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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro  2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.33-47 

ARTIGOS

 

Usos dos discursos psi: a questão racial (1930-1950)

 

Uses of psi discourses: the racial issue (1930-1950)

 

Usos de los discursos psi: la cuestión racial (1930-1950)

 

 

Hildeberto Vieira Martins

Docente. Universidade Federal Fluminense. Rio das Ostras. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do trabalho é descrever os usos de certas ideias médico-psicológicas sobre o negro e o seu papel na sociedade brasileira. Esse processo resultou na construção do "elemento negro" como uma categoria a ser discutida tanto pelo movimento negro quanto por estudos científicos produzidos entre as décadas de 1930-1950. Pretende-se mostrar como determinados saberes acadêmicos e vulgares sobre o tema possibilitaram a difusão de um modelo "científico" de explicação sobre a "raça brasileira". Para exemplificar nossos argumentos analisamos uma série de eventos ocorridos ao longo dessas décadas além dos trabalhos produzidos por Arthur Ramos, Alberto Guerreiro Ramos e Virgínia Leone Bicudo. A consolidação desse campo de debate sobre o "elemento negro" foi em grande parte o resultado da incansável reprodução de um "credo racial" brasileiro (o mito da "democracia racial") que se pretendia ordenador das nossas relações sociais.

Palavras-chave: História da psicologia; Raça; Alberto Guerreiro Ramos; Arthur Ramos; Virgínia Leone Bicudo.


ABSTRACT

The aim of this paper is to describe the uses of certain medical-psychological ideas about black people and their role in Brazilian society. This process culminated in the construction of the "black element" as a category to be discussed both by the Black Movement and by scientific studies produced between the 1930s and 1950s. This study seeks to show how certain academic and common knowledge on this topic made it possible to disseminate a "scientific" model of explanation about the "Brazilian race". To exemplify our arguments, we analyzed a series of events that occurred over these decades, beyond the works produced by Arthur Ramos, Alberto Guerreiro Ramos and Virgínia Leone Bicudo. The consolidation of this field of debate about the "black element" was largely the result of the strenuous reproduction of a Brazilian "racial creed" (the "Racial Democracy myth") that was intended to be the organizer of our social relations.

Keywords: History of psychology; Race; Alberto Guerreiro Ramos; Arthur Ramos; Virgínia Leone Bicudo.


RESUMEN

El objetivo del artículo es describir los usos de ciertas ideas médico-psicológicas sobre los negros y su papel en la sociedad brasileña. Este proceso resultó en la construcción del "elemento negro" como una categoría a ser discutida tanto por el movimiento negro como por los estudios científicos producidos entre las décadas de 1930 y 1950. Se pretende mostrar cómo ciertos conocimientos académicos y comunes sobre el tema permitieron difundir un modelo "científico" de explicación sobre la "raza brasileña". Para ejemplificar nuestros argumentos, analizamos una serie de hechos ocurridos durante estas décadas además de las obras producidas por Arthur Ramos, Alberto Guerreiro Ramos y Virgínia Leone Bicudo. La consolidación de este campo de debate sobre el "elemento negro" fue en gran parte el resultado de la incansable reproducción de un "credo racial" brasileño (el mito de la "democracia racial") que pretendía ser el organizador de nuestras relaciones sociales.

Palabras clave: Historia de la psicología; Raza; Alberto Guerreiro Ramos; Arthur Ramos; Virgínia Leone Bicudo.


 

 

Introdução

O campo da psicologia no Brasil vem desenvolvendo nos últimos anos uma produção cada vez maior de pesquisas dedicadas ao estudo sobre a questão racial brasileira, ou seja, estudos voltados para um maior entendimento sobre as práticas e manifestações sociais (cultura, religião, linguagem, estética etc.) de certos grupos étnicos africanos trazidos violentamente para o Brasil, em decorrência do processo de colonização e do tráfico negreiro português que marcaram o processo de formação da sociedade brasileira e do seu "processo civilizador". O que intentamos apresentar nesse trabalho é um recorte de um momento histórico que caracteriza a passagem ou ruptura da forma como a temática "racial" era pensada. O recorte se circunscreve em decorrência de alguns eventos, a saber: a criação da Frente Negra Brasileira (FNB) (1931) e a publicação do seu jornal, A voz da Raça (1933); os Congressos Afro-Brasileiros (1934 e 1937); a atuação social e política do Teatro Experimental do Negro (TEN) (1944) e a difusão de suas ideias através do jornal Quilombo (1948); a organização, por essa mesma entidade, da Conferência Nacional do Negro (1949) e do I Congresso Negro (1950); a crítica ao mito da "democracia racial" provocada por pesquisadores diretamente e indiretamente ligados ao "projeto Unesco" (1950), ou seja, nos deteremos na análise do período histórico localizado entre as décadas de 1930 e 1950. Para ilustrar como esse debate racial se configura no período aqui investigado, faremos uma breve análise de trabalhos produzidos por intelectuais que se debruçaram sobre o tema. Analisaremos alguns trabalhos sobre a religião afro-brasileira, de Arthur Ramos de Araújo Pereira (1903-1949); os textos "psicossociológicos" de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) e o estudo sobre a "consciência de cor" da população negra, de Virgínia Leone Bicudo (1910-2003).

A escolha desses autores deve-se ao papel capital que eles ocuparam nesse período e às suas relações, tanto junto ao movimento negro, quanto junto ao ambiente acadêmico. Esses atores sociais formularam através de seus trabalhos uma interpretação sobre o "problema negro", e o seu impacto no debate nacional, e ao mesmo tempo participaram, direta ou indiretamente, de grande parte dos eventos históricos acima mencionados. Essa participação será mais bem discutida adiante. Acreditamos que ao utilizarmos esses "recortes históricos" poderemos discutir não somente os usos, mas principalmente os abusos das ideias de cunho psicológico (saberes psi) que giravam em torno de como a sociedade brasileira deveria àquela época pensar e elaborar formas de lidar com o problema da "questão racial" - discussão já aventada em trabalhos anteriores (Martins, 2019; 2018; 2014; Schucman, & Martins, 2017).

Para que essa proposta de análise fosse viável teoricamente, optamos metodologicamente pela execução de pesquisa bibliográfica e documental de material relacionado ao movimento negro e aos autores selecionados e que estivessem circunscritos às décadas de 1930-1950. Cabe assinalar que nesse artigo o conceito de metodologia é tomado como método de interpretação da realidade, pois a atividade de pesquisa é vista aqui como uma tomada de posição quanto ao escopo da pesquisa e de implicação com a realidade pesquisada; ou seja, considera-se que há sempre uma relação complexa entre o pesquisador e o objeto pesquisado, que é visto como afetando o próprio trabalho de pesquisa. Queremos afirmar com isso que, em relação aos fenômenos sociais (e a produção discursivo-textual de agentes sociais é uma delas), a descrição de sua realidade é sempre complexa, não comportando uma explicação causal unívoca. Dito isso, afirmamos que a nossa análise metodológica é uma (das) possibilidade(s) de interpretação do material coligido na investigação aqui realizada. O que trazemos nesse trabalho é um recorte parcial da história nacional sobre a "questão racial" brasileira - mas que nem por isso é menos significativo - para que possamos conhecer um pouco mais do contexto histórico-social que permitiu a produção de um "credo racial" brasileiro. E cabe um último comentário sobre a discussão metodológica: nesse texto investigamos, especificamente, o modelo médico-psicológico e as definições utilizadas e difundidas sobre a interioridade humana e seus atributos (a alma, a mente, o comportamento humano). Por isso, nosso debate se limita a investigar a utilização de conceitos psicológicos derivados da psiquiatria, psicanálise ou da psicologia que serviam de explicação causal da saúde/doença da população negra (autoimagem, inferioridade, identidade, possessão etc.).

 

Do sonho modernista à realidade da desigualdade brasileira: a retomada da "questão racial" (1930-1950)

Descrever o período da pós-abolição, em especial as décadas iniciais do século XX, como representativas de uma nova maneira de pensar e discutir a questão racial já foi realizado exitosamente por alguns autores que se propuseram a investigar o papel e a atuação do movimento negro na construção de uma nova "identidade negra" nesse momento da história social brasileira (Bastide, 1983; Hanchard, 2001; Gomes, 2005; Domingues, 2008). Não podemos deixar de mencionar que essas décadas marcaram a história política e social brasileira de modo bastante significativo, tendo como um de seu evento histórico mais conhecido a "Revolução de 1930" ou o "Golpe de 1930". Esse evento marcou um novo modelo político nacional e permitiu que a sociedade brasileira definitivamente entrasse em um período de urbanização e de industrialização acelerado. Segundo Herschmann e Pereira (1994), esse período foi marcado pelo "paradigma moderno", já que a sociedade brasileira estava saindo do período que ficou conhecido como "República Velha" (termo que foi inventado e difundido por aqueles que pensavam a década de 1930 como o início de uma "Nova República"). Nas palavras dos autores: "A partir de então, começava-se a implementar não apenas uma nova ordem republicana, mas, sobretudo, um novo modelo de Brasil, o modelo de um Brasil moderno" (Hersschmann & Pereira, 1994, p. 12, grifo dos autores). E como esses mesmos autores afirmam mais adiante, o objetivo principal da década de 1930 é "adequar esta modernidade a um quadro institucional possível" (p. 12). Diante desse novo quadro, fica evidente o quanto certas instituições e eventos institucionais (a FNB, o jornal A Voz da Raça, o I Congresso e o II Congresso Afro-Brasileiro - só para citar os eventos institucionais mais importantes da década de 1930 e voltados para a temática racial) fazem parte de um processo de modernização continuada que estava afetando toda a sociedade brasileira. Esses eventos parecem confirmar que algumas ideias novas estavam no ar. Falemos brevemente desses acontecimentos.

Os Congressos Afro-Brasileiros, ocorridos em 1934 e em 1937, nas cidades do Recife e de Salvador, respectivamente, foram organizados por alguns intelectuais na tentativa de discutir o "problema negro" no Brasil. As figuras mais importantes e conhecidas pela realização desses dois eventos eram Gilberto Freyre, Arthur Ramos e Edison Carneiro, que tiveram papel e implicação distintos na organização desses congressos. Pode-se afirmar que o que se pretendia com esses congressos era problematizar o conceito de raça e determinar um novo lugar subjetivo e social do negro na sociedade brasileira. O I Congresso foi organizado por Gilberto Freyre e seu primo Ulisses Pernambucano e teve a participação de figuras ilustres do cenário cultural brasileiro, como o pintor Cicero Dias, o escritor Mário de Andrade, o folclorista Luís da Câmara Cascudo, de pesquisadores das "questões raciais" como Arthur Ramos e Edson Carneiro, além de representantes das religiões de matriz afro-brasileiras. O principal homenageado desse congresso foi Raimundo Nina Rodrigues, que segundo o próprio Freyre "[...] deu grande impulso aos estudos afro-brasileiros, impondo-se ao respeito de todos os africanologistas de toda a parte" (Freyre, 1988, p. 352). Esse Congresso contou ainda com o apoio de membros da Frente Negra. Já o II Congresso foi organizado por figuras como Edison Carneiro, Martiniano Eliseu do Bonfim (também conhecido como Ojé L'adê) e Aydano do Couto Ferraz, tendo como objetivo principal a valorização da cultural negra a partir da discussão da "influência africana" na sociedade brasileira - em suas mais variadas formas de expressão. O evento ocorreu de 11 a 20 de janeiro de 1937, no Instituto Histórico da Bahia, na cidade de Salvador. Cabe registrar que Martiniano Eliseu do Bonfim, que foi o convidado homenageado nesse congresso, era considerado um grande colaborador de Nina Rodrigues sobre as tradições religiosas africanas na Bahia. Dois outros acontecimentos históricos que merecem destaque nesse momento: o surgimento da FNB e do seu jornal, A Voz da Raça.

A FNB foi um empreendimento social capitaneado pelos "homens de cor" (como era referida a população considerada negra no início do século XX) - termo que vai perdendo espaço a partir do debate que alguns militantes do movimento negro começam a desenvolver. Surgida praticamente um ano após a eclosão do golpe de 1930, a FNB foi criada oficialmente em 16 de setembro de 1931, em São Paulo. Organizada e gerida a partir de uma estrutura verticalizada, contando com a figura administrativa de um presidente, a qual se sustentava em um rígido modelo disciplinar e estatutário. Segundo Petrônio Domingues, no auge da sua organização, a FNB contou com a participação de milhares de militantes (de seis mil ou 200 mil sócios, quantitativo que varia significativamente dependendo da fonte de pesquisa consultada), devido a sua grande aceitação junto à população negra (Domingues, 2008, p. 62). A FNB contou com mais de 70 delegações, localizadas em várias regiões do país, como Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul. Essa capilaridade favoreceu a difusão e a leitura do seu veículo de divulgação, A Voz da Raça. Essa publicação, que chegou a ter tiragem de cinco mil exemplares, era o meio de propagação das ideias da FNB. Um aspecto que precisa ser destacado é o viés bastante político da FNB, o que levou essa entidade a se tornar um partido político em 1936 - projeto de curta existência por conta da extinção de todos os partidos políticos e que foi impetrado pela ditadura getulista de 1937. Segundo Domingues, na grande maioria das vezes o teor político-partidário da FNB tinha uma conotação autoritária e nacionalista, e que em vários momentos se aproximou nitidamente do ideário fascista bastante em voga nesse momento histórico, e que não era só característico do nosso contexto nacional, mas que estava presente em vários países. Devemos mencionar ainda que um dos autores discutidos nesse artigo, Arthur Ramos, chegou a participar de algumas atividades organizadas pela FNB (p. 66).

Da mesma forma, as décadas seguintes foram marcadas por alguns eventos que discutiram (ou melhor, rediscutiram) a "questão racial" brasileira. Resultam desse ambiente de questionamento e discussão do papel e do impacto da "raça" na constituição nacional, a criação do TEN, em 1944, entidade que organizou a Conferência Nacional do Negro (1949) e o I Congresso do Negro Brasileiro, em 1950 (Nascimento, 1982). Essa mesma entidade ainda publicaria o jornal Quilombo (1948). Além desses eventos, a década de 1950 será palco de uma série de pesquisas realizadas por intelectuais brasileiros e estrangeiros e que ficou conhecido por "projeto Unesco" (Maio, 1997). Para nós, esse período marcou uma guinada na forma de discutir a questão racial brasileira e qual explicação seria capaz de responder ao insistente e evidente processo de desigualdade racial perpetrado em nosso país.

Diferente da FNB, o TEN foi fundado na cidade do Rio de Janeiro, em 1944, por Abdias Nascimento. O propósito principal do TEN e do jornal Quilombo era denunciar o caráter abstrato e intelectualista de tratar os problemas que afetavam a população negra. Para Abdias Nascimento, o objetivo do movimento era de discutir os problemas práticos e atuais do negro, abandonando uma leitura de cunho antropológico ou estereotipada do negro. Essa nova postura enfatiza assim seu distanciamento ideológico com os Congressos realizados na década de 1930. As pesquisas realizadas na década de 1950, e que ficaram conhecidas pela alcunha de "projeto Unesco", produziram estudos sobre relações raciais em diferentes regiões brasileiras, ocorridas entre os anos de 1951 e 1952. O objetivo inicial de tais pesquisas era confirmar a existência de experiências bem-sucedidas de cooperação racial no mundo, em especial a ideia difundida, internacionalmente, que o Brasil era o país da "democracia racial". O "projeto Unesco" vai marcar a ruptura de uma visão idílica sobre as relações raciais no Brasil e colocar em xeque o mito da "democracia racial" brasileira. As pesquisas ocorreram nos Estados do Amazonas, Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Os resultados obtidos e as discussões realizadas nesse projeto deslocaram a questão racial brasileira do paradigma cultural freyriano para uma nova chave sociológica, construída a partir da leitura de orientação marxista de Florestan Fernandes (Maio, 2000, pp. 116-7). Uma das etapas desse projeto foi realizada em São Paulo e contou com a coordenação de Roger Bastide e Florestan Fernandes. Além desses dois pesquisadores, devemos destacar a participação de três profissionais ligados ao campo psicológico: Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), Aniela Meyer Ginsberg (1902-1986) e Otto Klineberg (1899-1992). Dos psicólogos anteriormente mencionados, analisaremos nesse artigo a pesquisa que credenciou a participação de Virginia Leone Bicudo no "projeto Unesco", ou seja, o trabalho elaborado sob a orientação de Donald Pierson e que redundou em uma dissertação de mestrado defendida em 1945. Essa mesma pesquisa foi recentemente publicada em forma de livro (Bicudo, 2010).

Os eventos que até aqui descrevemos de maneira breve marcaram formas distintas de pensar a questão racial, ainda serviram de palco para a participação de alguns atores que passaremos a discutir e que foram capazes de cristalizar determinados discursos sobre o elemento negro na sociedade brasileira. Mas, agora passemos para uma análise daquilo que se pode definir como do campo dos fatos e de suas possíveis apropriações - esta última mais afeita ao campo das interpretações.

 

Para "exumar os vestígios míticos de origem": Arthur Ramos e "o problema da raça negra do Brasil"

Arthur Ramos de Araújo Pereira nasceu em Alagoas, na cidade de Pilar, no ano de 1903 e formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1926. Foi um dos primeiros a utilizar os conceitos da psicanálise no campo da medicina. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, após a Revolução de 1930, por conta do apoio de Afrânio Peixoto e Juliano Moreira, seus conterrâneos. Seus principais campos de interesse foram a psicanálise e a educação. Com a criação da Universidade do Distrito Federal, assume a cadeira de psicologia social. Faleceu em Paris, em 1949, aos 46 anos (Corrêa, 1998; Campos, 2001, pp. 316-317). Faleceu exercendo a função de diretor do Departamento de Ciências Sociais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), quando estava em Paris, em 1949.

Os trabalhos realizados por Arthur Ramos nas primeiras décadas do século passado procuraram registrar as manifestações sociais e culturais do negro no Brasil, em um período no qual o debate científico culturalista ainda era incipiente. O projeto de Ramos era investigar a reconfiguração das tradições africanas, que influenciaram os hábitos de vida, instituições e o folclore da sociedade brasileira. Ramos fez parte do que ficou conhecido como "Escola Baiana de Antropologia" e que contou com nomes como Afrânio Peixoto e Leonídio Ribeiro - para citar alguns de seus membros famosos. Citamos a "Escola" porque alguns de seus representantes ensaiaram o "resgate" da obra de Nina, não por mero reconhecimento dos seus feitos, mas sim pela aproximação do "interesse científico", com o propósito de tratar e construir certo controle sobre a problemática racial e o lugar do elemento negro em nossa sociedade. Como exemplo da "tradição" dessa "Escola" podemos citar o debate que Arthur Ramos propôs em sua obra "O folclore Negro do Brasil", na qual ele afirma que a formação dos cultos religiosos unicamente brasileiros teriam se dado a partir da fragmentação dos "mitos primitivos" dos povos africanos trazidos ao Brasil (principalmente os povos sudaneses e bantos), a diluição destes mitos mediante sua entrada no universo do folclore brasileiro e a adaptação ao tipo de sociedade aqui encontrado. Em uma leitura de inspiração psicanalítica sobre a mitologia africana, o autor defende que, apesar da referida "degradação", estes grupos teriam mantido, em decorrência da presença ("sobrevivência") de um "inconsciente coletivo", certos fragmentos míticos "de forte simbolismo ligado aos complexos centrais, principalmente o motivo do sacrifício e da autopunição, o motivo da mãe e o motivo do herói" (Ramos, 2007b, p. 12).

A passagem de um discurso racial para um modelo culturalista marca menos uma diferença no "objeto" de análise (o elemento negro) que a continuidade de um exercício de sujeição (determinar as positividades/negatividades desse elemento). Arthur Ramos buscava "atualizar" o discurso de Nina Rodrigues através do resgate de sua obra. Essa ideia pode ser verificada na passagem que reproduzimos a seguir: "Se nos trabalhos de Nina Rodrigues, substituirmos os termos raça por cultura, e mestiçamento por aculturação, por exemplo, as suas concepções adquirem completa e perfeita atualidade" (Ramos, 1939, pp. 12-13).

Esse processo de "filiação" marca ainda a criação de um lugar de distanciamento entre os outros discursos presentes nesse momento e que também tomam o elemento negro como seu objeto de estudo. Não seria por isso que Mariza Corrêa afirmou que foi só com o surgimento de Gilberto Freyre no cenário intelectual que ocorreu o "resgate" (apropriação) dos trabalhos de Nina Rodrigues por Arthur Ramos? E não foi esse contexto que propiciou que Ramos escolhesse operar uma redefinição de sua trajetória intelectual dentro da "linhagem' da "Escola" e do terreno de seus trabalhos: os estudos sobre o negro? (Corrêa, 1998, pp. 280-281). O surgimento da obra freyriana foi uma tentativa pioneira de demolir o modelo racista ainda valorizado por uma parte da intelectualidade brasileira. Ainda assim, Gilberto Freyre, o organizador do I Congresso Afro-Brasileiro, não se desvinculou totalmente dessa discussão e da terminologia racial usada anteriormente. Mas, uma coisa parece ser evidente: o resgate da obra de Nina se deu pela substituição da palavra "raça" por "cultura" ou "aculturação".

Com a entrada em cena da obra de Gilberto Freyre, não mais seria a raça o causador da degeneração da sociedade, mas sim o próprio sistema social (escravocrata) que se constituiria como elemento degenerador porque é cruel e excludente (Moutinho, 2003, p. 89). Essa perspectiva teórica possibilita que o problema causador de nossas deficiências fique no passado (escravocrata) e não no presente, isentando parcialmente com isso a cultura negra. É o escravo ("inimigo inconciliável") e a escravidão, e não a raça negra, o problema. Dessa maneira, é a "escravidão [que] entra como elemento da análise moralmente condenável e não a 'raça'" (p. 92). Essa ideia seria retomada mais tarde por Florestan Fernandes em bases classistas. Mas, se o estudo do elemento negro na obra freyriana, em princípio, não retrataria como "alteridade perigosa" aqueles cuja identidade cultural estaria marcada por essa "origem", isso não impediu que a senzala fosse vista ainda como um complemento subalterno ao funcionamento da casa-grande, ou seja, a noção de raças em Freyre ainda opera com a ideia de que as raças se complementam numa escala hierarquizadora, fazendo com que não ocorra uma síntese capaz de "fundir" todos os "elementos" em uma nova e única "raça" - produtora de uma cultura singular.

Para o debate científico de sua época, Ramos buscou corroborar, a partir de suas hipóteses, que esses grupos humanos, hegemonicamente considerados primitivos pela ciência da época, estariam na realidade apenas em um estágio cultural menos evoluído, ou seja, em franco "atraso cultural", como era a forma mais comum usada por ele para tratar das diferenças que percebia entre a religião afro-brasileira e outras religiões consideradas mais "avançadas" (vale lembrar, ideia descreditada nos dias de hoje). Essa mesma concepção sobre a população negra pode ser encontrado em mais dois trabalhos de Ramos, o livro O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise1, de 1934, e o artigo O problema psychologico do curandeirismo, publicado em 1931 e republicado no livro Loucura e Crime de 1937. Nesses textos, Ramos utiliza conceitos psicanalíticos para descrever e explicar a mentalidade da população negra, mas utilizando-os para demonstrar ainda certo atraso cultural que justificaria a condição social vivida e experimentada pela população negra. Foi por conta da certeza na existência de um "inconsciente folk-lorico" (Ramos, 1937: 19) que as suas pesquisas puderam seguir um caminho que definiu uma clara cisão entre certas práticas terapêuticas e o perigo iminente de seus efeitos, caso o cientista não denunciasse seus praticantes. Procurando demonstrar a necessidade de estabelecer as diferenças entre práticas terapêuticas legítimas/ilegítimas e manifestações religiosas primitivas, Ramos aponta para a conveniente "distinção entre charlatanismo e curandeirismo" (Ramos, 1937: 72). Para esse autor, era preciso sinalizar para o equívoco em tratar esses dois agentes sociais da mesma maneira; era preciso estabelecer uma diferença para assim utilizar o controle mais adequado: para um a repressão policial, para o outro a tutela educativa.

Por estar bastante atento e interessado nos desdobramentos desse debate, Ramos pode afirmar que o processo de adaptação (sincretismo) de certos grupos afro-brasileiros (os "de procedência bantu") permitiu que rapidamente as macumbas (de origem "bantu", ou seja, ainda "puras") se transformassem em "mesas dos consultórios de baixo espiritismo" (Ramos, 1979, p. 230). Arthur Ramos não perdeu de vista a necessidade imperiosa de hierarquizar práticas para limitar seus funcionamentos e seus efeitos sociais.

O tratamento dispensado às religiões afro-brasileiras e a seus praticantes nas primeiras décadas do século XX foi marcado pela criminalização de certas práticas (rituais de cura), taxadas pelos especialistas (cientistas) como charlatanismo e exercício ilegal de medicina (Maggie, 1992; Wissenvach, 2004). Esse tipo de tratamento torna evidente a tentativa de certos setores da sociedade brasileira de implementar um movimento de desqualificação das práticas afro-brasileiras, o que afetou diretamente os praticantes dessas práticas religiosas. Nesse sentido, os trabalhos de Ramos seguem essa mesma lógica, que tinha como propósito principal transformar o Brasil em um grande "laboratório racial", capaz de explicar e resolver os problemas marcados pelo "credo racial" presente na sociedade ocidental do início do século XX. Com o intuito de avançar na compreensão dos sentidos que esse debate produz, faremos uma descrição e discussão da questão psicossociológica presente no discurso de Alberto Guerreiro Ramos.

 

"É preciso não carregar a pele como fardo": a análise psicossociológica de Guerreiro Ramos

Os debates e ideias de Alberto Guerreiro Ramos figuram nesse artigo em razão de sua intensa participação nos acontecimentos mencionados anteriormente. Esse autor esteve relativamente afastado do debate racial na década de 1930 e nos anos iniciais da década seguinte, mas ao que parece a consolidação da amizade com Abdias Nascimento, juntamente com a sua participação no TEN, foi determinante para a mudança de sua postura e das ideias acerca da importância dessa questão para a compreensão da sociedade brasileira. Contudo, as publicações de sua autoria com o qual nos deteremos no presente texto são basicamente duas: os textos publicados no jornal Quilombo (1948-1950) e o artigo A patologia social do "branco" brasileiro (1955). Esses textos são formulados no período aqui delimitado e nos parece ser um ótimo exemplo da forma como o debate racial seria redefinido e demonstraria como uma interpretação psicossociológica foi apropriada para pensar o novo lugar do negro na sociedade brasileira. Nesse sentido, daremos ênfase no embate entre Guerreiro Ramos e Arthur Ramos, que foi definido pelo primeiro de maneira pouco elogiosa como "pseudocientista", divulgador "de teoria 'antropológicas' de discutível validade científica" (Ramos, 1955, p. 8). Guerreiro Ramos mencionaria outras vezes esse autor em tom pejorativo, o que para nós é um indicativo de como uma nova interpretação do lugar e do papel do negro exigia uma crítica severa dos cânones instituídos e consolidados nas primeiras décadas do século XX - e que tinha Arthur Ramos como um de seus continuadores e um de seus principais representantes.

A trajetória de Alberto Guerreiro Ramos foi similar à de muitos intelectuais nordestinos que viveram as transformações ocorridas nas primeiras décadas do século XX. Como o próprio Guerreiro Ramos relata em um depoimento pessoal, ele fazia parte do seleto grupo das "inteligências moças de Salvador" (Oliveira, 1995, p. 133), ou seja, era um legítimo representante da intelectualidade nordestina, fruto da presença de um ambiente acadêmico (ou pretensamente acadêmico) ocasionado pelo surgimento de faculdades como a de medicina da Bahia (1832) 2 e de direito, inicialmente inaugurada em Olinda (1828) e depois transferida para Recife (1854). Nascido em 1915, em Santo Amaro da Purificação, logo fez parte de vários movimentos sociais na Bahia e por conta de suas atividades e dinamismo acabou conseguindo uma bolsa para estudar no Rio de Janeiro - à época, capital do país e centro político e cultural. Nos primeiros anos na cidade, seu caminho acabou cruzando com o de outro intelectual nordestino: o alagoano Arthur Ramos. Contudo, diferente desse último, que era considerado um simpatizante das ideias comunistas, Guerreiro Ramos ao que parece se vincula ao movimento integralista de inspiração católica, de orientação conservadora - assim como o fez Abdias Nascimento em sua juventude (Oliveira, 1995, p. 27). Guerreiro Ramos torna-se uma figura importante por uma série de razões, algumas já mencionadas, mas para os propósitos desse texto compete destacar alguns aspectos. A primeira refere-se ao seu contato inicial com Arthur Ramos. A trajetória de ambos parece cruzar-se, inicialmente, em fins da década de 1940 em decorrência da contribuição que fizeram ao jornal Quilombo (1948) e pelas suas participações na Conferência Nacional do Negro (1949). Guerreiro Ramos participou da Conferência como organizador, juntamente com Abdias Nascimento e Edison Carneiro, ao passo que Arthur Ramos proferiu uma palestra de encerramento nesse mesmo evento, em 13 de maio de 1949 - ao que parece, foi uma de suas últimas participações acadêmicas ainda vivo, já que faleceria meses depois em Paris (Nascimento, 1982, p. 90).

Os trabalhos de Arthur Ramos estão presentes no jornal Quilombo desde o seu primeiro número. Os textos, em grande parte comentários de seus livros (como "A aculturação negra no Brasil" ou a "Mestiçagem no Brasil"), falam da experiência da "mistura de raças" (ou mestiçagem), da defesa da existência de uma "democracia racial" no Brasil ou sobre a importância de discutir o papel do negro na sociedade brasileira. A maioria dos comentários contidos nesse periódico são positivos à figura de Arthur Ramos, como pode ser constatado pela publicação na coluna intitulada "A morte de um grande amigo", escrita em janeiro de 1950, para lembrar o falecimento desse autor e prestar homenagem à sua a obra e ao seu papel para o movimento negro (Quilombo, 2003, p. 61). Guerreiro Ramos adotaria uma postura diferente, já que nesse mesmo jornal descreve Arthur Ramos como um continuador da obra de Nina Rodrigues e um perpetuador dos estudos estigmatizantes das sobrevivências religiosas ou culturais dos negros, que produzia "uma espécie de indústria turística do pitoresco" (Quilombo, 2003, p. 26).

O jornal Quilombo foi um dos veículos de divulgação das ideias de Guerreiro Ramos. De vida breve (1948-1950), esse jornal aglutinou anseios e projetos de um movimento que tentava se redefinir, principalmente se o compararmos com o jornal A voz da Raça, periódico da Frente Negra. Não é possível fazer uma análise mais pormenorizada sobre as divergências políticas e ideológicas desses dois jornais, mas passada mais de uma década e com o espectro do fim da Segunda Guerra Mundial pode-se dizer que a simpatia pelos ideais fascistas presentes no jornal A voz da Raça não serão retomadas nas páginas do Quilombo. Contudo, não podemos deixar de constatar que, inicialmente, o jornal e o TEN ainda repetiriam ideias e pré-conceitos presentes na literatura científica da época, o que fica retratado no discurso proferido por Abdias Nascimento e reproduzido no jornal (Quilombo, 2003, p. 45). O que nos interessa reter do material contido nesse jornal é a exposição das ideias de Guerreiro Ramos sobre o novo lugar do negro e como seria possível construir uma nova postura a partir de um modelo psicodinâmico. Essa estratégia vai ser formulada através do uso do modelo do psicodrama.

A opção pelo "emprego de métodos da sociologia psico-dinâmica" na tentativa de reverter à situação do negro está presente desde o primeiro número do jornal (Quilombo, 2003, p. 26). Isso parece ter sido favorecido pela origem de caráter eminentemente teatral do TEN. Para Guerreiro Ramos, apoiando-se nas ideias teatrais de Abdias Nascimento, o caminho de transformação sociopsicológico do negro seria favorecido pelo uso do trabalho teatral, já que seria por esse meio a forma de "adestrar os homens de cor nos estilos de comportamento de classe média e superior. Retoma, assim, este negro a significação original do teatro como processo catártico, numa poderosa intuição artística e sociológica". E mais adiante preconiza o TEN "como um 'experimento psico-sociológico'", definindo seu trabalho social como grupoterapia, similar ao modelo já desenvolvido por J. L. Moreno (Nascimento, 2003, p. 53). Curiosamente, alguns historiadores da origem desse movimento no Brasil não citam Guerreiro Ramos como o primeiro difusor dessas ideias no Brasil, preferindo atribuir essa autoria a Pierre Weil (Kladi, 2009; Guimarães, n.d.). Guerreiro Ramos apresentou inicialmente suas ideias em uma aula inaugural, em 19 de janeiro de 1950, intitulada "Seminário de grupoterapia", realizado na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

O TEN publica uma nota em seu jornal que evidencia a importância desse trabalho inaugural, que apresentaria "pela primeira vez no Brasil representações de psico-dramas e socio-dramas" (Quilombo, 2003, p. 64). Guerreiro Ramos, ao que parece, desenvolveu suas ideias ao longo de uma série de apresentações, as quais foram marcadas por exposições teóricas e práticas do psicodrama. Ele define o psicodrama da seguinte maneira: "O psicodrama é, ao mesmo tempo, um método de análise das relações humanas e um processo de terapêutica psicológica. Aliás, ordinariamente é difícil separar o intuito analítico do intuito terapêutico" (p. 76). Para esse autor o psicodrama era um recurso que propiciava a manifestação catártica do problema psicológico do indivíduo e, consequentemente, da reelaboração subjetiva do mesmo. Acreditamos que essas passagens já são suficientes para demonstrar a importância do papel do psicodrama para a transformação subjetiva e social do negro. Não poderemos nos estender nesse texto sobre os desdobramentos possíveis que a utilização do método psicodramático teve para a continuidade das propostas sociológicas de Guerreiro Ramos e do TEN, mas esperamos ter ficado demonstrado que esse autor se valeu dela para construir e propor um novo lugar para o negro na sociedade brasileira. Por isso, vamos fazer agora uma breve análise do seu artigo A patologia social do "branco" brasileiro, pois consideramos que é nesse trabalho que o seu posicionamento crítico toma um contorno mais radical.

O artigo citado tem como objetivo expor "uma contradição entre as ideias e os fatos de nossas relações de raça. No plano ideológico, é dominante ainda a brancura como critério de estética social. No plano dos fatos, é dominante na sociedade brasileira uma camada de origem negra nela distribuída de alto a baixo" (Ramos, 1955, p. 3). O propósito de Guerreiro Ramos é denunciar o evidente preconceito racial em nossa sociedade calcada em uma valorização estética da brancura. Brancura essa que, para Guerreiro Ramos, é ilusória e assentada em um desequilíbrio psicológico (ligado à autoestima) que não é somente individual, mas é fruto de uma patologia social de caráter coletivo (p. 10). O autor considera esse processo patológico como resultante de uma "domesticação psicológica" ocorrida desde as "condições iniciais de formação do nosso país", ou seja, desde o processo de colonização europeia (pp. 6-7). Contrário à ideia de que o problema racial brasileiro seria determinado pela chave sociológica da classe, como grande parte dos cientistas sociais da época defenderam, Guerreiro Ramos opta por colocar o problema e a sua solução na análise e crítica da constituição dessa patologia coletiva. Para ele, o problema racial se deve ao processo de "perturbação psicológica do brasileiro em sua auto-avaliação estética", processo que para ele tem como resultado a seguinte constatação: "o negro é mais negro nas regiões onde os brancos são maioria [Sul e Sudeste] e é mais claro nas regiões onde os brancos são minoria [Norte e Nordeste]" (p. 13). Esse é o fenômeno que provocaria a patologia de que fala o autor, sinalizada pelas aspas colocadas por ele na palavra branco, que consta no título de seu livro, pois para ele "o nosso branco é, do ponto de vista antropológico, um mestiço, sendo entre nós, muito raro ou excepcional, o branco não portador de sangue preto", afirmando ainda que é na Bahia que essa patologia se apresenta mais nitidamente (p. 13). Para ele, esse processo foi sendo constituído no Brasil como uma forma de "disfarce étnico" por uma minoria (do Norte e Nordeste, principalmente) na tentativa de tornar-se mais "branca" e com isso, aproximando-se "do seu arquétipo estético - que é europeu". Finaliza essa conclusão com uma afirmação que demonstra claramente com qual tese e autores entra em conflito:

Eis porque a literatura sociológica e antropológica sobre o negro tem encontrado seus cultores, principalmente entre intelectuais dos Estados do Norte e do Nordeste.

Silvio Romero, Nina Rodrigues, Artur Ramos, Gilberto Freire, Thales de Azevedo, René Ribeiro, são "brancarrões" daqueles Estados em que exibem os caracteres psicológicos daquela camada desajustada ao seu meio, caracteres que ilustram o que podemos chamar o protesto racial de uma minoria interiormente inferiorizada (p. 15).

As palavras de Guerreiro Ramos evidenciam a mudança que estava se constituindo, nesse momento, em torno da questão racial no Brasil. Acreditamos que isso ficará mais evidente no debate apresentado por nossa próxima personagem, Virgínia Leone Bicudo.

 

Uma análise do impacto da "consciência de cor": o estudo de Virgínia Leone Bicudo

A vida e a obra de Virgínia Leone Bicudo até recentemente era pouco conhecida ou estudada pelo campo historiográfico da psicologia. Mesmo sendo uma das pioneiras no estudo dos fatores psicológicos do preconceito racial na sociedade brasileira, seus estudos atraíram mais o interesse do campo das ciências sociais que o da psicologia. Não parece ser por acaso que a sua dissertação, tornada livro, foi organizada e publicada na série "História das Ciências Sociais Brasileiras", da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). A dissertação Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, originalmente publicado em 1945, foi recentemente relançada em 2010 com o título Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (Bicudo, 2010). Nossa discussão será baseada nessa última publicação. O que nos interessa apresentar aqui é a análise que a autora faz do processo de construção subjetivo, por qual passa uma parcela da população negra, a partir da análise de material colido através do estudo do jornal A voz da Raça e dos membros e da documentação da Frente Negra - fato hoje conhecido (Cf. Bicudo, 2010: 19). Como sinalizamos anteriormente, esse movimento negro e o seu jornal foram de fundamental importância para a constituição do que Miriam Ferrara define como o período no qual as reivindicações dos direitos dos negros são formuladas de maneira mais direta e objetiva, ou seja, "marcado pelo discurso da combatividade" (Ferrara, 1985, p. 201; Domingues, 2008, p. 28). Mas antes de analisar a obra de Bicudo, faremos uma descrição de sua vida.

Virgínia Leone Bicudo nasceu em São Paulo, em 21 de novembro de 1910. Seu pai, Theophilo Julio, que posteriormente adotaria o sobrenome de seu padrinho e empregador, Bento Augusto de Almeida Bicudo, era filho de escrava alforriada. Já a sua mãe, Giovanna Leone3, era filha de imigrantes italianos, que foram trabalhar na fazenda Mato de Dentro do Jaguari (Teperman, & Knopf, 2011, p. 65). Os dois se conheceram nessa fazenda e, depois de casados, se mudaram para São Paulo, fixando-se em um bairro operário dessa cidade, a Luz. Iniciou o curso de educadora sanitária em 1931, finalizando seus estudos um ano depois. Isso permitiu que ela ministrasse aulas de higiene em escolas paulistas. Nessa mesma década, em 1936, inicia seu curso superior em ciências sociais na Escola Livre de Sociologia e Política da USP (FESPSP). Outro aluno desse curso e que teve grande impacto na vida de Virgínia Bicudo foi o médico e psicanalista Durval Marcondes (1899-1981), considerado o fundador do movimento e da prática psicanalítica no Brasil já na década de 1920 e importante difusor das teorias de Freud. A partir desse contato, o interesse de Bicudo pela psicanálise passa a ser cada vez maior, determinando inclusive a análise que ela fez do material coligido na pesquisa com a FNB, aspecto que nos deteremos mais adiante. Ela foi integrante do que ficou conhecido como Grupo Psicanalítico de São Paulo, criado em finais da década de 1930 e que, em 1944, seria reconhecido oficialmente pela International Psychoanalytical Association (IPA). Esse grupo mais tarde mudaria seu nome para Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Na década de 1950, mais precisamente em setembro de 1955, ela viaja para Londres para aprimorar sua formação psicanalítica, travando contato com os principais expoentes da psicanálise inglesa (Balint, Bion, Winnicott, Jones, Klein, entre outros). Retorna ao Brasil, em 1959, e dá continuidade a sua carreira clínica até o ano de 2000. Vem a falecer em 2003, com 93 anos de idade (Teperman & Knopf, 2011; Maio, 2010; Massi, 2001). Passemos à análise das ideias dessa autora.

A pesquisa realizada por Bicudo, como parte do projeto financiado pela Unesco, tomou como fonte a FNB. Como a própria autora afirma, o que orientou a sua análise e permitiu a formulação de suas conclusões foram os dados coletados em entrevistas individuais, do jornal A Voz da Raça e da documentação institucional da FNB. Com base no material acumulado, ela tinha a intenção de depreender "os motivos individuais e coletivos e os objetivos da associação, assim como os obstáculos surgidos no seio dos agremiados ou os provenientes do exterior" (Bicudo, 2010, p. 124). Uma das conclusões que ela formula é sobre a orientação programática da FNB. Segundo ela, a FNB e o plano de luta desse movimento eram dirigidos "[...] não diretamente contra o branco, mas contra o negro antagonista do próprio negro. Os dirigentes do movimento, considerando a ignorância e o sentimento de inferioridade como geradores do antagonismo entre os negros, passaram a empenhar-se em enaltecer a raça, em promover a educação e desenvolver a instrução" (p. 125).

Seguindo a análise de seus dados, utilizando os dados de suas entrevistas, a autora considera que a FNB buscava "despertar a consciência de grupo" dos negros e mulatos. Ela ainda afirma que as relações entre brancos e negros/mulatos estava "baseada no recalcamento de hostilidades entre eles, recalcamento revelado nas atitudes de submissão do preto, dado seu temor às reações do grupo dominante" (p. 155). Como já mencionado, o trabalho de Bicudo foi influenciado pelo conhecimento que já tinha da psicanálise - o que pode ser visto pelo uso do termo recalcamento na citação acima. Sua análise psicológica do problema racial vivenciado pelos membros da FNB orienta-se pelo conceito-chave por ela definido pelo termo "consciência de cor", termo este que denotaria qual o grau de conscientização que o indivíduo teria sobre a sua condição de subalternidade ou de protagonismo/ação diante de um quadro evidente de preconceito racial em nossa sociedade.

Para Bicudo, o nível de "consciência de cor" era diferente entre os estratos sociais investigados, que a autora define pelos termos "classe social inferior" (classe pobre negra e mulata) e classe social intermediária (classe média negra e mulata). Essa "consciência de cor" geraria "mecanismos psicológicos" que permitiam ao negro/mulato lidar melhor (isolamento) ou pior (conformismo) com as situações sociais ligadas ao problema do preconceito racial (p. 155). Resumindo as hipóteses contidas no trabalho de Bicudo, poderíamos apontar as seguintes questões: que os negros/mulatos têm uma concepção negativa de si próprios, fruto de uma identificação inconsciente com as pessoas do grupo dominante (branco); que mesmo a ascensão social dos negros/mulatos não elimina totalmente a distância social provocada pela "linha de cor"; que a inserção social do mulato é favorecida por "símbolos de valor positivo [ou seja, a aparência estética 'branca']"; que a "integração do mulato no grupo dominante" leva a conclusão que a discriminação racial brasileira está "baseada na cor" - hipótese idêntica ao de seu colega Oracy Nogueira e divergente da conclusão defendida por Florestan Fernandes.

 

Conclusões

O objetivo desse trabalho era demonstrar a mudança ocorrida no campo de debate sobre a questão racial brasileiro no período compreendido entre as décadas de 1930-1950. As instituições, eventos e atores, aqui brevemente retratados, serviram como uma forma de retratar e retraçar as ideias, contradições e lutas que constituíram o campo das relações raciais no Brasil da época. E é nesse sentido que os trabalhos de Arthur Ramos, Alberto Guerreiro Ramos e Virgínia Leone Bicudo foram fundamentais nessa reconstrução, ao funcionarem como ferramentas de análise que possibilitam certa problematização histórica.

O nosso propósito ao mencionar certos eventos - como os primeiros Congressos sobre o negro (1934; 1937); a criação da Frente Negra (1931) e a publicação do jornal A voz da Raça (1933); a atuação social do TEM (1944), o jornal Quilombo (1948), a Conferência Nacional do Negro (1949) e o I Congresso Negro (1950); as pesquisas realizadas pelo "projeto Unesco" (1950) -, foi com o intuito de exemplificar como o período abrangido por esse texto foi de intensa atividade, no que diz respeito sobre a organização e mobilização do movimento negro. Tentamos ainda demonstrar como um discurso de cunho psicológico esteve presente na formulação das respostas apresentadas por três importantes personagens da história que gira em torno da questão racial no Brasil.

Esperamos que a discussão e os atores, aqui apresentados, possam gerar a ampliação do debate sobre o papel social da psicologia na construção de alternativas para a formação de uma sociedade mais comprometida com as mudanças sociais que minimizem ou eliminem formas que só sustentam e perpetuam práticas de manutenção de desigualdade racial na sociedade brasileira.

 

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Endereço para correspondência:
Hildeberto Vieira Martins
hvmartins@id.uff.br

Submetido em: 06/10/2020
Revisto em: 03/11/2020
Aceito em: 03/11/2020

 

 

1 O subtítulo acima citado desaparece na reedição desse livro, como aponta Guilherme Gutman (Ramos, 2007a: 729).
2 As primeiras escolas médico-cirúrgicas surgem com a chegada da família real portuguesa, já em 1808. Mas a sua consolidação demorará praticamente todo o século XIX, já que alguns consideram a década de 1870 como o momento de surgimento de uma produção verdadeiramente acadêmica e/ou científica no Brasil (Cf. Schwarcz, 1993, pp. 196-198).
3 No texto de Marcos Chor Maio o nome que é citado para a mãe de Virgínia Bicudo é Joana Leone (Maio, 2010: 25).

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