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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro  2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.18-32 

ARTIGOS

 

Psicologia em tempos sombrios e o despertar da bela adormecida: estudos em subjetividade e clínica

 

Psychology in dark times: the awakening of the sleeping beauty

 

Psicología en tiempos oscuros y el despertar de la bella durmiente: estudios en subjetividad y clínica

 

 

Cristine Monteiro Mattar

Docente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Estudos da Subjetividade. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto suscita o debate acerca da constituição da psicologia no Brasil, apontando para suas bases importadas de países com realidades bastante diversas daquelas aqui encontradas, tanto nos aspectos sociais e econômicos, quanto naqueles históricos, culturais e raciais. A psicologia, desde 1962, vem se pautando em modelos que raramente levam em conta o contexto no qual se encontra: um país que assenta seus alicerces sobre a escravidão, o preconceito, a violência, os 20 anos de uma truculenta ditadura militar, a exclusão, o encarceramento em massa e o extermínio de populações indígenas e negras, assassinatos de homossexuais e transsexuais. No cenário atual, que intensifica aspectos desde sempre aqui presentes e desmonta as estratégias do seu enfrentamento, torna-se urgente repensar as práticas e saberes psicológicos produtores e reprodutores de subjetividades coloniais, em tempos que, parafraseando Hannah Arendt, se anunciam como sombrios, mas que, ao mesmo tempo, desafiam a psicologia, sobretudo clínica, a despertar de seu sono e sonhos encantados.

Palavras-chave: Psicologia; Realidade brasileira; Subjetividade; Racismo; Clínica.


ABSTRACT

The text raises the debate about the constitution of psychology in Brazil, pointing to its bases imported from countries with realities quite different from those found here, in social and economic as well as historical, cultural and racial aspects. Psychology since 1962 has been based on models that rarely take into account the context in which it finds itself: a country that lays its foundations on slavery, prejudice, violence, the 20 years of a truculent military dictatorship, exclusion, mass incarceration and the extermination of indigenous and black populations, murders of homosexuals and transsexuals. In the current scenario, which intensifies aspects always present here and dismantles the strategies of their confrontation, it is urgent to rethink the practices and psychological knowledge producers and breeders of colonial subjectivities, in times that, paraphrasing Hannah Arendt, announce themselves as dark, but at the same time challenge psychology, especially clinical, to awaken from their sleep and enchanted dreams.

Keywords: Psychology; Brazilian reality; Subjectivity; Racism; Clinic.


RESUMEN

El texto plantea el debate sobre la constitución de la psicología en Brasil, señalando sus bases importadas de países con realidades bastante diferentes a las aquí encontradas, tanto en los aspectos sociales y económicos, como en los aspectos históricos, culturales y raciales. La psicología desde 1962 se ha guiado por modelos que pocas veces tienen en cuenta el contexto en el que se encuentra: un país que cimenta la esclavitud, el prejuicio, la violencia, los 20 años de una dictadura militar truculenta, la exclusión, el encarcelamiento masivo y exterminio de poblaciones indígenas y negras, asesinatos de homosexuales y transexuales. En el escenario actual, que intensifica aspectos que siempre han estado presentes aquí y desmantela las estrategias para enfrentarlos, es urgente repensar las prácticas y saberes psicológicos que producen y reproducen subjetividades coloniales, en tiempos que, parafraseando a Hannah Arendt, se anuncian como oscuros, pero que, al mismo tiempo, desafían a la psicología, especialmente a la clínica, a despertar de su torpor y sus sueños encantados.

Palabras clave: Psicología; Realidad brasileña; Subjetividad; Racismo; Clínica.


 

 

A constituição da psicologia no Brasil

A psicologia foi regulamentada como profissão no Brasil em 1962, bem antes da profissão de historiador, somente estabelecida em 1976. A distância de 14 anos não se dá por acaso. Por muitos anos essa profissão de cuidado estaria entorpecida ao que acontecesse à sua volta, tal como a população do país que a receberia bem antes e mais amigavelmente que aos historiadores.

Produto importado da Europa e dos EUA, a psicologia brasileira falava a língua das elites e da classe média que ia se consolidando no país. Voltava-se a um público que poderia pagar por seus serviços, menos ocupado com a sobrevivência e com mais tempo para elucubrar e elaborar entre duas a cinco vezes por semana sobre suas inquietações, sonhos, conflitos e anseios. O mundo psíquico seria analisado visando à elaboração, com evidente distanciamento do que acontecia lá fora (Coimbra, 1995; Ferreira, 2004). A psicologia no Brasil não surge para pobres, pretos, indígenas, gays, deficientes, trabalhadores, loucos; não cuida dos marginalizados de todos os matizes e não consegue, na maior parte das vezes, com eles dialogar. Cursos, formações e serviços privados e caros só estariam acessíveis a quem pudesse pagar e falasse a mesma língua de quem o atendesse. O profissional de psicologia estaria alinhado com a manutenção dos privilégios de raça, classe e gênero.

Dois anos após 1962 as Forças Armadas instauram o golpe civil-militar, implantando uma ditadura sangrenta que perduraria pelos próximos 20 anos, tendo como alvo jovens estudantes ou não, militantes, professores, artistas, movimentos sociais e qualquer voz que se levantasse contra a censura e a extrema truculência do aterrorizante regime. Essas práticas não desapareceram, embora seu alvo preferencial tenha se modificado após a chamada abertura política e restauração da democracia. A população pobre, em sua maioria preta, das favelas - hoje chamadas de comunidades - atrairia o radar das revistas e suspeitas, encarceramento em massa, torturas, tiroteio, desaparecimento e extermínio a partir de então. Situação que perdura e que hoje ganha ares mais sombrios.

Durante as décadas de 1960 e 1970 muitos psis viviam no "mundo de Alice" - em consultórios bem decorados em couro, madeira e tapetes, na zona do sul do Rio de Janeiro, São Paulo ou Minas Gerais, principalmente - tendo a situação política como distante, fora de seus interesses e âmbito de atuação, disponíveis para escutar somente o que revelasse como pano de fundo o inconsciente. Essa época sempre nos remete às novelas televisivas que se passam no Leblon, ao som da Bossa Nova, com personagens que resumem os anseios de ascensão de status no Brasil.

Coimbra (1995), historiadora e psicóloga presa e torturada nos anos de chumbo, relata a conivência de muitas sociedades de psicanálise brasileiras com o estado do terror na época do cantinho e do violão. Questões como militância política, violência, luta pela liberdade e contra a censura, direitos humanos e outras eram transmutadas em categorias psicológicas ou em desajustes psíquicos, que necessitariam de correção. Toda dissidência deveria ser reprimida, enquanto nos divãs confortáveis se falava dos sonhos, da sexualidade, do desejo, dos conflitos emocionais, da infância e de papai e mamãe. Os que lutavam pelo retorno ao estado democrático de direito eram desviantes, comunistas, bandidos vermelhos. A ordem, a lei e a família precisavam ser restaurados, pela análise psi, pela internação ou pela força policial. Daí Coimbra (1995) chamar a esses especialistas guardiões da ordem. Enquanto faziam apenas o seu trabalho, resguardavam os interesses do capital estrangeiro em manter sob controle mais um país da América Latina.

A psicologia clínica tornou-se alvo preferencial das críticas no meio acadêmico nos anos de 1980, 1990 e 2000 e teve de se desabituar do glamour das décadas de 1960 e 1970, quando foi a protagonista.

Ferreira (2004) ressalta o quanto o questionamento direcionado aos modelos de formação em psicologia nos últimos quarenta anos tornou central a importância do social, bem como a preocupação com as "dimensões ético-políticas do saber-fazer 'psi'" (p. 81). Ainda assim, mostra que, em 1987, a área clínica respondia por 55,3% dos profissionais atuando no país e por 51% dos cursos de especialização (p. 84). Hoje são cerca de 440 os cursos de psicologia no Brasil.

A formação na área se baseou, até os anos 1980, em um modelo de atuação que se dividia em três áreas: clínica, escolar e industrial, sendo a primeira considerada "a mais nobre" (Ferreira, 2004, p. 82). Socialmente, o psicólogo passou a ser identificado como clínico. A concepção de psicologia clínica envolvia atividades de psicoterapia e psicodiagnóstico em consultórios privados, realizadas por profissionais liberais, com enfoque teórico-técnico intraindividual, "em que o indivíduo é pensado como ser abstrato, universal e a-histórico", considerando os processos psicológicos e psicopatológicos como "válidos para qualquer contexto, tempo e lugar" (Ferreira, 2004, p. 90).

A partir do momento em que este modelo vai sendo desconstruído, surge a problematização da formação do psicólogo brasileiro, empreendida por diferentes autores (Ferreira, 2004; Coimbra, 1995; Baptista, 2000). Com a eclosão de movimentos sociais e políticos na segunda metade da década de 1970, principalmente os de resistência ao regime militar, e da retomada de algumas funções na área social pelo Estado brasileiro nos anos 1980, como saúde, educação e ação social, o psicólogo brasileiro "pela primeira vez, amplia o espectro de sua atuação, até então voltada para as classes média e alta da população, em direção às demandas das classes populares" (p. 83). Surgem, assim, novas práticas psi, pautadas em um saber/fazer crítico e voltadas para uma perspectiva ética e política. A chamada "clínica contextualizada" (Ferreira, 2004, p. 93) deveria levar em conta o contexto social da clientela atendida - necessidade com a qual se depararam os profissionais que passaram a atuar em organizações públicas e comunitárias.

Ferreira (2004) chama particularmente a atenção para a associação, à época, entre o social e a pobreza, relacionando o primeiro ao espaço geográfico, favela e periferia, ou à classe social, neste caso, popular. Trata-se, para o autor, de um equívoco frequente, que acaba mantendo a mesma concepção de sujeito, ao vê-lo como identidade que deve ser assistida ou ensinada, como um indivíduo em choque com seu meio.

Não é raro ouvir a expressão "clínica social" pronunciada com o sentido de clínica ofertada às chamadas "populações carentes", como oportunidade de atendimento psicológico por valores mais baixos do que os usualmente cobrados em sessões psicoterápicas de consultórios privados. O "social", neste caso, se definiria pelo preço da sessão, sem implicar qualquer modificação no modelo de atendimento. E, podemos acrescentar, sem qualquer alteração no olhar sobre questões historicamente invisíveis, aos saberes e práticas psi em nosso contexto.

Muitos psis foram acordados ao longo dos anos de 1980 e 1990, quando chegam ao Brasil referenciais, sobretudo franceses, que desconstruíam a autoridade da psicanálise, do analista e do especialista, desvendando seus aspectos psicologizantes de efeitos perigosos. Os chamados filósofos da diferença: Foucault, Deleuze e Guattari, começam a ser lidos nos cursos de psicologia, notadamente nas universidades públicas, e revolucionam a forma de pensar subjetividade, ciências humanas, especialismos e práticas de cuidado. Chegam a vir ao Brasil, como acontece com Foucault (1999) nas conferências da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) sobre "A verdade e as formas jurídicas", proferidas entre 21 e 25 de maio de 1973.

Nestas, Foucault mostrou que as análises sobre o homem e as práticas de cuidado que surgiram no século XIX eram análises e práticas judiciárias. O estudo do homem seria inquérito e exame; o cuidado com a vida, disciplina. Logo de início Foucault alerta de que tudo o que diria nas conferências era inexato, falso, errôneo e não poderia ser de outra forma. Quer justamente mostrar que, o que se afirma como verdade, nada mais é do que forma jurídica. As verdades sobre o sujeito, sobre o inconsciente ou do inconsciente, são produções históricas de efeitos políticos de gestão da vida. Chama a atenção sobre as práticas sociais que engendram "domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história" (p. 8). Ora, a psicologia que havia nascido como análise do sujeito do conhecimento perde, assim, sua base metafísica, o que considerava ser seu fundamento e seu objeto. Formou-se, no século XIX, um saber do homem - a individualidade, o indivíduo normal ou anormal -, saber que nasceu de práticas sociais de controle e vigilância. Esse saber não se impôs a um sujeito de conhecimento, mas fez nascer um tipo novo de sujeito de conhecimento. E, podemos acrescentar, fez nascer o sujeito psicológico.

Contudo, o que não tínhamos nos dado conta é de este ente psicológico inventado como natural, desconstruído por Foucault e por comentadores da psicologia, era também sinônimo do indivíduo de determinada classe social, raça, cor, bairro, interesses, cultura e problemas. O sujeito psicológico, criticado como invenção, é branco, de classe média ou alta, tem status e acesso à cultura valorizada, ao divã, à formação especializada, aos livros, a viagens, restaurantes, bens de consumo e serviços. Desse meio sai também o psicólogo clínico que o assistirá. Esse modo de subjetivação descreve, no contexto brasileiro, a minoria. Não por acaso, ao final das conferências da PUC-RJ, Foucault debate com psicanalistas brasileiros renomados no âmbito de uma universidade privada e localizada em um dos bairros com metro quadrado mais caro do Rio de Janeiro. É inegável a força despsicologizante desse encontro, mas não se pode deixar de considerar que ainda se mantém dentro de determinado enquadre no qual se constituiu historicamente nossa profissão.

Nota-se que o olhar para o social e para a produção dos modos de subjetivação identitários foi um passo importante da psicologia brasileira. Todavia, manteve uma concepção do social sem cor, sem gênero, em uma clínica contextualizada, mas não atenta a questões específicas vividas pela maior parte da população.

Nada de beijo com final feliz: a psicologia é despertada de seus sonhos e de suas pesquisas perfumaria pelo susto do abalo violento de seus alicerces mais caros. A partir daí, e ao longo dos anos 80, começa a descer de sua torre encantada. Mas, ainda ficaria no meio do caminho, acreditando ter feito o suficiente ao criticar a constituição desse sujeito psicológico e as práticas psi relacionadas ao poder, à psicologização de questões políticas e à disciplinarização de corpos e condutas. Todavia, continuou sem levar em consideração a violência do racismo sob o mito da democracia racial, da homo e transfobia no país que mais mata essa população, da violência de gênero que é o machismo em toda a parte, do capacitismo e da criminalização da pobreza.

Vivemos hoje uma segunda onda deste despertar, passados trinta ou quarenta anos. Quando vozes silenciadas há séculos começaram a se fazer ouvir e a falar em seu próprio nome, com os seus termos e da sua realidade, uma nova e forte onda silenciadora e repressora surge, não só na política e nas redes sociais, mas também na Academia. A elite do atraso exigirá sempre a exclusividade de lugares, acessos e privilégios que considera direitos inatos, merecidos, conquistados e exclusivos.

Não obstante a importância e intensidade das críticas direcionadas à formação e às práticas psi ao longo de quatro décadas, ainda não se consegue enxergar e ouvir estas situações especificamente brasileiras, embora gritantes. Situações que sempre aconteceram, enquanto trabalhávamos com a sensação de dever cumprido. Até que aqueles e aquelas sobre os e as quais pesquisávamos começaram a chegar à Academia, a se posicionarem e a falarem por si mesmos. Não como tema de pesquisa ou como trabalhadores dos serviços gerais da universidade, mas como estudantes, pesquisadoras/es e docentes.

 

A psicologia e os memes da Barbie

Jessé Souza (2017) descreve em "A elite do atraso: da escravidão à lava à jato" o modo como nos constituímos no Brasil tendo como base fundamental a escravidão e os efeitos permanentes de uma abolição que nunca logrou corrigir historicamente a situação da sobra de gente tornada supérflua, suspeita, desprezada e marginal. Dispensado o escravo, substituído pela mão de obra branca, europeia, remunerada e considerada superior, nada foi feito para reintegrá-lo socioeconomicamente. A não ser nos últimos anos, segundo o autor, com políticas afirmativas, o que desencadeou a avalanche de reações de ódio da elite e da classe médias brasileiras ultrameritocrática e detentoras do capital cultural considerado válido, diante do que tomam como a ousadia de algo tentar em prol do grupo que Souza chama, provocativamente, de a ralé dos ex-escravos. O autor contesta ainda a tese corrente do Patrimonialismo, que atribui a grande corrupção ao Estado, bem como a versão de que políticas sociais é populismo - argumentos antigos no Brasil e que teriam sido mais uma vez utilizados no golpe de 2016 e nas recentes eleições. Essas versões, alimentadas e moldadas por historiadores brasileiros de relevo, encobririam, como cortina de fumaça, os verdadeiros interesses, aqueles do 1% mais rico do país, e a real e mais grave corrupção, a das grandes corporações que usufruem do Estado e visam que ele seja mínimo no que se refere a políticas que beneficiem a maioria da população, mas condescendente com os grandes grupos financeiros, industriais, da construção civil e do crime organizado. O golpe, de fato, seria este.

Durante o último processo eleitoral brasileiro circularam na web os memes da boneca Barbie e seu namorado Ken, com frases típicas das classe alta e média alta brasileiras: "acredito que as cotas são vitimismo, as pessoas precisam se esforçar como eu fiz: depois de formada em Cambridge, tive que lutar muito como estagiária na empresa do meu pai, nunca precisei de cota para nada." Ou: "com essa crise já não posso mais ir duas vezes ao ano à Europa e a Nova Iorque. Onde vou fazer compras agora?" Ou ainda: "Um absurdo eu não ter podido ir esquiar este ano. Não tenho culpa de ter nascido em família rica. Não vou abrir mão da pensão que recebo ou do auxílio-moradia, creche, combustível, viagem, cafezinho, paletó, pois é meu direito, mas é urgente a reforma da previdência, não podemos continuar sustentando essa gente. É preciso acabar com os privilégios!" Escutamos também que: "As oportunidades são iguais, basta se esforçar".

A lista é infinita. Barbie e Ken são apoiados ferozmente pela classe média, que almeja também esquiar um dia e que enfeita o seu natal com flocos de neve.

Como, então, falar em psicologia, sofrimento e clínica sem levar em conta o modo como vive a maioria da população e sem olhar com desconfiança estes modos de ser e de pensar? Sem considerar as desigualdades, as relações raciais, a não acessibilidade para pessoas portadoras de deficiência, a violência no corpo executado da vereadora mais votada do Rio de Janeiro? Quantas vidas e quantas mortes esse corpo estirado no asfalto representa?

Passamos a vida repetindo conteúdos de escolas psicológicas importadas, sem aqui recusarmos seu interesse e relevância nem defender que devam ser abandonadas, mas se formamos profissionais pasteurizados, muitas vezes sem nenhuma ponte com o que acontece em sua cidade, seu bairro, sua rua, em um país que tem a 3ª maior população carcerária do mundo vivendo em masmorras sub-humanas, onde uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, em um Estado onde se defende paradoxalmente o tiro na cabeça para combater o crime e a violência, então, é preciso repensar. Até quando vamos ignorar que de meio milhão de pessoas assassinadas na última década no Brasil, 71,5% são negras ou pardas. Que a violência no Brasil atinge a todos nós, não há dúvida, mas, em escala muito maior, mais próxima e sem possibilidade de se proteger, ela tem cor, raça, geografia e faixa etária - como afirmou numa entrevista o secretário nacional da juventude, Assis Filho.

A ameaça autoritária, a violação de direitos e a violência que agora nos assustam mais de perto nunca deixaram de ser o cotidiano das chamadas minorias que são, de fato, maioria no país.

As considerações de Souza vão ao encontro do que Benjamin Moser (2016) chamou de autoimperialismo em seus três ensaios sobre o Brasil.

Em Brasília percebi como os próprios brasileiros viam o Brasil. Era com aquele mesmo olhar imperial que eu tentara evitar. Parecia uma sociedade que nunca se cansara de colonizar-se a si própria. E de encarar sua população e seu território como passíveis de exploração, controle, submissão, violação. Dar-se conta do autoimperialismo era dar-se conta de um país que, até muito literalmente, desejava que ele próprio não existisse (pp. 117-118).

O anseio de extermínio dirigido contra a própria população defende que o problema do Brasil é o brasileiro. Ao invés da proteção aos cidadãos, estes são colocados sob suspeita, guetificados, presos e exterminados.

Pensamos que o imperialismo da psicologia havia desaparecido, pelo menos na academia, até que a entrada recente das políticas afirmativas nos cursos de graduação e, sobretudo, de pós-graduação, levantou intensa resistência a essas políticas por parte de docentes e pesquisadores que sempre foram militantes críticos, mas que vêem a entrada de outros temas como se fossem ataques a Foucault e Deleuze, defendidos ferozmente, como se esses pensadores precisassem de defesa. Foucault, certamente, riria com gosto.

 

Um país que nasce da violação

No caso do mosaico brasileiro, a combinação de situações de violação aceitas e justificadas é letal e persistente. Escravidão e racismo, Mandonismo e Patrimonialismo, Corrupção e Desigualdade Social, Violência, Raça e gênero e Intolerância são as peças reunidas pela antropóloga Lilia Schwarcz (2019), sob a rubrica do autoritarismo brasileiro. Por qualquer um dos temas se pode ler os modos de subjetivação que fundamentam a vida brasileira, pois sempre se estará remetido aos demais, em uma codependência de ingredientes macabros para uma receita muito ruim. São matrizes que continuam pautando a vida brasileira para onde quer que se olhe: na vida familiar, nas relações afetivas, no trabalho, na política, na geografia, na mídia, e na formação e práticas psicológicas, que começam a ser descolonizadas.

Embora circule a ficção de sermos uma república democrática, a Casa Grande e a Senzala nunca desapareceram de fato. Foram rebatizadas e realocadas. O Brasil tem 55,8% da população composta por pessoas pretas e pardas. É o único país com maioria negra fora da África, logo atrás da Nigéria. Todavia, esta maioria é tratada como minoria desde a promulgação da Lei Áurea, quando são descartados os escravos e escravas sem nenhum projeto de reinserção profissional e social, jogados/as ao sabor do próprio azar num mar adverso e sem botes. Nem se dá o peixe nem se ensina a pescar.

O mito do homem cordial tornou-se outro grande desmentido por aqui, embora como interpretação equivocada da expressão de Holanda (2015) em "Raízes do Brasil". A cordialidade, de cordis, coração, nunca foi um elogio e sim uma crítica e uma denúncia do modo de constituição subjetiva e institucional do brasileiro: afeto e troca de favores no lugar do direito garantido institucionalmente. Proximidade rápida e fácil que resguarda, todavia, rígidas hierarquias na pergunta: "você sabe com quem está falando?". Se paga menos à empregada doméstica por mais horas de trabalho porque ela é "como se fosse da família". A cordialidade é um problema grave, não uma vantagem. É uma tentativa de privatizar na forma do compadrio relações que são ou deveriam ser institucionais e públicas. Não deveria importar se se gosta ou não de alguém para reconhecer, respeitar e garantir seus direitos. Na base dos afetos e do coração, muita violência é cometida. A contrapartida do afeto cordial é a ruptura do pacto ético-político-institucional. Dar um jeitinho, quebrar um galho, fazer do espaço público e das instituições a sua casa, sustentam a ultrapassagem dos limites e, consequentemente, a violência, a invasão e o excesso. O acordo do silêncio em torno dessas práticas e seus efeitos é letal. O mal-entendido com relação à categoria cunhada por Holanda (2015) é um exemplo clássico do desmentido.

O colonialismo brasileiro persiste na combinação entre racismo, patrimonialismo, privatização do bem público, corrupção, desigualdade, latifúndio, familismo e patriarcalismo. Não somente nas práticas violentas e desiguais, mas nos olhares e modos de pensar, sentir, falar e agir enraizados na subjetividade brasileira. Nos últimos dois anos essas estruturas vêm sendo reforçadas, nutridas e explicitadas por aqui, como reação violenta às recentes conquistas de movimentos e ativismos pela extensão dos direitos às populações originárias e/ou periféricas. Ao genocídio dos mais pobres, de pessoas pretas, pardas e indígenas, somam-se hoje as mortes por Covid-19 e as tentativas diárias de assassinato do pensamento e dos avanços recentes, desmantelados com o aval da casa verde e amarela dos horrores.

As relações coloniais são tão enraizadas que a própria Schwarcz (2020) se envolve em polêmica recente ao escrever sobre o filme estrelado pela cantora pop norte-americana Beyoncé, Black is King. A antropóloga chegou a assinar o manifesto contra as cotas em 2011, o que é espantoso para quem estuda história do Brasil. Depois se retrata declarando não saber do que se tratava à época. De lá para cá escreve e se pronuncia sempre contra o racismo, a desigualdade, a violência e o faz de forma veemente. Mas no texto dirigido à Beyoncé, o tom professoral ao tentar falar em nome de, ao invés de somente testemunhar junto a é ainda uma permanência na disposição da branquitude. E a clássica resposta após: não foi bem interpretada.

O fato é que os dados sociopolíticos do país são assustadores e revelam o apartheid brasileiro.

Entre 2008 e 2018, o número de homicídios de pessoas negras subiu 11,5%. O de pessoas não negras caiu 12,9% de acordo com o Instituto de Pesquisas Economicas Aplicada (IPEA) (2020). O risco de ser vítima de homicídio no Brasil é 74% maior para homens negros e 64% maior para mulheres negras. Em uma década, 628 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. O número diário de homicídios no Brasil equivale ao de mortos na queda de um Boeing 727-800 totalmente lotado. O índice de mortalidade é 30 vezes maior quando comparado a países do continente europeu. São 171 mortes por dia, cerca de 62 mil anuais. O país é um dos mais desiguais no uso da terra, ocupando a quinta posição na América Latina. Dos 567 parlamentares eleitos em 2018, 138 pertencem a clãs políticos, as chamadas bancadas de parentes. No ranking global de desigualdade de renda ocupamos o nono lugar. O grupo que representa os 10% mais ricos de nossa população acumula mais da metade da renda nacional. A renda apropriada pelos 50% mais pobres é de 12% do total. O 1% dos brasileiros detém 28% da renda nacional. Nos EUA essa concentração de renda é de 20% e na França 11%. A renda média anual da elite brasileira é de cerca de 1 milhão de reais. Em 2018 o Brasil figurava entre os cinco países mais desiguais do planeta. Os 10% mais ricos pagam 21% de sua renda em impostos; os 10% mais pobres pagam 32% de sua renda em impostos. Os impostos indiretos consomem 28% da renda dos 10% mais pobres e 10% da renda dos 10% mais ricos. Em 2017 havia 11,8 milhões de analfabetos. As mulheres são 89% das vítimas de violência sexual no Brasil. A cada 7,2 segundos uma mulher é vítima de violência física. Em 2013, 13 mulheres foram mortas por dia, um aumento de 21% em relação à década anterior. A cada 11 minutos uma menina ou mulher é estuprada no Brasil. O percentual cresce entre crianças e adolescentes, sem o ensino fundamental, pretas e pardas. A cultura do estupro é, sobretudo, intrafamiliar, praticada por pessoas próximas ou conhecidas. A taxa é de meio milhão de estupros por ano no país. Em 2016, o MS indicou uma média de dez estupros coletivos notificados por dia, sendo que 30% dos municípios ainda não fornecem esse tipo de dado. Negação e silêncio individual e coletivo cercam essa violência, sempre subnotificada. Entre 2013 e 2014, 595 pessoas LGBTQIA+ foram assassinadas nas Américas. Destas, 336 foram mortas no Brasil e 176 sofreram ataques não letais. Em 2012, 6% das denúncias de estupro feitas ao disque 100 foram de mulheres lésbicas, vítimas do chamado estupro corretivo. No Brasil acontecem em média seis internações para abortos por dia em meninas de 10 a 14 anos que foram estupradas. São 26 mil partos por ano em meninas com idade entre 10 e 14 anos de idade. A maioria é de meninas pretas e pardas. Mesmo entre os grupos marginalizados e vulneráveis, existem aqueles e aquelas que se encontram em maior vulnerabilidade: meninas e mulheres negras, pessoas com deficiência, pessoas trans (Schwarcz, 2019; Instituto de Pesquisas Economicas Aplicada [IPEA], 2020).

O racismo, como notamos, atua como potencialmente agravante de outras condições das vidas tornadas periféricas, atravessando-as e aprofundando as desigualdades. As já conhecidas violências e a recusa de direitos dirigidos a mulheres, loucos, LGBTQI+, deficientes, crianças, adolescentes, pessoas pobres, parturientes e moradores/as de comunidades são sempre agravadas e mais, são justificadas quando essas pessoas são negras. No Brasil não são só pessoas negras que são assassinadas, como costumam afirmar as pessoas brancas; mas acontece que só elas são assassinadas pelo fato de serem negras.

 

Racismo, sofrimento psíquico e clínica

Grada Kilomba, psicóloga e psicanalista portuguesa radicada em Berlim, define o colonialismo como um trauma, uma ferida que nunca foi tratada, que dói sempre, por vezes infecta e outras vezes, sangra (2019). Em "Memórias da plantação", obra lançada em 2008 na qual descreve episódios de racismo cotidiano, a autora relata que foi a única estudante negra no departamento de psicologia clínica e psicanálise da universidade, durante anos. Com frequência era confundida no espaço universitário com a senhora da limpeza; havia pacientes que se recusavam a ser atendidos por ela ou a entrar na mesma sala em que ficariam a sós com ela. Aliviada ao sair de Portugal (o que não significa que não lide com o racismo também em Berlim, embora tenha encontrado outras linguagens possíveis e o reconhecimento da responsabilidade colonial), era urgente aprender e criar uma nova linguagem em que pudesse ser ela mesma, que pede a conscientização coletiva, a saída da negação e da glorificação da história colonial, ainda tão fortemente presentes em Portugal e no Brasil. "Parece-me que não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova linguagem. Um vocabulário no qual nos possamos todas/xs/os encontrar, na condição humana" (Kilomba, 2019, p. 21). Não casualmente, a autora introduz a obra com uma lista de termos que foram sedimentados pela tradição e que sustentam, com seus sentidos critalizados, práticas coloniais e violências. Kilomba os revisita e ressignifica para utilizá-los. Inicia, desde já, uma nova linguagem, um modo novo de contar ou recontar a história. História que é a de um longo "silêncio imposto. Uma história de vozes torturadas, línguas rompidas, idiomas impostos, discursos impedidos e dos muitos lugares que não podíamos entrar, tampouco permanecer para falar com nossas vozes" (Kilomba, 2019, p. 27). Silêncio imposto pela máscara de metal usada por mais de 300 anos. A máscara era colocada no interior da boca de escravas e escravos africanas/os, entre a língua e o maxilar, fixada por trás da cabeça por cordas que contornavam o queixo, o nariz e a boca. O discurso oficial afirmava que assim se evitavam as perdas materiais nas plantações de açúcar e cacau, evitando roubos. No entanto, sua função era de fato "implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura" (p. 33). A máscara, para Kilomba, é a representante do "colonialismo como um todo", simbolizando "políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os 'Outras/os?': Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?" (p. 33).

A autora aponta ainda para a distorção e inversão da realidade presente no uso da máscara silenciadora, com a boca sendo uma metáfora para a posse: ao colocar sob suspeita de roubo escravizadas/os dos campos, o que se faz é criar a versão de que elas/eles querem tomar o que seria do senhor branco, quando o que acontece é justamente o contrário. Assim, numa interpretação perversa, aquelas/es que estão sendo espoliadas/os e exploradas/as pelo colonizador se transformam naquelas/as que querem tomar a posse de outro. Assim, o colonizador afirma sobre a/o Outra/o aquilo que se recusa a reconhecer em si próprio.

No racismo, a negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão racial; "Elas/es querem tomar o que é Nosso, por isso Elas/es têm de ser controladas/os" [] o sujeito1negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado. Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se a vítima compassiva, ou seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido, o tirano (Kilomba, 2019, p. 34).

Essa inversão nos é bastante familiar no contexto do racismo brasileiro. Pessoas negras agredidas e violentadas, espoliadas e exploradas, revistadas e humilhadas, presas e torturadas, são tratadas como perigosas. Embora representem a maioria da população do país, são tratadas como se não pertencessem, sendo confinadas, com frequência, ao não lugar, seja em guetos vigiados, seja nos presídios superlotados, ou em funções de subalternidade, onde seguem vistas, mas invisíveis ao mesmo tempo, como se fizessem parte do ambiente. Limpam, cozinham, servem em silêncio, no silêncio e na discrição de quem deve saber o seu lugar e contentar-se com ele. Caso reivindiquem seus direitos e o valor de suas vidas, caso tentem falar em seu próprio nome e em nome do seu povo, serão desqualificadas, suas tradições, aparência, valores atacados e tratados como inferiores, seus corpos e vidas feridos e exterminados. Caso conquistem direitos e posições que tradicionalmente lhes são recusadas, negadas, obstaculizadas, inviabilizadas, surgirão como privilegiadas, confirmando a inversão de que nos fala Kilomba. É preciso desfazer esse desmentido traumático e é mais do que urgente que a psicologia esteja comprometida não somente com a diluição da colonialidade, mas com a luta contra colonial e antirracista.

Frantz Fanon (1925-1961), psiquiatra e filósofo martinicano que participou da luta pela independência da Argélia, analisou os traumas causados pela colonização e pelo racismo. Em "Os condenados da terra" Fanon (2005) abordou o tema da Guerra Colonial e distúrbios mentais, demonstrando que quando a batalha em campo termina, a guerra colonial prossegue nos estragos psíquicos. Alertava Fanon que "[] teremos de passar anos ainda pensando os ferimentos múltiplos e às vezes indeléveis feitos aos nossos povos pela onda colonialista" (Fanon, 2005, p. 287). E prossegue: "Porque é uma negação sistematizada do outro, uma decisão obstinada de recusar ao outro todo atributo de humanidade, o colonialismo obriga o povo dominado a perguntar-se constantemente: 'Quem sou eu, na verdade?'" (p. 288. Grifos nossos). Para Fanon, há uma soma de excitações nocivas no período calmo da colonização bem-sucedida que leva a "uma regular e importante patologia mental, produzida diretamente pela opressão" (p. 289. Grifos nossos). É a entrada e permanência do trauma no cotidiano que se tenta normalizar. A colonização é bem-sucedida quando a "natureza insubmissa" é finalmente "domada" (p. 289). O que chamamos de Brasil está assentado, desde sempre, sobre relações de mando e poder coloniais, o que é o mesmo que dizer racistas, patriarcais, patrimoniais, desiguais, violentas e traumáticas, cujos efeitos nocivos e mortíferos vêm sendo, entretanto, graças aos cotidianos desmentidos, colocados na conta de quem é por elas atingida/o, despossuída/o de si, silenciada/o e vitimada/o.

 

Trauma e desmentido: a clínica como testemunho(a)

Tomamos emprestada a expressão trauma desmentido do analista húngaro Sandór Ferenczi (1873-1933). A palavra trauma é de origem grega e significa ferida ou ferimento. Deriva de furar com efração, ou seja, produzir ruptura em um tecido prévio, por arrombamento ou violação. É uma lesão causada por agente externo. Trauma é, portanto, invasão, desconsideração de limites, excesso com o qual não se pode lidar. É uma experiência que deixa marcas, mas é indizível, sem acesso à simbolização porque comporta um excesso de realidade do qual a narrativa não dá conta. A memória do trauma é afetiva e corporal e repete a cena traumática.

Ferenczi recolocou a ênfase em situações concretas de vida que são violentas e produzem o trauma. Este é sempre relacional, nunca apenas intrapsíquico. A violência traumática é mais grave quando é, em seguida, desmentida. O desmentido não é somente verbal, não é apenas dizer que não aconteceu. É um modo de relação ou cuidado com o que aconteceu que torna invisível e coloca no campo da impossibilidade o acontecido. O desmentido realiza a transição de uma experiência dolorosa para um "não foi nada", "não foi tão grave assim", "não exagere", "não vi nada demais".

Por isso, para Ferenczi, a cena clínica deveria ser tratada como cena política e o traumático como violência produzida no campo relacional e social.

O conceito freudiano de negação referia-se tanto a um mecanismo de defesa do ego, a recusa de realidades internas e externas, quanto à negação que é uma afirmação justamente do que se pretendia negar: afirmações como "não sou machista", "não sou racista", "não sou homofóbico", quase sempre indicam, justamente, o contrário.

Desmentir ou testemunhar o trauma pelo qual alguém ou uma coletividade foram atingidos são caminhos que definirão o aprofundamento ou o cuidado do traumatismo. O não reconhecimento, por parte do outro, da narrativa de sofrimento de alguém implica uma desautorização da sua experiência e do seu testemunho no mundo compartilhado. Essa desautorização é primordial na constituição do trauma.

Enquanto o trauma sexual freudiano implicava uma operação intrapsíquica, ainda que se originasse por uma intrusão externa, o trauma social explicita uma fratura na operação de reconhecimento no campo das relações sociais e políticas.

O traumatismo, portanto, em Ferenczi, ocorre em dois tempos distintos que se entrelaçam. No primeiro momento ocorre a violação, cega em relação à dissimetria existente entre as duas posições, atuando de maneira passional na sua relação com a diferença do outro. O não reconhecimento da dissimetria de forças em jogo sustenta e justifica a violência, sendo já um desmentido: recusa a disparidade de posições afirmando para si mesmo que não há distinção.

Mas é o segundo tempo do trauma o mais decisivo e funesto na constituição da cena traumática: o da desautorização do testemunho. Ferenczi (1931/1992) descreve este segundo tempo do trauma - aquele em que se nega afirmando que nada aconteceu e ainda repreende a vítima do abuso por estar inventando coisas - como sendo o pior.

O traumatizado começa a duvidar de seu próprio critério, de sua experiência e percepção, de seu julgamento e avaliação, frente a toda uma estrutura que afirma que nada aconteceu ou que a culpa foi sua. Fica desacreditado para si mesmo/a. Ao invés da validação do testemunho, lhe é imputado que não entendeu direito, está exagerando, interpretou mal. Há uma desapropriação de sua experiência. Afirma Kupermann (2016) que o efeito mais nefasto do traumatismo é o comprometimento da própria convicção.

Assim para Ferenczi, o primeiro tempo do trauma não seria em si mesmo necessariamente desestruturante, pois o encontro com o outro poderia proporcionar o suporte suficiente para elaborar a violação sofrida. O reconhecimento seria já um modo de cuidado com o afeto intolerável no mundo aberto pela concretização da ameaça que produziu uma fratura no mundo familiar e seguro. Mas quando aquele que testemunha é desautorizado em sua "tentativa de produzir uma versão própria para aquilo que foi vivido como injúria", a ferida se aprofunda. O desafio, nesta perspectiva, no trato com os traumas relacionais, é o de constituir uma língua própria e apropriada para enunciar aquilo que é da ordem do irrepresentável e do inaudível.

O analista, para Ferenczi, precisa ser testemunha do testemunho traumático. Endereçar ao analista a própria história e o próprio sofrimento seria já uma forma de elaboração da experiência traumática por quem nela foi ferido. Não se reduz o testemunho à mera narração de fatos e sua escuta, mas significa principalmente narrar o impossível, o indizível, o irrepresentável, ou seja, admitir que o que aconteceu não faz parte do narrável porque não seria acolhido usualmente. Ficamos sem palavras diante da cena do joelho branco no pescoço negro. Como descrever o horror? O homem negro sufocado é calado, mas a cena é gritante. "Eu não posso respirar" diz muito2,3. Resume séculos de opressão, violência, preconceito, ódio, indiferença. Condensa muitas vozes silenciadas. O joelho branco impassível sendo usado como arma também conta muitas histórias.

Testemunhar não é somente escutar o que é falado, mas é principalmente captar o que não pode ser dito. É admitir, no caso brasileiro, a violência como configuração fundamental e condicionante dos modos de vida.

As políticas de ações afirmativas que implicam em cotas para estudantes de escolas públicas, pessoas com deficiência, pessoas pretas e pardas e pessoas trans, são uma clínica do testemunho que se constitui como cuidado coletivo4. Mas ainda são vistas como favor e privilégio no contexto brasileiro. O movimento Vidas Negras Importam é também um testemunho, uma saída do desmentido. Se for preciso falar isso é porque, na prática, essas vidas são tratadas como vidas que não importam.

A clínica como testemunha é o cuidado como reconhecimento da experiência traumática que foi desmentida. Ela pode acontecer na cena clínica tradicional, na cena social, na literatura, nas artes, no cinema, na mídia, no terreiro, e pode promover a criação de espaços de acolhimento que reconheçam as marcas do sofrimento, da injustiça, da violência.

O historiador britânico Paul Gilroy listou o que chamou de cinco defesas pelas quais passamos para sermos capazes de ouvir e reconhecer o próprio racismo e branquitude, que não estão relacionados somente à cor da pele, porém, são modos identitários que usam a cor como justificativa para atribuir natureza e status, para dizer quem pode e quem não pode falar em seu próprio nome. Mas, também poderiam as cinco etapas ser o caminho de admissão, reconhecimento e reparação do capacitismo, do sexismo, da homofobia, da transfobia, do ódio e desprezo aos pobres, ao interno penal, que nos constituem e transpassam (Kilomba, 2019).

A primeira "defesa" é a negação - a recusa em admitir os aspectos mais desagradáveis da realidade. A segunda é a culpa pela transgressão de uma interdição, da qual se procura escapar pela racionalização que tenta construir uma justificativa lógica em frases como "eu não queria dizer isto nesse sentido, você entendeu mal, não há negros/as nem brancos/as, somos todos humanos". O terceiro é a vergonha e o conflito entre a forma como se vê: democrático, sem preconceito, aberto, e a forma como se é visto e revelado: como alguém que discrimina. O quarto é o reconhecimento de sua branquitude, racismo, violência, preconceito. É o momento em que "cai a ficha". O quinto é a reparação: mudança de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, vocabulário. Abandono de privilégios encarados como naturais. É o momento em que se pergunta: "como eu posso desmantelar meu próprio racismo?" - ou colonialismo, preconceito, "cordialidade" etc.

Em que ponto se encontra a psicologia? Parece que saindo da negação, buscando o reconhecimento na racialização de seus saberes e práticas, mas ainda é preciso muito para se engajar de fato na reparação.

 

Considerações finais

A elite brasileira está assentada sobre o sangue de milhares de mulheres e homens de todas as idades, sobretudo o sangue e a exploração dos corpos negros. Seus privilégios são sustentados por vidas desprezadas, descartadas e despedaçadas, quando não podem ser úteis e dóceis como se espera delas. Não significa que não haja luta, resistência, beleza e criatividade, preservando solidariedades, sororidades e tradições ancestrais, mas podemos perguntar: a que custo? De quantas vidas? De quantos sonhos e esperanças? Se não se pretende incorrer em vitimismo e impotência, é, todavia, necessário reconhecer e validar a vitimização que tem alvo certo.

Já não é sem tempo de parar de negar que, se todos nós corremos riscos e temos problemas com a violência endêmica, são os grupos das estatísticas citadas mais acima que enfrentam cotidianamente situações inimagináveis e em gradações que vão desde o olhar de suspeita do segurança de shopping - ele também explorado e discriminado em outros contextos -, passando pelas revistas frequentes da polícia, a pressão do tráfico e da milícia, até a tortura e o assassinato, forma definitiva de apagá-los, silenciá-los e de recusar a sua existência. Esse apagamento é alimentado pelo epistemicídio acadêmico, pelo desinteresse das políticas de educação, saúde, emprego e moradia que insistem em negar as especificidades das relações étnico-raciais no Brasil. Não reconhecer as dissimetrias é um exemplo do desmentido. Sempre que se tenta enunciar isto alguém interrompe para dizer: "ah, mas". Há sempre um "mas".

O Brasil, apesar desses números, teve a sua imagem fixada como um país de povo alegre, festivo, sensual, informal, acolhedor, democrático, que não se deixa abater apesar das dificuldades. Que tudo suporta com um sorriso no rosto, sem reclamar e sem se revoltar. Uma coletividade pacífica e submissa. Não é que esses ingredientes estejam ausentes, ao contrário. Contudo, se tomarmos por base as estatísticas por um lado e as lutas e resistências por outro, notamos que a alegria está longe de ser a atmosfera predominante por aqui. O clima está muito mais para o de desproteção, conflito, perplexidade e luta.

A expressão tempos sombrios do título foi inspirada na coletânea de ensaios publicados em 1968 (Arendt, 2008) pela filósofa Hannah Arendt (1906-1975). Arendt experienciou e descreveu as sombras do seu tempo. Mas a expressão tempos sombrios não se refere às "monstruosidades" do seu século - o século XX do extermínio em massa (p. 9). A estas ela chamou de "horrível novidade" (p. 9): "Os tempos sombrios [] não só não são novos, como não constituem uma raridade na história []" (p. 9). Os perfis por ela trazidos nas páginas dos ensaios, nove ao todo, dentre estes os de Rosa Luxemburgo, Walter Benjamin, Karl Jaspers e Martin Heidegger, são para mostrar:

Que mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra, essa convicção constitui o pano de fundo implícito contra o qual se delinearam esses perfis (Arendt, 2008, p. 9).

É fato que a psicologia brasileira que acordou não consegue mais voltar atrás. Precisa rever-se, repensar sua formação, suas práticas, os autores e autoras com os quais trabalha metodologias, precisa escutar e aprender, abalando o entorpecimento de suas produções. Ainda que o medo da perda de território faça com que se avolumem resistências e violências contra "o que não é espelho".

A psicologia, que em tempos como os nossos, começa a dar-se conta da indiferença ou dos perigos de alguns de seus olhares e práticas, tem a chance de não estar mais tão confortável no contexto brasileiro como ele se apresenta.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Cristine Monteiro Mattar
cristinemattar.cm@gmail.com

Submetido em: 11/10/2020
Aceito em: 02/11/2020

 

 

1 A autora considera de maneira crítica no início do livro o uso do termo sujeito em português, que desconsidera diferenças de gênero reduzindo-se ao gênero masculino. Em inglês, subject não tem gênero. Não havendo em português a sujeita, o que faria incorrer em um erro ortográfico, Kilomba mostra o quão grave é que uma identidade não exista na própria língua, ou seja, identificada como erro. Por isso a autora ressalta a importância de novas terminologias, pois isso revela o problema das relações de poder e violência na língua portuguesa. Assim utiliza o termo sujeito sempre em itálico ao longo do texto (Kilomba, 2019).
2 No dia 25 de maio de 2020, um homem negro de 40 anos, George Floyd, foi assassinado em público por um policial branco em Minneapolis. Floyd foi sufocado até a morte. O crime foi filmado e a reação somou-se ao movimento mundial Blacks Lives Matter fundado em 2013 nos EUA após a absolvição de George Zimmerman que matou a tiros o adolescente negro Trayvon Martin.
3 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/27/caso-george-floyd-morte-de-homem-negro-filmado-com-policial-branco-com-joelhos-em-seu-pescoco-causa-indignacao-nos-eua.ghtml
4 A Lei nº 12.711/2012, sancionada em agosto deste ano, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 Universidades Federais e 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia a alunos/as oriundos/as integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da Educação de Jovens e Adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.

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