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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72i1p.2-7 

EDITORIAL

 

Sob ameaça: universidade, território da produção, autonomia e difusão do conhecimento científico em Psicologia

 

 

Claudia Henschel de Lima; Pedro Paulo Gastalho de Bicalho; Jessica David

 

 

Terrritorializar é pertencer, vincular-se, conectar-se a algo, a alguém, a algum lugar. Afirmado por Milton Santos (2006) como espaço do acontecer solidário em coexistência, como local de construção de multiplicidades: culturais, antropológicas, afetivas, econômicas, sociais, científicas, território é pertencimento.

Construímos este editorial no mês em que nosso território, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, completa 100 anos. Aqui nesta universidade, entre mais de uma centena de Programas de Pós-graduação, está o desafio da gestão editorial de Arquivos Brasileiros de Psicologia - pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia. Assim, inspirados pelo centenário de nossa universidade, este editorial apresenta nossos desafios, territorializados em lugares com forças e afetos capazes de criar histórias, criar pesquisa, criar identidades às quais sujeitos se ligam e se reconhecem durante a vida. Também (e principalmente) por isto, território sob ameaça: eis o atual desafio de habitar o território-universidade.

Acreditamos que, para afirmar uma aposta ética e política de ciência, é preciso transversalizá-la e colocar em pauta temas transversais que dialoguem com a análise de nosso contexto. Lutar contra a hegemonia e propor o inverso: criar uma universidade com a nossa gente e para a nossa gente, desencastelada dos muros universitários duros, altos e impenetráveis que o necroliberalismo (Mbembe, 2020) - a forma do discurso do mestre contemporâneo - insiste em construir. Só é possível a produção de conhecimento científico se houver troca com a realidade, se deixarmos algo de nós para nos comunicarmos com aquilo que insistimos em não ver, para que os problemas científicos advenham. Neste sentido, a fundação da física-matemática por Galileu Galilei, no século XVII, é sempre reveladora desta dimensão da troca com a realidade e, mesmo de sua reestruturação. A forma como Galileu interrogou a organização da realidade pelo aristotelismo, avançando na direção de redefini-la a partir do cálculo matemático produziu uma verdadeira revolução no modo de conceber a realidade: de uma realidade estruturada pela concepção dos lugares naturais para uma realidade estruturada pelo cálculo matemático.

Apresentar à sociedade a análise que resulta do contato com experiências reais, sempre em diálogo com o que vem sendo trabalhado em sala de aula e nas bancadas de nossos laboratórios com aquilo que está acontecendo no cotidiano da população com quem se trabalha. Ciência-investigação, ciência-descoberta, ciência-denúncia: dispositivos para comunicar e conectar as(os) pesquisadoras(es) à sociedade, dentro e fora da universidade. Formas de olhar, modos de perguntar, maneiras de dizer, estratégias para escrever. Problematizar o lugar da universidade em que fazemos e pensamos a formação em Psicologia possibilita a mudança de mundos, intervenções outras em realidades.

O processo científico precisa se ocupar com a formação de um ser social que aja no presente, mude sua realidade, seja crítico com seu entorno. No ensino, na pesquisa, na extensão. É lugar da ciência mesclar o trabalho de pesquisa com a vida (David et al., 2014), criando espaços de troca em que o fora não seja mais distante, seja um entre que habite a formação de nossos estudantes, também pesquisadores. Espera-se, sobretudo nos dias atuais, que a universidade não produza a criação, mas a afirmação e a repetição do mesmo, daquilo que já foi dito e falado por outras e outros. Como uma grande esteira de produção, em que estamos engendrados a reproduzir preceitos de um sistema que enfraquece nossa juventude, mulheres e homens, tornando-as e tornando-os impotentes para criar novos modos de existência. Não inquieta, não incomoda, só repete e reproduz. A universidade, definitivamente, é um outro lugar.

Mais que entender, é preciso produzir diariamente um espaço de formação que é composto por afetos, forças, encontros, pessoas - não só um estabelecimento universitário, mas um "castelo de areia" (Foucault, 1992) que se desmancha e se forma a cada momento, em um constante embate de poderes, de forças, de disputas. A universidade como um sistema comunicante entre diversos territórios, livre de métodos impositivos, autoritários, ameaçadores.

Por que, na universidade, ainda precisamos afirmar a resistência, a igualdade de direitos, a liberdade? Porque fomos separados, somos separados, fomos divididos de nós mesmos, enquanto multidão, enquanto coletivo. Fomos colonizados e catequizados. Ainda somos.

As condições de conhecimento são inseparáveis das condições de existência. Segundo Virginia Kastrup (1999), o coletivo desempenha um importante papel na renovação do território existencial: aprender inventando, num de seus sentidos mais importantes, é inventar um mundo para si e para os seus, através da ampliação de redes e de conexões.

Parafraseando o escritor uruguaio Eduardo Galeano (2000), é importante que indaguemos: quais são as veias abertas da formação em Psicologia, no Brasil? Mas, antes: quais são as veias abertas da formação do Brasil? Colonização, escravização, apropriação, exploração, extorsão, normalização, estigmatização.

É possível produzir leituras de mundo que produzam outras formas de ver o indivíduo e a política, abarcando noções excluídas por um olhar colonial europeizante: a construção das relações, o cuidado, a interdependência. Como pontua Etiane Araldi (2017), colocar em cena esses elementos demanda nossa atenção e nosso esforço na produção de explicações mais localizadas, vinculadas e situadas, da educação e da formação.

Para que seja possível uma educação libertária e autóctone, baseada nos saberes do povo para se emancipar das heranças colonialistas e predatórias nos processos educativos, é preciso que haja diálogo, valorizando o pensamento e a capacidade de indignação diante das injustiças coletivas e sociais. Ao visibilizar as amarras e as opressões históricas supostamente invisíveis, escondidas ou propositalmente nubladas em lógicas meritocráticas, propicia-se a possibilidade de construir mais possibilidades de diálogo, baseadas mais no dissenso do que na disputa ou do que no convencimento.

Propor novos caminhos: o som que ecoa na universidade nunca sai sozinho, nunca soa no infinito; é sempre rebatido e escutado, sempre volta, sempre ressoa de formas múltiplas: porque toda existência é coletiva. Falar, apontar, sinalizar as opressões, os apagamentos e silêncios. Falar de democracia, falar em democracia. Democraticamente, falar. A formação espraia no mundo outras referências, outros olhares, outros sons, outra coletividade.

É preciso, enfim, pôr em questão nossas implicações: que lugar se ocupa como pesquisador-docente? Não é negar o lugar de saber-poder, é assumi-lo, pondo-o o tempo todo em análise, pensando que práticas e lugares são esses que, como formadores de psicólogas e psicólogos, somos convidados a ocupar. É preciso afirmar, com nitidez, que nosso trabalho na docência é também um trabalho político, nunca isento nem neutro. Nossas práticas envolvem uma concepção de mundo, de sociedade, de humano, exigindo um posicionamento sobre a finalidade da intervenção que fazemos, a qual envolve a certeza de que nossas práticas têm sempre efeitos, exigindo que tomemos, portanto, posições.

É necessário remontar as histórias, trabalhar as memórias, as lutas. Expor as tensões, os dissensos frente a silenciamentos e apagamentos tentaculares, fragmentados, pulverizados. Questionar a dimensão estrutural e estruturante da colonialidade presente nos dias atuais, que produzem e desvelam relações cotidianas, produtoras de políticas da ordem (Bicalho et al., 2016). Assim, como resultado e alcance diário e processual, tem-se a ampliação de repertórios e a abertura para novas realidades, novas histórias, novos paradigmas, reconhecendo a existência de diversos saberes e o diálogo entre diferentes conhecimentos, estimulando a construção de múltiplas identidades culturais, favorecendo a potência de processos cada vez mais coletivos de pessoas e grupos antes entendidos como "outros".

A partir dessas considerações sobre a produção científica na universidade e tomando como perspectiva a relação com a realidade, anunciamos o lançamento do segundo número do ano de 2020, no quadro de uma difícil realidade que se abre para o ano de 2021. A existência dos periódicos científicos nas diversas áreas do conhecimento científico é fundamental para o registro, a publicização da produção científica de um país e, consequentemente, para a relação com a realidade.

Ser editor de Arquivos Brasileiros de Psicologia exige o enfrentamento de desafios importantes: desde lidar com a diversidade da produção científica endereçada à Revista na forma de manuscritos, passando pela seleção da rede de colaboradores para a avaliação dos manuscritos, pelo processo de elaboração de cada número mantendo o equilíbrio das ênfases teóricas e domínios de investigação em Psicologia, pelas fases de edição do número até a sua publicação. O trabalho engajado de toda a equipe editorial vem, na medida do possível, garantindo a qualidade da publicação científica em Psicologia bem como a distribuição equilibrada, em cada número, de ênfases e domínios de investigação. E é esse trabalho engajado que faz de Arquivos Brasileiros de Psicologia, um periódico de ampla repercussão na comunidade científica em Psicologia - haja vista o número de submissões de manuscritos e o fluxo constante de artigos publicados. No entanto, em mais um editorial, reforçamos que a qualidade editorial de um periódico do porte de Arquivos Brasileiros de Psicologia depende, também, do aporte de verbas para garantir todo o processo editorial e seu controle de qualidade em todas as fases.

Esse processo editorial é longo. Ele começa quando o autor posta seu manuscrito no sistema da Revista. A partir deste momento, um longo processo tem início. É preciso ler os manuscritos a fim de decidir sobre sua aderência ao escopo da revista, distribui-los entre os editores associados para esses possam selecionar avaliadores para os manuscritos, e estabelecer com eles a troca de informações até a conclusão da avaliação, bem como retornar aos autores os resultados das avaliações. Após esse processo, uma segunda fase tem início, com a correção de provas até o artigo estar pronto para a publicação. Essa fase exige expertise técnica especializada, que transcende a competência dos editores da Revista - exatamente porque entendemos que o papel do editor científico é verificar a qualidade dos manuscritos submetidos, sua aderência ao escopo da revista e a contribuição do manuscrito para o avanço da pesquisa científica em Psicologia. E para isso, até o ano de 2020, Arquivos Brasileiros de Psicologia contou com verba, obtida por meio da submissão de projetos aos poucos editais de editoração científica abertos por agências de fomento, para investir nessa expertise. Cada projeto submetido teve sua razão de ser no entendimento de que o investimento nessa expertise técnica garante que o periódico contribua para a boa qualidade da publicação científica em Psicologia, alcançando progressivamente índices de impacto para a produção científica publicada na Revista, bem como seu aperfeiçoamento frente ao conjunto dos periódicos científicos.

A situação de austeridade mais uma vez se aplica a nós, contribuindo para a amplificação da defasagem, que já se verifica, entre a exigência de publicação do conhecimento científico produzido pela comunidade de pesquisadores da área e a capacidade da Revista de levar adiante o processo editorial. Isso significa afirmar que os progressivos cortes de financiamento da ciência em geral e das publicações científicas afetam, visceralmente, nossa rotina editorial. Sendo assim, caminhamos para o encerramento do primeiro ano de sua oitava década de existência, preservando a produção de um periódico científico ético, criterioso e diverso em Psicologia. Mas, cuja continuidade é posta em risco.

Como está explicitamente dito em nossas Políticas Editoriais, a missão de Arquivos Brasileiros de Psicologia é e sempre foi acolher e difundir as contribuições de todas as áreas da Psicologia, promovendo a circulação do pensamento e da pesquisa. E, para dar conta disso, sempre se orientou por uma política de acesso livre ao seu conteúdo, contribuindo para a democratização do conhecimento científico. No entanto, embora o acesso às suas publicações seja gratuito, editar e manter no ar Arquivos Brasileiros de Psicologia como um periódico de acesso aberto não é feito sem custos. Mesmo com a adoção do formato on-line em 2003. Mesmo com o esforço não remunerado de docentes e discentes desde a recepção dos manuscritos até o lançamento de um novo número da revista. É preciso pagar pelos serviços de indexação, de submissão on-line, de DOI, de manutenção da plataforma, de revisão, inclusive de artigos em língua estrangeira para ampliar a internacionalização da revista.

Como muito bem pontua Camargo Jr. (2015), o atual modelo de distribuição do financiamento das revistas científicas produz, ao mesmo tempo, a concentração desses recursos em poucos periódicos e, por consequência, uma "violência fratricida" na luta por obtê-los. Não há batatas para todos, eles dizem. Lutem entre si e que vença o melhor!

A redução dos recursos públicos já era um grande desafio. Sem sermos contemplados por editais de apoio financeiro a periódicos científicos de agências de fomento federais e estaduais, como financiar os custos operacionais para manter a Arquivos Brasileiros de Psicologia aberta? Cobrança de uma "taxa de processamento do artigo" dos autores? Venda de espaço publicitário? Busca por patrocínio privado? Como sustentar um periódico científico com acesso aberto aos leitores e ao mesmo tempo acessível à diversidade, ético e rigoroso em suas publicações? Discutir sobre quem e como as revistas científicas com acesso aberto devem ser financiadas não é uma questão apenas de gestão econômica, mas sim, e principalmente, uma questão política. Tem a ver com a democratização do conhecimento ou sua restrição àqueles que possam pagar para acessá-lo. Tem a ver com a publicação de artigos com origens e condições de desenvolvimento diversas. Tem a ver com promoção a nossa missão de "acolher e difundir a diversidade das produções científicas e profissionais da Psicologia e áreas afins, sejam elas teóricas, metodológicas ou empíricas". A ARBP permanece, assim, aberta a contribuições de todas as áreas da Psicologia... Mas como sustentar o acesso aberto?

Ainda que essa situação nos preocupe, não deixamos de cumprir o que havíamos anunciado no editorial do número anterior: a presença de um pequeno dossiê com artigos sobre Covid-19 que foram submetidos à Revista, garantindo o alinhamento da publicação de Arquivos Brasileiros de Psicologia à pesquisa no tema.

Paulo Freire (2019) pontua que "a libertação é exatamente a briga para restaurar ou instaurar a gostosura de ser livre que nunca finda, que nunca termina e sempre começa" (p. 41). O que está sob ameaça é a liberdade e a autonomia de produção de conhecimento científico, na universidade. É na luta que a gente se encontra, nos ensina a "verde e rosa" do morro da Mangueira. Lutemos. E nos encontremos. Comecemos por este número de Arquivos Brasileiros de Psicologia.

 

Referências

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Bicalho, P. P. G., Rossotti, B. G. P. P., & Reishoffer, J. C. (2016). A pesquisa em instituições de preservação da ordem. Revista Polis e Psique, 6(esp), 85-97.         [ Links ]

Camargo, K., Jr. (2015). Ao vencedor, as batatas? Physis, 25(1), 9-12. https://doi.org/10.1590/S0103-73312014000400001        [ Links ]

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