomando essa linha de compreensão da arte como linguagem indireta que no entrecruzamento de visibilidade e invisibilidade dá a ver algo, abrindo a possibilidade de ouvirmos em nós os rumores do mundo, temos como objetivo neste artigo pensar no campo da experiência artística e na potência que tem de visibilizar estruturas sedimentadas de sentido invisíveis e inconscientes que impregnam nossos modos de ver e sentir.

É com essa perspectiva que, a partir dessas reflexões iniciais, passaremos a discutir duas cenas artísticas performadas em dois diferentes contextos. A primeira cena foi produzida em uma oficina de artes com crianças e jovens de uma favela carioca e a segunda foi protagonizada por moradores de outra favela carioca durante um trabalho de produção de uma videoinstalação denominada "Funk Staden", dos artistas Maurício Dias e Walter Riedwig. Tais cenas se colocam aqui como experiências artísticas que inspiram nossas discussões em torno do tema da visibilidade e invisibilidade. Não tratamos essas cenas como campos de pesquisa, o que requereria uma descrição metodológica e outro viés de discussão que fugiria ao escopo deste artigo.

 

Visibilidade e invisibilidade, eu e outro: na praia de Copacabana

Um quadrado no chão, um espaço imaginário da praia de Copacabana delimitado por uma fita transparente. A Figura mostra a representação desse espaço, proposto ali como um espaço livre para ser habitado por crianças e jovens, moradores de uma favela carioca, com os quais brincávamos de performar cenas improvisadas em lugares imaginados. No contexto de um projeto de extensão universitária em favelas com crianças e jovens1, nesse exercício teatral a proposição de imaginar-se em diferentes espaços e performar nesse lugar um acontecimento criado por ele, de forma improvisada, convidava-os a colocar em cena sua presença em determinados lugares da cidade.

 

 

Lugares afetivos, eleitos livremente pelos jovens e crianças. Em determinado momento, eles resolveram que a brincadeira seria de adivinhação e que nos quadrados não haveria nome. Os outros deveriam adivinhar o lugar onde aquele que performava estava. Um menino negro de uns dez anos pula para o meio de um quadrado sem nome. O gesto que faz, então, é rápido e preciso: um dos braços se movimenta para a frente, as mãos se fecham como que agarrando algo e o braço se movimenta mais rapidamente ainda para trás, deixando a mão suspensa e fechada. Acabou a cena. Imediatamente, várias crianças começam a gritar:

- Praia de Copacabana!! Praia de Copacabana!!

Nós, adultos, oriundos do território da universidade, perguntamos, aturdidos:

- Como assim, Praia de Copacabana?

Ao que as crianças responderam quase em uníssono:

- Ahhh, tia, muito fácil essa! Em Copacabana, roubando o colar de um turista.

Atônitos, nos perguntávamos qual seria a distância - ou o abismo - que nos separava daquelas crianças que produziam e viam aquele visível? Que trama invisível sustentava aquele visível? Que raios eram aqueles que brotavam da carne do mundo iluminando aquela cena e articulando um sentido para eles tão óbvio, naturalizado, e para nós tão estranho e pungente? O que nos colocava de fora, marcando em nossa relação com eles aquela fronteira excludente (e invisível) entre um sentido tão óbvio e um não sentido?

Merleau-Ponty (1964/2000, p. 131), ao discutir o vidente e o visível, nos adverte: "é preciso que aquele que olha, não seja, ele próprio, estranho ao mundo que olha", ou seja, quem vê não pode possuir o visível a não ser que seja, de algum modo, dele. Naquele momento, experimentamos aquela sensação de estrangeria que nos situa em uma zona de exclusão em relação ao outro.

Didi-Huberman (2010), no livro "O que vemos, o que nos olha", reflete acerca do fenômeno do ver, que considera inseparável - quando se trata de uma visibilidade viva e que tem valor - do ser olhado pelo que nós vemos. Segundo ele, é quando algo no ver é perdido, nos escapa, que a coisa a ver nos olha, nos persegue e torna-se inelutável. Isso caracteriza uma cisão que é aberta pelo que nos olha no que vemos: "O ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois" (Didi-Huberman, 2010, p. 29), experiência que seria da ordem da angústia. O túmulo de um morto é uma imagem por ele explorada para discutir essa proposição. O túmulo é um objeto visual que guarda uma invisibilidade - um corpo inerte - a qual faz ver em mim mesmo um destino que terei inexoravelmente. Vejo-o como uma caixa retangular de mármore e essa visão é visão de fato quando é acompanhada de um "ser olhado" pelo túmulo, um objeto que "impõe em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e semelhante desse corpo em meu próprio destino" (Didi-Huberman, 2010, p. 38). Esse poder que tem o fundo invisível de nos inquietar é obra de uma impossibilidade de ver com toda clareza e evidência. A experiência de ver com familiaridade nos conduz à sensação de ter aquilo que vemos; ao contrário, a experiência de sentir que algo nos escapa naquilo que vemos nos coloca no reino da angústia.

Barthes (1984), ao discutir o ver no âmbito do fotográfico, descreve studium e punctum como dois elementos da fotografia que se diferenciam em termos da intensidade do afeto. Punctum envolve afeto extremo e studium, afeto médio. A fotografia binária é, para ele, aquela na qual a coexistência de punctum e studium permite que o studium seja atravessado por um punctum e gere um movimento de afeto. A fotografia unária, ao contrário, é aquela que só desperta interesses sensatos, aquela em que o studium não é atravessado por um detalhe (punctum) que atrai ou fere. "A foto pode até gritar, mas não ferir" (Barthes, 1984, p. 67), ele afirma. A foto jornalística, a foto pornográfica, por exemplo, são diretas e apresentam uma só coisa: a notícia, o sexo. Tudo o que revelam explicitam; nada há que ocultem ou sugiram. Só studium. Mas, ele continua, eis que no espaço habitualmente unário, "um detalhe me atrai, sinto que basta sua presença para mudar minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho, marcada a meus olhos por um valor superior. Esse detalhe é o punctum (o que me punge)" (Barthes, 1984, p. 68).

Desse modo, Barthes discute o poder da fotografia de remeter a um centro silenciado, quando algumas imagens fotográficas provocam afeto extremo, o que se dá por uma espécie de acaso. "O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge, me mortifica, me fere" (Barthes, 1984, p. 46).

Podemos nesse ponto aproximar a inquietude proveniente do fundo que nos olha, discutida por Didi-Huberman, desse centro silenciado de que nos fala Barthes e da dimensão invisível e silenciosa - no sentido de não-proferida - de que nos fala Merleau-Ponty (1964/2000). O invisível é uma dimensão de profundidade que sustenta o visível e que podemos habitar como corpo sensível, partilhando, nessa profundidade e espessura, de uma carnalidade que é estofo comum entre nós e o mundo. Como discutimos anteriormente, é como corpo, pelo domínio exploratório dos sentidos - olhar, visão, tato - que vivo o mundo, encontro sua familiaridade e estranheza, afeto-me, o exploro, creio nele, mas não posso formulá-lo em tese. Meus gestos, entretanto, vão desenhando contornos e paisagens, que aparecem no entrecruzamento de visível e invisível, fazendo emergir uma visibilidade que não é "minha" mas que é uma visibilidade do mundo que emerge comigo, uma abertura ou "deiscência da carne" (Merleau-Ponty, 1964/2000).

No acontecimento que relatamos, a imagem encenada pela criança e a conexão (carnal) das outras crianças com aquela visibilidade se mostrou a nós como uma segunda cena, que nos atingiu de modo pungente. Enxergar na adivinhação feita pelas crianças - quase em uníssono - algo que, na profundidade invisível, sustentava aquele gesto visível (de roubar), nos atingiu em cheio. Aquele gesto expressivo havia feito aparecer na superfície do visível um princípio encarnado que se irradiava e iluminava a cena: eles se sentindo, em Copacabana, ladrões. Foi a partir de um pathos, ou seja, de uma experiência de espanto e de afetação que sofremos, que algo novo se deu a ver e nos conectou a todos na experiência de ser olhado pelo que víamos.

Merleau-Ponty afirma que como o visível tem uma profundidade, é possível sua abertura a outras visões além da minha, e quando elas se realizam apontam os limites da nossa. Quando eles nos viram vendo a eles e puderam testemunhar nossa expressão (facial e não verbal) de espanto diante da cena que mostravam, passamos a compor uma terceira cena no desenrolar daquele acontecimento. Uma cena que dava visibilidade a algo até então invisível. Diante de nossa expressão, eles encontraram-se com afetos de dor e revolta em suas experiências anteriores de habitar Copacabana e se sentirem vistos como delinquentes, sem direito de pertencer àquele lugar.

A exclusão que sentíramos momentos antes era a exclusão que sentem os meninos da favela, em uma sociedade que os invisibiliza como sujeitos de direito e os transforma numa pura imagem-clichê do menino-preto-de-rua-ladrão, colocando-os do outro lado da cidade, nas zonas de exclusão, na invisibilidade dos fora da cena turística da Copacabana, princesinha do mar. Essa princesa-criança, símbolo da pureza nobre dos colonizadores, é o cenário mitificado onde é necessário deixar fora de cena - para retirar da visibilidade, suturando a angustia da experiência de ver e ser olhado pelo que vemos - tudo aquilo que macularia sua imagem paradisíaca, se tornasse visível (e, portanto, denunciando) a trama invisível da desigualdade social na qual se sustenta.

Didi-Huberman (2010, p. 38) apresenta, naquilo que denomina uma "fábula filosófica", dois caminhos seguidos para "suturar a angústia" diante da cisão aberta pelo que nos olha no que vemos (e não assumir a "lucidez da melancolia" advinda dessa angústia). Esses caminhos se distinguem a partir do momento da cisão: o "homem da tautologia" (Didi-Huberman, 2010, p. 38) permanece aquém da cisão e o "homem da crença" (Didi-Huberman, 2010, p. 41), para além dela. O exercício da tautologia implica em ater-se ao que é visto, uma tentativa de escapar criando um anteparo que o proteja do poder inquietante da cisão. O pensamento de que o que vejo é o que vejo e nada mais, torna-se uma recusa, denegação do tempo e da transformação, fazendo com que a experiência do ver seja travestida em uma verdade sem profundidade, certo cinismo.

O exercício da crença, por outro lado, implica a invenção de um modelo fictício que reorganiza tudo como num sonho no qual uma "verdade superlativa e invocante, etérea, mas autoritária" (Didi-Huberman, 2010, p. 41) comanda a experiência de ver, transformada em crença dogmática, algo da ordem de um sentido teleológico e metafísico. Ambas as formas de escape são, de diferentes formas, falsas "vitórias da linguagem sobre o olhar" (Didi-Huberman, 2010, p. 39) e de seus poderes inquietantes. O escape pelo exercício da crença estaria, segundo ele, relacionado à atividade de produzir imagens, "feitas para confortar e informar - ou seja, fixar - nossas memórias, nossos temores e nossos desejos" (Didi-Huberman, 2010, p. 48).

Em nosso tempo, esse tipo de ação de invisibilização - que propomos, pensando com Didi-Huberman, atribuir tanto a um exercício de tautologia quanto a outro de crença - resulta da sobreposição de imagens-clichê. A partir da multiplicação massiva de ideias que se pretende constituir como verdades, constroem-se representações, que no apogeu de um quadro imagético são transformadas em imagens-clichê, cronicamente repetidas e transmitidas nos meios de comunicação de massa. Figurações com pretenso valor de verdade, prontas para consumo, as imagens-clichê são objetos consumidos passivamente e podem ser aproximadas da ideia de simulacro, pois têm o poder de transformar um sujeito em objeto, metamorfoseá-lo, falseá-lo e mortificá-lo. Copacabana vista através de uma imagem-clichê paradisíaca, remetendo ao âmbito de um sonho de perfeição e beleza natural não pode ter o jovem negro e pobre como uma parte de si. É, então, esse jovem, visto através da lente de uma imagem-clichê impura, que o despe de sua aura e o reduz a um objeto pronto e acabado. Ao ter colada a si essa imagem, torna-se estranho àquela cena e é dela eliminado.

Essa multiplicação de verdades prèt à porter consumidas passivamente é um fenômeno que ganha nova roupagem no contexto atual das redes sociais e reflete o aprofundamento, em nossos tempos, de modos de existência desconectados, onde o corpo, o outro e o mundo estão dicotomizados. Alienados da capacidade de sentir, capturados pelas ideias-imagens que circulam massivamente e são consumidas passivamente como verdades absolutas e irrefutáveis, a experiência de alteridade torna-se manipulada.

Quando o menino real - o menino preto e pobre, isolado até então em seu território-favela por rígidas fronteiras excludentes - fura o bloqueio, sai do gueto e entra no território sagrado de Copacabana, essa manipulação da alteridade acontece. Seu rosto assume para o outro que o olha, a forma de uma imagem-clichê que apaga da cena o menino singular, com seus sonhos, estilo, saberes e potência. Travestido de ameaça, transformado em perigo, deve ser exterminado por um tipo de manipulação que faz surgir no lugar dele outro menino. Que ele próprio passa a acreditar ser.

Aquele pequeno exercício de performance, entretanto, deu a ver outras coisas, o que foi possível a partir do nosso laço sensível com eles, aquele laço construído na comunidade sensível "que faz com que o outro seja para nós" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 199). A partir do afeto pungente da cena, o laço se fez na exclusão e na dor, dando abertura para tristeza, revolta, indignação e sustentando a emergência, naquele grupo de crianças e adolescentes, de uma fala expressiva que pôde dar voz àqueles afetos, fazendo falar o silêncio daquilo que ainda não havia sido proferido. Essa "fala falante" (Merleau-Ponty, 1945/1994) instituiu um desvio em relação a uma espécie de norma de sentido antes existente (expressa na imagem-clichê). A identificação vaga com a imagem de delinquente que aparecera no fundo da cena, olhando-os, aparece, entra em cena e provoca gesticulações e expressões que começam então a dar lugar à afirmação de si como sujeitos de direito, como meninos singulares que nada têm de delinquentes. Esse desvio nos fez - a nós e a eles - crer na possibilidade do devir, na metamorfose do tempo que se mantém aberto e movimenta o desejo na direção da completude do que está por fazer. Tal como discutem Debenetti e Fonseca (2009), há uma exigência ética em relação ao sofrimento, que é dar a ele sua potência de interrogação e criação. A potência de interrogar e criar aponta para o futuro e para a invenção de outros tempos e espaços, uma dimensão política na clínica e também na arte.

O trabalho clínico lida com a tarefa de encontrar estruturas de sentido sedimentadas que - invisibilizadas e inconscientes - impregnam nossos modos de ver e sentir. Na nossa frente, onde se cruzam visível e invisível, no campo que exploramos com nosso corpo e encontramos o outro-corpo, nos espantamos, nos descentramos e permitimo-nos permanecer na percepção bruta, sem deixar que a reflexão neutralize a abertura da fé perceptiva. Nossa aposta é que a abertura e exploração sensível movimente o corpo para um tipo de expressão que faça falar o silêncio e visibilizar o invisível, instituindo novas formas de ver e sentir. É num sentido semelhante que compreendemos que a arte possa ser uma força contrária à força da imagem-clichê, visto ser capaz de abrir o tempo. O que nos dá um mote para a apresentação de uma segunda cena, agora de um trabalho de arte contemporânea brasileira, que, entendemos, dialoga intimamente com a cena anterior.

O que se vê, o que se conta e o que se reinventa: Funk Staden

Funk Staden é uma videoinstalação feita pela dupla de artistas Maurício Dias e Walter Riedwig que consistiu na encenação, feita por moradores de favelas convidados por eles, de cinco xilogravuras que ilustram um livro sobre o Brasil colonial intitulado "Verdadeira História", escrito por Hans Staden e publicado em 1557.

Hans Staden foi um mercenário alemão que veio ao Brasil no século XVI e foi capturado pelos índios Tupinambás, tendo sido quase morto. Ao retornar à Europa, escreveu esse livro que é o primeiro relato "oficial" sobre o novo continente, onde são descritos rituais antropofágicos, costumes, a diversidade da flora e da fauna, sublinhando, com a imagem-síntese de que essa é uma terra de selvagens nus, uma dimensão de exotismo que está ilustrada nas gravuras. O livro funda uma representação do trópico - selvagem e canibal - no imaginário europeu, o que, segundo os artistas Dias e Riedwig (2012), é um clichê que legitima a violência da colonização.

Podemos colocar as reflexões e proposições dos artistas em diálogo com o pensamento decolonial. Tendo como principal eixo o combate ao eurocentrismo, o pensamento decolonial encontra em Dussel (1993), filósofo argentino que vive no México, importantes ecos latino-americanos. O autor discute o problema a partir do que denomina "O mito da modernidade" (Dussel, 1993, p. 7). De acordo com ele, tendo sido concebida como um fenômeno exclusivamente europeu, na verdade a Modernidade não pode ser pensada sem a relação dialética com o não europeu. "A modernidade aparece quando a Europa se afirma como 'centro' de uma História Mundial que inaugura, e por isso a 'periferia' é parte de sua própria definição" (Dussel, 1993, p. 7). Ao mesmo tempo em que é fundada por um pensamento racional, a tentativa de justificação da violência da dominação e da colonização encobriria, segundo ele, um mito irracional. O nascimento da modernidade teria se dado "quando a Europa pôde se confrontar com o seu 'Outro' e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo: quando pôde se definir como um 'ego' descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da própria Modernidade" (Dussel, 1993, p.8). No lugar de ser visto e descoberto como um Outro, ele foi "encoberto como o si-mesmo que a Europa já era desde sempre" (Dussel, 1993, p. 8). Ballestrin, ao discutir o giro decolonial na América Latina, afirma a necessidade de uma busca pela pluriversalidade que exige algumas estratégias. Segundo ela, "[...] desobediência, vigilância e suspeição epistêmicas são estratégias para a decolonização, de-colonização ou descolonização epistemológica" (Ballestrin, 2013, p. 108). A arte traz, assim, em sua vocação, possibilidades de germinar práticas implicadas com essas estratégias pluriversais.

Dias e Riedwig (2012), que consideram a exotização uma forma de manipular a alteridade, buscam, nesta obra, sobrepor o Brasil atual ao Brasil descrito no livro de Hans Staden, que se pretendeu - e assumiu - um valor de verdade. Propondo uma sobreposição de tempos-espaços, os artistas mergulham no universo do funk carioca - ele próprio objeto de muitos clichês na percepção da população não-favelada - e tomam o livro como roteiro, na tentativa de fazer uma "releitura crítica da história (da percepção), revelando mecanismos de dominação cultural e de perpetuação do imaginário europeu sobre os trópicos selvagens" (Dias & Riedwig, 2012, p. 70). Sua hipótese é de que "o outro e a cultura do outro sempre foram e serão oficialmente reconhecidos através do mero exercício da percepção de quem ou o quê os legitima e os torna um dado histórico" (Dias & Riedwig, 2012, p. 72).

Na encenação de um ritual de funk em um churrasco na laje de uma casa na favela, o roteiro do vídeo parte de cinco imagens de uma parte do livro que mostra a preparação de um banquete antropofágico. Os moradores de favela filmam o que eles próprios encenam, com três câmeras fixadas no alto de um bastão que representa o Iberapema, um objeto ritual dos Tupinambás, o bastão com o qual se matava o inimigo para devorá-lo. Tal como descrevem os artistas, as imagens das xilogravuras foram reconstruídas com funkeiros, de maneira alegórica, formando-se uma série de fotografias analógicas. Considerando que "os processos de exclusão do capitalismo globalizado atual têm suas origens nas práticas mercantis do século 16" (Dias & Riedwig, 2012, p. 70) os artistas colam à imagem de antropófagos selvagens atribuída aos indígenas, a imagem analogamente selvagem atribuída aos favelados funkeiros. Eles pretendem que seja produzida, no contexto dessa obra, uma outra narrativa que, entendemos, possa matar e devorar a anterior. "O olho-dança do ibirapema-câmera conduz a narrativa, perfurando a camada de clichês que nos separa desse outro e mascara a violência dessa relação" (Dias & Riedwig, 2012, p. 76).

Nesse ato artístico no qual se produz uma espécie de confronto de imagens, o artista põe-se em cena no espaço público real, aproxima-se do outro, estabelece com ele uma relação de alteridade e faz uma proposição para que ele encene. No espaço lúdico de encenar uma história (e produzir imagens), entram em jogo a realidade e a ficção, o verdadeiro e o inventado, o que nos faz pensar em uma possibilidade de reconfiguração de figuras de si e do mundo, de desconstrução de imagens-clichê que fecham o tempo e fixam modos de sentir e pensar.

 

A arte e a abertura do tempo

Compreendendo a história como instituição, movimento temporal onde os acontecimentos podem ser retomados e transformados, Merleau-Ponty (1960/1991) pensa o trabalho da arte como movimento instituinte, o que implica conceber a expressão artística como resposta ao apelo do presente. Resposta essa que, entretanto, não é ativa, produzida por uma consciência que se relacionasse com o mundo como um objeto por ela constituído a partir de uma temporalidade inerente ao sujeito dessa consciência. A resposta do artista decorre de uma abertura tal que o permita sentir um eco dos rumores do mundo em seu corpo e que suscitam um gesto que responda e concentre nele a visibilidade do mundo.

Nesse sentido, a expressão artística pode ser compreendida primordialmente em sua dimensão de pathos, ou seja, de espantar-se, sofrendo uma afetação sensível que gere movimentos expressivos que propomos nomear "registros sensíveis no domínio da visibilidade". Tais registros são gerados a partir de gestos que se dão em uma encruzilhada, pois: a) aparecem no entrecruzamento gerado pelo movimento reversível entre a profundidade invisível e a visibilidade; b) são visíveis do qual não somos titulares, visto que têm profundidade e tornam possível sua abertura a outras visões além da nossa; c) são, assim, suscetíveis de serem retomados e transformados por outros, o que permite reunir vistas instantâneas e misturá-las, mantendo a abertura do tempo; d) produzem-se a partir do vínculo de ideia e sensível.

O trabalho de Mauricio Dias e Walter Riedwig se faz no entrecruzamento de espaço público e espaço de ateliê de arte, de artista e público, produzindo imagens fotográficas ou videográficas que, tal como compreendo, agem na desconstrução de imagens e discursos clichês por meio da sobreposição a eles de outras vistas instantâneas que embaralham as imagens na aposta de que elas percam em nitidez. Um trabalho que apelidaríamos de "significções", justamente por visar transformar os discursos instituídos por meio da criação de ficções que trazem novos significados sem pretensão de verdade, mas ao contrário, com a pretensão de desconstrução de pretensas verdades.

Na videoinstalação "A cidade fora dela", as imagens são produzidas a partir de vistas "de dentro para fora", da periferia para o centro. E às imagens de cartões-postal do Rio de Janeiro são sobrepostas imagens dessas mesmas paisagens vistas através das janelas de pequenas biroscas em favelas. O trabalho "Caminhão de mudança" pode ser tomado também como uma metáfora da abertura do tempo de que falamos. Um caminhão de mudanças circula pela cidade com uma tela de vídeo em na sua parte traseira, onde são projetados vídeos de outros caminhões de mudança com vídeos. As imagens filmadas das intervenções no trânsito das ruas são depois projetadas em outro caminhão em outra cidade. Sobrepostas, tem-se uma imagem dentro de outra e de outra, até que a inicial não seja mais visível.

Assim como a pintura, descrita por Merleau-Ponty como aquela que tem o dom do movimento, reunindo vistas instantâneas misturadas e convidando a percepção a trabalhar, os artistas contribuem para contrapor o mito de que a imagem fotográfica estaria destinada a congelar o tempo, petrificando o movimento em vistas instantâneas (Merleau-Ponty, 1964/1992, p. 62).

Podemos nesse ponto retomar as discussões de Barthes (1984) sobre a fotografia e o punctum, compreendido como aquele elemento que arrebata, parte da cena como uma flecha e transpassa o sujeito. Para percebê-lo, ele afirma, nenhuma análise seria útil, "basta que a imagem seja suficientemente grande, que eu não tenha de escrutá-la (isso não serviria para nada), que, dada em plena página, eu a receba em pleno rosto" (Barthes, 1984, p. 69).

É nesse sentido que compreendo que o gesto artístico, quando nos atinge em pleno rosto, tem a potência de abrir o tempo, de retomar o passado e trazer para o presente vivo o que estava congelado, invisível, alienado da possibilidade de nos olhar, inquietar e movimentar. Compreensão que me permite - mesmo ciente da complexidade e singularidade de cada disciplina e linguagem artística - assumir os riscos de ter colocado aqui, em um "mesmo" lugar, a imagem fotográfica, videográfica e a cena performada pelos adultos e crianças da favela; de ter colocado em um mesmo plano um trabalho de psicologia e arte e um trabalho artístico.

O lugar da imagem, do vídeo e da cena performada, nos trabalhos aqui discutidos, é o visível. E o que me permite colocá-los nessa relação é o fato de que, tendo sido produzidos a partir de proposições - fossem de psicologia ou de artes - geraram visibilidades dadas a partir de um laço sensível com o outro em sua radical alteridade, a partir do copertencimento ao mundo em sua profundidade. Compreendemos com Merleau-Ponty que no intermundo, seres diferentes, mesmo aqueles estrangeiros uns em relação aos outros, estão juntos, na simultaneidade (1964/1992, p. 66). E tal como destaca Dastur (2016), em referência a Merleau-Ponty, é nesse intermundo que há algo a fazer em termos de história, simbolismos e verdades.

Essa compreensão me permite assumir um outro risco, colocando em diálogo uma perspectiva decolonial e referências filosóficas marcadamente europeias, o que poderia ser lido na chave de um "eurocentrismo teórico" (Balestrin, 2013), que reflete certa colonização das ciências sociais. Essa questão vem sendo largamente discutida por pesquisadores e grupos no bojo dos movimentos pós-coloniais e decoloniais e é hoje objeto de inúmeros debates e tensionamentos. Cito a título de exemplo o grupo Modernidade/colonialidade, do qual faz parte o filósofo argentino Enrique Dussel, aqui referenciado, entre outros pesquisadores predominantemente latino-americanos, que assumem um referencial da colonização hispânica nesse continente e também inclui pesquisadores norte americanos. O grupo discute colonialidade e modernidade como duas dimensões de um mesmo problema, tendo o colonialismo, segundo eles, dado condições para que a ciência moderna europeia emergisse como epistemologia soberana e universal, relegando as epistemologias dos povos ditos "primitivos" a uma invisibilidade que gerou uma aura de inexistência. Considero essa discussão extremamente importante para as ciências humanas e sociais latino-americanas e entendo que os movimentos que buscam resgatar as epistemologias invisibilizadas, mais especificamente aquelas do hemisfério sul, vêm alterando o mapa geopolítico do conhecimento. Assumo esse risco, entretanto, por compreender que os aspectos abordados a partir dos autores de matriz europeia aqui citados têm ressonâncias com o pensamento decolonial.

Ainda que tenham sido forjados em uma tradição epistêmica europeia, assumiram posições críticas em relação ao pensamento moderno hegemônico. Mantendo um diálogo com a arte, eles guardam em comum uma aposta na dimensão estética e sensível como tentativa de superação da racionalidade moderna, instituída a partir da centralidade do homem, branco, europeu. Merleau-Ponty adotou o ponto de vista da estrutura para se contrapor ao modelo iluminista que situa na razão humana civilizada, adulta e sadia o ponto de origem da verdade e propõe que os sujeitos estão "em uma espécie de curto-circuito com o mundo sócio-histórico" (Merleau-Ponty, p. 205). Dialogando com a arte, ele opôs a esse domínio da razão a dimensão sensível, considerada fonte e origem do sentido, sendo a expressão um acontecer da estrutura que assume o valor de gênese da história.

Didi-Huberman pensa a antropologia da imagem como forma de conhecimento, perguntando-se qual seria o valor da imagem para os saberes históricos e buscando um método que visa a desconstruir clichês e estereótipos (Huapaya, 2016). Concebendo as imagens como plurais, ele assume na sua prática artística o gesto da montagem de imagens, criando constelações temáticas que possam provocar novas emoções e "libertar novos paradigmas para o pensamento" (Didi-Huberman, 2017, p. 7). Barthes busca na fotografia justamente essa possibilidade pungente geradora de um arrebatamento tal que obrigue a um trabalho.

Todos eles comungam da ideia de que a experiência estética promova certa desnaturalização da percepção que permita fazer ver de outro modo, desacostumado, ativando uma força criadora que seja, em algum nível, uma revolução ou gesto de levante, para retomar o termo de Didi Huberman (2017). Perspectiva que não se coaduna com a concepção de uma história única, que considere a cultura e a história europeia universais ou superiores a outras culturas. Ao contrário disso, tal perspectiva aposta no outro não como alteridade exótica, mas como outro corpo que, quando diante de nós, exige a nossa própria transformação.

Assumimos assim a convicção de que a capacidade de produzir um gesto-imagem que nos atinja no rosto não seja privilégio do artista stricto senso (ou mesmo do psicólogo), e que isso é tanto mais possível quanto mais somos um corpo sensível e sentiente, que sofre e se afeta, repercutindo os rumores do mundo do silêncio.

 

Considerações finais

Barbaras (2011) alude a uma insuficiência da visão; para ele, nossa relação com o visível é caracterizada por uma insatisfação irredutível que nos movimenta para desdobrar essa visão, multiplicando as imagens e as imagens das imagens, promovendo uma proliferação das imagens regida pela vontade de transformar tudo em visível. Se pensarmos o lugar das imagens e da cultura imagética no contemporâneo, poderíamos nos perguntar: onde fica o invisível? "O invisível reside aí sem ser objeto, é a pura transcendência, sem máscara ôntica", responderia Merleau-Ponty (1964/2000, p. 211).

Traduzindo fatos históricos, acontecimentos e modos de ser em imagens-clichê cronicamente repetidas, que ocupam o espaço-tempo do acontecer da vida e do nascimento do sentido, as forças a serviço da colonização, da dominação e do controle social alcançam a façanha de "impor" percepções distorcidas que parecem ter apagado a profundidade, a ambiguidade e reduzido tudo a um visível objetivo e sem espessura, pura máscara ôntica, sem transcendência.

Propomos pensar aqui na existência de um circuito envolvendo os exercícios de crença e de tautologia que nos traz Didi-Huberman (2010), no qual as imagens produzidas no primeiro exercício, da crença, findassem por nos colocar numa posição quase minimalista que conduz à posição da tautologia: imagens-anteparos que nos protegem do poder inquietante da visão. Como se afirmássemos: "isso é apenas o que vejo e nada mais há".

Mas o silêncio do invisível é ontologicamente constitutivo do ser e está em jogo, nesse aparente apagamento da profundidade, um outro tipo de apagamento. Acrescentaríamos, então, a esse circuito, um terceiro exercício: o exercício do colonizador, que consiste em modos de apagamento da diferença e de silenciamento e invisibilização do outro, que tem sido uma estratégia de dominação perpetuada com diferentes roupagens. Nas formas do exotismo, da colonização, da hierarquização de valores e capacidades a partir de raça, classe e gênero produzem-se diversas formas de exclusão social, marcadas na divisão dos espaços por fronteiras bem definidas, como discute Rancière (2012). O que vai agindo na produção e reprodução de desigualdades, apoiadas em e justificadas por supostas verdades que visam a silenciar e paralisar os sujeitos, o tempo e a vida.

A transformação da imagem-clichê é abertura ao tempo e, como tal, abertura do corpo ao mundo e ao outro, aventura do voo, da vertigem e, de vez em quando, re-pouso. Nesse momento histórico, mais do que nunca, a arte e todas as possibilidades de linguagem indireta que possam produzir falas falantes e pungentes que atinjam em cheio e permitam resgatar a experiência filosófica do espanto, estão convocadas. Nos espaços invisibilizados estão outros que precisamos reconhecer e encontrar para que imagens e narrativas outras possam produzir-se e sobrepor-se à ficção da Verdadeira História.

Merleau-Ponty deixou entre seus escritos uma nota que revela algo que pretendeu pensar, mas que não viveu para por em marcha: "Propor a questão: a vida invisível, a comunidade invisível, o outro invisível, a cultura invisível. Fazer uma fenomenologia do 'outro mundo', como limite de uma fenomenologia do imaginário e do 'oculto'" (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 211). Encerro retomando essa nota para reafirmar essa proposta como tarefa.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Mônica Botelho Alvim
mbalvim@gmail.com

Submetido em: 18/05/2019
Revisto em: 16/07/2019
Aceito em: 08/09/2019

 

 

1 O Projeto Expressão e Transformação: arte e subjetivação com crianças e adolescentes na favela foi realizado na comunidade da Mangueira, no RJ, entre 2010 e 2016, propondo oficinas de arte e corporeidade. Proposto e coordenado no âmbito do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a condução das oficinas era feita por equipes interdisciplinares que convergiam em torno de propostas metodológicas centradas no corpo e na dimensão estética, visando a produzir um pensamento alargado e sensível acerca do espaço, do tempo, do corpo, de si e do outro. Atuando no campo da extensão cidadã, o projeto busca construir espaços que permitam a emergência, naquela periferia do Rio de Janeiro, de vozes que são sistematicamente silenciadas. Para maiores referências sobre o projeto veja Alvim & Molas (2017) e Reis (2017).

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