SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.72 special issueVirgínia Leone Bicudo: contributions to studies on race relationsRacism and psychology at school: dialogues between Fanon and Freire author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro  2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.80-93 

ARTIGOS

 

Trauma, colonialidade e a sociogenia em Frantz Fanon: os estudos da subjetividade na encruzilhada

 

Trauma, coloniality, and Frantz Fanon's sociogenesis: studying subjectivities at the crossroads

 

Trauma, colonialidad y sociogenia en Frantz Fanon: los estudios de la subjetividad en la encrucijada.

 

 

Fátima Lima

Docente. Pós-Graduação em Linguística Aplicada. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo das discussões sobre trauma colonial e da ideia de sociogenia no pensamento de Frantz Fanon, a noção de sujeito e de subjetividade, produzidas no âmbito de matrizes eurocentradas, são interpeladas, tornando visível e dizível a insuficiência no entendimento dos processos subjetivos que atravessam as diferentes experiências de/em viver enquanto negras/os. A hegemonia branca aparece como o contraponto para compreensão do que podemos chamar de eventos traumáticos nas vidas negras. Faz-se urgente, nas experiências negras, descolonizar o eu e o mundo, conjurando a violência da colonialidade, possibilitando que negras/os se constituam enquanto sujeitos e não mais como a/o outra/o da branquitude.

Palavras-chave: Trauma; Colonialidade; Sociogenia; Subjetividade; Vidas negras.


ABSTRACT

Grounded on recent discussions about the colonial trauma and on Frantz Fanon's concept of sociogenesis, this paper problematizes the notions of subject and subjectivity as they have been produced by Eurocentric lenses. The aim is to bring these notions to the level of visibility and sayability with a view to highlighting their inability to understand the subjective processes of living while Black. White hegemony is paramount for us to understand what we may call traumatic events in/of Black experiences. I argue for the urgency of decolonizing the I and the world. This can only be done through a critique of colonial violence. Such a critique aims to open affordances for Black people to constitute themselves as subjects own their own rights rather than as the Other of whiteness.

Keywords: trauma; coloniality; sociogenesis; subjectivity; black lives.


RESUMEN

A partir de las discusiones sobre el trauma colonial y de la idea de sociogenia en el pensamiento de Frantz Fanon, se cuestionan la noción de sujeto y subjetividad, producidas en el ámbito de las matrices eurocentradas, haciendo visible y decible la insuficiencia en el entendimiento de los procesos subjetivos que atraviesan las diferentes experiencias de/en vivir como persona negra. La hegemonía blanca aparece como el contrapunto para comprender lo que podemos llamar de eventos traumáticos en las vidas negras. Es urgente, en las experiencias negras, descolonizar el yo y el mundo, conjurando la violencia de la colonialidad, permitiendo que la persona negra se constituya como sujeto y no más como el otro de la blanquitud.

Palabras clave: Trauma, Colonialidad; Sociogenia; Subjetividad; Vidas negras.


 

 

Sob nossos pés: céus em ruínas

DESEJAMOS PROFUNDAMENTE QUE O MUNDO COMO NOS FOI DADO ACABE. E esse é um desejo indestrutível. Fomos submetidas a todas as formas de violência, fecundadas no escuro impossível de todas as formas sociais, condenadas a nascer já mortas, e a viver contra toda formação, no cerne oposto de toda formação. Desejamos profundamente que o mundo como nos foi dado acabe. E que ele acabe discretamente, no nível das partículas, na intimidade catastrófica deste mundo destituído de mundo, este mundo que até a própria terra rejeita (Mombaça, 2019, p. 98).

Ailton Krenak (2015), em sua fala no Colóquio "Os mil nomes de Gaia - do antropoceno à idade da Terra", em certo momento, nos diz: "tem pedaços do mundo que já caíram. Nós fazemos profecias sobre uma possível queda do céu, mas muitos pedaços desse céu já caíram, em alguns casos, caíram em série" (Krenak, 2015, n.p.). Assim, sem tom profético, mas com a serenidade que só os grandes pensadores conseguem construir, este militante indígena, oriundo dos povos Krenak, toma o mundo como acabado e o céu como já caído. Sob nossos pés: céus em ruínas.

As reflexões que aqui se assentam encontram-se sobre/sob um mundo em ruínas, o mundo, como conhecemos, como já acabado. Aquém e além do simples atestado de uma crise, tomar esse mundo como findo significa, antes de tudo, interpelar a própria noção de humano como elemento organizador político, social, cultural, subjetivo e intersubjetivo. Assim, as ideias de ordem, certeza, clareza, igualdade, universalidade, entre outras que sustentaram e sustentam a violência e a brutalidade do pensamento moderno, mostram, mais do que sua fragilidade, um mundo marcado pela separabilidade não apenas entre os ditos humanos, mas entre humanos e outras/os viventes, um mundo que a própria terra rejeita, como bem mostra Jota Mombaça (2019) na epígrafe que abre esta seção.

Dar conta de que o mundo acabou é enfrentar o esfacelamento da ideia de homem forjada no âmbito de um projeto iluminista, racional, sustentado numa certa construção de igualdade, entre estas a sempre falsa igualdade racial, é ter que dar conta de um sentido de humanismo carcomido, de ciência, de deus e de religião que agonizam. É dar conta do esfacelamento também da noção de indivíduo ou de certo núcleo individualizante. Encarar o fim do mundo em contextos brasileiros é nos desfazermos de uma herança identitária que, em nome de uma igualdade e de uma democracia, reiterou/a diferentes processos de opressão. Encarar o fim do mundo é compreender que a matriz da inteligibilidade cisheteronormativa não dá mais conta (talvez nunca tenha dado) do mundo dos desejos e das formas de se relacionar com o corpo e com a/o outra/o; encarar o fim do mundo é entender que a ficção racial foi e é um elemento central nas construções de nossas práticas sociorraciais e, consequentemente, enfrentar que o racismo aponta e se instala de diferentes formas entre nós, sempre atuando na manutenção do status quo e da branquidade enquanto diagrama de poder.

Assim, no cerne da violência do pensamento moderno, a racialidade habita como elemento estruturante, transpassando desde as macro instituições até as relações mais ínfimas e moleculares, configurando-se no que Denise Ferreira da Silva (2019) chamou de "dialética racial", em que "[...] desde o fim do século XIX [...] opera como um arsenal ético em conjunto por dentro, ao lado, e sempre-já - a/diante das arquiteturas jurídico-econômicas que constituem o par Estado-Capital" (Silva, 2019, p. 33), tornando evidente a relação intrínseca entre a representação da modernidade e a subjugação racial.

Numa entrevista intitulada "As sociedades contemporâneas sonham com o apartheid", Achille Mbembe nos diz: "A crítica da modernidade estará inacabada enquanto não compreendermos que o seu advento coincide com o princípio da definição de raça e da lenta transformação deste princípio em matriz privilegiada de dominação ontem como hoje" (Mbembe, 2014b). Por outro lado, Silva (2019) confere concretude à urgência última e única de trazer o que sangra no coração da modernidade para a compreensão das vicissitudes contemporâneas quando afirma que "na verdade, qualquer análise séria do modo corrente de operação do duo Estado-Capital exige uma atenção à gramática racial, porque esta organiza o espaço global, orientado pela realização da necessidade de dirimir e dissipar os efeitos da racialidade" (p. 37).

Ainda, seguindo as inquietações levantadas por Denise Ferreira da Silva (2019), destaco a ênfase conferida ao que a autora chamou dos pilares ontoepistemológicos que fundamentaram o projeto moderno: a) a separabilidade - a ideia de que tudo o que pode ser conhecido tem como categorias organizacionais da possibilidade de compreensão as noções de espaço/tempo, bem como as categorias de entendimento (qualidade, quantidade, relação, modalidade), ficando o que está fora do manejo dessas categorias como inacessíveis e irrelevantes e b) a determinabilidade, ou seja, a ideia de que o conhecimento ou o entendimento produz conceitos capazes de determinar "a verdadeira natureza das impressões sensíveis reunidas pelas formas da intuição" (p. 39). Esses dois pilares, ancorados no programa kantiano, encontram-se com as reflexões de Hegel através das ideias do espírito humano e da razão como liberdade, em que a noção de sequencialidade passou a descrever

o Espírito como movimento no tempo, um processo de autodesenvolvimento, e a História como a trajetória do Espírito. Com essas manobras, ele introduz uma versão temporal da diferença cultural representada pela atualização dos diferentes momentos do desenvolvimento do Espírito e postula que as configurações sociais da Europa pós-Iluminista são o ápice do desenvolvimento do Espírito (p. 39).

Nesse movimento, a ideia de sujeito emergiu e se consolidou, forjando diferentes domínios do que se convencionou chamar, em um sentido mais amplo, de Ciências Humanas e Sociais que, junto à Filosofia Ocidental, conceberam diferentes formas de explicar os sujeitos e, consequentemente os processos subjetivos, ou seja, como esses sujeitos se apresentam frente ao mundo, atravessados pelo social, cultural e pelo político. A maioria desses esquemas teórico-metodológicos não incorpora a percepção de que, no projeto moderno-colonial (Estado-capital), um conjunto de outros se constituíram enquanto outras/os a partir da linguagem opressiva que faz mais do que performar a violência, mas é a própria violência (Morrison, 2020). A partir dessas inquietações investigativas, é possível perceber que, muitas vezes, as tentativas de explicações de grande parte dos eventos contemporâneos não passam de uma repetição do texto moderno.

Destarte, as ruínas deste mundo findo como conhecemos têm na racialidade um dos pontos nevrálgicos. Esse fato lacera as cenas contemporâneas através do terror e do contra-terror, do fardo da raça, de sua neurose fóbica, suas fantasmagorias e assombros, "[...] um complexo perverso, gerador de temores e tormentos, de perturbações do pensamento e de terror, mas sobretudo de infinitos sofrimentos e, eventualmente, de catástrofes" (Mbembe, 2018, p. 27). A constatação desses elementos rasga as dinâmicas brasileiras contemporâneas nas quais os regimes de visibilidade e dizibilidade da racialidade explodem em diferentes contextos, interpelando os domínios de saberes, as epistemologias canônicas e eurocentradas, a literatura, as artes, os saberes e práticas psi, entre outros construídos a partir da ideia de um sujeito branco, masculino, heterossexual e, portanto, centralizados numa noção de subjetividade que se estabelece e opera a partir de modelos universais, insuficientes para perceber e tomar as experiências de negritude. Assim, a noção de sujeito/subjetividade - operador conceitual e clínico -, é produzida e sustentada na/pela violência do pensamento moderno e, consequentemente, sustenta-se, também, na subjugação racial.

Esse é o ponto de partida das reflexões levantadas neste texto, isto é, através dos conceitos-intercessores de trauma colonial e, consequentemente, do colonialismo/colonialidade, as experiências de negritude explodem analiticamente a partir de outros lugares que conjuram a forma canônica como, a maioria dos estudos de subjetividade, tem construído reflexões sobre o sujeito e suas formas de habitar mundos. Parto das inquietações de Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas (Fanon, 2008), Os condenados da Terra (Fanon, 2015) e Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos (Fanon, 2020) para assinalar a insuficiência das explicações centradas em matrizes que têm na hegemonia branca sua referência para pensar a subjetividade e os processos subjetivos. Nesse movimento, algumas ponderações em Grada Kilomba serão convocadas, tanto na obra Memórias da plantação quanto na exposição Desobediências poéticas, através das peças artísticas "Narciso e Eco" e "Édipo", para afirmar junto à Jota Mombaça (2017) que, para as pessoas negras e/ou racializadas (não-brancas), o mundo é o ponto de onde emerge a violência traumática e para concluir com a artista negra Castiel Vitorino (2019) que "o trauma é brasileiro". Aqui, a força que Frantz Fanon deu à dimensão sociogênica para compreensão da vida mental e subjetiva negra, sobrepujando as explicações sedimentadas apenas na filogenia, ontogenia e psicogenia é o elemento central que sustenta as elucubrações levantadas neste texto. Nesse movimento, destaco o trabalho pioneiro de Neusa Santos Sousa (1983) Tornar-se negro, ou, as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social como exemplo analítico de como a dimensão sociogênica e a branquitude são imprescindíveis na compreensão da subjetividade em pessoas negras.

Como cenário onde essas dinâmicas se efetivam, tomo por referência a ideia de uma colonialidade colapsante (Lima, 2018a) para assinalar a persistência e as reatualizações cotidianas de elementos de colonialidade através da hierarquização, categorização, subjugação e possibilidade de desumanização de um conjunto de outras/os que não estão inseridas/os na hegemonia branca. Como nos coloca Kilomba (2019a; 2019b), o cubo branco ou a branquitude é o lugar da violência que, através da linguagem e das práticas sociais, produz feridas coloniais que sangram a todo instante através de inúmeras reencenações coloniais que assolam os modos de vidas negras. Há, nesse sentido, um passado que não está morto e, se morreram algumas de suas dimensões, não foram enterradas devidamente. Um passado-presente e uma dívida alta.

Por fim, destaco perspectivas imanentes nas experiências de negritude que apontam outros traçados frente à violência do pensamento colonial, sinalizando a necessidade urgente de uma descolonização, uma saída, uma fuga, uma conjuração do lugar dado as/os negras/os. A vida negra, então, essa vida colocada como menos vida, diante da tomada de consciência da violência desferida sobre si mesma, responde com possibilidade de uma vida infinito; uma vida que se arremessa numa futuridade para fazer supurar as feridas desse tempo passado-presente marcado pela brutalidade da flecha do tempo e as possibilidades de seu desvio (Mombaça & Mattiuzzi, 2019).

 

A colonialidade colapsante

109. Recriar a partir da colonialidade e fugir do caminho que nos] empurra para a morte (Mombaça & Mattiuzzi, 2019, p. 25).

É impossível pensar os sujeitos negras/os, bem como no que podemos tomar como processos subjetivos negras/os, sem levar em consideração a força que a colonialidade tem na construção da maquinaria da racialidade. Mais do que uma palavra e longe de ser uma metáfora, a colonialidade atravessa as relações sociais, funda e refunda arquiteturas, atua através da linguagem enquanto violência, classifica, hierarquiza, subjuga, desumaniza e extermina. Mesmo que o que se convencionou chamar historicamente como colonialismo tenha acabado, naquilo que Mbembe (2014a) chama de seu caráter fixo e imóvel, sua capacidade de proliferação e de metamorfose espraiou-se entre nós, fazendo "estremecer o presente daqueles que escravizou, infiltrando-se até nos seus sonhos, preenchendo os seus pesadelos mais medonhos, antes de lhes arrebatar lamentos atrozes" (p. 19). Assim, "o colonialismo esteve longe de ser um fio de Ariadne. Uma estátua colossal perante a qual, temerosas ou fascinadas, as multidões se vinham prostrar, o colonialismo paliava, na realidade, um imenso abismo. Como uma carapaça de metal cravejada de esplêndidas joias, também roçava o animal e a imundície" (p. 19).

Somam-se a essas reflexões as ideias do grupo de intelectuais do projeto modernidade/colonialidade que burilaram a noção de colonialidade (do poder, do ser e do saber), fornecendo elementos analíticos que contribuem para pensar como esta persiste e se reatualiza em contextos latino-americano e caribenhos. A respeito disso, nos diz Aníbal Quijano (2009):

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da existência social quotidiana e da escala societal. Origina-se e mundializa-se a partir da América (p. 73).

No entanto, o autor destaca numa nota de rodapé que

Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado a, colonialismo. Este último refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial. Mas nem sempre, nem necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo, enquanto a colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradora que o colonialismo. Mas foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e, mais ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjectividade do mundo tão enraizado e prolongado (p. 73).

Assim, sustentando a ideia de colonialidade numa relação vincular com o colonialismo, destaca-se a violência colonial inscrita em contextos latino-americanos, perdurando até os dias atuais, tendo, na racialidade o elemento estruturante. Para Sylvia Wynter (2003), intelectual negra jamaicana, no texto Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towardsthe Human, After Man, Its Overrepresentation-An Argument soma-se a ideia de colonialidade do ser e do poder, a noção de colonialidade do ser/poder/verdade/liberdade com a finalidade de tensionar as ideias de humano e de homem sedimentada em uma verdade ocidental e cristã. Dialogando, principalmente com as reflexões de Frantz Fanon, Wynter defendia que para perturbar (unsettle) a colonialidade do poder era necessário "[...] uma redescrição do humano fora dos termos de nossa presente declaração descritiva do ser humano [...]" (Wynter, 2003, p. 268, tradução livre), saindo da super representação do homem e do humano, construída em processos marcados pelo sequestro, roubo, pilhagem, massacre e extermínio.

Desta forma, as discussões sobre colonialismo/colonialidade encontram-se com as análises de Frantz Fanon. A partir da formulação da zona do não-ser nas experiências negras, Fanon abre um campo profícuo que incide diretamente sobre as ideias de humano e humanismo, destacando uma gama considerável de viventes que podiam tornar-se "[...] uma presença ausente, um ente coisificado, parte de algo que nem mesmo humano chega a ser" (Faustino, 2018, p. 19), o que atinge diretamente o que podemos chamar por sujeito, subjetividade e intersubjetividade.

Aqui, um impulso genocida perfaz o campo colonial, operando de modo a incidir de forma molecular e tocar as estruturas mais íntimas e os processos mentais, produzindo patologias mentais numa relação direta com as opressões traduzidas num âmbito maior no que se convencionou chamar de guerras coloniais, marcadas fortemente pelos "efeitos psicológicos da colonização" (Khalfa, 2020, p. 21). A partir da ideia de que a política é a guerra transformada por outros meios, nos contextos atuais, marcados pelos processos de descolonização e pelo capitalismo neoliberal, parafraseio a referência de Khalfa (2020) para pensar os efeitos psicológicos da colonialidade colapsante sobre os corpos e subjetividades negras, em que "[...] na senda dos conflitos da descolonização, a guerra (sob a forma da conquista e da ocupação, do terror e da contra-insurreição) passou a ser, desde o final do século XX, o sacramento de nossa época" (Mbembe, 2017, p. 8). É bom lembrar que esse assombro, sedimentado sobre o fardo da raça, atinge, de diferentes maneiras, a todos.

Tomando essas inquietações, interessa perceber a colonialidade e suas reatualizações contemporâneas no âmbito do que podemos chamar de um capitalismo neoliberal marcado, cada vez mais, por violências, novas formas de apartheid, extermínios, por processos bio-necropolíticos (Lima, 2018b) que atravessam e se somam a outros diagramas de poder produzindo um terror contemporâneo e, consequentemente, um contra-terror. Essa colonialidade colapsante, necrosada, abscede o medo, o tormento, a raiva, o ódio, empurrando-nos, cada vez mais, para fora da democracia, transformando os diferentes contextos em sociedades marcadas pela inimizade (Mbembe, 2017).

É a partir desse movimento que tomo os brasis e suas vicissitudes, em que, no centro da análise, coloco uma proliferação de expressões levadas a cabo, principalmente por negras/os, indígenas, quilombolas, a comunidade trans, entre outas/os. Aqui destaco as que vêm emergindo a partir da negritude, seja na academia interpelando os cânones, reformulando currículos, tensionando processos pedagógicos, organizando-se nas graduações e pós-graduações através de inúmeros coletivos de estudantes, na literatura, principalmente feminina e negra, nas artes e performances e no campo também do que podemos chamar do cuidado com ênfase na dimensão subjetiva. Esses movimentos, por dentro da colonialidade, como apontam Mombaça e Mattiuzzi (2019), conjuram a morte já dada que atinge uma grande parte da população brasileira que, de diferentes maneiras, está fora dos privilégios de raça, classe, gênero, sexualidade, território, geração, da hegemonia funcional corporal, entre outras/os; recriando outros mundos.

 

A sociogênese e o trauma colonial

Uma das coisas mais difíceis, tanto para uma pessoa quanto para um país, é manter sempre presentes diante dos olhos os três elementos do tempo: passado, presente e futuro (Fanon, 2020, p. 264).

O contexto dos movimentos ressaltados na seção acima evidencia que os estudos de subjetividade quanto às práticas de cuidado psi têm sido colocados numa encruzilhada interpelativa, na medida em que os pressupostos que sustentam os campos teóricos e as práticas têm se mostrado insuficientes no acolhimento e na condução do que podemos chamar, num espectro amplo, do cuidado em situações de sofrimentos psíquicos experenciado pelas pessoas negras. Os modelos epistemo-metodológicos tomam como referência pressupostos sustentados na/pela hegemonia branca, muitas vezes incapazes de pensar a sua própria violência.

Tomar a dimensão de violência que é produzida e se inscreve no social e no cultural, ou seja, no mundo, foi um dos elementos que Frantz Fanon destacou em suas obras, na medida em que, contestando os modelos explicativos sobre os sofrimentos psíquicos e as 'perturbações mentais' calcados apenas na filogenia e na ontogenia, ressaltou a dimensão sociogênica como fundamental na compreensão dos mesmos. Outro ponto forte nas análises críticas de Frantz Fanon colocava também em suspensão a ideia de uma psicogênese como determinante dos processos psíquicos e, consequentemente subjetivos.

No entanto, se não há uma organogênese pura das doenças mentais, também não há uma psicogênese pura, apesar do progresso que constitui a psicanálise de Freud. Para Fanon, esta oposição se tornou obsoleta e ele propõe associar a sociogênese à organogênese e à psicogênese, pois as formas tomadas pelas doenças mentais são determinadas pela estrutura das relações das quais o indivíduo é capaz ou incapaz de participar e, logo, por fatores "externos", nem orgânicos nem psíquicos, mas institucionais, sociais e culturais (ou antropológicos) (Khalfa, 2016, p. 94).

A ênfase na dimensão sociogênica faz ver e dizer a violência e a brutalidade da hegemonia branca nos processos de outramento daquelas/es assinaladas/os enquanto negras/os. Nesse sentido, seus escritos são fundamentais nos "[...] debates sobre subjetividade, cultura e identificação" (Faustino, 2018, p. 13), articulando "[...] as dimensões sociais, econômicas, culturais e políticas" (Faustino, 2018, p. 16). O que pode aparecer, hoje, uma obviedade não era tão evidente nos anos de 1950, quando parte considerável dos livros e textos de Frantz Fanon foram formulados. Wynter (2001) em conversas com a noção de sociogenia em Frantz Fanon, formulou a ideia de princípio sociogênico. Contrastando-o com o princípio genômico, ressaltou sua dimensão, enquanto uma "lei", aplicável transculturalmente, tendo por base um sistema humano calcado sobre ordens e que instituiu um modo de sujeito, que no âmbito sociogênico, produz, na perspectiva dos "condenados" (os homens sem linhagem, escravizados historicamente, os "vendidos" de hoje, as/os faveladas/os, as/os desempregadas/os, entre outras/os) a possibilidade de produzir outras narrativas e disputar outra ideia de humano e de mundo (Wynter, 2009).

Inicialmente, a ideia de sociogenia já se encontrava no trabalho "Ensaios sobre a desalienação do negro", redigido por Frantz Fanon aos 26 anos, para a conclusão do curso em psiquiatria na Universidade de Lyon, na França, onde foi prontamente desaconselhado por seu orientador a apresentar o trabalho, devido ao "seu formato literário" e por não "respeitar as convenções acadêmicas de sua universidade" (Faustino, 2018, p. 52). A obra, posteriormente publicada, agora com o título Pele negra, máscaras brancas primava, em suas páginas iniciais, por sua dimensão clínica e psicológica. Alertava-nos o autor (2008); "antes de abrir o dossiê, queremos dizer certas coisas. A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais" (Fanon, 2008, p. 28). Mais à frente completa:

Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é só uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo, para responder à exigência de Leconte e Damey, digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um sociodiagnóstico (p. 28).

Seguindo essas pistas conceituais e metodológicas, a obra de Fanon reposiciona a mirada sobre as discussões acerca da ideia de sujeito e, consequentemente subjetividade em direção aos processos sociais e culturais, tendo no que chamou da alienação do negro o centro de suas inquietações. Por alienação, caracterizou os processos através dos quais a hegemonia branca produziu/produz a ideia de negro forjada a partir da inferiorização e da subjugação, configurando-se num esquema epidérmico-racial em que "no mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas" (Fanon, 2008, p. 104). Esse sociodiagnóstico é fundamental para entendermos os limites que os modelos explicativos sobre subjetividade apresentam diante das vidas negras.

Era a raiva; eu era odiado, detestado, desprezado, não pelo vizinho da frente, mas por toda uma raça. Estava exposta a algo irracional. Os psicanalistas dizem que não há nada de mais traumatizante para a criança do que o contato com o racional. Pessoalmente, eu diria que, para um homem que só tem como arma a razão, não há nada mais neurotizante do que o contato com o irracional (Fanon, 2008, p. 110).

É essa dimensão de irracionalidade no indizível racismo a pedra de toque das inquietações em Frantz Fanon, bem como a aposta na ideia de que, através da tomada da negritude, seria possível traçar um caminho de cura a partir de processos de desalienação desse lugar subjetivo conferido as/aos negras/os pelo mundo branco. Numa intervenção no 1º Congresso de escritores e artistas negros em Paris (1956), no texto chamado "Racismo e Cultura", Frantz Fanon ressalta como o racismo constitui o elemento mais visível e grosseiro de uma estrutura dada, marcada pela opressão de um determinado grupo ou povo, em que "[...] um grupo social, um país, uma civilização não podem ser racistas inconscientemente" (Fanon, 2012, p. 279). "Não é possível subjugar homens sem logicamente os inferiorizar de um lado a outro. E o racismo mais não é do que a explicação emocional, afetiva, algumas vezes intelectual, desta inferiorização. Numa cultura com racismo, o racista é, pois, normal" (p. 281).

Essas ideias não ficaram apenas no campo conceitual de Fanon, mas, pelo contrário, estiveram presentes em sua clínica psiquiátrica, principalmente ao tempo que passou como residente no hospital psiquiátrico francês Saint-Alban, onde teve contato com o psiquiatra catalão François Tosquelles e, posteriormente, enquanto médico-chefe do serviço clínico do Hospital Psiquiátrico de Blida-Joinville, na cidade de Blida, Argélia (Gordon, 2015; Cherki, 2011; Faustino, 2018), através de diferentes textos escritos e publicados com alunos residentes. Frantz Fanon e Jacques Azoulay, em um texto cujo título é "A socioterapia numa ala de homens muçulmanos: dificuldades metodológicas" (1954), apresentava a força da sociogenia bem como do sociodiagnóstico e de uma socioterapia que só "seria possível na medida em que levasse em conta a morfologia social e as formas de sociabilidade" (Fanon, 2020, p. 184) como fundamental para compreensão do mundo mental, suas vicissitudes e ressonâncias, inclusive o que podemos chamar de sofrimentos e enfermidades mentais.

Essas propostas também aparecem com força no capítulo "O negro e a psicopatologia", no já citado Pele negra, máscaras brancas. Neste, Fanon questiona os pressupostos psicanalíticos e as bases da psicologia individual na medida em que nos diz que "deveríamos nos perguntar até que ponto as conclusões de Freud ou Adler podem ser utilizadas em uma tentativa de explicação de mundo do homem de cor" (Fanon, 2008, p. 127). Partindo de uma crítica à ideia de neurose-tipo, Fanon traz a dimensão consciente das experiências vividas pelos negros, indagando as ideias de família e nação como os lugares da lei, da autoridade e do aprendizado que têm como objetivo garantir uma certa 'normalidade' esperada pelo mundo ocidental. "[...] Constatamos o inverso no caso do homem de cor. Uma criança negra, tendo crescido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contato com o mundo branco" (p. 129). Esse é um dos pontos centrais para que possamos questionar a insuficiência das explicações sobre a subjetividade moldada no âmbito do projeto racional-ocidental no qual as experiências subjetivas negras se dão a partir da hegemonia branca. Neste contexto, "as pessoas esquecem constantemente que a neurose não é constitutiva da realidade humana. Quer queira quer não, o complexo de édipo longe está de surgir entre os negros" (p. 134).

Essas ideias são retomadas pela pensadora e artista negra Grada Kilomba, principalmente na exposição artística chamada Desobediências poéticas, apresentada na Pinacoteca de São Paulo, de 6 de julho a 30 de setembro de 2019. Uma das videoinstalações apresentadas se chamava Édipo. Ali, Grada Kilomba assumiu o lugar de narradora, celebrou a tradição africana griot de contar histórias que envolvem personagens negras/os, ao contar a história de Édipo reencenada em seu limite explicativo e clínico na compreensão da realidade de parte considerável das populações negras. Tendo como referência as reflexões de Frantz Fanon sobre a relação entre família e nação, a partir de um modelo moderno e ocidentalizado, Grada Kilomba desloca Édipo da dimensão apenas de desejo e amplia as lentes interpretativas a partir da ideia de patriarcado e da violência colonial, tornando evidente que, por mais que obedeçam à lei, os homens negros raramente se tornam autoridade legal e, na maioria das vezes, constituem "[...] os que são punidos e assassinados pela própria lei" (Kilomba, 2019a, p. 16). Portanto, "[...] a história de Édipo não é apenas uma história de desejo. Mas também uma história de genocídio, violência e lealdade" (p. 14).

Assim, as fantasias assassinas do conflito edipiano e o desejo inconsciente de matar e destruir a figura patriarcal são reprimidas e praticadas gratuitamente nos corpos marginalizados. Os corpos negros tornam-se o espaço de performance para o insulto, humilhação, castigo, encarceramento, violência e assassínio (p. 17).

Esse deslocamento proporcionado pela performance artística negra em Grada Kilomba é fundamental para fazer sobressair a dimensão de encruzilhada em que as explicações hegemônicas sobre sujeito e subjetividade se ancoram. Não apenas o Édipo enquanto narrativa explicativa é interpelado, mas a própria hegemonia branca é também inquirida em uma outra videoinstalação chamada "Narciso e Eco". Neste trabalho, também seguindo a tradição africana griot, Grada Kilomba assume o lugar de enunciação e reconta e reencena a história de Narciso e, consequentemente, da ninfa Eco, para mostrar como, nessa narrativa, a hegemonia e o consenso branco se tornam imperativos, ocupando o lugar da violência em relação às vidas negras, que acabam se tornando o outro do outro, ou seja, a personificação do que a branquitude não quer para si: a ameaça, o perigo, a violência ao tempo que também se apresenta, muitas vezes, como exótico e desejável. "Narcisista é esta sociedade branca patriarcal na qual todos nós vivemos, que é fixada em si própria e na reprodução de sua própria imagem, tornando todos os outros invisíveis" (Kilomba, 2019b, p. 13).

No cubo branco, as experiências negras engendram-se a partir de uma ruptura entre a realidade e a imagem, uma ruptura óptica e política, em que "neste narcisismo, pessoas marginalizadas dificilmente encontram imagens, símbolos ou vocabulário para narrar a sua própria história, ou para nomear o seu próprio trauma" (Kilomba, 2019c, p. 16).

O trauma, no entanto, raramente é discutido dentro do contexto do racismo. Essa ausência indica como os discursos ocidentais, e as disciplinas da psicologia, e da psicanálise em particular, negligenciaram amplamente a história da opressão racial e as consequências psicológicas sofridas pelas/os oprimidas/os. [...] Contudo, os dolorosos efeitos do trauma mostram que as/os africanas/os do continente e da diáspora foram forçadas/os a lidar não apenas com traumas individuais e familiares dentro de uma cultura branca dominante, mas também com o trauma histórico coletivo da escravização e do colonialismo reencenado e reestabelecido no racismo cotidiano, através do qual nos tornamos, novamente a/o "Outra/o" subordinado e exótico da branquitude (p. 215).

Isso posto, o que podemos chamar de eventos traumáticos precisa ser entendido no âmbito dos processos de colonização e da colonialidade ainda persistente nos imaginários e práticas sociais nas quais a invenção da/o negra/o se processa a partir de um olhar e de uma política de nomeação que têm na branquitude o lugar de formulação, bem como sua violência brutal, na medida em que, ao designar a/o negra/o enquanto tal, também se constituiu todo um movimento marcado pela subalternização, pela inferiorização, pela objetificação e pela coisificação dos modos de vidas e subjetividades negras.

Essas análises, sem necessariamente trabalhar com as categorias de trauma e sociogênese, também podem ser encontradas no livro Tornar-se negro ou as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social, de Neusa Santos Souza, em que a experiência de saber-se negra/o é viver a partir das exigências e expectativas brancas, tendo sua identidade massacrada e suas expectativas compelidas à alienação de si mesmo. Ao analisar as narrativas de negras/os em ascensão social, Sousa (1983) mostra como o modelo ideal de ego vai se constituindo a partir de um modelo de identificação normativo-estruturante calcado no fetiche do branco, da brancura. "A brancura detém o olhar do negro antes que ele penetre a falha do branco. A brancura é abstraída, reificada, alçada à condição de realidade autônoma, independente de quem a porta enquanto atributo étnico, ou, mais precisamente racial" (p. 4).

A marca da diferença começava em casa. O garoto, filho de homem negro e mulher branca, vivia cedo a experiência que fixava: "o negro é diferente". Diferente, inferior e subalterno ao branco. Porque aqui a diferença não abriga qualquer vestígio de neutralidade e se define em relação a um outro, o branco, proprietário exclusivo do lugar de referência, a partir do qual o negro será definido e se autodefinirá (p. 26).

Portanto, as discussões sobre a/o negra/o precisam levar em consideração essa dimensão traumática na qual o processo de desumanização do povo negro reflete muito seu caráter indizível. Nesse sentido, o racismo cotidiano apresenta-se também através de uma cronologia que é atemporal, em que, muito mais do que apenas uma reencenação colonial, reflete uma realidade traumática que tem sido omitida (Kilomba, 2019c). "A ferida do presente ainda é a ferida do passado" (p. 158).

Esse movimento tem interpelado os estudos de subjetividade bem como as práticas clínicas de cuidado aos sujeitos negras/os, reclamando um outro lugar, não mais perfilado pela violência da colonialidade que, em primeira e última instância, é a violência da hegemonia branca. É tarefa desse tempo ter que dar conta dessas interpelações que emanam de uma pluralidade de sujeitos que não compactuam mais com a dimensão de alienação e de violência na qual as vidas negras têm sido colocadas. Esse processo, ainda por se fazer, é marca nesse tempo distópico e exige, no mínimo, uma revisão urgente do corpus teórico bem como do campo das práticas de cuidado, principalmente no que, em um espectro muito amplo, podemos chamar de cuidado no que se refere aos sofrimentos psíquicos.

 

Descolonização do eu e mundos

No racismo nega-se, para negros e negras, o direito à subjetividade (Kilomba, 2019c, p. 174).

632. Como uma máquina de guerra o corpo preto que age à revelia de uma linguagem formal racista excede sua experiência no mundo (Mombaça & Mattiuzzi, 2019, p. 24).

Em resposta a essa violência, negras/os têm, ao longo, de suas histórias, tentado responder de outras formas à violência da colonialidade a partir do encontro com a dimensão de negritude que essas experiências possibilitam, erigindo coletivamente o reconhecimento de uma comunidade e a construção de pertencimentos. Esse movimento pode ser percebido hoje, através de diferentes expressões, nos brasis onde negras/os assumem as suas próprias histórias, tensionando os lugares de enunciações, portanto, de poder. Isso possibilita que as histórias que marcam o processo escravocrata, sua brutalidade e violência, como uma flecha que atravessa o tempo, possam ser desviadas e/ou devidamente enterradas. Um dos elementos fundamentais nesse processo é a tomada de consciência da negritude, em que "[...] uma vez descoberto o branco dentro de si, ele o mata [...]. Após ter sido levado aos limites da autodestruição, o preto, meticulosa ou tempestuosamente, vai saltar no buraco negro de onde partirá com tal vigor o grande grito negro que estremecerá os assentamentos do mundo" (Fanon, 2008, p. 167). Aí podemos pensar em um novo homem, um novo humanismo.

Esse processo, Grada Kilomba chamou de descolonização do eu. Descolonização implica se desfazer do colonialismo e, "politicamente, o termo descreve a conquista da autonomia por parte daquelas/es que foram colonizadas/os e, portanto, envolve a realização da independência e da autonomia" (Kilomba, 2019c, p. 224). Essas ideias já estavam presentes na já citada obra de Neusa Santos Sousa (1983) quando ela explica que

o negro que elege o branco como ideal do ego engendra em si mesmo uma ferida narcísica, grave e dilacerante, que, como condição de cura demanda ao negro a construção de um outro ideal de ego. Um novo ideal de ego que lhe configure um rosto próprio, que encarne seus valores e interesses, que tenha como referência e perspectiva a história (p. 44).

Seguindo essa trajetória, podemos tomar outros sentidos nas experiências negras, a partir das forças que emanam destas e apostando na construção de caminhos curativos e de fuga da violência da dialética racial. Denise Ferreira da Silva (2019) nos fornece pistas interessantes para pensar esses processos. Trabalhando a ideia de negridade, a autora nos mostra como esta é capaz "de interromper a ordem do pensamento moderno" anunciando "[...] o fim do mundo como o conhecemos" (p. 91). A partir do que chama de uma poética negra feminista, Denise Ferreira da Silva apresenta possibilidades de olhar para além da historicidade e da razão universal. Assim, "emancipar a negridade do mundo ordenado exige que o conhecer e o fazer sejam emancipados do pensamento, desarticulados das maneiras pelas quais - pensamento - o suposto trono universal, é limitado, circunscrito e encarcerado pela verdade" (p. 91). "A negridade lança o sujeito no mundo para por fim ao mundo do tempo no qual a dialética racial faz sentido" (p. 107).

Por fim, ressalto que o tempo-presente-passado-futuro exige de todas/os nós uma tomada de consciência, uma ética e responsabilidade com as vidas, com os sujeitos e os processos subjetivos. Para tanto, é preciso encarar o fim do mundo como dado, parar este fim de mundo. "Se o futuro está para ser moldado e o presente é colapso, esgotar o que existe é a condição de abertura dos portões do impossível" (Mombaça, 2019, p. 113). Urge que se esgotem as construções de subjetividades sedimentadas na hegemonia branca, portanto lugar de violência. Caso contrário, o que nos sobra é o assombro desses dias de um tempo presente-passado.

 

Referências

Cherki, A. (2011). Frantz Fanon: Portait. Paris: Seuil.         [ Links ]

Costa, J. F. (1983). Da cor ao corpo: A violência do racismo. In N. S. Sousa, Tornar-se negro: As vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social (pp. 1-16). Rio de Janeiro, RJ: Graal.         [ Links ]

Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.         [ Links ]

Fanon, F. (2012). Racismo e cultura. In M. R. Sanches (Org.), Malhas que os impérios tecem: Textos anticoloniais, contextos pós-coloniais (pp. inicial-final). Lisboa: 70.         [ Links ]

Fanon, F. (2015). Os condenados da terra. Lisboa: Letra Livre.         [ Links ]

Fanon, F. (2020). Alienação e liberdade: Escritos psiquiátricos. São Paulo, SP: Ubu.         [ Links ]

Faustino, D. M. (2018). Frantz Fanon: Um revolucionário, particularmente negro. São Paulo, SP: Ciclo Contínuo.         [ Links ]

Gordon, L. R. (2015). What Fanon said: An philosophical introduction to his life and thought. New York, NY: Fordham University.         [ Links ]

Khalfa, J. (2016). Reler Fanon. Revista XIX, (3), 88-116.         [ Links ]

Khalfa, J. (2020). Fanon, psiquiatra revolucionário. In F. Fanon, Alienação e liberdade: Escritos psiquiátricos (pp. 21-56). São Paulo, SP: Ubu.         [ Links ]

Kilomba, G. (2019b). Ilusões vol I Narciso e Eco. In Pinacoteca de São Paulo (Org.), Grada Kilomba: Desobediências poéticas (pp. 1-22). São Paulo, SP: Pinacoteca de São Paulo.         [ Links ]

Kilomba, G. (2019a). Ilusões vol II Édipo. In Pinacoteca de São Paulo (Org.), Grada Kilomba: Desobediências poéticas (pp. 1-19). São Paulo, SP: Pinacoteca de São Paulo.         [ Links ]

Kilomba, G. (2019c). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, RJ: Cobogó         [ Links ].

Krenak, A. (2015, abril 18). Colóquio internacional os mil nomes de gaia: Do antropoceno à idade da terra [arquivo de vídeo]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=k7C4G1jVBMs&t=972s        [ Links ]

Lima, F. (2018a). Raça, gênero e sexualidades: Interseccionalidade e resistências viscerais de mulheres negras em contextos bio-necropolóticos. In E. Rangel (Org.), (Des)prazer da norma (pp. inicial-final). Rio de Janeiro, RJ: Papéis Selvagens.         [ Links ]

Lima, F. (2018b). Bio-necropolítica: Diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(esp), 20-33.         [ Links ]

Mbembe, A. (2014a). Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada. Portugal: Pedago.         [ Links ]

Mbembe, A. (2014b, janeiro 17). As sociedades contemporâneas sonham com o apartheid. Mutamba: Sociedade, Cultura e Lazer, 6-7.         [ Links ]

Mbembe. A. (2017). Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona.         [ Links ]

Mbembe, A. (2018). Crítica da razão negra. São Paulo, SP: n-1.         [ Links ]

Mombaça, J. (2017). O mundo é meu trauma. Piseagrama, (11), 20-25.         [ Links ]

Mombaça, J. (2019). Não vão nos matar agora. Lisboa: Galerias Municipais.         [ Links ]

Mombaça, J., & Mattiuzzi, M. M. (2019). Carta à leitora preta do fim dos tempos. In D. F. Silva, A dívida impagável (pp. 14-27). São Paulo, SP: Casa do povo.         [ Links ]

Morrison, T. (2020). A fonte da autoestima: Ensaios, discursos e reflexões. São Paulo, SP: Companhia das Letras.         [ Links ]

Quijano, A. (2009). Colonialidade do poder e classificação social. In B. S. Santos, & M. P. Meneses (Orgs.), Epistemologias do sul (pp. 73-117). Coimbra: Coimbra.         [ Links ]

Silva, D. F. (2019). A dívida impagável. São Paulo, SP: Casa do povo.         [ Links ]

Sousa, N. S. (1983). Tornar-se negro: As vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro, RJ: Graal.         [ Links ]

Vitorino, C. (2019). Conversa com Castiel Vitorino: O trauma é brasileiro. Stuttgart: C& America Latina. Recuperado de https://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/trauma-brasileiro-castiel-vitorino/        [ Links ]

Wynter, S. (2009). Tras el hombre, su última palabra: Sobre el posmodernismo, lesdamnés y el princípio sociogênico. In W. Mignolo, La teoría política en la encrucijada descolonial (pp. 51-124). Buenos Aires: Del Signo.         [ Links ]

Wynter, S. (2003). Unsettling the coloniality of being/power/truth/freedom: Towards the human, after man, its overrepresentation: An argument. The New Centennial Review, 3(3), 257-337.         [ Links ]

Wynter, S. (2001). Towards the sociogenic principle: Fanon, the puzzle of conscious experience, of identity and what it's like to be black. In M. Durán-Cogan, & A. Gómez-Moriana (Org.), National identities and socio-political changes in Latin America (pp. 30-66). New York, NY: Routledge.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Fátima Lima
fatimalima4@gmail.com

Submetido em 24/09/2020
Revisto em 02/11/2020
Aceito em 02/11/2020

Creative Commons License