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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro  2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.6-17 

ARTIGOS

 

Publicações nas revistas de psicologia e relações raciais

 

Publications in the journals of psychology and race relations

 

Publicaciones en las revistas de psicología y las relaciones raciales

 

 

Abrahão de Oliveira SantosI; Yan Fernandes da SilvaII; Tulane Oliveira da PaixãoIII; Viviane Pereira da SilvaIV; Luiza Rodrigues de OliveiraV

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDiscente. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIIMestre. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IVDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
VDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense. Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho versa sobre artigos publicados em revistas brasileiras de psicologia sobre a temática das relações raciais. O primeiro momento da pesquisa consistiu no levantamento de artigos que abordam a questão étnico-racial e dialogam com o pensamento social brasileiro, nos periódicos brasileiros da área de psicologia, com Qualis A1 e A2. No segundo momento, esse levantamento foi feito nos estratos B1, B2 e B3. O objetivo do estudo foi entender se, na área da psicologia, os/as pesquisadores/as reconhecem a presença histórica, social e cultural da população afrodescendente. O resultado mostrou que um percentual muito pequeno de artigos das revistas analisadas aborda a questão negra problematizando as relações raciais, o que evidencia a negligência das condições de vida singulares da população negra. Esta constatação é um passo para uma psicologia que afirma o compromisso com as urgências sociais, como é o caso da psicologia brasileira.

Palavras-chave: Psicologia; Relações raciais; Publicações.


ABSTRACT

This paper deals with articles published in Brazilian journals of psychology about racial relations. The research consisted in the survey of articles that approach the ethnic-racial question and that dialogue with the Brazilian social thought, in the Brazilian journals of psychology, published in strata A1 and A2 of the CAPES Psychology Qualis. A survey was also carried in strata B1, B2 and B3. The study aimed to understand whether the researches recognize the historical and cultural presence of the Afrodescendant population. The results showed that a small percentage of articles in the journals analyzed addresses the black issue by problematizing race relations, which evidences the negligence of the singular living conditions of the black population. This finding is a step to think about a science and profession that affirm the commitment to social urgencies, as is the case of Brazilian psychology.

Keywords: Psychology; Racial relations; Publications.


RESUMEN

Este trabajo trata de artículos publicados en revistas de psicología brasileñas sobre el tema de las relaciones raciales. El primer momento de la investigación consistió en una encuesta de artículos que abordan el tema étnico-racial y el diálogo con el pensamiento social brasileño, en revistas de psicología brasileñas, con Qualis A1 y A2. En el segundo momento, esta encuesta se realizó en los estratos B1, B2 y B3. El objetivo del estudio fue conocer si, en el área de la psicología, los investigadores reconocen la presencia histórica, social y cultural de la población afro descendiente. El resultado mostró que un porcentaje muy pequeño de los artículos en las revistas analizadas abordan el tema del negro problematizando las relaciones raciales, lo que muestra el descuido de las condiciones de vida únicas de la población negra. Este hallazgo es un paso hacia una psicología que afirma su compromiso con las urgencias sociales, como es el caso de la psicología brasileña.

Palabras-clave: Psicología; Relaciones raciales; Publicaciones.


 

 

Introdução e discussão teórica

O presente trabalho apresenta os resultados de duas pesquisas realizadas sobre as publicações em revistas brasileiras de Psicologia que abordam a temática das relações raciais. A primeira pesquisa, intitulada "As Publicações das Revistas de Psicologia: Uma Análise da Abordagem da Questão Negra e do Pensamento Social Brasileiro", foi desenvolvida por uma equipe composta pelo orientador, uma graduanda bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e outros três estudantes vinculados ao grupo de estudos Kitembo - Laboratório de estudos da Subjetividade e Cultura Afro-brasileira. Consistiu no levantamento de artigos que enfocam a questão étnico-racial e o diálogo com o pensamento social brasileiro, dos periódicos brasileiros de Psicologia, classificados como Qualis A1 e A2, publicados entre 2010 e 2015. Os resultados desse estudo foram apresentados no III Conepe Sul - Congresso de Pesquisadores/as Negros/as, em Florianópolis, em julho de 2017 - e publicados nos anais do evento (Paixão & Santos, 2017). Já a segunda pesquisa foi intitulada "Uma Abordagem da Contextualização da Dimensão Social nas Publicações das Revistas de Psicologia e as Relações Raciais" e desenvolvida pelo orientador e por um graduando bolsista PIBIC, que se detiveram sobre artigos publicados em periódicos brasileiros de Psicologia, classificados como Qualis B1, B2 e B3, publicados em 2015. A redução da equipe em relação à composição da primeira pesquisa fez-nos focar o trabalho exclusivamente na dimensão quantitativa das publicações, no período considerado.

No primeiro estudo buscamos apreender o modo como as pesquisas divulgadas nos referidos periódicos dialogam com o pensamento social brasileiro e como os/as pesquisadores/as contextualizam seus objetos das pesquisas. Tínhamos uma hipótese de que, considerando-se que o pensamento da psicologia brasileira se constitui sobremaneira a partir da literatura estrangeira - europeia e norte-americana -, os artigos publicados refletiriam esse fenômeno, de modo que o diálogo com o pensamento social brasileiro seria reduzido e a discussão sobre as relações raciais apagada ou silenciada.

Segundo Moura (1988), a história do Brasil foi e é uma permanente luta dos escravizados (negros e indígenas) contra o aparelho do Estado. A maioria dos sociólogos e historiadores do Brasil subestima, esquece ou apaga a importância social dessas lutas, inclusive aqueles que estudam as relações raciais (Pereira, 2013). Será que na área da Psicologia, os/as pesquisadore/as brasileiros também ignoram a presença histórica, social e cultural da população afrodescendente?

Este trabalho apresenta uma análise quantitativa dos artigos publicados nos periódicos brasileiros de Psicologia, mostrando o apagamento que produzem acerca da especificidade histórica da população afrodescendente e evidenciando como esta ciência colabora no silenciamento acerca das condições de vida da maioria dos brasileiros. Esta situação se mantém a despeito do fato de que o Conselho Federal de Psicologia tenha publicado, há cerca de 17 anos, a Resolução CFP n. 18 (2002) - que estabelece normas para a atuação de psicólogas (os) em relação ao preconceito e à discriminação racial - e que a Comissão Nacional de Direitos Humanos do mesmo Conselho tenha lançado, há 2 anos, a campanha "O Preconceito Racial Humilha, A Humilhação Social Faz Sofrer" (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017).

Em todo o tecido social brasileiro, a pluralidade étnica, racial e cultural pode ser observada sem dificuldade (Schwarcz, 1993). Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que 54,9% da população declara-se negra (parda, 46,7% + preta, 8,2%, segundo nomenclatura do Instituto) (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019). De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2008, a população negra representava 67% do público total atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2017a). Por isso os militantes frequentemente afirmam que o SUS é o plano de saúde da população negra. A prevalência numérica, aqui em sua face negativa, se mantém no sistema carcerário, onde 64% das pessoas são negras (Pires, 2017). A representatividade negativa vai aparecer também no espaço escolar: "na faixa dos 15 aos 17 anos, que corresponde ao período ideal em que o aluno deve cursar o ensino médio, pouco mais de 55 % de pretos e pardos permaneciam na escola em 2014" (Barros, 2017).

Apesar desses fatos, o modo como os psicólogos vêm se posicionando - desde a regulamentação da profissão, em 1962, até os dias de hoje - mostra uma psicologia que não considera a cor dos corpos de quem lhe fala, de quem lhe pede atenção, e que parece desconhecer o próprio contexto demográfico, histórico e social daqueles com quem ou para quem trabalha. Veremos, pelos dados que coletamos, que a Psicologia desconhece a população que configura seu principal campo de atuação no Brasil. Os atendidos pelos psicólogos que atuam nas políticas públicas, os usuários das "camadas sociais mais pobres, marginalizados, desfavorecidos e esquecidos pelos donos do poder" (Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro [CRP-RJ], 2014, p. 13), recebem denominações como as de "população pobre" ou "em vulnerabilidade psíquica, econômica e social", porém quase nunca são referenciados como população negra, como se o debate psicológico estivesse ocorrendo em um mundo onde não existem as lutas históricas dessa população contra o Estado brasileiro (Moura, 1988).

A psicologia, em seus saberes e práticas, mesmo quando se pretende crítica diante das questões sociais, negligencia a população brasileira - homens, mulheres e crianças negras(os) -, pois reduz as suas realidades à questão da classe social, à qual a vida da população negra não pode ser reduzida. Assim, a psicologia não dialoga com a população brasileira em sua diversidade, mesmo em se tratando de campos de estudos pretensamente críticos que buscam articular subjetividade e classe, ou daqueles que entendem a subjetividade enquanto produção discursiva.

Essa aposta, que é política - já que não se origina de uma suposta produção epistemológica neutra, mas das condições de possibilidade de surgimento da própria psicologia -, faz com que homens e mulheres negras (os) sejam tomados como abstrações a serem encaixadas em grandes categorias que são afirmadas como universais, mas que dizem respeito ao homem branco europeu do início do século XX. Tal posição político-epistemológica da psicologia coaduna-se também com a produção de subjetividades substancializadas, em que só há lugar para aquilo que o saber instituído, com as marcas de um "populismo abstrato" (Fanon, 2015, p. 268), convencionou acerca da "verdade" do povo negro, o que dá sempre a esta população o lugar de "minoria".

A urgência de construirmos tal crítica à psicologia brasileira e dela tirarmos consequências práticas se funda no que nos diz o grande intelectual Abdias Nascimento: "Um instrumento conceitual operativo se coloca na pauta das necessidades imediatas da gente negra brasileira, o qual não deve nem pode ser fruto de uma maquinação cerebral arbitrária, falsa e abstrata [...]" (Nascimento, 2009, p. 204). Pensando o nosso campo, a psicologia, como podemos pôr em curso esta direção afirmada por Abdias? Precisamos inventar outras racionalidades, a fim de que a psicologia dialogue de fato com a realidade da população brasileira.

Ao analisar os mais variados artigos publicados nas revistas de Psicologia, notamos que a questão das relações raciais está omissa e a população negra negligenciada. Esse reconhecimento é um primeiro passo para repensarmos nossa ciência e profissão.

 

Método

A primeira pesquisa iniciou pelo levantamento e análise das publicações das revistas brasileiras de Psicologia com Qualis A1 e A2, do ano de 2010. Totalizamos quinze revistas A2 e A1, com 51 edições e 750 artigos. Não foram contabilizados nem incluídos para análise os editoriais, entrevistas e resenhas. Fizeram parte da amostra apenas os artigos em português.

Para estabelecer uma compreensão geral do material a ser estudado e criar condições para elaboração das categorias que seriam usadas na etapa de análise dos dados, na primeira fase muitos artigos foram lidos integralmente. Isso tomou meses de discussões em equipe. Percebemos que, dado o tempo consumido nessa fase da pesquisa, na etapa de análise de dados não seria possível nos debruçarmos sobre os cinco anos previstos no projeto de pesquisa original (2010-2015) e optamos por enfocar apenas o primeiro ano do período inicialmente previsto. Após a definição das categorias de análise, a leitura dos artigos passou a se restringir a título, resumo, palavras-chave e referências bibliográficas.

Convém ressaltar que a leitura integral dos artigos, no início do processo, nos permitiu analisar o modo como os objetos de pesquisa foram contextualizados e definir as categorias de análise pertinentes à investigação que pretendíamos empreender. No entanto, as discussões acerca da contextualização histórica e social dos objetos de pesquisa nos artigos analisados não serão apresentadas aqui. Neste trabalho nos restringimos à explicitação das categorias de análise a que chegamos e aos aspectos quantitativos, com uma breve discussão dos aspectos qualitativos da pesquisa.

Na segunda pesquisa nos voltamos para os periódicos de Psicologia Qualis B1, B2 e B3 e realizamos o levantamento quantitativo de dados referentes às publicações do ano de 2015. Esse levantamento totalizou 25 revistas, contendo 468 artigos. Neste segundo estudo, queríamos observar se haveria alguma diferença quantitativa nos dados levantados a partir das categorias de análise por nós definidas na primeira pesquisa, tanto em decorrência da alteração do Qualis, quanto em função da data mais recente das publicações (2015), que supúnhamos favorecer o aumento na quantidade de artigos que abordassem a população negra e as relações raciais. Os mesmos critérios de contabilização, seleção e categorias de levantamento da primeira pesquisa se mantiveram na segunda.

 

Resultados e discussão

As três categorias de análise definidas na primeira pesquisa e utilizadas para análise dos dados na primeira e na segunda pesquisas foram:

1. Artigos que abordam a população negra e problematizam as relações raciais;

2. Artigos que abordam a população negra e não problematizam as relações raciais;

3. Artigos que não abordam a população negra, nem problematizam as relações raciais.

Das 15 revistas Qualis A1 e A2 de Psicologia pesquisadas, seis revistas apresentam artigos que abordam a questão étnico-racial. São elas: Estudos de Psicologia Puccamp, Paidéia, Psicologia e Sociedade, Psicologia Ciência e Profissão, Estudos de Psicologia Natal e Psico (PUCRS). Dos 749 artigos analisados, 1,5% (11 artigos) abordam a população negra e problematizam as relações raciais; 7,1% (53 artigos) abordam a população negra e não problematizam as relações raciais; e 91,4% (685 artigos) não abordam a população negra, nem problematizam as relações raciais. O Gráfico 1 mostra em termos percentuais essa amostra (Tabela 1).

 

 

Na segunda pesquisa (Revistas Qualis B1, B2 e B3), foram analisados ao todo 468 artigos. 1,3% (6 artigos) abordam a população negra e problematizam as relações raciais; 6,6% (31 artigos) abordam a população negra e não problematizam as relações raciais; e 92,1% (431 artigos) não abordam a população negra, nem problematizam as relações raciais (Tabela 2, Gráfico 2).

 

 

1) Os artigos reunidos sob a categoria "Artigos que abordam a população negra e problematizam as relações raciais", são aqueles cujas pesquisas se voltam para certos grupos sociais onde predominam os afrodescendentes e que, além de abordarem tais grupos, problematizam sua condição social e os resultados da pesquisa a partir do marcador de sua origem afrodescendente. Dentre os grupos estudados nos artigos encontram-se: estudantes de escolas públicas; moradores de favelas ou dos bairros de periferia das grandes cidades; crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade; adolescentes ou jovens em conflito com a lei; mães solteiras ou com gravidez precoce; mulheres periféricas em situação de violência; pessoas em bairros populares; pessoas em situação de vulnerabilidade; população pobre ou periférica; classe populares; grupos alvos dos programas de assistência social; usuários do SUS; população carcerária; trabalhadores de baixa escolaridade; jovens de nível socioeconômico baixo; crianças em situação de acolhimento institucional; jovens em situação de trabalho; adolescentes pobres; jovens aprendizes; jovens de famílias pobres; crianças em situação de rua. Nesses grupos a população negra forma expressiva maioria.

No que tange às temáticas abordadas nesta categoria de artigos, pudemos observar que: um artigo fala sobre juventude e uso de drogas, dois falam sobre práticas da Psicologia Social em comunidades, um sobre cotas raciais, um sobre redução da maioridade penal brasileira e um sobre a participação das representações sociais na construção do racismo. Todos trazem à discussão a condição sociorracial dos grupos pesquisados.

2) A categoria "Artigos que abordam a população negra e não problematizam as relações raciais" reúne os artigos provenientes de pesquisas que envolvem a mesma população relacionada no item anterior, porém que não incluem, na discussão proposta, a problematização das relações raciais ou a dimensão histórica e cultural dessa população a partir de sua condição histórica particular afrodescendente. Um exemplo desta categoria é o artigo "Orientações educacionais, crenças motivacionais, e desempenho escolar em estudantes no ensino fundamental", de Paiva e Boruchovitch (2010), cujos sujeitos são estudantes de escolas públicas estaduais de São Paulo, no qual são relacionados aspectos como motivação escolar, crenças pessoais e rendimento, como cernes do problema da repetência, do baixo rendimento e da evasão. O artigo não faz qualquer menção à questão racial no problema abordado e, como podemos facilmente notar, a particularidade histórica dos que mais são acometidos pela evasão escolar está absolutamente omitida.

Outro exemplo é o artigo "A "Escola de São Paulo" de psicologia social: apontamentos históricos", de Carvalho e Souza (2010), que trata do anseio da psicologia em trabalhar com as "classes populares". O artigo cita os quatro cursos de psicologia social existentes no Brasil, na primeira década do século XX, dentre os quais o curso ministrado por Arthur Ramos - um notório autor de teorias racistas da época. Novamente, a questão das relações raciais está, no artigo, apagada. Cremos que o exercício deliberado, nas Ciências Humanas (Moura, 1988) e na Psicologia, de apagar o histórico das populações não brancas (negras e indígenas) na formação da nação brasileira, impedem os autores de perceber que "durante os primeiros anos do período da democracia liberal, de 1945 a 1964, as categorias negro e povo eram quase intercambiáveis" (Amauri de Souza, citado por Pereira, 2013, p. 62). Será que para a atuação do psicólogo junto às assim denominadas "classes populares", no Brasil, não tem relevância a sua história?

Um terceiro exemplo de artigo que aborda a população negra sem problematizar a questão racial é "Narrando dores. A tatuagem como narrativa", de Vilhena, Rosa e Novaes (2015) onde se propõe a reflexão acerca dos "novos territórios da subjetividade através dos significados do corpo e da transgressão" (Vilhena et al., 2015, p. 129). O corpo que tomam como ponto de partida é o corpo de adolescentes, especialmente aqueles que tatuam em suas peles referências a comandos criminosos. Os corpos falados na pesquisa são de adolescentes privados de liberdade, numa instituição para adolescentes em conflitos com a lei e o artigo mostra fotos de corpos negros tatuados. À pergunta "o que faz falar um corpo?" (Vilhena et al., 2015, p. 136), os autores perfazem uma escrita sem considerar a história dos adolescentes que pesquisam, invisibilizando o fato de que "64% da população prisional é composta por pessoas negras" (Brasil, 2017b, p. 32) e negligenciando as marcas próprias de constituição dos corpos e subjetividades na população brasileira. Aqui também, configurando um padrão, o artigo não traz a discussão racial.

3) A categoria "Artigos que não abordam a população negra, nem problematizam as relações raciais", inclui as publicações que não abordam as relações étnico-raciais, o racismo, a cultura afro-brasileira, a construção da identidade negra ou a população afrodescendente. Como exemplo, o artigo: "Percepções de Valores Organizacionais Declarados de uma Organização Educacional", de Silva e Silva (2010), traz uma análise qualitativa de entrevistas com trabalhadores de organizações acerca dos valores organizacionais e não apresenta qualquer descrição do contexto histórico-social dos trabalhadores, nem de suas organizações de trabalho. Outro exemplo é o artigo "Estudantes Universitários em Tempos de HIV: O contexto da testagem", de Wagner, Maggi, Souza e Souza (2010). Este estudo consiste na análise dos dados obtidos a partir da aplicação de um questionário para abordar, entre estudantes universitários, a questão da testagem de HIV. No entanto, o estudo não traz o contexto social dos universitários pesquisados.

A partir dos dados apresentados nas amostras analisadas, um percentual ínfimo de artigos das revistas de Psicologia aborda a questão negra problematizando as relações raciais (1,5% e 1,3%, respectivamente, nas duas pesquisas apresentadas). Isto se dá em um país que perfaz 54,9 % da população autodeclarada negra (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019), que conta com forte movimento social de afrodescendentes e com um número expressivo de importantes pesquisadores das ciências sociais - a exemplo de Kabengele Munanga, Clóvis Moura, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento, Florestan Fernandes, Lilia Schwarcs, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Virgínia Bicudo, Guerreiro Ramos - que apontam o racismo contra negros como um dos maiores problemas da República brasileira.

A psicologia, em sua origem, em nome de seu saber especializado, mas não localizado - característico do operador ético da modernidade europeia - desenvolve saberes e práticas a fim de conformar o sujeito à ordem social. Essa condição de possibilidade de um saber instituído pelas relações de saber e de poder, impostas pela ciência normativa, produz saberes e técnicas de intervenção em que a psicologia segue negligenciando a população negra e, por extensão, toda a população brasileira. Essa construção epistemológica afirma a subjetividade que se supõe universal, mas que traz as marcas da vida do homem branco europeu.

Destacamos ainda que em um número altamente prevalente dos artigos - 91,4% e 92,1%, respectivamente, na primeira e na segunda pesquisa -, vemos o silêncio absoluto quanto à temática das relações raciais, ao contexto histórico das populações estudadas, à dimensão social determinante dos fenômenos psicológicos, comportamentais ou de subjetivação, bem como quanto à resistência histórica dos grupos não brancos (negros e indígenas) ao extermínio e à dominação. Ao invés de apresentarem a particularidade histórica e social local brasileira, os artigos trazem o contexto euroamericano, muitas vezes apresentado na forma de um contexto universal, como nos exemplos mostrados. Os artigos tomam preferencialmente como referência teórica e de valores sociais autores europeus e norteamericanos, como já nos fazia observar o filósofo Ramón Grosfoguel (2016).

 

Conclusões

A produção técnico-científica do apagamento da questão racial e do protagonismo negro na nossa história e, portanto, da própria formação social brasileira em sua complexidade, tem total amparo da academia, comprovadamente branca. Carvalho (2003) realizou uma pesquisa acerca da cor dos professores universitários em 11 universidades públicas do país, na qual concluiu que menos de 1% dos docentes são negros. A dificuldade de inserção de professores e pesquisadores negros/as tem como resultado a produção quase que inexistente de artigos, pesquisas e projetos científicos que enfoquem ou considerem a questão negra. Assim se preserva a falsa ideia de "democracia racial" e se mantém o imaginário brasileiro de que não existe raça nem cor (Santos & Scopinho, 2015).

A afirmação da diversidade das práticas e o compromisso com as urgências sociais na psicologia brasileira, assim como a celebrada aproximação da categoria com a defesa dos direitos humanos, com o direito à diferença e à promoção de processos de subjetivação singulares, não podem se concretizar sem o enfoque na diversidade cultural e étnico-racial colocada em pauta pelos movimentos negros. É na aposta desse enfoque e que se dá esta pesquisa, ecoando nas ciências o que se fez ouvir na história da resistência negra neste país.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Abrahão de Oliveira Santos
abrahaosantos@hotmail.com

Yan Fernandes da Silva
yan_fernandes@live.com

Tulane Oliveira da Paixão
tulane.oliveira@gmail.com

Viviane Pereira da Silva
vps.vivianepereira@gmail.com

Luiza Rodrigues de Oliveira
luiza.oliveira@gmail.com

Submetido em: 29/09/2020
Revisto em: 31/10/2020
Aceito em: 31/10/2020

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