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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2020v72i2p.40-54 

ARTIGOS

 

Diferença sexual e o desentendimento entre Butler e a Psicanálise

 

Sexual difference and the disagreement between Butler and Psychoanalysis

 

La diferencia sexual y el desentendimiento entre Butler y el Psicoanálisis

 

 

Tereza Isabel Castelo Branco BezerraI; Clara Virgínia de Queiroz PinheiroII

IMestranda em Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza (Unifor). Fortaleza. Estado do Ceará. Brasil
IIProfessora Titular. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza (Unifor). Fortaleza. Estado do Ceará. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Discute a respeito das ressonâncias do debate entre Butler e os psicanalistas sobre a diferença sexual, levando em consideração a perspectiva de Rancière sobre o "desentendimento". A proposta é empreender uma história do presente, no sentido de destacar o contexto de problematizações sobre a identidade sexual, em que a verdade referente ao sujeito é formulada. Como resultado desta investigação teórica, ressalta-se que Butler evoca descontinuidades históricas que provocam impasses nas abordagens da Psicanálise sobre o Mundo. Do lado desta ciência, breve revisão de literatura demonstrou a importância da referência ao último Lacan. Ao submeter os resultados à perspectiva de Rancière, situa-se a Psicanálise num espaço maior de preocupação com o sujeito e com o lugar que lhe é designado entre a ciência e o Mundo. Já Butler, por meio de sua inquietude com a legitimação da experiência, investe em expandir as barreiras inteligíveis do sujeito universal.

Palavras-chave: História do Presente; Psicanálise; Gênero; Butler; Desentendimento.


ABSTRACT

This article discusses the resonances of the debate between Butler and the psychoanalysts about sexual difference, taking Rancière's perspective on "disagreement" into account. The proposal is to undertake a history of the present, in order to highlight the context of problematizations about sexual identity, in which the truth regarding the subject is formulated. As a result of this theoretical investigation, it is emphasized that Butler evokes historical discontinuities that cause impasses in the approaches of Psychoanalysis on the World. On the side of this science, a brief literature review demonstrated the importance of the reference to the last Lacan. By subjecting the results to Rancière's perspective, Psychoanalysis is situated in a larger space of concern about the subject and the place assigned to him between science and the World. Still, Butler, through her uneasiness with the legitimation of experience, invests in expanding the intelligible barriers of the universal subject.

Keywords: History of the present; Psychoanalysis; Gender; Butler; Disagreement.


RESUMEN

Discute a respecto de las resonancias del debate entre Butler y los psicoanalistas sobre la diferencia sexual, teniendo en cuenta la perspectiva de Rancière sobre el "desentendimiento". La propuesta es emprender una historia del presente, para resaltar el contexto de problematización sobre la identidad sexual, en el que se formula la verdad sobre el tema. Como resultado de esta investigación teórica, se enfatiza que Butler evoca discontinuidades históricas que causan puntos muertos en los enfoques de Psicoanálisis en el Mundo. Del lado de esta ciencia, una breve revisión de la literatura demostró la importancia de la referencia al último Lacan. Al presentar los resultados a la perspectiva de Rancière, el Psicoanálisis se coloca en un espacio más amplio de preocupación con el tema y con su lugar asignado entre la ciencia y el Mundo. Butler, a través de su preocupación por la legitimación de la experiencia, invierte en expandir las barreras inteligibles del sujeto universal.

Palabras clave: Historia del Presente; Psicoanálisis; Género; Butler; Desentendimiento.


 

 

Introdução

O gênero, sistema de produção de identidades fundado na diferença radical entre homens e mulheres, é objeto de debates acalorados, reações contrárias e favoráveis, que se confrontam na sociedade, hoje. Segundo Michel Foucault (2015), nos séculos XVII e XVIII, reconhecer-se como um sujeito sexual, localizando-se em um campo estrito de normas preestabelecidas, tornou-se a via de acesso principal da pessoa para o encontro consigo própria. O largo espectro das identidades sexuais, formulado especialmente pelo saber médico e biológico, situa o sujeito moderno entre o normal e o anormal, na medida da adequação de seu corpo, de seus gestos aos princípios morais de conduta social.

Desde as redes sociais, até a televisão e os movimentos políticos, a população é constantemente convocada a debater sobre o assunto. Considera-se que o tema provoca desacordo, em razão das mudanças dos parâmetros para definir a identidade sexual. A estabilidade das identidades binárias tradicionais - sustentadas pela dicotomia homem/mulher - é posta em xeque, em face das diversidades de maneiras de identificações como sujeito sexual. Como exemplo destes embates, destacam-se os diversos movimentos, no âmbito da sociedade, de aprovação e condenação, relativamente às mudanças desencadeadas por essa narrativa.

A vinda de Judith Butler ao Brasil, no início do mês de novembro de 2017, por exemplo, movimentou a ação de muitos grupos conservadores da sociedade. Apesar de não se identificar com a designação, Butler é conhecida como uma das principais autoras que tratam do tema gênero na Contemporaneidade. Mediante uma petição online no site CitizenGo, parte da sociedade angariou 350 mil assinaturas de repúdio a sua visita ao Brasil. O texto que constitui a petição evoca Butler como uma das principais promotoras da "ideologia de gênero" e ressalta a preocupação com a introdução desta ideologia nas escolas e na vida das crianças, com a intenção de fragmentar e corromper a sociedade (Anônimo, 2017, 26 outubro).

Miskolci e Campana (2017) ressaltam que a expressão "ideologia de gênero" é empregada a fim de sustentar um controle moral sobre os formatos de sexualidade e identidade considerados legítimos e ilegítimos. Luna (2017) explica que o argumento mais utilizado por estes agentes sociais contrários à perspectiva de gênero é o de que a relativização da sexualidade e da identidade submete a risco a instituição da família e a dignidade das crianças.

Apesar de, há décadas, o tema gênero ter sido inserto por organizações internacionais de direitos humanos, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), como um assunto de alçada relevância para a produção de boas práticas governamentais em diversas nações - desde a Conferência Mundial de Beijing sobre a Mulher, em 1995 -, as reações inflamadas contrárias às mudanças propostas por estas entidades começaram também a se expandir (Luna, 2017).

Foi no contexto desse desacordo político e social que, em 2013, o Plano Nacional de Educação (PNE) se fez objeto de debates acalorados. O projeto tematizou as identidades de gênero como escolha pessoal, que deve ser reconhecida e respeitada, em conformidade com os direitos humanos. Apesar de o Ministério da Educação (MEC) adotar posição favorável à inclusão do debate acerca de gênero nas escolas, o PNE passou por inúmeras alterações no plenário do Senado e na Câmara dos Deputados, tendo sido retirado do texto final toda sentença que mostrasse qualquer relação com a "ideologia de gênero" em foco (Reis & Eggert, 2017).

Então, tematiza-se aqui a identidade sexual como aspecto histórico e cultural, objeto de lutas políticas, epistemológicas e também morais. Com amparo em uma perspectiva histórica e antropológica, procurou-se acentuar, no debate entre Butler e a Psicanálise, os desentendimentos acerca dos parâmetros para o reconhecimento de si como sujeito sexual. Isto porque, se no ambiente acadêmico o debate em torno da igualdade de gênero é inflamado, desde a problematização de Simone de Beauvoir (1949/2016), a respeito da relação política entre homem-mulher, hoje, com os pensadores acerca do gênero, é o fenômeno pelo qual a pessoa se reconhece como sujeito sexual que está em discussão entre Butler e Psicanálise. É, então, uma temática inserida numa história do presente, a propósito de quem se é como sujeito sexual.

Para Judith Butler (2003), a heterossexualidade compulsória, o falocentrismo e o discurso sobre a diferença sexual associam regimes de poder que normatizam maneiras de ser na linguagem. Nesse sentido, ela questiona "o que acontece ao sujeito e à estabilidade das categorias de gênero quando o regime epistemológico da presunção da heterossexualidade é desmascarado, explicitando-se como produtor e reificador dessas categorias ostensivamente ontológicas" (Butler, 2003, p. 8).

É nesse rumo que ela determina como imprescindível analisar o discurso da Psicanálise como um dos produtores de identidades de gênero internamente coerentes no âmbito da estrutura heterossexual. Numa análise seletiva do estruturalismo, a lógica edípica e o tabu do incesto são submetidos, pela Autora, à crítica foucaultiana da hipótese repressiva, revelando que o pensamento jurídico e proibitivo tanto instala a lógica "heteronormativa", quanto possibilita seu questionamento (Butler, 2003).

Apesar de, em "A vida psíquica do poder: teorias da sujeição", Butler (2017) reconhecer que Freud e Lacan não são apenas eles os expoentes da Psicanálise, ela os elege como os pensadores sobre os quais se debruçará para pensar as teorias de sujeição e as possibilidades de resistência. Com efeito, o escopo deste artigo é discutir as ressonâncias do debate teórico entre Butler e os psicanalistas sobre a diferença sexual, levando em consideração a perspectiva teórica de Rancière sobre o desentendimento. A proposta é salientar as diferenças entre Butler e a Psicanálise como práticas políticas, éticas e epistemológicas de produção de identidade sexual.

Julga-se que o estudo desta discussão sobra relevante para a Psicologia, pois se partilha da tese foucaultiana, ao considerar que a disputa pelos códigos de verdade no contexto social é produtora de novas modalidades de subjetivação. Desde um prisma histórico, o objetivo que se persegue não é desvendar qual a teoria mais correta, mas ressaltar a própria dinâmica discursiva do confronto entre essas duas partes. Como aponta Foucault (2017), cuida-se menos de enfatizar as ideias e mais de analisar a especificidade das problematizações, campo no qual o ser se constitui como podendo e devendo ser pensado.

O desentendimento, proposto por J. Rancière (1996), é usado como ferramenta analítica que permite situar os dois discursos, um face ao outro, como campos discursivos, que travam embates políticos e éticos. Para esse pensador francês,

A filosofia torna-se "política" quando acolhe a aporia ou o embaraço próprio da política [...] O que torna a política um objeto escandaloso é que a política é a atividade que tem por racionalidade própria a racionalidade do desentendimento (p. 11).

Por desentendimento Rancière (1996) compreende uma situação muito específica da palavra: aquela em que o interlocutor entende e não entende, ao mesmo tempo, o que o outro diz. Num debate, desentendimento não pode ser confundido com desconhecimento ou mal-entendido. Assim, embora o interlocutor "entenda claramente o que o outro diz, ele não o objeto do qual o outro lhe fala" (Rancière, 1996, p. 12).

Na medida em que os grupos tomam parte em distintos espaços de enunciação em uma discussão, surge o desencontro, discordância que põe em jogo não o que é mais verdadeiro ou mais falso, mas os limites de possibilidade e impossibilidade de um debate. É no fazer e desfazer desta divergência que, segundo o autor, são possíveis as transformações sociais (Rancière, 1996). É percebendo Butler e os psicanalistas como agentes que modificam discursivamente o espaço social e como pertencentes a grupos que utilizam inteligibilidades distintas para avaliar o mundo que se questionam as implicações políticas deste debate.

Tendo esta perspectiva em vista, o texto está organizado de maneira a explicitar, primeiramente, a proposta teórica de Butler - junto de suas principais críticas à Psicanálise. Em seguida, debatem-se as respostas que os psicanalistas desenvolvem às interpelações de Butler. Após a introdução das partes, analisam-se as duas teorias mediante a intelecção de Rancière acerca do desentendimento.

Recorreu-se a artigos e obras renomeadas dos autores e temas em debate. De Judith Butler, ressalta-se o estudo de "Problemas de gênero: feminismos e subversão da identidade" (Butler, 2003), de "A vida psíquica do poder: teorias da sujeição" (Butler, 2017) e de "Bodies that matter: on the discursive limits of 'sex'" (Butler, 1993). O livro de Sara Salih, "Judith Butler e a teoria Queer" (Butler, 2017) também foi uma fonte importante de dados para análise da teoria da Autora sob exame.

Para proceder a uma análise das respostas mais frequentes entre os psicanalistas acerca das críticas de Butler à Psicanálise, realizou-se uma revisão de literatura na base de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), no mês de setembro de 2017. Esta modalidade específica de busca foi escolhida para esta seção do artigo, pois as obras clássicas de Lacan e Freud ainda não abordavam a discussão específica sobre o gênero, como se pretende examinar neste estudo. Tal discussão remete, como já apontado, a mudanças nas práticas de subjetivação ainda em percurso. A revisão de literatura permite, portanto, que se apreenda, com clareza e objetividade, a situação atual do debate entre os psicanalistas.

Com a combinação dos descritores Gênero e Psicanálise, 29 artigos foram encontrados. Sobraram escolhidos estes descritores, pois eles conferiram resultados de maior abrangência na base de dados. Destes 29, estabeleceu-se como critério de inclusão aqueles que possuíssem Gênero e Psicanálise nas palavras-chave, estivessem escritos em português, inglês ou espanhol e, após a leitura dos resumos, restassem em conformidade com o tema proposto pela pesquisa ora relatada.

Após a aplicação dos critérios de inclusão, ficaram 16 trabalhos. Destes, excluíram-se aqueles que se louvavam, predominantemente, na perspectiva do gênero para endossar o debate com a Psicanálise. Este movimento ocorreu em razão da tentativa de garantir que se retirasse da análise dos artigos uma perspectiva eminentemente psicanalítica das críticas de Butler à Psicanálise.

Após a aplicação dos critérios de exclusão, foram selecionados nove textos para serem analisados. Ao final da sua leitura integral, um deles foi excluído ("The L World - discussões em torno da parentalidade lésbica"), pois não oferecia uma dialetização entre conceitos de Gênero e da Psicanálise. Além das mencionadas pesquisas, algumas obras ainda foram revisitadas, como o livro do autor esloveno Slavoj Zizek "O sujeito incômodo" (2017) e o texto "Letra de uma carta de amor" do livro "O Seminário de Lacan, volume 20: Mais, ainda".

Em decorrência da complexidade e extensão dos dados encontrados, para melhor visualização, os argumentos mais frequentes utilizados pelos psicanalistas neste debate foram agrupados em cinco categorias, cada qual correspondente à expressão geral de um sentido construído nos textos estudados. As categorias elaboradas foram: Esclarecimento sobre a noção de falo; O contexto histórico de Freud; O Real em Lacan; O problema de ênfase no Simbólico; e Similaridades entre as duas teorias.

Após o delineamento do percurso teórico de cada uma das partes, a última seção desta demanda refere-se, propriamente, à intermediação do debate pela perspectiva de Rancière, excedendo a disputa puramente argumentativa e ampliando a visão sobre o assunto. Esse segmento visa a problematizar, efetivamente, a disputa entre os discursos desde a perspectiva de desentendimento de Rancière, analisando as proximidades e distanciamentos teóricos, através de uma lente política.

Esta decisão decorreu da importância de conferir a este debate um caráter político. Como exposto na introdução, as discussões acadêmicas que circundam o tema gênero suscitam reações sociais e políticas de indescartável relevância. A obra de Rancière a que se recorreu para fundamentar este momento da pesquisa foi "O desentendimento: Política e Filosofia" (1996). A análise dos dados foi assim elaborada, na tentativa de oferecer uma discussão crítica e, ao mesmo tempo, objetiva dos resultados.

Da parte das autoras, o enfoque no contexto das problematizações, e dos dissensos propriamente ditos, concerne a um posicionamento político, considerando, como ocorre com Foucault (1978/2008), que toda luta política é uma luta pela verdade. A resposta para o aspecto sobre em nome de que e como se deve lutar "[...] só pode aparecer, parece-me, no interior de um campo de forças reais, isto é, um campo de forças que nunca um sujeito falante pode criar sozinho e a partir de sua palavra" (Foucault, 1978/2008, p. 4). É o caso, portanto, de uma tentativa de se desprender das polêmicas meramente internas ao discurso teórico, e decidir sobre "[...] que campos de forças reais tomar como referência para fazer uma análise que seja eficaz em termos táticos" (Foucault, 1978/2008, p. 4).

 

Judith Butler e a crítica à Psicanálise

A Psicanálise conforma uma seara teórica amplamente debatida entre as autoras do gênero, desde o início dos movimentos feministas. A começar por Simone de Beauvoir (1949/2016), a discussão sobre a relevância das ideias de Freud, como meio para compreender as modalidades de opressão da mulher no contexto social, constitui motivo de constante controvérsia nesta área do conhecimento. Apesar de muitas autoras, como Mitchell (1988) e Kristeva (1982), tentarem estabelecer um vínculo teórico uniforme entre feminismo e Psicanálise, desde muito cedo, foram, também, inseridos nas teorias pontos de radical discordância.

Scott (1990), uma das mais ilustres pesquisadoras da área de gênero, frequentemente, questiona a dificuldade de Lacan em enfatizar as especificidades históricas e políticas de seu pensamento. Monique Wittig, em seu texto "O pensamento hétero" (1992, p. 2), assim se exprime:

Para Lacan, aquilo que ele chama o "discurso psicanalítico" ou a "experiência analítica", ambos lhe "ensinam" aquilo que ele já sabe [...] Na minha opinião, não há dúvida que Lacan encontrou no Inconsciente as estruturas que disse que lá encontrou, pois tinha-as previamente posto lá.

Foi tendo este conflito político-teórico como pano de fundo que, mais recentemente, Butler (2003) desenvolveu sua análise sobre a Psicanálise. Com procedência na crítica à ênfase conferida à diferença sexual em Lacan, Butler (2003) questiona proposições como a universalidade do sujeito cindido, os essencialismos teóricos cometidos pelo autor e a centralidade do falo na organização social em detrimento da experiência da feminilidade. Na decodificação da autora, algumas categorias psicanalíticas impõem regras de inteligibilidade cultural tomadas como se fossem imunes a transformações sociais.

Butler (2006) enfatiza, recorrentemente, em suas obras, o caráter político indissociável que emerge na formulação de uma teoria. Procedendo da ideia de terror como expressa na "Fenomenologia do Espírito", de Hegel, ela questiona os limites das estruturas teóricas formais em qualquer exposição sobre a sociedade. "O terror que toma o escravo quando ele reconhece a sua liberdade parece culminar na criação simultânea de normas éticas e na rejeição da condição corporal de sua própria vida" (Butler, 2017, p. 40). De semelhante modo, a abstração de estruturas formais só existe mediante a "foraclusão" de uma parte da experiência concreta, algo que deixa marca excedente no funcionamento mesmo da abstração. As configurações teóricas universais são indissociáveis de suas especificidades histórico-culturais constitutivas; são habitadas pelo registro da experiência particular às quais devem se opor (Butler, Laclau & Zizek, 2004).

No raciocínio de Butler (2003), a inteligibilidade ocidental está sustentada num regime epistemológico que presume a heterossexualidade e o falocentrismo (desde a constituição jurídica da linguagem até as modalidades de representação viáveis), é responsável pela produção de categorias ontológicas. Com efeito, a primazia dada à estrutura, característica da Psicanálise, tem como efeito o silenciamento da particularidade "foracluída" da estrutura lacaniana: as modalidades de existência da homossexualidade, que ultrapassam a ordem simbólica (Butler, 2003).

Butler tenta explicar essa lógica, em sua obra "Problemas de gênero: feminismos e subversão da identidade", ao analisar o "matema" da "sexuação" de Lacan e ao trazer à tona a ontologia do gênero implícita ali. Jacques Lacan (2008) distingue duas possibilidades subjetivas para o sujeito: ser o falo (posição feminina) e ter o falo (posição masculina). Ser o falo significa ser suporte para afirmação da postura masculina (sujeito) que encontra no espaço do Outro um vislumbre do que lhe falta, do objeto que lhe completa. Enquanto isso, ter o falo significa ser possuidor daquilo que pode originar sentido para o campo da falta.

Na concepção de Butler (2003), essa narrativa lacaniana retoma, incansavelmente, o esforço identitário para registrar um lugar dentro de uma oposição binária. A mulher ocupa, nessa ficção, o lugar de quem deve afirmar a potência masculina no Simbólico, ao mesmo tempo em que se destina ao fracasso, ao retomar o falo como símbolo elementar da castração e da cisão.

Disto, então, ela distingue dois possíveis caminhos de interpretação do pensamento lacaniano sobre a sexualidade. No primeiro, pode-se compreendê-lo como jogo performativo de uma ontologia sexual, consoante ela propunha. Por outro lado, pode-se pensar que Lacan reduz a experiência feminina a uma tentativa de participar do jogo falocêntrico, negando o que poderia ser uma experiência ontológica da feminilidade anterior à economia fálica do ser e ter.

Portanto, abrir-se-iam dois espaços de análise: o primeiro buscaria possibilidades móveis transpostas à compreensão de ser e ter falo, já que seriam ambos atos "performativos". O segundo tentaria recuperar ou libertar o desejo feminino que possa ter sido conservado sob recalque nos termos da economia fálica.

É importante ressaltar, contudo, o fato de que Butler (2003) alerta para o problema de se pensar em uma experiência feminina que esteja mantida fora do discurso. Assumindo a ideia de que não há sujeito pré-discursivo, ela entende que é na presentificação do acontecimento que as identidades são formadas e reiteradas. Impõe-se, por conseguinte, entender de que maneira, nas sociedades ocidentais modernas e posteriores, se produz uma experiência, sob as quais as pessoas se reconhecem como portadoras de uma sexualidade e de um gênero com procedência dos campos de poder-saber bastante diversos que se articulam em sistemas de regras, coerções e exclusão (Foucault, 2014; Butler, 2003).

Seguindo o exemplo de investigação crítica de Foucault (2014), Butler (2003) tenta explicar as categorias fundantes do sistema sexo/gênero/desejo, como efeitos de uma composição específica do poder. Ela abandona, portanto, a ideia da interdição como o jeito único concebível de articulação do sujeito e trabalha com a perspectiva positiva do poder: a capacidade inerente a ele de produzir subjetividades.

Butler (2003) entende o gênero, portanto, como uma experiência produzida com amparo na repetição de identidades sexuais instáveis e arbitrárias formadas no seio de práticas institucionais e discursivas que se organizam pelo falocentrismo e pela heterossexualidade compulsória.

Em "Bodies that matter" (Butler, 1993), Butler insiste na indissolubilidade existente entre significação e materialidade. Afastando-se e criticando cada vez mais algumas interpretações da teoria lacaniana, em vez de tomar a linguagem como um meio de circunscrição do Real, para Butler (1993), a linguagem é, constitutivamente, o próprio Real. O corpo orgânico é entendido como um produto de materialização, resultado das reiterações de significação consolidadas no decurso do tempo, produzindo efeito de fixidez, limite, substância e superfície, a que se chama, correntemente, de matéria (Salih, 2017).

No mesmo livro, Butler (1993) questiona, inclusive, a distinção valorativa feita por Lacan entre Simbólico e Imaginário. Com suporte no texto de Lacan, em "O estádio do espelho", Butler entende que a ordem simbólica se impõe sobre o imaginário morfológico, de maneira a lhe restringir uma sustentação masculinista. Assim, a forma que o imaginário dá ao corpo só se sustenta, para Lacan, se submetido à lei paterna.

No encontro com a teoria de Althusser, Butler (1993) consegue descrever a ideia desde a qual, para ela, o sujeito é introduzido num processo discursivo. Ao ser chamado - ou seja, interpelado - de menino ou menina, o sujeito é convocado forçosamente a participar de um jogo discursivo que produz a materialidade de seu corpo com base nas compreensões do que é masculino ou feminino. Passa, então, a ter de citar esta maneira específica de subjetivação - contingente à persistência e instabilidade das relações de poder - reiteradamente para que sua existência seja inteligível.

A autora busca no fenômeno do Drag e da paródia a ilustração de meios possíveis de utilização do discurso de maneira subversiva. Ao citar os signos culturais em contextos inesperados - submetendo a xeque as próprias estruturas, exibindo suas partes "foracluídas" do discurso -, a perfomance Drag ou a paródia possui a capacidade de restituir novas modalidades de subjetivação. Isto, contudo, não exclui o fato de que estes novos formatos identitários - que agora passam a ser incluídos na estrutura inteligível - deixem de fora outras possibilidades de existência; sendo o continuum de busca pela dignidade das existências dissidentes a escolha ética de Butler (2003).

 

A resposta dos psicanalistas lacanianos a Butler

Esclarecimento sobre a noção de falo

Os dados retirados dos artigos deixam claro que um dos pontos centrais da "contracrítica" psicanalítica com relação à análise de Butler está na retomada do significado de alguns conceitos do pensamento freudiano e lacaniano, com ênfase na ideação de falo.

Em artigo de Pereira (2014), no qual ele reflete sobre as críticas da teoria de gênero à Psicanálise, com esteio na fala de professores sobre os papéis de gênero, o autor deixa claro que a noção de falo introduzida pela Psicanálise não possui vinculação direta com a matriz biológica. Assim, a diferença sexual, para a Psicanálise, não está relacionada a uma reiteração do sistema de sexo-gênero, no qual a ausência ou presença do pênis direcionaria uma posição subjetiva masculina ou feminina.

O falo, na verdade, designa o signo de defesa contra a falta que habita qualquer sujeito, independentemente do seu sexo biológico. Ele é o significante primordial da falta. Freud (1923/2011) entende que a constituição da subjetividade é elaborada na infância, desde os cuidados parentais primários. Destaca-se, portanto, para ele, a importância das funções paterna e materna. A primeira configura uma restrição definitiva, que inclui o sujeito na cultura, enquanto a outra é responsável por incluir o bebê no circuito do desejo. É na percepção da incompletude daquele que exerce a função materna - por meio das variadas ausências da mãe dos cuidados cotidianos do bebê, como demorar na mamada, não o atender de imediato por estar ocupada etc. - que o bebê exprime a sua primeira inscrição da falta (Pereira, 2014).

Marini (2015), num artigo em que discorre sobre a relação entre gênero, bulimia e Psicanálise, ressalta que estas preocupações com as inscrições das funções materna e paterna, próprias da Psicanálise, situam-na como uma teoria baseada nas diferenciações de gênero, manifestas por via da identificação ou diferenciação relativamente à mãe. Este ponto de vista, no entanto, é controverso e entra em conflito com a tese do monismo sexual defendida por Freud e por muitos psicanalistas da atualidade.

Os artigos ainda ressaltam a diferença primordial entre falo imaginário e falo Simbólico. O primeiro corresponde a essa fantasia de completude e de saturação que impregna os objetos-insígnias de potência na sociedade - como o pênis. Entrementes, o falo simbólico designa a materialidade real da incompletude - um ponto de ancoragem estrutural do sujeito em frente à falta. Esta ascensão ao falo simbólico, exprimida por Lacan, distancia o sujeito de qualquer orientação primordialmente fálica em termos de masculinidade. Assim, a crítica de Butler sobre a ênfase lacaniana no falo, feito um meio de significação de homens e mulheres, se restringiria somente à compreensão imaginária dele (Pereira, 2014).

Alguns autores finalizam esta discussão sobre o falo na Psicanálise, relembrando que a distinção entre masculino e feminino na Psicanálise, desde Freud, é interpretada como elaboração social. O que define a Psicanálise não é a cisão entre sujeitos masculinos e femininos, mas a tese do monismo sexual: a realidade do sujeito cindido é universal e, portanto, há somente uma libido em jogo, tanto para homens, quanto para mulheres (Pereira, 2014).

O contexto histórico de Freud

Outro ponto percebido nos textos analisados foi a preocupação dos autores em esclarecer que a Psicanálise freudiana é constituída em um contexto histórico específico. De efeito, ela se detém, em sua proposta teórica, a questionar aspectos determinados do conservadorismo da época, como a forte repressão sexual da sociedade vitoriana. Decerto, Freud não pôde se desvincular totalmente de seu tempo, mantendo-se, de algum modo, reflexo das estruturas do pensamento normativo (Lago, 2010).

Muitas pesquisas ressaltaram que Freud saiu da importância do complexo de castração nos meninos para, só então, chegar ao enigma do Édipo feminino, pois, naquela época, a categoria homem designava a humanidade de modo geral. Assim, a suposta misoginia de Freud é justificada, alegando-se que, no contexto da cultura patriarcal, ele se utilizou da repetição das modalidades de inteligíveis da época para fazer emergir as contradições que residiam ali (Pereira, 2014).

Ao ressaltar que a falta é um componente essencial para a subjetivação, aponta-se que Freud se desprende dos ideais iluministas. Em toda a sua obra, a cisão do sujeito é evidenciada e os impasses aos quais chega ao tentar esquematizar, em termos científicos, o feminino, são constantemente reiterados (Pereira, 2014).

O Real em Lacan

Outro ponto fundamental é o de que Butler centraliza suas críticas apenas nos momentos estruturalistas de Lacan, nos quais ele aproxima sua teoria das contribuições de Saussure e Strauss (Cossi & Dunker, 2016). Em artigo de Peller (2011), no qual a autora sintetiza os diálogos realizados entre Laclau, Judith Butler e Zizek, no livro "Contingência, Hegemonia e Universalidade", ela demonstra que, para Butler, apesar de Lacan tencionar separar o Simbólico de influências demasiado culturais, a concepção enviesada dos modos de parentesco de Levi Strauss - que situam a mulher como meio de transmissão entre os homens - ainda impregna sua opinião sobre o Simbólico.

Cossi e Dunker (2016), por intermédio de revisão narrativa da literatura, reexaminam as críticas de Butler a Lacan, com base na teoria do Real e fórmulas de "sexuação", e apontam que esse entendimento da diferença sexual, colado em análises antropológicas da realidade social, é revisto por Lacan quando da elaboração da sua ideia de gozo.

Portanto, os psicanalistas reconhecem que há, de fato, uma complicação quando se evoca o viés antropológico para explicar narrativamente o sentido das fórmulas de "sexuação". Elas são, no entanto, em essência, vazias de qualquer tipo de leitura desta qualidade. O que se exibe no "matema" da "sexuação" é o jogo entre as categorias da lógica modal (o necessário, o contingente, o possível e o impossível) e da quantificação (quantificador universal e existencial) (Cossi & Dunker, 2016).

Quando Butler (2003) aponta que a compreensão lacaniana do Real, ao submeter o sujeito à impossibilidade, silencia potenciais transformações políticas, algumas pesquisas relembram que o Real em Lacan - como se pode observar mediante as categorias modais e de quantificação - não se resume ao viés da negação, mas agrega em si também a ideia de contingência. É verdade que, historicamente, a doxa lacaniana aceitou melhor o Real como impossível do que como contingente. Decerto, Butler possui o mérito de ter conduzido os psicanalistas a atentarem para isto. Copjec (1994), todavia, citado no artigo de Cossi e Dunker (2016), reitera a importância da existência da negatividade, como um ponto estrutural do sujeito que o elude do domínio da experiência vivida.

Para finalizar, ressalta-se que os binarismos de Lacan - posição masculina/posição feminina, fálico/castrado etc. - típicos de seu período estruturalista, são reduzidos, com amparo na teoria do Real, a efeitos de um posicionamento possível para o sujeito em frente a sua cisão; de modo algum, imprescindíveis para a constituição do sujeito (Cossi & Dunker, 2016).

O problema da ênfase no Simbólico

Como consequência desta elucidação sobre a teoria do Real em Lacan como instância do impossível e da contingência, foi possível perceber também que os psicanalistas acusam frequentemente Butler de querer submeter o Real ao Simbólico em seus textos. Peller (2011) aponta que há uma diferença clara no entendimento do potencial do discurso em Butler e em Lacan. Enquanto a interpretação de Butler determina os limites para o discurso na História, a estrema discursiva em Lacan se relaciona com demarcações estruturais.

Butler, no tentame de legitimar novos modelos de identidade, tenta historicizar o gozo. No caminho foucaultiano, ela entende que a resistência só é possível de existir graças à repetição reiterada das normas - num movimento circular, poder produz resistência, que enseja outras modalidades de relações de poder. Assim, no próprio ato de repetição da norma histórica, surge um ponto de diferença que pode redistribuir as hierarquias do poder. O que fica de fora, no entanto, é a reflexão sobre a persistência do sujeito (o gozo) nesse ato circular que, em si mesmo, não promove a reconfiguração da estrutura do campo simbólico-normativo, mas apenas redesigna arranjos (Cossi & Dunker, 2016).

É somente com o ato ético - aquele movimento que arrisca a suspensão da suposição do grande Outro Simbólico-normativo - que o sujeito pode estabelecer outros significantes-mestres e, assim, operar uma real mudança estrutural no Simbólico (Zizek, 2016).

Similaridades entre as duas teorias

É possível observar, também, um pensamento dialético que aproxima a teoria lacaniana das proposições de Butler sobre a experiência de gênero. Nos artigos, ressalta-se que Butler adota largamente, para a elaboração do conceito de "performatividade", a ideia de pulsão de Freud: a pulsão, ao agregar a ideação de potência transformadora e de resistência, se torna uma noção interessante aos propósitos políticos de Butler. Além disso, a ideia de que ela conforma algo que não pode se reduzir nem à Biologia nem à cultura, mas consiste no limiar entre estes dois pontos, também é essencial para a autora (Cossi & Dunker, 2016).

Alguns escritores de nomeada na matéria sob luz apontam, ainda, que, se pode existir alguma aproximação entre as duas teorias, esta deve se dar pelo real do ato, como contingência "performativa". Butler, assim como Lacan, compreende a importância do ato que materializa o corpo na performance, pois é nisto que alguma intrusão real da diferença pode emergir (Cossi & Dunker, 2016).

No artigo de Safatle (2013) em que ele reexamina o caso Dora, desde uma perspectiva genérica, o autor relaciona o conflito de gênero com a experiência da histeria, conforme descrita por Freud. Os sintomas histéricos de Dora demarcam uma descontinuidade na circunstância de sujeitar-se às normas do desejo feminino. Isto aproxima a histeria da maneira de resistência como Butler a entende: enquanto Freud reduziu o problema de Dora a um desejo reprimido pelo Sr. K - encaixando-a no que deveria ser a maneira "esperada" do seu desejo - Dora está mais enlaçada no problema da sua identificação com o gozo oral da Sra. K, o que aparece como dissidência da norma sexual geral.

No artigo de Mandelbaum, Schraiber e d'Oliveira (2016), os autores utilizam as categorias das teorias de gênero e da Psicanálise, de modo complementar, para examinar um caso de violência na vida familiar que chega para atendimento nos espaços de saúde coletiva. A perspectiva social que a teoria de gênero conduz e a estrutural típica da Psicanálise não são abordadas como incompatíveis em razão das suas divergências. Pelo contrário, é justamente nos pontos de desacordo que uma pode complementar a outra. Assim, a violência na família é compreendida como uma repetição de estruturas subjetivas - o trauma, aproximado da experiência de violência na família, como organizador da subjetividade - e hierarquias sociais que apõem a mulher, por exemplo, como receptora por excelência deste episódio de violência.

 

Rancière e o desentendimento

Apesar das muitas similaridades encontradas entre uma teoria e outra, é importante para ambos os lados exprimir certas preferências teóricas que implicam posicionamentos políticos diferentes perante o Mundo (Peller, 2011). Enquanto a Psicanálise enfatiza a importância da estrutura e acusa Butler de reiterar um gozo histórico-normativo, ela incrimina a Psicanálise de esconder seus interesses por trás do argumento da inevitabilidade da estrutura e se mantém fiel à noção histórica de sujeito.

Rancière (1996) chama de desentendimento, ou dissenso, a atividade política na qual uma esfera particular da experiência, seus objetos comuns e argumentos são tomados por agentes de variados espaços de enunciação. Nestes casos, a discussão não se restringe à racionalidade da troca de interesses, mas ao que, de fato, é um interesse. O que está em jogo é a luta pela existência de uma situação de fala, de modos de inteligibilidade e o status da identidade dos participantes na enunciação (Marques, 2013). Aquele que intenta mostrar que faz parte de um jogo comum, que o outro não vê, não pode se valer meramente da lógica inteligível recorrente.

Rancière (1996) indica ser justamente no conflito entre aquele que diz "branco" e o outro que também diz "branco", mas não entende a mesma coisa com o nome "brancura", que se instala o desentendimento. Assim, pode-se inventariar uma série de categorias utilizadas de maneiras diversas - e ininteligíveis ao interlocutor - por ambos os lados. Resistência, subversão, Simbólico, "foraclusão", fantasia etc. são alguns dos termos amplamente debatidos na discussão entre Butler e os psicanalistas.

Zizek (2016), em seu livro "O sujeito incômodo", aponta que Butler se equivoca na compreensão de vários termos lacanianos. Sobre a ideia de resistência, ele aponta que Butler (2017) funde dois usos opostos do termo: seu uso sociocrítico (na sua relação com o poder) e seu uso clínico, enganando-se quanto ao estatuto do imaginário como possibilidade de resistência social. Rancière (1996) entende que aquilo que pode ser tomado como um mal-entendido ou desconhecimento entre duas partes pode esconder um fenômeno muito mais profundo. Nesses eventos extremos, estão em jogo a própria racionalidade da palavra e a atividade política de verificação da igualdade.

Curiosamente, o equívoco apontado por Zizek (2016) é intencionalmente cometido por Butler (2017) em seu livro "A vida psíquica do poder: teorias da sujeição", na tentativa de tornar plausível uma resposta para a pergunta "qual é a forma psíquica que o poder adota?" (p. 10), agenciando, justamente, a teoria do poder e da psique - tarefa evitada tanto entre foucaultianos, quanto em meio a psicanalistas. Ela insiste no imaginário como expediente de resistência, pois sua suplantação no Simbólico cria um espaço de impossibilidade para a teoria psicanalítica. Essa inversão subverte, em seus termos, o limite de compreensão do corpo e da subjetividade possíveis para a Psicanálise.

Sobre a ideia de subversão, o uso divergente dos termos pode ser explicitado quando se tem melhor compreensão sobre a maneira como Butler aborda Hegel em seus estudos. Enquanto ela utiliza o autor para pensar nos limites do formalismo nas teorias, os lacanianos o percebem como um teórico da reflexividade em confrontação com o Real (Butler et al., 2004). Assim, se a Psicanálise interpreta a subversão e a "foraclusão", remetendo à experiência estrutural do sujeito, Butler as considera para pôr em xeque o limite do saber.

Em ultrapasse à disputa sobre o que é certo ou errado neste debate, o que está em jogo em toda a discussão configura contestações sobre o que é argumentável e o que não é. Os espaços de enunciação ocupados são divergentes e, utilizando-se da ideia de sem-partes de Rancière, cada lado expõe um dano específico da ordem social. Para Rancière (1996), os sem-parte são um suplemento da ordem consensual, aqueles não contados como inteligíveis e que, por sua ação, demonstram modos de subjetivação que tornam a verificação da igualdade social relevante e politicamente estruturada.

Zizek (2016), em "O sujeito incômodo", deixa clara a sua intenção de explorar e criticar certa tendência acadêmica que tenciona suplantar o sujeito cartesiano, transformando-o numa mera ficção discursiva. Ele alega que a rejeição do paradigma cartesiano se estrutura como um pacto silencioso entre todas as áreas conflitantes do mundo acadêmico atual. Sua ação política transformadora se estabelece ao trazer à tona o avesso desconhecido, o sem-parte, do criticado cogito, ergo sum.

Há, assim, intensiva preocupação entre os psicanalistas com a possibilidade de agenciamento da Psicanálise com teorias que reforçam a proximidade entre ciência e os processos de individualização da Modernidade. Nessa linha de pensamento, o dano se localiza na "foraclusão" do sujeito do discurso, fazendo-o retornar sob o feitio de alienação.

Butler (2003), de outra parte, não se posiciona perante o sujeito cartesiano de maneira exclusiva a reivindicar a sua importância. Se ela se apropria dele, é somente para questionar sua naturalidade, transfigurando-o num fato existente somente dentro de um moto-contínuo de repetição e reiteração de normas discursivas que materializam o corpo e o humano. Sua reivindicação consiste, sobretudo, em tornar possíveis as vidas cujas experiências são rechaçadas dentro das modalidades de inteligibilidade convencionais, especialmente a heterossexual. Sua escrita profunda, desafiadora e, muitas vezes, não intuitiva, não constitui sintoma de uma mente confusa, como muitos pensadores precipitadamente assim a julgaram. Ela assim se faz deliberadamente, estabelecendo-se como uma de suas robustas estratégias de transformação política (Salih, 2017).

A configuração que este debate tomou poderia ser entendida como uma cena política, ao jeito de Rancière (1996), pois configura a partilha de uma esfera particular da experiência, transformando e constituindo seus agentes na própria ação do dissenso. A disputa teórica entre Butler e os psicanalistas provoca transformações em plano das possibilidades de entendimento do Mundo e das próprias teorias consigo mesmas. Assim, a Psicanálise convoca Butler e esta convida a Psicanálise.

Importante é ressaltar, contudo, que as demandas expostas neste conflito não podem ser totalmente atendidas ou solucionadas, visto que as possibilidades de organização do espaço social não devem se exaurir no dissenso (Marques, 2013; Rancière 1996).

 

Considerações finais

Os resultados obtidos neste escrito servem para elucidar alguns caminhos abertos na discussão entre a Psicanálise lacaniana e Judith Butler. A importância da referência ao último Lacan, cuja leitura sobre o Real transforma a maneira de conduzir os processos analíticos, é constantemente reiterada por parte dos psicanalistas. Além disto, o esclarecimento da noção de falo e do contexto histórico, no qual Freud estava situado quando elaborou suas contribuições sobre o Complexo de Édipo, é convocado, a fim de explicitar os propósitos subversivos da Psicanálise perante a sociedade conservadora da qual emergiu.

Por outro lado, Butler insiste na relevância de se levar em conta as descontinuidades históricas que provocam impasses nas abordagens teóricas sobre o Mundo. Ao mesmo tempo em que ela critica a Psicanálise como senda da produção de subjetividades binárias, também entende que foi por meio dela que se tornou possível o questionamento da organização "heteronormativa". Sua apropriação da Psicanálise gravita à órbita, portanto, de buscar as aberturas, o conteúdo "foracluído" dos processos de legitimação das vidas.

A perspectiva de Rancière (1996) sobre desentendimento deixa claro que, além do jogo sobre o que é mais certo ou mais errado, muitas vezes, o que está em pauta neste tipo de debate é a posição da qual fala cada agente de enunciação. Por meio de sua compreensão sobre as relações políticas, foi possível situar a Psicanálise lacaniana num espaço maior de preocupação com o sujeito e com o lugar que lhe é designado entre a ciência e o Mundo. Já Butler, por meio de sua inquietude com a legitimação da experiência - no sentido foucaultiano - das vidas exclusas, investe menos em garantir o espaço do sujeito universal e mais em expandir suas barreiras.

Ressalta-se a relevância deste tipo de pesquisa, haja vista a importância do arcabouço teórico da Psicanálise e de Judith Butler, influências definitivas na maneira de se lidar com o Mundo. A discussão pode se aprofundar proficuamente, adentrando novos campos conceituais e políticos, se outros pesquisadores se dispuserem a dar continuidade, numa abrangência maior de artigos e bases de dados, a estudos desta natureza. Considera-se que as conclusões a respeito das diferenças políticas são parciais e ressaltam pontos que se fazem evidentes, com esteio num exame teórico.

 

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Endereço para correspondência:
Tereza Isabel Castelo Branco Bezerra
isabelcastelo@outlook.com

Clara Virgínia de Queiroz Pinheiro
claravirginia@unifor.br

Submetido em: 15/03/2018
Revisto em: 12/06/2019
Aceito em: 04/11/2019

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