SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.72 special issueLavender scent: Neusa Souza, Virginia and racism in psychologyTrauma, coloniality, and Frantz Fanon's sociogenesis: studying subjectivities at the crossroads author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro  2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.66-79 

ARTIGOS

 

Virgínia Leone Bicudo: contribuições aos estudos sobre relações raciais

 

Virgínia Leone Bicudo: contributions to studies on race relations

 

Virgínia Leone Bicudo: contribuciones a los estudios sobre las relaciones raciales

 

 

Karine Oliveira BarbosaI; Arthur Arruda Leal FerreiraII

IPsicóloga. Instituto de Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
IIDocente. Instituto de Psicologia. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Virgínia Leone Bicudo, mulher negra paulistana nascida nos anos de 1910, foi uma personagem muito atuante no campo da educação sanitária, ciências sociais e psicanálise. Sua dissertação de mestrado, defendida na década de 1940 sob o título "Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo", foi o primeiro trabalho sobre o tema das relações raciais defendido em uma universidade brasileira. Sua pesquisa teve caráter inovador, visto que mostrou haver preconceito de cor independente do preconceito de classe, contrário ao que se acreditava à época. O presente trabalho resgata os achados e conclusões do estudo de Virgínia, utilizando para isso a técnica de Análise de Núcleos de Sentido a fim de trazer as falas dos entrevistados que foram mais representativas das conclusões apontadas pela autora. Objetivamos com isso contribuir com futuras retomadas sobre os achados de Virgínia que demostram enorme atualidade, apesar de passados mais de 70 anos.

Palavras-chave: Virgínia Leone Bicudo; Relações raciais; História da psicologia.


ABSTRACT

Virgínia Leone Bicudo, a black woman from São Paulo born in 1910, was a very active character in the field of health education, social sciences and psychoanalysis. Her master's dissertation, defended in the 1940s under the title 'Study of Racial Attitudes of Blacks and Mulattoes in São Paulo', was the first work about race relations defended at a Brazilian university. Her research had an innovative character, since it showed that there is color prejudice independent of class prejudice, contrary to what was believed at the time. The present work rescues the findings and conclusions of the study of Virgínia, using for this the technique of Analysis of Nuclei of Sense in order to bring the speeches of the interviewees that were more representative of the conclusions pointed out by the author. With this, we aim to contribute to future resumes on the findings of Virgínia, which show enormous relevance despite having passed more than 70 years.

Keywords: Virginia Leone Bicudo; Race relations; History of psychology.


RESUMEN

Virgínia Leone Bicudo, negra paulista nacida en 1910, fue un personaje muy activo en el campo de la educación para la salud, las ciencias sociales y el psicoanálisis. Su tesis de maestría, defendida en la década de 1940 con el título 'Estudio de las actitudes raciales de negros y mulatos en São Paulo', fue el primer trabajo sobre el tema de las relaciones raciales defendido en una universidad brasileña. Su investigación tuvo un carácter innovador, ya que mostró que hay prejuicio de color independiente del prejuicio de clase, contrario a lo que se creía en ese momento. El presente trabajo rescata los hallazgos y conclusiones del estudio de Virginia, utilizando para ello la técnica de Análisis de Núcleos de Sentido con el fin de acercar los discursos de los entrevistados más representativos de las conclusiones señaladas por el autor. Con esto, pretendemos contribuir a futuros currículums sobre los hallazgos de Virginia, que muestran enorme relevancia a pesar de más de 70 años después.

Palavras-chave: Virgínia Leone Bicudo; Relaciones raciales; Historia de la psicología.


 

 

Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo

Em 1945, Virgínia Bicudo1 termina seu mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP) e defende sua dissertação intitulada "Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo", sob orientação de Donald Pierson. Ao contrário, porém, dos demais trabalhos produzidos no âmbito da ELSP, Virgínia vai buscar as vivências, atitudes e opiniões de negros e mulatos2, não de brancos, sobre como se dão as relações raciais na capital paulista. De acordo com Gomes (2013, pp. 94-95): "pela primeira vez temos um trabalho acadêmico realizado por uma acadêmica negra onde os negros surgem não como objeto, mas como sujeitos com opinião".

Em sua pesquisa, desenvolvida entre os anos de 1941 e 1944, Virgínia investigou as atitudes raciais de pretos e mulatos por meio do estudo de caso e da entrevista com 31 homens e mulheres pertencentes às classes baixa e intermediária, além da entrevista com um dos dirigentes de uma associação de "homens de cor", a Frente Negra Brasileira (FNB), e análise das publicações feitas no jornal mensal mantido por esta organização.3

Das pessoas entrevistadas, 11 foram localizadas por meio da Clínica de Orientação Infantil da Seção de Higiene Mental Escolar, onde Virgínia trabalhava, pois eram pais de alunos de diferentes grupos escolares, todos pertencentes à classe baixa, com exceção de um único caso. Para conseguir as entrevistas, foi dito a esses pais que o objetivo da visita era conhecer as condições afetivas do ambiente em que a criança estava inserida para, então, conceder orientações sobre a educação dos filhos. Já os demais participantes, negros e mulatos pertencentes à classe social intermediária, foram procurados por meio de apresentações e informados do objetivo da pesquisa.

Os participantes foram organizados, de acordo com uma classificação racial, em "pretos", sendo aqueles com pele escura e cabelos crespos e pais com essas mesmas características, e "mulatos", indivíduos de cor parda com ambos os genitores também pardos ou um genitor preto ou pardo e o outro branco. Assim como de acordo com uma classificação social, em classe social inferior ou intermediária, baseado na condição financeira, profissão exercida e nível de escolaridade dos indivíduos. Dessa forma, quatro categorias de análise foram formadas: pretos da classe social inferior; pretos da classe social intermediária; mulatos da classe social inferior e mulatos da classe social intermediária.

A categoria "pretos da classe social inferior" engloba os casos de n.º 1 ao n.º 7, dentre os quais seis são mulheres, sendo cinco delas analfabetas, a maioria empregada doméstica, e um homem, que é alfabetizado e trabalha como operário. Os indivíduos têm entre 28 e 46 anos. A categoria "pretos da classe social intermediária", inclui os casos n.º 8 ao n.º 13, todos homens, entre 30 e 50 anos. São profissionais liberais, intelectuais ou funcionários públicos, possuindo curso primário ou secundário. Já a categoria "mulatos da classe social inferior" abrange os casos n.º 14 ao n.º 21, sendo sete mulheres e um homem, com idades variando entre 18 e 60 anos, a maior parte é alfabetizada, trabalhando como cozinheira, empregada doméstica, operária ou açougueiro. Por fim, a categoria "mulatos da classe social intermediária", compreende os casos n.º 22 ao n.º 31 e é composta por quatro mulheres e seis homens, de 20 a 35 anos. A maioria possui o curso secundário e é funcionário(a) público(a).

Com a análise do material colhido por meio das entrevistas, Virgínia constatou que negros e mulatos consideram o branco como um ideal a ser atingido, fazendo com que se esforcem para adquirir características do grupo dominante por meio, por exemplo, da ascensão profissional, do casamento com brancos ou melhorando sua aparência, o que significa dizer, amenizar seus traços negroides. Além disso, essa forte identificação com o grupo dominante e consequente introjeção dos ideais dos brancos, fez com que negros e mulatos enxergassem a si mesmos e a seu próprio grupo da forma como os brancos os veem, o que fez com que perdessem a força para "reagir contra o branco. Suas energias são empenhadas no esforço de eliminar os motivos do conceito de inferioridade, a fim de conquistar a consideração do branco" (Bicudo, 2010, p. 97).

A partir desse ponto central, que é a identificação de negros e mulatos com o grupo dominante, outras questões foram se descortinando nos discursos dos entrevistados. Virgínia organiza as transcrições quase integrais das entrevistas por casos (do n.º 1 ao n.º 31), aqui propomos uma organização por conteúdo. Para isso, utilizaremos a análise de núcleos de sentido (ANS), técnica adaptada por Mendes (2007) a partir da análise de conteúdo categorial desenvolvida por Laurence Bardin em 1977, que consiste na divisão do texto, proveniente de uma comunicação oral ou escrita, em núcleos de sentido formados por meio do reconhecimento dos temas psicológicos mais relevantes do discurso, com a finalidade de integrar o conteúdo manifesto e latente do texto. A cada núcleo é atribuído um título, que pode ser um trecho da fala do sujeito, uma breve definição e, em seguida, são apresentadas as verbalizações, que consistem em fragmentos do discurso do sujeito que se encaixam no conteúdo abordado naquele núcleo. Aqui, organizamos as falas da tese de Bicudo (2010) em seis núcleos de sentido, que serão apresentados a seguir:

1. Núcleo de sentido "Aqueles negros da rua Direita deveriam fazer como você: estudar é viver no meio da gente"

A branquitude é tida como sinônimo de uma vida mais prestigiosa e sem dificuldades econômicas. Negros e mulatos demonstram ver na educação e na instrução, apesar da sabida dificuldade para conseguir uma colocação à altura de suas capacidades, um meio de ascender socialmente, provar-se capaz e, enfim, pertencer às classes mais altas e ser aceito pelo branco. Nesse caso, o mulato parece estar em situação de vantagem com relação ao preto por ter maior semelhança física com o grupo dominante, dada a pele mais clara e traços mais finos.

Disse-me alguém: "Aqueles negros da rua Direita deveriam fazer como você: estudar é viver no meio da gente" [...] Acho que a condição do negro só poderá melhorar pela divulgação da instrução entre eles (n.º 8 - homem preto, classe social intermediária, p. 75).

Fui para lá [escola livre de odontologia], fiz o curso com grande esforço de aplicação, para revidar perseguições, má vontade das moças, do gerente. Para mostrar aos amigos que não era o que pensavam; eu era mais capaz. [...] Minhas ideias são as de auxiliar as raças oprimidas tidas como inferiores, que o são socialmente. O fundamental seria tomar essas raças e trazê-las ao nível superior, colocando-as em condição que tivessem ascensão social; estaria resolvida a questão, embora exista muita dificuldade para que subam. Os brancos me contestam, dizendo que este problema não existe. Negam, porque não têm conhecimento do problema. Também há negros que acham que o problema não existe. A maioria dos brancos que compreende o problema sente-o como situação social e não racial. Como elemento da raça, acho que para o negro há dois problemas: o racial e o social. Mas o que mais massacra o negro é o social (n.º 9 - homem preto, classe social intermediária, pp. 86 e 92).

Toda a minha força para fazer um curso superior vem em conseqüência da patroa de minha mãe ter alegado a minha cor como obstáculo para cursar uma escola superior. Ela alegava que ninguém procuraria um médico ou um advogado da minha cor. [...] Há anos, fundei uma sociedade de pretos, com o fim de melhorar a situação do preto, dando-lhe instrução. Este meu intento não pôde ir adiante, por encontrar obstáculos no próprio negro. O negro não suporta ver outro negro em situação social melhor do que a sua; mas, independentemente de minha vontade, eu não poderia ceder-lhe o meu lugar melhor que exigia meu grau superior (n.º 26 - homem mulato, classe social intermediária, p. 114).

Acho que os pretos estão em situação muito inferior no sentido de educação e instrução. Tão inferior que nem procuram reagir, mas descem cada vez mais, entregando-se ao álcool e aos bailes. Para o mulato há duas situações: uma parte dos mulatos se integra no meio negro e a outra no meio de brancos, procurando valorizar-se dado o preconceito do branco (n.º 28 - mulher mulata, classe social intermediária, p. 118).

A instrução seria o meio de eliminar a hostilidade e a inveja existente entre as pessoas de cor e de aproximá-las mais ao branco. Mas o negro não tem estímulo para estudar, porque sabe que, depois de formado, não terá a oportunidade de ser aproveitado. Deste modo, tem que conformar com as ocupações de baixas categorias (n.º 30 - homem mulato, classe social intermediária, p. 119).

2. Núcleo de sentido "O negro não quer ser negro"

3. Enxergar-se pelos olhos dos brancos faz com que negros e mulatos tenham desprezo por si mesmos e pelos seus pares, ferindo sua autoestima e gerando um sentimento de inferioridade, que leva ao antagonismo, pouca solidariedade e maior distância social entre o grupo. Os pretos da classe baixa relatam se sentirem mais desprezados por negros e mulatos que estão em melhores condições econômicas do que pelo branco, o que leva à acentuada hostilidade em relação aos pares e simpatia para com o branco. Já os negros da classe intermediária demonstram pouca identificação com os pretos pobres e lutam mais contra seu próprio sentimento de inferioridade do que contra a discriminação sofrida pelo branco. Os mulatos não querem ser vistos na companhia de pretos ou mulatos para não serem rejeitados pelo grupo dominante. Alguns renegam a própria cor, identificando-se como brancos. Muitos entrevistados tiveram convívio íntimo com o branco por terem sido criados por uma família branca ou por terem trabalhado para ela, o que facilitou o processo de identificação com o grupo dominante e a construção de um autoideal branco.

Fui criada por branco. Minha madrinha dizia sempre: "Por que os pretos não se unem, para conseguir vida melhor?" Hoje vejo que a raça de cor não tem união, porque cada um quer ser mais que o outro (n.º 1 - mulher preta, classe social inferior, p. 68).

Quase não tenho relações com gente de cor, porque são pessoas invejosas, desejam ver-nos sempre mal economicamente ou lutando com doenças; então ficam satisfeitos. Dou-me melhor com os vizinhos brancos (n.º 4 - mulher preta, classe social inferior, p. 69).

Ter um filho mulato, mais claro que nós, os pais, não me dá nenhuma satisfação, orgulho ou vaidade; ao contrário, gostaria que ele fosse mais escuro. Quando o menino nasceu, era tão claro que desconfiaram, mas o pai de meu marido era branco (n.º 5 - mulher preta, classe social inferior, p. 70).

Os pretos pouco se visitam. Há preconceitos entre o próprio preto. Muitos não querem demonstrar a sua origem e por isso não se reúnem. O negro não quer ser negro. [...] Os pretos sem educação não gostam de mim: dizem que vivo fazendo graça para o branco, colocando o negro em ridículo. Uma sociedade recreativa de pretos me vedou a entrada (n.º 8 - homem preto, classe social intermediária, p. 77).

Durante a pregação, eu dormia. Mas lá me impressionava muito um santo com uma espada, pisando na cabeça de um satanás negro. [...]. O satanás negro prendia o meu olhar. Aos 7 anos, mais ou menos, ganhei um livro, onde uma figura representava os anjos bons e maus. Havia me despertado a atenção o fato de os anjos escurecerem à medida que se tornavam maus. Com tristeza, eu identifiquei a cor preta ao mal (n.º 9 - homem preto, classe social intermediária, pp. 79-80).

Não tenho fé nos pretos: sou contra os pretos. O preto é uma raça miserável de gente ignorante. Evito a companhia deles. Tenho prevenção com o mulato. Considero o branco pela seleção que ele faz em festas, não permitindo a entrada de preto (n.º 10 - homem preto, classe social intermediária, p. 94).

O preto é uma raça completamente inferior: não vale nada. Evito trabalhar com subordinados pretos, e, por outro lado, quero colocar o branco sob minha autoridade, submetê-lo no trabalho. Fui criado por brancos e me senti espezinhado. [...] Só possuo relações sociais com brancos. As sociedades de brancos nos vedam participar como sócios. O preto deve viver separado do branco (n.º 11 - homem preto, classe social intermediária, p. 95).

Não existe preconceito do branco contra o preto, pois é o próprio preto que faz surgir situações de desprezo para ele, devido a suas atitudes inferiores (n.º 12 - homem preto, classe social intermediária, p. 95).

O preto, por sua vez, não quer ser negro. Os animais parecem mais inteligentes: um cavalo preto ou branco é sempre um cavalo, mas um homem preto é um negro (n.º 13 - homem preto, classe social intermediária, p. 96).

Ela é orgulhosa, xinga-me de negra, diz que não é minha irmã. Meu pai era pardo, o dela era português, por isso ela despreza. Ela quer casar-se com branco e só namora brancos. Xinga de negros aos irmãos. Não gosta de andar conosco na rua (n.º 14 - mulher mulata, classe social inferior, p. 104).

Muita gente pensa que, por ser de cor, a pessoa é relaxada. Gosto de gente que se arruma bem. Há pessoas que nos desprezam por a gente ser de cor, e têm razão: os de cor são relaxados (n.º 15 - mulher mulata, classe social inferior, p. 105).

A cor motiva grande complexo de inferioridade: a gente se sente inferior ao branco, feia, diferente, e muitas vezes tem vergonha de si mesma. Conseqüentemente, manifesta-se o retraimento, um sentimento de humildade, levando a pessoa a evitar aparecer. Pelo desprezo, os brancos nos colocam nessa situação. [...] Convenci-me de que não sou preta, apenas descendo de preto pelo lado paterno. [...] Evito a companhia de preto e do mulato, por ser um deles, por vergonha. Ninguém quer a companhia deles, a gente também fica acanhada de andar com eles (n.º 23 - mulher mulata, classe social intermediária, pp. 110-111).

O mulato é mais competente e está em melhor situação na vida. Há preconceito entre o mulato e o preto. O mulato fica aborrecido quando em seu baile começa a aparecer muito preto. Os pretos sentem complexo de inferioridade pelo qual justificam seus fracassos: sou preto (n.º 25 - homem mulato, classe social intermediária, pp. 113-114).

O preconceito dirigido ao mestiço obedece a leis de acordo com o predomínio de raça em sua personalidade e traços físicos. Um negro não gosta de ver outro bem. Já um negro em situação melhor faz-lhe campanha contra: "Um elemento de minha cor por cima quer dizer que eu sou inferior" (n.º 26 - homem mulato, classe social intermediária, p. 115).

Sinto grande desgosto por não ter cabelo bom. Não sei porque tenho cabelo feio. Todos em minha família são bonitos e têm cabelo bom (n.º 29 - homem mulato, classe social intermediária, pp. 118-119).

3) Núcleo de sentido "sou doente e sei, portanto, onde me dói"

Aqui, os entrevistados narram algumas situações de discriminação, que atingem a todos, negros e mulatos de classe inferior ou intermediária. As narrativas são contundentes e ainda que reflitam de forma muito aguda as relações raciais da primeira metade do século XX, elas nos transmitem uma estranha familiaridade com o presente. Passemos às falas:

O branco faz pouco caso do preto, por causa da cor. Quando me mudei do Interior para São Paulo [há 10 anos], sofri muito, porque na rua me xingavam de negra ou mexiam comigo. [...] Nas lojas da cidade, quando a gente entra para comprar alguma coisa, só é atendida depois de muito esperar (n.º 7 - mulher preta, classe social inferior, p. 71).

Acham feio aquele desfile de negros no centro, que constitui a única manifestação da presença do negro em São Paulo. Alegam o prejuízo para o comércio. [...] Quando o gerente soube que o almoço seria oferecido a um preto, embora me conhecesse, recusou aceitar a encomenda. Foi necessário que se realizasse o almoço em outro local. [...] Existe preconceito de cor e de classe - sou doente e sei, portanto, onde me dói. [...] O preto sobe na carreira ocupacional dando o triplo. Se para o branco for necessário saber A, o preto deverá saber A, B e C. [...] Mais tarde, ao ingressar na profissão que atualmente exerço, fui submetido a um exame. Entretanto, notei que somente de mim exigiram conhecimentos além do estipulado para os outros. Depois de comprovar que tinha conhecimento além do esperado, fui aceito no emprego (n.º 8 - homem preto, classe social intermediária, pp. 75-77).

Até essa época, não me tinha como negro. Não me tinha despertado a atenção que pudesse existir diferença ou que quisessem me diminuir. Comecei a pensar: "Sou empregado do banco; outros também são e com igual categoria, e só a mim manda levar sapatos para consertar". Começou a luta interior. Queria chegar a uma conclusão, compreensão. Nunca ninguém tinha me dito ser negro, se bem que inconscientemente sempre me retraísse em tomar parte nisto ou naquilo; quer me ter como empregadinho particular (n.º 9 - homem preto, classe social intermediária, p. 85).

Há preconceito de cor que se manifesta em todas as atitudes das pessoas em geral: uns demonstram o preconceito com benevolência exagerada e outros com muito desprezo. Naturalidade ou igualdade no trato do branco para as pessoas de cor não há. [...] Em consequência do preconceito do branco, o negro se torna com complexo que o prejudica, porque, se ele tiver iniciativas, ele realizará apenas a metade do que seria capaz, dada a inibição pelo complexo de inferioridade (n.º 24 - mulher mulata, classe social intermediária, pp. 111-112).

Nasci sem consciência de cor, isto é, não sabia que fosse considerado diferente: creio que por viver onde não havia pretos. A primeira vez que tive um choque foi aos 7 anos, quando entrei para o grupo escolar. Briguei no primeiro dia de aula: um menino me chamou de negrinho. [...] Depois dos 15 anos, percebi que havia má vontade da parte de certos professores devido à minha cor: embora eu estudasse, não me davam notas para a promoção. Assim, perdi quatro anos e me desencorajei de seguir o curso superior. Hoje, sei que aquelas reprovações tiveram força preponderante em meu destino (n.º 25 - homem mulato, classe social intermediária, pp. 112-113)4.

O preconceito consiste em não querer que o indivíduo de cor apareça. O branco assim age em defesa própria. [...] Ao povo parece causar vergonha o preto ter ação na vida social do País. [...] Depois de desorganizada a hierarquia negra, a abolição vinha abandoná-los na rua. Muitos não saíram da fazenda, por não terem para onde ir. A abolição resultou em independência de indivíduos e não de blocos de indivíduos. Portanto, após a abolição, não podia haver uma igualdade entre pretos e brancos, e nem mesmo agora. O elemento branco com o mando nas mãos é quem predomina (n.º 26 - homem mulato, classe social intermediária, pp. 115-116).

O problema racial é muito sério, principalmente no nível social em que estou; é pior que num nível mais baixo. Quanto mais inteligente, mais se sente e mais se sofre. A gente vive sempre espezinhada pelos outros (n.º 27 - homem mulato, classe social intermediária, p. 116).

4. Núcleo de sentido "Não reagi para evitar conflitos inúteis"

Neste aspecto, os indivíduos lançam mão de estratégias para lidar com, ou até mesmo evitar, as situações de rejeição pelo branco ou pelo próprio grupo. A estratégia mais utilizada pelas classes intermediárias é o isolamento, isolam-se do próprio grupo por vergonha de suas origens e isolam-se de certas situações sociais, pois sabem que seriam discriminados pelo branco. Alguns negros da classe baixa também se valem dessa estratégia se isolando, por exemplo, de seus vizinhos para evitar demonstrações de hostilidade. Muitos também não reagem contra o branco porque dele dependem financeiramente ou não interpretam as situações vividas como discriminação. Há também aqueles que acreditam que reagir é iniciar um conflito inútil e, por isso, toleram e atenuam qualquer manifestação de discriminação por parte do branco, até mesmo para evitar rejeições ainda maiores. Tornam-se subservientes, tentam ser úteis ao branco ou procuram exibir sua capacidade intelectual para ganhar respeito. Seu sentimento de inferioridade diminui sua hostilidade e sua vontade de reagir contra o branco. Além disso, muitos entrevistados conseguiram ascender socialmente por conta do investimento feito pela família (branca) que os criou, assim como também pela sua influência, o que fez com que nutrissem simpatia e gratidão pelo branco.

São comuns as reações agressivas por ofensa. Tenho modo de pensar diferente do preto, em geral, que acha que é necessário reagir contra o branco. O meu argumento é o seguinte: você é o motorista de tal família e sua mulher é emprega doméstica; você reage e, depois, como sustentar seus filhos? [...] Não reagi para evitar conflitos inúteis. [...] Consequentemente, resulta ódio, raiva e ressentimento da parte do negro. Eu perdoo, mas o negro sem educação briga (n.º 8 - homem preto, classe social intermediária, pp. 75-77).

Durante os seis primeiros meses de casada, residi com meus sogros [brancos], onde fui feliz, não havendo animosidade como existia entre minha sogra e a outra nora branca. Eu agradava minha sogra no trabalho: nunca tive preguiça e tirava o trabalho das mãos dela, poupando-a (n.º 17 - mulher mulata, classe social inferior, p. 106).

Trabalhei 12 anos e a patroa guarda-me o dinheiro, ela morrendo, eu não quis cobrar meus irmãos de criação, para evitar desarmonia (n.º 20 - mulher mulata, classe social inferior, p. 108).

Não tenho experiências pessoais desagradáveis, porque fugi muito do negro, e, como mulata, procurei me assemelhar ao branco (n.º 24 - mulher mulata, classe social intermediária, p. 112).

Fiz esforço para integrar-me na classe média. Antes, meus amigos eram mulatos. Então, desagradava-me ouvir 'você e fulano são inseparáveis'; ressaltavam aquilo que me unia, que havia de comum entre eu e os amigos: a cor. Comentários desta natureza me levaram a evitar a companhia de mulatos. Hoje, meus amigos são brancos (n.º 25 - homem mulato, classe social intermediária, p. 113).

Vejo-me sempre empenhado em demonstrar valor próprio, que sou inteligente e em conquistar a amizade, para eliminar contra mim conceitos como o de que "negro, quando não suja na entrada, suja na saída". [...] Em minha personalidade, o preconceito influi no sentido de desenvolver meios para captar confiança e amizade, desenvolvendo conversação em nível mais elevado do que a mentalidade do amigo: introduzindo-o em lugares que ele desconheça por acanhado (por exemplo, num cabaré fino).; demonstrando-lhe que frequento bons lugares; ou apresentando-o a bons amigos para proveito de interesse dele (n.º 27 - homem mulato, classe social intermediária, pp. 116-117).

Estou ajustado, não sinto problemas. Fui preterido em acesso a cargos por ser mulato. Atualmente, estou satisfeito com uma promoção. Não tenho ambições de raça. Acho que o preto é uma raça sem futuro e evito andar em companhia dele (n.º 31 - homem mulato, classe social intermediária, p. 119).

5. Núcleo de sentido "Não seria capaz de amar um preto ou um mulato"

Aqui, a cor da pele está sempre sendo levada em consideração nos arranjos matrimoniais de negros e mulatos de ambas as classes sociais, no intuito de não haver rejeição e conflitos dentro da própria família. Negros e negras procuram casar-se com pessoas de sua cor para valorizar seu grupo ou também como tentativa de evitar rejeições por um marido/esposa de pele mais clara. Mulatas(os) tendem a rejeitar os negros ou mulatos(as) com traços negroides muito marcados ou escolhem alguém de pele mais escura para não serem discriminados, mas o mais comum é a procura pelo casamento com o branco, para ter maior prestígio e "branquear" a família. Porém, quando namoram/casam com os brancos, demonstram-se inseguros e submissos.

Os pretos não se casam, ajuntam, porque são criados largados. [...] Não gosto de ver preto casar com branco, é fazer pouco caso do preto (n.º 2 - mulher preta, classe social inferior, p. 69).

Será que a família que a criou não quer que ela se case comigo para não perder uma empregada fiel? Será que lhe incutiram para não se casar com negro? Não procurei saber. [...] Passeava com a atual namorada [mulata]. Os pais, porém, se opuseram. Mas se assentou em minha mente que era devido ao preconceito de cor. Ela me queria muito. Nunca conversei com os pais. Ela e os vizinhos contavam que ela apanhava por minha causa. Duas vezes em que passei pela casa dela, a mãe me xingou de negro feiticeiro, e me atiraram pedra (n.º 9 - homem preto, classe social intermediária, pp. 85-86).

Acho que o mulato deve evoluir, casando-se sempre com branco, para extinguir a raça (n.º 10 - homem preto, classe social intermediária, p. 94).

Penso em me casar aos 22 anos e com "patrício", para que não falem de mim por não ter procurado "patrício', para me casar. Já ouvi branco falar de minha irmã quando acompanhada por um namorado branco: "bandeira paulista", disseram. Fico nervosa ouvindo tais coisas, e então prefiro casar-me com um preto (n.º 14 - mulher mulata, classe social inferior, p. 104).

Casei-me com um preto para jamais ser chamada de "negra" pelo marido, ao passo que uma mulher mais clara do que o marido nunca o chamará de "negro" (n.º 16 - mulher mulata, classe social inferior, p. 105).

Minha mãe dizia sempre às filhas que se casassem com homens brancos. Este conselho decorria da própria experiência, por ter tido um casamento feliz, e pela observação da irmã, que, casada com um preto, muito sofreu (n.º 17 - mulher mulata, classe social inferior, p. 106).

Meus netos são lindos, têm olhos azuis e cabelos amarelos. As pessoas não valem pela cor, mas há pessoas que na rua desconhecem um negro; isso está errado. Esta neta [menina de 12 anos, parda] é feia, puxou as avós. Sempre lhe digo que ela não é filha legítima, mas foi dada e, apesar de ser brincadeira, ela chora (n.º 19 - mulher mulata, classe social inferior, p. 107).5

A gente de cor não presta, não melhora; não é gente unida; quando melhoramos a posição, procuram branco pra casar. É preciso clarear a raça (n.º 20 - mulher mulata, classe social inferior, p. 108).

O único elemento escuro de minha família foi minha avó paterna, quase preta. Meu pai foi farmacêutico muito estimado por suas maneiras finas. A família branqueou sempre (n.º 22 - mulher mulata, classe social intermediária, p. 110).

Não seria capaz de amar um preto ou um mulato, mas, desde que não se percebam traços de ascendência preta, eu me casaria com uma tal pessoa. O que importa é a aparência. [...] Nas atitudes com namorado, deixo que ele resolva se me quer ou não. Se eu fosse branca, não seria tão submissa, mas tomaria a iniciativa para encaminhar ao casamento (n.º 23 - mulher mulata, classe social intermediária, pp. 110-111).

Se eu fosse branca, seria mais feliz no casamento, porque mais natural, mais espontânea, menos inibida e menos preocupada com o ponto de vista estético. Atualmente, sinto dificuldade, porque vejo o aborrecimento do meu marido por eu ser de cor: passado o período de forte entusiasmo afetivo, ele começou a sentir uma espécie de desapontamento por me ter como esposa: demonstra pena ou vergonha quando observa algum traço físico nos filhos. Estes ressentimentos dele me ofendem, e nos põe em conflito (n.º 24 - mulher mulata, classe social intermediária, p. 112).

Não namoro pretas. Já tive namorada parda ou branca. As mulheres, quanto ao preconceito, têm mentalidade diferente: para mim, é mais fácil conquistar uma branca de classe mais baixa do que uma mulata. Sim, porque quem aceitar um namorado de cor parda só pode pertencer a classe mais inferior. A mulata tem maiores aspirações, quer ter um namorado branco. As brancas são brancas; nesse particular, não precisam desejar mais do que são (n.º 27 - homem mulato, classe social intermediária, p. 117).

6. Núcleo de sentido "Fulano é doutor, mas é preto..."

Neste aspecto, aqueles que conseguiram ascender socialmente perceberam que jamais serão totalmente aceitos pelo branco, o que gera isolamento na tentativa de evitar o sofrimento causado pela rejeição, tanto pelo branco, quanto por outros pretos. Relatam se sentirem aceitos apenas pela posição que ocupam, não por quem são e, por isso, sua presença em alguns contextos sociais precisa constantemente ser justificada, com apresentações exageradas.

Em primeiro lugar, pode-se afirmar que não existe negro economicamente independente; portanto, aqui entendemos por negro rico aquele que for instruído, educado. As experiências diárias mostram que também eles sofrem com as consequências da cor da pele. [...] Sob minha chefia trabalham vários moços. Certo dia, um deles entregava-me um convite de festa de formatura em presença de sua irmã. No dia seguinte, conta-me ingenuamente o rapaz: 'Ontem minha irmã ficou preocupada vendo-me convidá-lo para a festa de formatura e me censurou. Tranquilizei-a imediatamente, dizendo-lhe que o havia convidado porque sabia que o senhor não iria.' Acidentes como estes são pequeninas coisas do branco que me fazem confiar, desconfiando. [...] A amizade do branco para o negro é sempre interesseira. Dado o cargo que ocupo, há interesse em me agradar; fora disso, pouco valor tenho. [...] Um de meus mais íntimos amigos brancos me convida para todas as festas em sua casa, às quais não compareço. No dia seguinte, sempre me telefona, indagando por que não compareci. Houve uma festa de formatura na Esplanada, convidou-me e não fui, mas noto que, não sendo em sua casa, ele até hoje não reclamou por eu não ter ido. [...] Vivo isolado de certas situações sociais, e assim acontece com todos os negros de minha classe (n.º 8 - homem preto, classe social intermediária, p. 73-77).

A amizade entre brancos e negros é possível. Eu consigo, me retraindo e indo ao branco preparado. Retraio-me no sentido de não participar da farra dos brancos; faço questão dessa linha de conduta, porque é sempre o negro o culpado. [...] Se me convidam para uma festa de gala, vou e, se percebo diferença em me tratar, eu me retiro, porque não me sinto bem. O branco que me convidou, já pensando em que eu fosse menosprezado por alguém, procura com modos espalhafatosos, indelicados para o meu íntimo, me enaltecer com apresentações bombásticas. Meu modo de pensar torna-se pior ainda - para estar eu ali é preciso um arauto; se minha presença é forçada, não é um ato natural, não deveria preocupar tanto aquele que me convida. Eu queria estar na reunião naturalmente, como os outros (n.º 9 - homem preto, classe social intermediária, p. 93-94).

Muitos amigos fazem questão da minha companhia; justificam-se, dizendo-me que não sou preto. O preto este em situação inferior (n.º 25 - homem mulato, classe social intermediária, p. 113).

O preconceito pode ser vencido, mas não totalmente: "Fulano é doutor, mas é preto..." (n.º 27 - homem mulato, classe social intermediária, p. 117).

 

Análises da autora

Virgínia, então, apresenta algumas conclusões com relação aos casos analisados. Percebe que, no geral, há forte desejo por parte dos indivíduos em aproximar-se do branco e afastar-se do negro, assim como também uma luta para diminuir o sentimento de inferioridade que atinge a negros e mulatos de todas as classes sociais devido à forte identificação com as ideias e atitudes dos brancos. Em particular, os pretos de classe inferior sentem a discriminação pelo branco, mas se conformam. Demonstram-se mais sensíveis à rejeição por outros negros, o que gera hostilidade entre os pares e prejudica o desenvolvimento de uma consciência de grupo. Já os pretos da classe intermediária se mostram feridos pela rejeição pelo branco e sentem falta da solidariedade entre os negros. Buscam se isolar, contentando-se em satisfazer sua vontade de correspondência por meio do convívio com o branco, mesmo que circunscrito às esferas laborais.

Os mulatos pobres, por sua vez, têm mais consciência de cor e tentam evitar a todo custo serem chamados de "negro", o que se reflete também nas suas escolhas de cônjuges. Vivem entre dois mundos, tanto no aspecto biológico, quanto no aspecto social, mas acabam não pertencendo a nenhum deles. Possuem maior identificação com os brancos e têm mais chances de se aproximar deles, mas ao mesmo tempo seus traços negroides podem provocar a rejeição pelo branco. Por fim, os mulatos da classe intermediária lutaram para conquistar instrução e ocupações elevadas, símbolos do grupo dominante, e conseguiram se integrar. Porém, não possuem o mesmo que o branco e, por isso, são excluídos de certas esferas sociais, desenvolvendo acentuada consciência de cor e vergonha de sua origem. Segundo a autora: "As esferas sociais das quais se vê banido parece que se referem àquelas que exibiriam publicamente a intimidade entre o branco e o preto" (Bicudo, 2010, p. 158), como festas familiares, formaturas, ambientes recreativos, laços matrimoniais, etc. Esforçam-se para não serem colocados na categoria de negros e de mulatos, consideram-se brancos. Procuram desenvolver valores pessoais na tentativa de se livrar da concepção negativa que o branco tem pelos negros.

Considerando a possibilidade que o mulato tem de fazer parte do grupo dominante, Virgínia aposta na hipótese de haver preconceito de cor, não de raça, tendo em vista que o branqueamento da pele diminui a rejeição pelo branco, não importando a origem do indivíduo. Porém, discorda da posição de Donald Pierson ao afirmar que o preconceito de cor se mantém mesmo quando o indivíduo passa a pertencer às classes mais altas (Gomes, 2013).

 

Conclusões

Para melhor apreender os achados de Virgínia, acreditamos ser importante discutir o branqueamento, que consiste em uma "ideologia de valorização social do grupo dominante, que, nesse caso, é representado pelo grupo branco" (Máximo, Larrain, Nunes & Lins, 2012, p. 512). De acordo com Bento (2002), o branqueamento foi um processo surgido no fim do século XIX por conta do medo que o crescimento da população negra e mestiça gerou na elite branca. Seu objetivo era, por meio da miscigenação entre negros e brancos, extinguir de vez a população negra e cumprir o intento de tornar o Brasil, que era "descrito como uma nação composta por raças miscigenadas, porém em transição" (p. 44), um país branco aos moldes europeus.

O branco se define então como o modelo universal de humanidade, as noções daquilo que é belo, harmônico e humano são construídas com base nos parâmetros brancos (Shucman & Martins, 2017) e as identidades desenvolvidas a partir disso têm o branco como ponto de referência, sendo a identidade negra concebida apenas como um contraponto (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017). Trazendo as conclusões de Virgínia, Gomes (2013) aponta que: "Para Bicudo, o sentimento de inferioridade detectado no negro é ligado à noção de que é o branco quem o define, de que o negro é construído no coração do branco. Ele não tem ontologia própria" (p. 108).

Para alcançar essa humanidade branca ideal e tentar se integrar ao grupo dominante, o negro precisa adquirir símbolos atrelados aos brancos, o que envolve, muitas vezes, a rejeição a si mesmo (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017), ao seu próprio corpo, levando a tentativas de eliminar seus traços negroides para assemelhar-se ao branco também no que diz respeito à aparência (Máximo et al., 2012) que, afinal de contas, consiste em um ideal de beleza.

Esse processo de exaltação do branco contribuiu para a construção e manutenção de estereótipos raciais (ibid.). Como pudemos ver no trabalho de Virgínia, por exemplo, na fala "um cavalo preto ou branco é sempre um cavalo, mas um homem preto é um negro" (Bicudo, 2010, p. 96), o negro é tido como uma massa indistinta, sem educação, indesejada, um bloco sem oportunidades que a elite precisa dar conta de exterminar. Um branco é apenas um indivíduo, mas um negro é um todo. Se ele faz algo errado, é generalizado para todo o "bloco negro", se faz algo bom, é a exceção.

Nas entrevistas de sua dissertação com os indivíduos da classe intermediária, pudemos perceber que havia um distanciamento com relação aos demais negros, como se os entrevistados não fizessem parte da população negra/mestiça. Tendo em vista que o "bloco negro" é pobre e sem educação, ao se instruir e ascender socialmente deixaram de ser negros. Mas, também não são brancos. Não têm cor, nem lugar definido. Pertencem a um não lugar entre negros e brancos. Percebemos também, como no fragmento "Consequentemente, resulta ódio, raiva e ressentimento da parte do negro. Eu perdoo, mas o negro sem educação briga" (Bicudo, 2010, p. 77), há a concepção de que "ser educado" envolve também certa resignação, envolve ter consciência de qual é o seu lugar e se manter nele, sem tentar brigar por espaço ou respeito.

De acordo com Gomes (2013), "o preconceito surge numa situação social em que o grupo dominante sente que seu status está ameaçado pelo grupo subordinado a ele" (pp. 71-72), dessa forma, a resistência aos negros se acentua quanto mais ele ascende socialmente, ocupando um lugar considerado pelo branco como exclusivamente seu (Bento, 2002). Porém, não há reconhecimento da existência do problema racial pelo branco, tendo em vista que isto implica reconhecer o seu papel enquanto "cúmplice ou beneficiário de uma situação moralmente condenável" (Santos, Schuman & Martins, 2012, p. 173).

Ao analisarmos o perfil dos entrevistados por Virgínia em seu trabalho de mestrado, percebemos que dos dezesseis indivíduos da classe intermediária, apenas quatro eram mulheres, ao passo que dos quinze entrevistados da classe inferior, treze eram mulheres, sendo muitas delas analfabetas. "Tal distribuição dos/as entrevistados/as confirma os antecedentes históricos da atual presença de negras e pardas nas camadas mais pobres e de menor escolaridade do país" (Almeida, 2011, p. 422). Após a abolição, muitas mulheres negras passaram a se ocupar do sustento da família por serem mais facilmente aceitas pelos brancos do que os homens negros, dessa forma "negro tornou-se cada vez mais dependente da mulher negra, devido à impossibilidade de ganhar a vida de maneira segura, compensadora e constante" (Araújo, 2013, p. 29). Muitas mulheres trabalhavam nas casas de famílias tradicionais brancas como empregadas domésticas ou babás ou, quando não conseguiam emprego, apelavam para a mendicância ou prostituição. As atividades domésticas eram "onerosas, mal remuneradas e exigiam apenas uma formação prática - não intelectual" (Henriques, 2017, p. 154). Não havia estímulo para que se instruíssem e, além disso, o ensino ofertado não era o mesmo para a classe trabalhadora e para a elite, "os jovens das classes abastadas tinham como base uma educação humanística e científica, enquanto, os jovens e adultos da classe trabalhadora eram preparados para o mercado de trabalho" (ibid., p. 157), colaborando para a manutenção dos estratos sociais.

A mulher negra encontrava-se subalternizada em sua atividade profissional e, de acordo com Almeida (2011), também em sua relação com o homem negro:

A dinâmica matrimonial aponta para tramas veladas da discriminação, uma vez que os homens subalternos, para se identificarem, se aliarem imaginariamente com os dominantes e ascenderem na hierarquia social, reeditavam com as afrodescendentes a relação de poder a que eram submetidos. Logo, essas mulheres estavam (e ainda estão) em situação pior que a dos homens de cor e das brancas, fadadas a amargar as mais baixas posições numa estrutura social que conjuga racismo com sexismo (p. 422).

Por fim, entendemos que essa proposta de apresentação das entrevistas suscita novas questões, não abordadas por Virgínia. No entanto, não seria possível neste trabalho reanalisar todo o conteúdo, apenas optamos por essa forma de organização para facilitar ao leitor o acompanhamento dos pontos principais das entrevistas, que levaram às conclusões apontadas pela autora, e também para contribuir com estudos futuros sobre o tema. Mas, principalmente, apontar para questões e experiências que perseveraram 75 anos após a defesa da dissertação de Virgínia. Aqui a história parece nos reenviar a temas que infelizmente têm uma longa duração e uma triste intensidade em nosso presente.

 

Referências

Almeida, T. M. C. (2011). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Cadernos Pagu, 36, 417-425. https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000100018        [ Links ]

Araújo, A. S. (2013). A mulher negra no pós-abolição. Revista da ABPN, 5(9), 22-36.         [ Links ]

Bento, M. A. S. (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In M. A. S. Bento, & I. Carone (Org.), Psicologia social do racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-58). Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Barbosa, K. O. (2018). Virgínia Leone Bicudo: Trajetória e contribuições aos estudos sobre relações raciais. Monografia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil.         [ Links ]

Bicudo, V. (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. In M. C. Maio (Org.), Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (pp. 61-164). São Paulo, SP: Sociologia e Política.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os). Brasília, DF: o autor.         [ Links ]

Gomes, J. D. (2013). Os segredos de Virgínia: Estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.         [ Links ]

Henriques, C. S. (2017). Do trabalho doméstico à educação superior: A luta das mulheres trabalhadoras negras pelo direito à educação superior. O Social em Questão, 37, 153-172.         [ Links ]

Maio, M. C. (Org.). (2010a). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo, SP: Sociologia e Política.         [ Links ]

Maio, M. C. (2010b). Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Cadernos Pagu, 35, 309-355. https://doi.org/10.1590/S0104-83332010000200011        [ Links ]

Máximo, T. A. C. O., Larrain, L. F. C. R., Nunes, A. V. L., & Lins, S. L. B. (2012). Processos de identidade social e exclusão racial na infância. Psicologia em Revista, 18(3), 507-526. https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p507        [ Links ]

Mendes, A. M. (2007). Pesquisa em psicodinâmica: A clínica do trabalho. In A. M. Mendes (Org.), Psicodinâmica do trabalho: Teoria, método e pesquisas (pp. 65-85). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Santos, A. O., Schucman, L. V., & Martins, H. V. (2012) Breve histórico do pensamento psicológico brasileiro sobre relações étnico-raciais. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(spe), 166-175. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500012        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Karine Oliveira Barbosa
ol.karine@gmail.com

Arthur Arruda Leal Ferreira
arleal1984@gmail.com

Submetido em: 27/09/2020
Revisto em: 31/10/2020
Aceito em: 31/10/2020

 

 

1 Para um conhecimento mais detalhado da trajetória de Virgínia Bicudo, sugerimos a leitura de Gomes (2013), Maio (2010a; 2010b) e Barbosa (2018).
2 Registramos que será utilizado ao longo do texto o termo "mulato", apesar da conotação pejorativa tão discutida e denunciada atualmente, por ter sido a categoria de análise utilizada por Virgínia em seu estudo.
3 Neste artigo, não nos ocuparemos desta segunda parte da dissertação, pois de maneira geral, os aspectos mostrados na análise da associação já podem ser vistos nas entrevistas individuais.
4 Essa passagem nos lembrou o caso de Teófilo, pai de Virgínia, que teve seu ingresso na Faculdade de Medicina vetado por um professor do ginásio que acreditava que lá não era lugar para negros, reprovando Teófilo por 10 anos na disciplina que ministrava, até que ele desistisse de se tornar médico.
5 Essa fala nos remeteu ao quadro "A redenção de Cam", pintado em 1895 pelo espanhol Modesto Brocos, que representa a ideia de branqueamento, surgida no período após a abolição, que pregava o cruzamento da população negra com a branca (brasileiros e imigrantes europeus) até extinguir a presença do negro e assemelhar o Brasil à Europa. A pintura retrata as três gerações, da avó negra (feliz e agradecida) ao neto branco, que seriam necessárias para o Brasil branquear e se ver livre do atraso que representava o povo negro.

Creative Commons License