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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro  2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.109-123 

ARTIGOS

 

Raça e subjetividade: do campo social ao clínico

 

Race and Subjectivity: from the social field to the clinical field

 

Raza y subjetividad: del campo social al clínico

 

 

Lia Vainer SchucmanI; Monica Mendes GonçalvesII

IDocente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. Estado de Santa Catarina. Brasil
IIDoutoranda. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo. São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo abordar as diferentes formas como raça e racismo penetram no campo social e se inscrevem singularmente nos sujeitos. De outro modo, pretende, a partir do campo das relações raciais, discorrer sobre as formas como esses sistemas, polissêmicos, multiformes, mercuriais e sempre em transição, são vividos, significados, apropriados e introjetados pelas pessoas e se incorporam à subjetividade, conformando este constructo. Tomando raciocínio e metodologia da psicologia sócio-histórica, são consideradas, ainda, formas de abordar as questões raciais no contexto clínico de atuação do psicólogo a partir dos elementos que a própria raça e sua dinâmica apontam como caminho em direção à sua subversão.

Palavras-chave: Psicologia; Branquitude; Subjetividade; Raça.


ABSTRACT

This article aims to address the different ways in which race and racism penetrate the social field and are singularly inscribed in the subjects. Otherwise, it intends, from the field of racial relations, to discuss the ways in which these systems, polysemic, multiform, mercurial and always in transition, are experienced, meant, appropriated and introjected by people and are incorporated into subjectivity, forming this construct. Taking reasoning and methodology from socio-historical psychology, ways of approaching racial issues are also considered in the clinical context of the psychologist's performance, based on the elements that the race itself and its dynamics point as a path towards its subversion.

Keywords: Psychology; Whiteness; Subjectivity; Race.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo abordar las diferentes formas en que la raza y el racismo penetran en el campo social y se inscriben singularmente en los sujetos. De lo contrario, se pretende, desde el campo de las relaciones raciales, discutir las formas en que estos sistemas, polisémicos, multiformes, mercuriales y siempre en transición, son vividos, significados, apropiados e introyectados por las personas y se incorporan a la subjetividad, conformando este constructo. Tomando el razonamiento y la metodología de la psicología sociohistórica, todavía se consideran formas de abordar las cuestiones raciales en el contexto clínico de la actuación del psicólogo, a partir de los elementos que la propia raza y su dinámica señalan como camino hacia su subversión.

Palabras clave: Psicología; Blanquitud; Subjetividad; Raza.


 

 

Introdução: raça e racismo na contemporaneidade

O tema da raça tem sido objeto sistemático de diferentes estudiosos, pesquisas e narrativas há pelo menos três séculos. Em torno dela, emergiram e emergem posições não somente diferentes e controversas, como, tantas vezes, antagônicas. A compreensão sociológica da raça é fundamental para o entendimento da estrutura social nos níveis global, nacional e local, e também para a compreensão das relações sociais cotidianas no que diz respeito à experiência individual dos sujeitos.

Para Todorov (1993), a raça é fundamentada pelas invenções das seguintes noções: i) os humanos não são todos iguais e a diferença e divisão entre os humanos se dá em grandes grupos; ii) o que define e diferencia esses grandes grupos são suas marcas físicas fenotípicas, essencialmente a cor da pele - mas também outros elementos como textura de cabelos e fisionomia facial; iii) o pertencimento a um ou outro grupo racial definiria tendências comportamentais e psicológicas e, sobretudo, qualidades estéticas, morais e civilizatórias compartilhadas dentre cada grupo, as quais se impõem ao indivíduo; iv) os grupos raciais ocupam, um em relação ao outro, uma posição hierárquica de superioridade e inferioridade.

Logo, a raça é uma ideia fictícia que visa justificar as desigualdades e hierarquias de valores sobre os seres humanos a partir do esquadrinhamento fenotípico - portanto, arbitrário - entre eles. Nestas formulações, coube ao branco os significantes positivos da beleza, civilidade e moralidade, e ao negro os negativos da feiura, incivilidade e imoralidade (Munanga, 1988, 2003). Embora falacioso e incomprovado dos pontos de vista biológico e genético (Munanga, 2003; Oliveira, 2003; Geiger, 2006; Chor & Lima, 2005), os desdobramentos dessa categoria são reais, evidenciando que, como construção social, ela segue altamente eficaz, estruturando a vida nos planos global e local, moldando a distribuição diferenciada de recursos e poderes entre os grupos sociais, assim como desejos e temores das pessoas ao redor do mundo (Guimarães, 1999; Hasenbalg, 1979/2005; Winant, 2001).

Estudos no Brasil e no mundo apontam o racismo estrutural e a discriminação racial como as explicações mais concretas para as desigualdades raciais no Brasil (Hasenbalg, 1979/2005; Guimarães, 1999; Skidmore, 1976; Carone, & Bento, 2002; Telles, 2003; Schucman 2014; Almeida, 2018). Para Guimarães (1999), o racismo opera a partir de três dimensões: a) uma cognitiva, que envolve a crença na ideia de raça; b) outra comportamental, quando o racismo se refere a atitudes e ações dirigidas a um sujeito ou grupo devido à sua raça; c) por último - e mais importante, ao menos na perspectiva aqui colocada - aquela que concerne à situação estrutural e estruturante de desigualdade entre brancos e negros nas sociedades.

A ideia de raça e o fenômeno do racismo estão presentes e difundidos nas mais diversas experiências da vida social brasileira: nas distribuições de recursos e poder, nas identidades coletivas, nas formas culturais e nos sistemas de significação, e no conteúdo e na organização das experiências subjetivas. Contudo, não deixaram de ser tabu, circulando sob diferentes formas discursivas de apaziguamento, apagamento ou negação dos conflitos que suscitam (Winant, 2001; Carone, & Bento, 2002). No Brasil, convivem as narrativas de "harmonia racial" frente às denúncias de um genocídio em curso, processos antitéticos, contraditórios e encarnados em uma mesma sociedade. Nesta segunda década do século XXI, a polissemia em torno da raça e do racismo engloba desde ideias conservadoras que apontam o Brasil como um lugar de convivência racial pacífica - com fluidas classificações de cor e raça nas quais a mestiçagem aparece como resolução pacifica para as diferenças raciais (Winant, 2001) -, até sua máxima oposição, desvelada pelos movimentos sociais negros e, também, por um conjunto de estudos e pesquisas que demonstram a sólida e duradoura iniquidade e injustiça racial como fatores determinantes da estrutura social brasileira.

Logo, ser negro ou ser branco refere-se a construções sociais em torno da ideia de raça construída no século XIX, legada e reiterada nos dias atuais. Para brancos, um lugar de poder, de vantagem sistêmica nas sociedades estruturadas pela dominação racial; para negros, um lugar social construído a partir do racismo estrutural por uma desvantagem no que concerne aos acessos aos bens simbólicos e materiais de nossa sociedade.

 

As classificações raciais brasileiras

O debate acerca das classificações raciais segue a mesma tendência antinômica observada em torno das noções de raça e do fenômeno do racismo, evidenciando à magnitude da complexidade desse conjunto articulado de fenômenos que integram os sistemas raciais. Na medida em que a raça foi construída a partir da noção da diferença, a efetivação de seu poder está nessa possibilidade de diferenciar, discernir e discriminar. Falar dela enquanto sistema de poder, implica falar de alteridade, das barreiras, linhas e limites que acabam por separar uns de outros. Porém, esses limites por meio dos quais se faz essa diferenciação também são socialmente construídos, históricos, temporais e geográficos. Como qualquer elemento que se situe na dinâmica social, a raça é um conceito aberto, fluido, instável, em permanente transmutação e sempre sujeito à interferência de outras marcas e signos sociais aos quais se conjuga, como classe, gênero, origem ou nacionalidade. Logo, os sistemas raciais de identificação, classificação e atribuição são socialmente estabelecidos e interagem com esses outros sistemas sociais normativos. Eles não são únicos, nem operam sob critérios estáveis e universais. Essas categorizações, portanto, se estabelecem de diferentes formas e por meio de diferentes parâmetros no tempo-espaço: em diferentes países, em diferentes regiões de um mesmo país ou em diferentes tempos históricos.

A classificação racial no Brasil parece seguir, ainda, o modelo polifônico do discurso acerca da raça. Conforme Telles (2003) evidencia, concorrem, disputam e se acomodam no Brasil diferentes processos e maneiras de classificação racial que apontam diferentes tendências. Embora as classificações raciais não sejam tema central deste artigo, elas nos interessam na sua interface com o processo de formação de identidades raciais e das subjetividades no cenário contemporâneo. Diferentes estudos no campo das Ciências Sociais e Humanas se dedicaram a compreender o fenômeno das classificações raciais e formação de identidades étnico-raciais no Brasil. Com raras exceções, eles afirmam que a classificação racial no Brasil se dá por aparência (Guimarães, 1999; Piza, & Rosenberg, 2003; Telles, 2003; Petrucelli, 2007). Oracy Nogueira (1979/1998), a partir da realização de um estudo de análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos da América (EUA), concluiu que o preconceito racial aqui se exercia essencialmente sob pretexto da aparência, dos traços físicos dos indivíduos, enquanto nos EUA, seria definido pela origem ou ancestralidade. O autor define preconceito racial como uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, cujas próprias percepções de si são estigmatizadas, seja devido à aparência, seja devido à parte ou à totalidade da ascendência étnica que lhes é atribuída ou reconhecida. O autor os denominou, então, "preconceito de origem", a maneira como a discriminação de raça decorre nos EUA, e "preconceito de marca", a forma como ela ocorre no Brasil, consideração que segue (com ponderações) válida e confirmada até os dias atuais.

Embora diferentes pesquisas atuais apontem de forma consensual ser a aparência o critério para a classificação racial predominante no Brasil, há uma diversidade de formas relacionadas às categorias de cor e raça que os brasileiros usam para interpretar a aparência dos sujeitos - e também para interpretar a si próprios. O trabalho de Telles (2003, p. 105) aponta três formas usadas pelos brasileiros para classificar os sujeitos e produzir identidades raciais dentro de um continuum de cores do branco ao negro. São elas: 1) o modelo oficial dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (cor/raça), utilizando as cinco categorias "branco, pardo, preto, amarelo e indígena"; 2) "o discurso popular" que, à primeira vista, indicaria o uso de uma profusão de termos para descrever raças e cores; e 3) o sistema bipolar "branco-negro", utilizado pelo movimento negro.

D'Adesky (2001, p. 135) indica o uso de cinco modos de classificação racial: 1) o uso das cinco categorias oficiais do IBGE; 2) "o sistema branco, negro e índio, referente ao mito fundador da civilização brasileira"; 3) o sistema classificatório popular de 135 cores, segundo apurado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 1976); 4) o modo binário branco e não branco, usado por inúmeros pesquisadores nas Ciências Humanas; e 5) o modelo binário branco e negro, proposto pelas organizações e movimentos negros.

D'Adesky (2001), Telles (2003), Guimarães (1999), Munanga (2008), Piza, & Rosemberg, (2003) e Schwarcz (2012) apontam que as diferentes classificações raciais do sistema popular são marcadas por duas características principais. A primeira é a classificação a partir da marca física, ou seja, os diferentes nomes remetem às cores dos corpos. A segunda - e principal característica - é que este continuum de nomes dados aos diferentes matizes de cores dos brasileiros está sempre permeado pela ideologia do embranquecimento, segundo à qual "a classificação popular reflete antes de tudo uma hierarquização, uma relação assimétrica, um continuum vertical em que a categoria branca se situa no topo e a categoria negra embaixo" (D'Adesky, 2001, p. 37).

Esta tese complementa a de Guimarães (1999) quando afirma que a categoria "cor" no Brasil tem sido usada como uma metáfora de raça e que as noções de cor e aparência física, no imaginário da população brasileira, sobrepuseram-se e imiscuíram-se às raças. Logo, a ideia de raça produzida pela ciência moderna foi condensada e consubstanciada à cor da pele no Brasil, onde esta característica demarca, portanto, a falsa ideia de superioridade e inferioridade. Dentro dessa lógica falaciosa, quanto mais escura a cor da pele de um indivíduo, mais aproximado ele está dos significados negativos construídos historicamente acerca da população negra, e quanto mais perto da cor de pele branca, mais status e privilégios ele ganha, evidenciando indelevelmente a insígnia de poder em que esses processos se ancoram.

Esse breve resgate aponta a mercurialidade desses sistemas, qualidade que ilustra como os meios de definição e os critérios a partir dos quais se definem as categorias ou a classificação racial podem ser diferentes. Mudam-se as barreiras e os conteúdos que estabelecem quem é negro ou branco. Em última análise, é essa mercurialidade que determina os mecanismos de categorização e classificação racial e, portanto, desses engendramentos, também, decorre o racismo, conformando particularidades em diferentes tempos e lugares.

Como consequência, situar-se entre negro ou branco não é tão simples ou universal como os sistemas raciais fazem acreditar parecer. E a autoinclusão e heteroinclusão dessas categorias e sua expressão em cada individuo ocorre de forma menos pragmática em comparação à maneira como essas categorias se expressam e se formalizam no campo social, em que seus efeitos, incontestáveis, seguem uma linearidade estável e duradoura. Portanto, essa inclusão, tal qual a própria existência das categorias preto, branco e pardo, não é obvia, permanente ou natural, e nem mesmo o processo de discriminação. Trata-se de fenômenos sociais e históricos complexos, sempre relacionados a outros, às relações de poder locais e, por esse caráter, mercuriais.

 

Identidade e identificação: os significados e os sentidos

As diferenças e desigualdades raciais, e também as muitas formas discursivas que pretendem elaborá-las, estão presentes e deixam marcas nas casas, nas famílias, nas escolas, nas ruas, nas instituições e em todos os espaços públicos; perpassam toda a socialização dos indivíduos, severa e continuamente marcada pela supervalorização do branco e pelo aviltamento do negro - independente das nuances que possam ganhar.

Contudo, as posições raciais não são lugares essenciais e cristalizados para pessoas brancas, negras e indígenas; a identificação com a branquitude ou a negritude não é automática, não é um dado garantido a priori e tampouco seus significados são estáveis e imutáveis. Munanga (1988) nos ensina que a própria ideia de negritude, em seus diversos usos e sentidos, e a emergência desta categoria, que reporta à experiência objetiva vivida do negro, diz respeito a um processo de subversão dos sistemas raciais e dos significados e processos de significação que estes sistemas produziram sobre as pessoas negras. Diz, portanto, da metabolização da raça conforme social e hegemonicamente construída, de sua reformulação a partir de sua apropriação pelos negros e da ação desses sujeitos frente a isso, construindo para a raça um lugar positivo cuja afirmação parte do contraponto ou da negação àquilo que, outrora, foi negativo e impositivamente impetrado. Omi e Winant (1986), a partir do conceito de formação racial, protestam que todo processo de atribuição racial incide, dialeticamente, sobre o outro de maneira refratária, de forma a promover instabilidades e dissonâncias que tensionam e colocam em desequilíbrio o enquadramento racial previamente estabelecido. Isso porque o outro, nomeado, sempre cria formas de viver e existir que transcendem os princípios dessa racialização, o que incita um movimento impermanente de extrapolamento e transgressão da circunscrição racial, processo que incide igualmente sobre quem tem o poder de operar a racialização, como sobre aqueles que dela são alvos.

Obedecendo à mesma lógica, a autoinclusão das categorias branco e negro, ou seja, o processo de apropriação (Leontiev, 1978) dessas categorias como parte constitutiva de cada sujeito, pode diferir, levando a expressões diferentes desse elemento, o racial, na vida de cada grupo ou pessoa, dependendo do lugar, do tempo e contexto histórico e de contingências existenciais. Portanto, os conteúdos e processos que sustentam se nomear, se entender, se reivindicar e, tantas vezes, também, se negar negro ou branco, além de envolverem um conjunto de mecanismos sociais de classificação, decorrem ainda de um conjunto de processos simbólicos subjetivos de identificação e desidentificação relacionados às possibilidades concretas de expressão e exercício de poder em função de sua racialidade e da inscrição dela em contextos específicos.

Esses processos são análogos ao que pode-se observar dentro de um mesmo grupo racial e ocorrem com pessoas dentro desse mesmo grupo. Dessa maneira, embora toda pessoa branca seja beneficiada pelos privilégios raciais produzidos pelos sistemas raciais e haja uma tendência a identificar-se com o lugar de poder que a brancura lhe confere, esse processo não é instantâneo ou imediato. Dentre as pessoas negras, ainda que estejam todas submetidas ao racismo, condição que unifica a todo esse contingente, em termos subjetivos, seguramente, podem estar mais ou menos suscetíveis, mais ou menos crédulas e mais ou menos distantes daquilo que está socialmente posto e estabelecido como o lugar da negritude e dos significantes a ela atrelados numa sociedade racista.

Este artigo se propõe a observar, a partir do processo de apropriação (Leontiev, 1978), as inflexões entre significados e sentidos e como estes se produzem em cada sujeito; ou como são atribuídos sentidos aos significados raciais, como produções subjetivas constituídas mediante identificações diversas e inscritas a partir da experiência concreta nos contextos em que se está inserido. Este exercício será feito a exemplo das histórias de Ana e Hugo.

 

Ana e Hugo1: dialética particular-singular na produção da subjetividade

Ana é uma mulher de 27 anos, fruto de uma relação inter-racial entre uma mulher negra e um homem branco. Essa mulher, sua mãe, morreu quando ela tinha 3 anos, momento a partir do qual Ana passa a morar com o pai e a família dele em uma cidade do interior no estado do Rio Grande do Sul, onde integram uma comunidade de origem alemã.

Ana, até então bem tratada pela mãe e pai, passa a ser tutelada pelos avós paternos, pelos quais é reconhecida e classificada como negra, assim como por toda essa família - que, não somente está totalmente influenciada pela ideia de raça, de distinção entre grupos humanos devido à fenotipia, como é fortemente identificada aos ideais da branquitude e arianiedade. Ou seja, trata-se de uma família racista em que impera uma crença veemente na superioridade atribuída às pessoas ou racialidades brancas e, na mesma medida, acredita na inferioridade das pessoas negras.

Chegando a essa família, Ana imediatamente perde o status de familiar. Sob os cuidados dos avós, ela narra que, aos 7 anos, conforme se recorda, recebe um tratamento aviltante, diferenciado entre todos os primos, e é colocada para trabalhar e cumprir tarefas domésticas como limpar e cozinhar, além de servir os demais membros da família em diferentes afazeres. Sua entrada na casa é permitida apenas pela porta lateral, dos fundos, sendo ela impedida de entrar pela porta da frente como os outros membros. Seu tratamento vincula-se a sua condição e status de negra da família. O avô lhe diz, e Ana ouve de seu avô, em diferentes circunstâncias, que por ela ser negra, seu lugar é na cozinha. Seu pai, conforme ela descreve, é uma pessoa emocionalmente impossibilitada de defendê-la frente às violências que sofre e já era bastante desconsiderado pela família por ter sido fracassado financeiramente e profissionalmente e ter se unido a uma mulher negra.

Contudo, aos 23 anos, ela consegue sair da casa e busca ajuda e recursos para ingressar numa universidade federal. Quando busca grupos organizados de pessoas negras para ter suporte neste processo, não é considerada negra por seus membros. Lá, ela ouve ser muito clara, não ter os traços fenotípicos que lhe permitam ser considerada negra; ou seja, é colocada em confronto sua experiência como pessoa negra no mundo diante do seu fenótipo, considerado, na perspectiva e experiência das pessoas que compunham este grupo, insuficiente para submetê-la ao racismo.

Ana conta que ser negra e tudo que perpassou a questão racial em sua vida sempre lhe trouxeram intenso sofrimento, os quais, nem sempre ela teve recursos para elaborar ou enfrentar. É curioso que a experiência de racialização na família é diametralmente oposta à ocorrida na ocasião de busca de ajuda para ingresso na universidade, já que neste segundo contexto, ela passa por um processo de "desracialização". Todavia, àquela altura, Ana havia passado um período longo e importante da vida sendo discriminada na família pela sua adscrição racial, negra, sustentada pela sua fenotipia. Assim, ambos foram para ela processos de intenso sofrimento, conforme Ana conta. Em ambos pode-se observar certo desamparo, na medida em que lhe é negado algo que considerava fundamental (no primeiro, cuidados igualitários e dignos; no segundo, o exercício de um direito que acreditava ter) a partir de um enquadramento racial que ignora sua compreensão sobre si mesma - não somente no que diz respeito à constituição de sua identidade racial, mas de sua posição integral como pessoa no mundo. Em ambos há a violência impetrada pela negação da subjetividade e de um lugar singular, decorrente da imposição do lugar particular em que a racialização a subscreve.

Hugo também nasceu numa família inter-racial. Nesse caso, seu pai, negro, era pouco próximo a qualquer debate sobre raça ou racismo, e a família relata perceber nele uma tendência a afastar-se de debates mais críticos ou aprofundados sobre o assunto ou da própria experiência como pessoa negra, o que é entendido pela família como um mecanismo de evitação de sofrimentos. A mãe, branca, por sua vez, é muito atenta à discriminação que o companheiro, embora negue, já sofreu, e também a sofrida pelos filhos. Hugo conta que, em certa ocasião, sofreu uma discriminação na escola, tendo sido xingado de nomes pejorativos que remetiam a sua negritude: a mãe foi pessoalmente até a escola defendê-lo, levando consigo um pau na mão, exigindo retratação. Nesta família, os assuntos e vivências relacionados à raça não foram traumáticos ou desestabilizadores para os filhos, como o tom espirituoso em que este relato é feito, evidencia.

Os exemplos permitem pensar as questões raciais a partir da dialética universal-particular-singular (Pasqualini & Martins, 2015), exatamente no ponto de mediação que faz bascular entre o campo social dos significados e o campo idiossincrático do sentido - imiscuídos, mas não sobrepostos e indiferenciados. O sujeito é constituído nas e pelas relações sociais, ao mesmo tempo que é constituinte delas; é o sujeito que se relaciona na e pela linguagem no campo das intersubjetividades (Vygotsky, 1999). Desta forma, ele se constrói e se realiza pela apropriação dos significados socioculturais dispostos onde está inserido e, portanto, para se compreender como alguém se autoidentifica e identifica o "outro", é preciso perguntar - e se perguntar - pelas suas relações sociais, que são significadas sempre na relação eu-outro:

O mecanismo da consciência de si mesmo (autoconhecimento) e do reconhecimento dos demais é idêntico: temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo mecanismo, porque somos em relação a nós mesmos o mesmo que os demais são em relação a nós. Reconhecemo-nos a nós mesmos somente na medida em que somos outros para nós mesmos, isto é, desde que sejamos capazes de perceber de novo os reflexos próprios como excitantes (Vygotsky, 1996b, p. 17-18).

A partir destes elementos analíticos, pode-se compreender o desdobramento da história de Ana: indubitavelmente negra na família, relativamente não negra no coletivo negro. Onde "um" era "branquíssimo" (Schucman, 2014), de origem alemã e crente das prerrogativas racialistas, o "outro" era negro. Quando "um" era negro e antirracista, o "outro" era branco. Pode-se estender esta análise aos cuidadores de cada um dos nossos personagens: enquanto o avô de Ana era racista e operava uma discriminação ativa contra ela, a mãe de Hugo, também branca, acreditava que o filho deveria ter um tratamento igualitário, não discriminatório - e se colocava pessoalmente em defesa disso. Disso depreendem-se duas questões que apontam, novamente, a complexidade dos processos intersubjetivos de identificação.

A primeira é que os sujeitos considerados brancos em nossa sociedade passam por um processo psicossocial de identificação com a branquitude resultante das mediações oferecidas pelas experiências no curso da vida. Portanto, eles podem, por diversas questões, não se identificarem com o lugar simbólico da branquitude e construírem fissuras entre a brancura e a branquitude, o que aponta possibilidades sobre a desconstrução do racismo na identidade racial branca. A branquitude tem um significado construído sócio-historicamente dentro da cultura ocidental. Ela carrega significados de norma e superioridade no que concerne à beleza, à civilidade e ao desenvolvimento. Porém, estes significados podem ser tensionados ou desconstruídos por meio de vivências e afetos diversos que irão produzir sentidos e tramas de significações não necessariamente coincidentes com aqueles hegemonicamente construídos em nossa sociedade, desvinculando a brancura da pele da ideia de superioridade dada pela branquitude. É a isso que observa-se na mãe de Hugo, cuja experiência de matrimônio e maternidade, guiada pelo desejo de proteção aos filhos e à família - e não hierarquizada do ponto de vista racial, ou seja, em que o outro é visto como diferente, mas não inferior, diferentemente do que aconteceu na família de Ana -, levou à ruptura ou desidentificação com os ideais de superioridade racial. Nesse exemplo, a apropriação da branquitude resultou em uma outra síntese, contraditória em relação ao lugar hegemônico desta estrutura.

A segunda questão a ser pensada é que as trajetórias de Ana e Hugo possuem contornos diferentes no que diz respeito à dinâmica eu-outro que se estabeleceu em torno da raça e da subjetividade. Não se pode ignorar o fato de Ana ter vivido uma situação de desamparo. É ela quem afirma perceber que seu pai, o único que poderia, por princípios, questionar o tratamento a ela dispensado na família, não tinha condições emocionais para fazê-lo. Ana nada podia fazer, estava totalmente assujeitada diante da violência racial contra ela impetrada. Certamente, marcas, sentidos, afetos, crenças e percepções diferentes se forjam sobre a raça e a própria identidade racializada quando, diante da violência racial, é possível perceber-se amparado e protegido. Por isso, destaca-se a importância determinante da vivência, e do "encontro com o racismo" e dos significados e sentidos raciais primários na vida de cada pessoa como fundante dos sentidos da experiência racial e da própria existência na vida de cada sujeito.

Os diferentes significados sobre raça correntes em cada destes contextos, e os sentidos raciais produzidos por Ana ou qualquer desses outros personagens, elucidam o proposto pela psicologia de Vygotsky (1999). Na sua concepção, há uma nítida relação entre aspectos cognitivos e afetivos do funcionamento psíquico nos significados atribuídos a cada conceito. É da observação do funcionamento psíquico que se abstrai a distinção entre os dois componentes de um conceito, o significado propriamente dito e o sentido. O primeiro consistiria em um núcleo relativamente estável de compreensão da palavra (o signo), compartilhado pelos sujeitos que a utilizam numa determinada cultura, referindo-se, então, ao sistema de relações objetivas, formado no processo de desenvolvimento do conceito (significado). "O sentido, por sua vez, refere-se ao significado da palavra (signo) para cada indivíduo, composto por relações que dizem respeito ao contexto de uso da palavra e às vivências afetivas do indivíduo" (Oliveira, & Dantas, 1992, p. 81).

A inflexão entre os significados e os sentidos, instituídos a partir das diferentes mediações que dinamizam o movimento dialético entre as instâncias universal, particular e singular, produziram sentidos múltiplos para a ideia de raça, para a experiência racial, sobre quem é negro ou sobre o que seja ser negro. Essas histórias reiteram o sentido como a unificação de todos os fatos psicossociais que despertam na consciência de cada sujeito como ele está, desta forma, entrelaçado a conteúdos intelectuais, vivenciais e afetivos. Ana e Hugo, tais quais suas famílias, seus pais ou os membros do coletivo a que Ana recorre, estão em condições objetivas muito diferentes, sob contingência de diferentes mediações e, portanto, submersos a possibilidades materiais distintas de significação das racialidades - tanto da raça do outro, quanto a de si. Logo, os significados destas identidades sociais - negros e brancos - são estes dispostos e cristalizados na cultura e estão apoiados no significado, e o sentido de ser branco ou negro é o que se produz por meio das apropriações dos significados culturais mediados por suas vivências e afetos. Os sentidos atribuídos às identidades raciais, sociais ou individuais - ou, de outra forma, formulados a partir da experiência singular da raça - serão, então, constituídos por cada pessoa de forma dinâmica, fluida e complexa, e em alguma medida, idiossincrática (Gonçalves, 2017).

 

Considerações sobre o manejo clínico

E o que considerar do desdobramento psíquico dessas categorias, ou seja, da reprodução das categorias sociais na subjetividade? É importante começar ressaltando que identidades negras e brancas menos ou mais ligadas a concepções hegemônicas de raça não interferem no modo como socialmente pessoas negras e brancas são tratadas ou estão posicionadas. Assim, ser negro e ter podido construir uma identidade - racial ou genérica - positiva, não impede que esse sujeito, sendo negro, sofra racismo. De forma análoga, a desidentificação com o lugar de superioridade vinculado à brancura não atrapalha pessoas brancas na fruição de um sistema de benefícios, vantagens, acessos e privilégios sociais vinculados à sua brancura.

Ainda assim, entende-se que o racismo pode deixar marcas doloridas e gerar intenso sofrimento em pessoas negras cujo encontro com ele foi insidiosamente violento, precoce ou acompanhado pelo desamparo, desacompanhado de espaços para a fala, a expressão, e a consequente continuidade dos processos de significação - sempre permanentes - que permitiriam ao sujeito elaborar ou construir novas configurações de sentidos que sirvam como recursos ao seu enfrentamento (Gonzalez Rey, 2011).

Entendem-se como diretrizes para a intervenção na clínica nestes casos, pressupostos de que o psicólogo deve partir. Não se trata de receitas ou modelos prontos a partir do qual dirigir sua ação como terapeuta ou analista, mas da crença de que uma posição clínica que se pretenda crítica e escutadora aos sofrimentos ocasionados pelo racismo deve partir de pressupostos antirracistas. Recentemente, nota-se uma demanda crescente por psicólogos pretos, assim como a emergência de teorias que partam de processos de racialização - sejam relacionados à epistemologia que fundamenta o psicólogo ou à sua própria racialidade - como paradigma da intervenção. Os trabalhos de Benedito (2018), Silva (2017) e Tavares e Kuratani (2019) afirmam que psicólogos, de modo geral, se sentem sem recursos ou insuficientes para abordar os sofrimentos de ordem racial na clínica. São evidências de que a clínica, à revelia de seu fundamento em qualquer abordagem, pode constituir-se um espaço de reprodução do racismo e de práticas de sujeição a pessoas negras ao reproduzirem o discurso do sujeito universal, sem que as particularidades e mediações raciais estejam consideradas. E afirmam a importância deste campo se comprometer política, ética e tecnicamente com as questões raciais.

Assim, seguem considerações sobre as questões que se entendem ser importantes no fundamento, na afirmação de uma postura, que revelam certo entendimento sobre a função política da psicologia e do psicólogo, e, em especial, do funcionamento do racismo, o qual se toma como pressuposto para a escuta de seus efeitos:

1. É necessário orientar-se por uma definição nominalista da raça (Guimarães, 1999), compreender os sistemas raciais, seu funcionamento, o modo que operam como organizadores das relações sociais e estruturantes fundamentais das desigualdades brasileiras, dos modos de ser e viver no mundo, assim como dos modos de enxergá-lo e apreendê-lo, com consequências para a vida coletiva e individual nos planos particular, da materialidade da vida, e singular, da subjetividade. Esse conhecimento, que pode ser entendido sob a ótica do "letramento racial" (Schucman, 2014), evita que relatos sejam significados como repetições neuróticas, paranoias, baixa autoestima ou fenômenos intrinsecamente psicológicos, quando se tratam, eminentemente, da cotidianidade do racismo na vida de pessoas negras. Logo, o entendimento da raça e do racismo permite superar uma leitura patologizante que toma o sujeito como unidade individual e isolada; que entende como problemas individuais questões cuja significação exige enxergar os processos psíquicos como sociais (Fernandes, 1999), produzidos na unidade dialética indissociável individuo-sociedade;

2. É preciso considerar os muitos, múltiplos e, às vezes, contraditórios, significados e sentidos da raça. É preciso atentar às suas ambiguidades, sendo que a potencialidade da intervenção está exatamente no que claudica. Devem ser tomados como aposta o hiato, as fissuras entre significado e sentido, as vacilações entre a construção da ideia de raça do século XIX que legamos e as vigentes nos dias de hoje e expressões da mercurialidade deste sistema social e das rupturas e permanências sob as quais opera no decorrer histórico e na vida de cada pessoa. São eles quem vão servir como suporte simbólico ao questionamento do lugar que se ocupa na dinâmica racial e ousar ocupar outros, estabelecendo outros horizontes simbólicos para essa experiência e vivência;

3. Apontar os conteúdos que se conjugam a raça, ainda que custem a aparecer sem ela. A experiência racial nunca é vivida uníssona: tem-se com ela uma corporeidade, uma expressão de gênero, uma origem, um bairro, uma família, recursos materiais ou financeiros e uma série de incontáveis elementos que também constituem o sujeito e modelam as formas como a raça é vivida. Neste sentido, é necessário atentar às mediações que configuram o que chamamos de encontro com o racismo. É preciso que o sujeito fale - e, portanto, carece perguntar e investigar - sobre a forma particular com que esse sujeito viveu a experiência racial. Destacar esses elementos de mediação, na medida em que emergem, fomenta a consciência da complexificação da ação da raça na vida dos sujeitos, o que favorece o desaprisionamento angustiante que entender a vida e o destino integralmente submetidos a ela pode causar;

4. Tão importante quando compreender o que seja a raça, como ela opera no mundo e como operou na vida daquele sujeito, ou seja, o impacto de seus efeitos, é investigar como ele lida com este fato social colocado e como se mobiliza e se movimenta diante de preconceitos, estigmas, discriminações a que se está cotidianamente submetido. Como ele lida com isso pode apontar também como lida com outras coisas. O que se pode fazer, que escolhas e posições tomar, que saídas construir a partir desse sistema que já está previamente colocado, é a única escolha que se pode tomar diante da impossibilidade de escolher uma experiência livre do racismo neste mundo no momento presente.

 

Considerações

Pelas diferentes experiências concretas, assim como pelas múltiplas formas discursivas vigentes sobre raça, racismo e classificações raciais, o contexto multirracial brasileiro propicia mediações diversas e bastante diferenciadas para a constituição de sujeitos e, portanto, para a subjetividade de brancos e negros. Embora as experiências subjetivas não tenham expressão imediata em curto prazo na vida material das pessoas, no que tange à implacabilidade dos sistemas raciais, acreditamos na importância de atentar a elas por dois motivos. Primeiro, por seus desdobramentos naquilo que entendemos como subjetividade e também no que tem sido entendido como interfaces entre a saúde mental e o racismo (Silva, 2005; Tavares & Kuratani, 2019; Vilhena, 2006), exclusivamente no que diz respeito às pessoas negras. Segundo, porque o paradigma histórico-cultural permite pensar nos efeitos de longo prazo desse processo de apropriação, na medida em que, engendrados nos processos de consciência e atividade do homem, designam mais que palavras e posições subjetivas singulares, mas também apontam novas formas de ação no mundo, de outras atividades objetificadoras, para fins de construção de uma nova vida material - aqui, com fins antirracistas.

Nos dois casos, por consequência do princípio da articulação dialética entre pensamento e ação, particularidade do gênero humano, estes desdobramentos contra-hegemônicos da ideia de raça, que evocam o tensionamento destitutivo desta construção, são parte da construção de um mundo sem ela. Acreditamos que a clínica pode ser um entre outros espaços de fomento àquilo que as pessoas negras já vêm fazendo e construindo como discursos e lugares raciais contra-hegemônicos, em que sejam ou estejam em vigência sentidos, experiências e práticas de não assujeitamento do negro. Também, um lugar em que o exercício da autonomia e do protagonismo de pessoas negras frente à sua condição possibilite a formulação de uma experiência racial afirmativa e positivada, construída sobre a possibilidade da vivência concreta de ser negro em diversidade e multiplicidade, de um lugar, simultaneamente, singular e universal.

Assim, na clínica, estão sob atenção as mediações, ou seja, a particularidade do encontro com os sistemas raciais e o racismo. Destacamos, ainda, a importância de decodificar a exposição à discriminação racial mais direta e violenta, dimensão em que o racismo se coloca frente às pessoas pretas de maneira irrefutável: em que momento isso aconteceu, se já havia tido debates sobre raça, se era adulto ou criança e que repertório emocional ou letramento se tinha para absorver ou elaborar essas questões.

Os sentidos, como construções que podem ser subversivas em relação aos significados, interessam-nos exatamente na medida em que observar as rachaduras, descontinuidades e contradições dialéticas que estabelecem em relação aos significados, possibilita pensar práticas antirracistas na psicologia, ou seja, na promoção de um conjunto de ações em direção ao fim dos sistemas raciais. Nos interessam, sobretudo, na medida em que dão pistas, direções e sinalizam sobre a abordagem dos sofrimentos gerados pelo racismo em pessoas pretas. Por atentar, não somente aos significantes e sentidos dissonantes da raça, mas apostar e investir nas experiências sociais que possibilitam sua emergência, ou a emergência de uma experiência vivida sob outros signos e sentidos, positivos, como resultados de processos de resistência, aquilombamento (Moura, 1959) ou aquilombação (David, 2018); todos eles, entre outras, expressões da pura experiência vivida do negro, nos parecem um norteador importante para a condução da prática clínica com pessoas negras, visto que observar o mundo criticamente traz evidências sobre a falácia dos sistemas raciais e bases para sua contestação.

A experiência de ser negro não pode ser tomada como uma reprodução automática dos significados negativos socialmente construídos sobre o negro pelos sistemas raciais. Embora o negro, como categoria social, tenha sido socialmente construído sob um olhar e lugar, social e simbólico, relacionado à inferioridade e de nele terem sido impregnados os significantes da feiura, incivilidade, imoralidade, brutalidade e atraso - expressão hegemônica das relações de dominação vetorizadas pela ideia de raça - as pessoas negras têm produzido, individual e coletivamente, sentidos existenciais não pejorativos ou até mesmo positivos sobre a raça, que envolvem força, poder, resiliência, superação, ancestralidade, os quais englobam uma série de valores que subvertem os significados historicamente construídos sobre a raça, particularmente para os negros (Schucman & Gonçalves, 2017).

Compreender as vicissitudes entre sentidos e significados na clínica serve à tarefa fundamental de mobilizar no sujeito as condições para o enfrentamento do racismo. Tal qual os sentidos sociais estão em constante transformação, os processos de identificação também. Cabe à clínica, neste processo, convocar o sujeito em sua "potência de ação", resgatando a "essencialidade do engajamento subjetivo para a transformação social" (Sawaia, 2014, p. 5). A clínica, nesse sentido, deve se colocar como parte do movimento dialético entre as posições de sujeito e objeto da história, essa dupla posição que todo sujeito histórico ocupa, e radicalmente vivenciada pelas pessoas negras, cuja posição frente ao racismo não pode ser totalmente ativa, mas não deve jamais ser totalmente passiva, cuja emancipação deve ser o horizonte. É tarefa de qualquer perspectiva e prática clínica que se pretenda ética e tecnicamente competente implicar-se como espaço de suporte a este processo.

 

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Endereço para correspondência:
Lia Vainer Schucman
liavainers@gmail.com

Monica Mendes Gonçalves
goncalvesmm@hotmail.com

Submetido em: 23/09/2020
Revisto em: 02/11/2020
Aceito em: 02/11/2020

 

 

1 Estes relatos foram extraídos da pesquisa de pós-doutorado "Famílias inter-raciais - tensões entre cor e amor", desenvolvida por Schucman e Martins (2017) no Instituto de Psicologia da Univesridade de São Paulo (USP) com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e que deu origem ao livro homônimo.

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