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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2020v72i3p.35-49 

ARTIGOS

 

Trajetória e modos de atuação de psicólogas/os na Política Socioeducativa

 

Trajectory and modes of action of psychologists in Socio-educational Policy

 

Trayectoria y modos de Actuación de psicólogas/os en la Política Socioeducativa

 

 

Bianca Zanchi MachadoI; Samara Silva dos SantosII

IPsicóloga, Mestre e Doutoranda do Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria, Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDocente do Curso e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria, Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo identificou o perfil profissional e caracterizou os modos de atuação de seis psicólogas/os na política socioeducativa por meio de entrevistas semiestruturadas. A análise qualitativa identificou um perfil de psicólogas/os qualificadas/os, com trajetórias de atuação em diferentes Políticas Públicas e em constante formação. A prática foi marcada pela articulação interdisciplinar e com outras políticas públicas necessárias à rede de atendimento a/ao adolescente em Medida Socioeducativa (MSE). Apesar de a atuação ainda ser marcada pelo atendimento clínico, as/os psicólogas/os consideram os aspectos contextuais das realidades de cada adolescente. Faz parte do trabalho a atenção às famílias, a garantia de direitos e a preocupação com a vida das/os adolescentes após a MSE. Por fim, entende-se que o perfil e as trajetórias profissionais fazem a diferença no desempenho e habilidades de criar estratégias para lidar com situações adversas no dia a dia da atuação no campo socioeducativo.

Palavras-chave: Psicologia; Trabalho do Psicólogo; Trajetória Profissional; Socioeducação.


ABSTRACT

This study identified the professional profile and characterized the modes of action of six psychologists in socio-educational policy through semi-structured interviews. The qualitative analysis identified a profile of qualified psychologists, with trajectories of action in different public policies. The practice was marked by the interdisciplinary articulation and with other public policies necessary to the network of assistance to adolescents in Socio-educational Measure (MSE). Although the performance is still marked by clinical care, psychologists consider the contextual aspects of the realities of each adolescent. It is part of their work: the attention to families, the guarantee of rights and the concern with the life of the adolescents after MSE. Finally, it is understood that the professional profile and trajectories make the difference in the performance and skills of creating strategies to deal with adverse situations in the day-to-day work in the socio-educational field.

Keywords: Psychology; Psychologist's Work; Professional Trajectory; Socioeducation.


RESUMEN

Este estudio identificó el perfil profesional y caracterizó los modos de acción de seis psicólogas/os en la política socioeducativa a través de entrevistas semiestructuradas. El análisis cualitativo identificó un perfil de psicólogos calificados, con trayectorias de desempeño en diferentes políticas públicas y en constante formación. La práctica estuvo marcada por la articulación interdisciplinaria y por otras políticas públicas necesarias para la red de atención al adolescente en Medida Socioeducativa (MSE). Aunque el desempeño aún está marcado por la atención clínica, las/los psicólogas/os consideran los aspectos contextuales de las realidades de cada adolescente. Parte del trabajo es la atención a las familias, la garantía de los derechos y la preocupación por la vida de los adolescentes después de MSE. Finalmente, se entiende que el perfil profesional y las trayectorias marcan la diferencia en el desempeño y las habilidades para crear estrategias para enfrentar situaciones adversas en el trabajo diario en el campo socioeducativo.

Palabras clave: Psicología; Trabajo del Psicólogo; Trayectoria Profesional; Socioeducación.


 

 

Introdução

De acordo com o último levantamento anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) referente ao ano de 2016, os psicólogos correspondem a 3,5% (1.125 profissionais) do total de trabalhadores do Sistema Socioeducativo do país (Brasil, 2018). Esses profissionais atuam enquanto técnicos no atendimento as/aos adolescentes inseridas/os no sistema e por esse motivo entende-se importante conhecer suas trajetórias e modos de atuação como ferramenta para vislumbrar possibilidades de potencializar as equipes técnicas e também reconhecer os seus esforços em direção à concretização de uma política socioeducativa de fato.

A legalização da profissão no Brasil ocorreu pela Lei Federal nº 4.119 em 27 de agosto de 1962 e, com ela, o estabelecimento de um currículo mínimo para a formação em Psicologia, centrado, principalmente, em teorias norte-americanas e europeias, que se mostravam distante da realidade brasileira. A Psicologia, portanto, nasceu ligada aos interesses da elite brasileira. Todavia, este cenário que configura um elitismo na história da Psicologia no Brasil não se manteve. Os movimentos sociais e de redemocratização do Brasil, que se intensificaram a partir da década de 1970, contribuíram gradualmente para a discussão sobre a formação, atuação e inserção de psicólogas/os em novos espaços de atuação (Bock, 2010). Neste contexto, de transformações e de compromisso com a real necessidade e realidade social, a Psicologia foi se inserindo no campo das Políticas Públicas, iniciando pela saúde mental. Bock (2010) conta que, quando as/os psicólogas/os entravam na saúde pública, replicavam o modelo de trabalho conduzido com a elite e encontravam dificuldades.

Desde então, a Psicologia busca seu lugar de atuação nos campos de trabalho das Políticas Públicas, revisando e adequando suas práticas profissionais a diferentes demandas e contextos de trabalho. No entanto, ainda hoje é possível identificar nos currículos de graduação uma formação técnica que privilegia a área clínica (Bardagi, Bizarro, Andrade, Audibert & Lassance, 2008). As habilidades e práticas clínicas são desenvolvidas e valorizadas na formação, mas torna-se necessária a diversificação destas no sentido do aprimoramento do trabalho em Políticas Públicas. Desta forma, o profissional que encontra nas Políticas Públicas um campo de trabalho precisa se reinventar, buscar formações complementares, estudar e até mesmo ser pioneiro em metodologias de trabalho com vistas a alcançar bons resultados junto da população atendida.

O Conselho Federal de Psicologia (CFP)1 tem discutido essa atuação em Seminários Nacionais de Psicologia e Políticas Públicas justamente por preocupar-se com a capacitação das/os psicólogas/os para tais campos de trabalho:

Muitas vezes, o profissional estava presente como agente do Estado, prestando serviço à população, com uma série de recursos técnicos, mas com poucos recursos analíticos para interpretar a cena institucional e política e para lidar com as contradições típicas dessa arena, desse contexto do exercício da vida pública, da cidadania, dos direitos humanos (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2007, p. 12).

Com o advento das Políticas Públicas no Brasil, as/os psicólogas/os que não vinham recebendo formações específicas e também não estavam habituados a uma reflexão crítica sobre a dinâmica social brasileira, repentinamente são colocados diante do trabalho nessas políticas (Silva, 2005). Há uma longa caminhada na real efetivação de uma cultura voltada para promoção de Políticas Públicas eficientes no país, que respeite os direitos humanos. Por isso faz-se necessário compreender qual o papel e a responsabilidade da Psicologia enquanto profissão nessa construção.

Com esta preocupação, no ano de 2018, o CFP se deteve em rever as diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em Psicologia. Desde os anos 1990, há uma preocupação do Sistema Conselhos quanto à formação profissional das/os psicólogas/os. O Encontro de Serra Negra, que ocorreu em 1992, registrou os princípios norteadores para a formação acadêmica, dentre os quais se destacam de acordo com o CFP (2018, p. 26):

alguns elementos importantes: a subjetividade compreendida no entrelaçamento de suas múltiplas dimensões; o compromisso social e ético com a realidade brasileira; a pluralidade de aportes teóricos, campos e práticas; a interdisciplinaridade; a indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão; a postura reflexiva.

Há preocupação do CFP de que os profissionais sejam capazes de promover leituras da realidade política, econômica, social e cultural e propor intervenções condizentes. Um campo das Políticas Públicas com que a Psicologia tem contribuído é o da socioeducação. O Sinase, Lei Federal nº 12.594, é uma política relativamente recente, datada de 2012, e diversos autores têm trabalhado para ampliar a compreensão sobre ela e para discutir possibilidades de melhoramento na atuação das/os profissionais desta política (Paiva, Souza, & Rodrigues, 2014; Silva & Garcia, 2017; Souza, Paiva, Oliveira, Mello & Alencar, 2014; Volpi, 2015). Todavia, pensando especificamente na atuação da/o psicóloga/o, ainda é necessário avançar, tanto na inclusão desse tema na formação acadêmica, quanto na discussão do mesmo em termos de difundir os modos de atuação possíveis.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória, de abordagem qualitativa. Esta pesquisa faz parte de uma pesquisa maior que integra o Programa de Cooperação acadêmica (PROCAD)2, entre os Programas de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Universidade de Brasília (UnB). O foco de pesquisa é a inserção, formação e atuação de psicólogas/os no campo das políticas de assistência social, saúde e socioeducação. Este estudo compõe a discussão sobre a Política Socioeducativa em Santa Maria. A aproximação com a realidade do campo socioeducativo decorre da interlocução com quem as vivenciam de forma mais direta e concreta. Interlocução que possibilita construir compreensões, que se transformam na interação e que são marcadas por um momento e por um percurso.

Participantes

Participaram desta pesquisa seis profissionais da psicologia3, com idades entre 30 e 48 anos, cuja formação ocorreu entre 1995 e 2010 majoritariamente em universidades particulares (apenas um em instituição pública). Além disso, todas/os os profissionais fizeram algum curso de especialização, sendo a maioria na área clínica.

As/os psicólogas/os possuíam entre 3 meses e 14 anos de atuação no campo da socioeducação. Três participantes eram funcionárias/os públicos do estado (que trabalham com MSE de internação e semiliberdade), uma/um funcionária/o pública/o municipal ligado à política de Assistência Social e atuando em um Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS, que executa MSE em meio aberto) e duas/dois psicólogas/os atuavam em uma organização não governamental, que presta serviços à prefeitura e executa MSE em meio aberto.

Instrumento

O instrumento utilizado para coletar informações foi a entrevista semiestruturada com perguntas abertas, que foi criada para abarcar a pesquisa do PROCAD. No roteiro de entrevista original, foram incluídas seis perguntas com enfoque na questão dos direitos humanos.

Procedimentos de acesso e coleta de informações

O projeto de pesquisa foi apresentado às instituições que executam MSE no município para verificar a possibilidade de realização da pesquisa, e consequentemente, execução das entrevistas. Após o aceite das instituições, o projeto foi submetido na Plataforma Brasil para avaliação do Comitê de Ética da UFSM, respeitando as Resoluções CNS n. 466 (2012) e 510 (2016), o qual teve a aprovação necessária, sob o protocolo CAEE no 97054618.9.1001.5346.

Com isso, foram feitos contatos com as/os profissionais de cada instituição para apresentação do Projeto, esclarecimento de dúvidas e convite para a participação na pesquisa. Em todas as instituições o projeto foi aceito e o contato para marcação da entrevista foi realizado posteriormente conforme disponibilidade da pesquisadora e das/os participantes. Das/os seis participantes acessadas/os para a coleta de informações, quatro responderam a entrevista sem remarcações e, para duas/dois, foram necessários reagendamentos, tendo em vista a própria rotina de trabalho. A maioria das entrevistas teve duração média de uma hora. As entrevistas foram realizadas individualmente nos locais de trabalho (instituições socioeducativas) de cada participante, audiogravadas e posteriormente transcritas.

Procedimentos de análise das informações

As respostas das/os participantes foram analisadas qualitativamente a partir da análise de conteúdo proposta por Bardin (1977/2011), assim se estruturaram a partir de dois eixos. O primeiro eixo abrangeu a trajetória de formação e o perfil profissional e o segundo eixo os modos de atuação. O primeiro eixo abarcou as respostas sobre a graduação em Psicologia e características da trajetória que foram comuns aos participantes, como experiências de trabalho anteriores em outras Políticas Públicas e formação complementar após a graduação (especialização, mestrado). Também abarcou características de escolhas individuais quanto aos caminhos seguidos na carreira de psicóloga/o. Desta forma, a primeira análise é de caráter descritivo quanto às trajetórias de formação e atuação destes profissionais, visando caracterizar e conhecer essas/es psicólogas/os.

Foram utilizados documentos da área para balizar as análises. Estes documentos foram produzidos pelo Centro de Referência Técnica de Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP). Um deles refere-se à atuação da/o psicóloga/o no âmbito das MSE em unidades de internação (CFP, 2010) e o outro em Programas de MSE em Meio Aberto (CFP, 2012).

O CREPOP é uma iniciativa do Sistema Conselhos de Psicologia criado em 2006 com intuito de promover a qualificação da atuação profissional da/o psicóloga/o que trabalha nas diversas Políticas Públicas. Parte-se do entendimento de que os modos de atuação têm como pano de fundo um compromisso social e profissional com a política (do Sinase) e com a garantia de direitos humanos do público a quem se destinam tais atuações. Além destes documentos, foram consultados artigos específicos sobre o tema, os quais colaboraram para a discussão sobre a formação e os modos de atuação de psicólogas/os nas Políticas Públicas e na socioeducação especificamente (Romagnoli, Neves, & Paulon, 2018; Santos & Menandro, 2017).

 

Resultados e discussão

Trajetória e perfil profissional do psicólogo que trabalha na Socioeducação

Quanto à atuação profissional, todas/os as/os participantes já haviam tido alguma experiência de trabalho anterior no campo das Políticas Públicas, o que confirma que este campo absorve profissionais da Psicologia nos últimos anos. Uma pesquisa da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), realizada entre 2006 e 2008, apontou a área da saúde como a segunda área que mais absorvia profissionais da Psicologia (Bastos, Godim & Borges-Andrade, 2010). Ainda, uma parceria entre o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e o CFP, mais recentemente, destacou o setor saúde, juntamente com a educação e os serviços sociais, como espaços nos quais a inserção e atuação da categoria, atingem 74% entre as instituições pesquisadas (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos [Dieese], 2016).

Fica claro com isso que a atuação nos setores públicos vem crescendo como campo de trabalho conforme relataram as/os participantes sobre suas trajetórias: "Quando eu me formei eu trabalhei no CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] e num CREAS, antes de vir pra cá. E eu acho que esses dois trabalhos assim, foi muito importante" (P3). Outra/o participante coloca: "Trabalhei em CAPS, 5 anos. E trabalhei em posto de saúde, na policlínica, acho que 1 ano mais ou menos" (P6).

Tais experiências foram sinalizadas como uma preparação para que o atual trabalho pudesse ter a qualidade de hoje, visto que a sua formação abarcou, de forma significativa, o tema das políticas públicas nas quais hoje atuam. Quando questionadas/os sobre lacunas que a formação possa ter deixado no que tange ao trabalho na atual política de socioeducação, as/os participantes relatam: "[...] o diferencial que eu acho que eu tenho é a questão de eu ter trabalhado muito, né, com pobreza extrema na Psicologia Comunitária lá em outro Estado do Brasil. Então me deu uma vivência muito boa, de eu entender realmente a realidade de muita gente" (P5). "Acho que falta desde a graduação um conhecimento maior no campo das políticas públicas, as práticas no SUAS [Sistema Único de Assistência Social], dentro da área da assistência social, acho que isso tudo faltou na graduação" (P6).

De acordo com a pesquisa de Moreira e Paiva (2015), realizada com psicólogas/os que trabalhavam com crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional, o que se percebe é que profissionais são inseridos nas instituições sem o conhecimento aprofundado das legislações e normas que devem embasar e orientar o atendimento. O aprofundamento teórico vem após a/o profissional estar inserido no cotidiano de trabalho. Parece que as/os psicólogas/os estão adquirindo esses conhecimentos de acordo com o aparecimento da demanda (Moreira & Paiva, 2015). Algumas/alguns participantes colocaram que as experiências anteriores, em outras Políticas Públicas ou outros equipamentos da rede de atendimento, oportunizaram aprendizados que a formação acadêmica não conseguiu garantir.

Quanto à entrada da Psicologia no campo das Políticas Públicas, Freire e Pichelli (2010) apontam que esse campo exige da/o psicóloga/o assumir novas posturas, tanto em relação à sua ideia de sujeito, visto agora como ativo e participativo, como à ideia de sociedade, devendo a noção de coletivo estar presente em suas práticas. Yamamoto (2012) discute a respeito da ausência de novas práticas na atividade profissional da/o psicóloga/o ao mudar seu foco de atenção para as chamadas parcelas mais amplas da população. Tais questões mostram o quanto ainda é necessário fortalecer a formação bem como difundir as práticas que vêm sendo executadas pelas/os profissionais como forma de instrumentalizar aquelas/es que estão atuando e aquelas/es que estão sendo formadas/os. A exemplo disto é possível contar com os documentos de referências técnicas do Sistema Conselhos de Psicologia (CFP, 2010; CFP, 2012), bem como os resultados de pesquisas acadêmicas com coleta de dados nos campos das Políticas Públicas (Macedo & Dimenstein, 2012; Moreira & Paiva, 2015; Santos & Menandro, 2017), os quais apresentam um panorama sobre as responsabilidades, possibilidades e desafios da prática profissional.

Quanto à formação complementar, todas/os psicólogas/os relataram ter completado pelo menos um curso de especialização. Quanto às áreas nas quais se especializaram, majoritariamente foram áreas tradicionais como a clínica (três participantes) e a avaliação psicológica (um participante). Duas/dois participantes realizaram especializações na área da saúde.

Esse dado caracteriza um grupo qualificado e que investiu pessoalmente na formação profissional, aspecto também identificado na pesquisa de Macedo e Dimenstein (2012). O investimento em formação complementar ocorreu na área clínica, o que pode ser atribuído a uma herança do lugar social da Psicologia desde a sua criação; identificação profissional da/o psicóloga/o com a atividade clínica associada ao modelo subjacente de profissional liberal, moldado à luz das profissões médicas (Yamamoto, 2007). Esse lugar acaba sendo um lugar de conforto e que pode oferecer ao profissional o tradicional reconhecimento por parte de colegas de profissão e de trabalho.

É também possível pensar que o investimento em qualificação na área clínica decorra do fato de que mais da metade das/os participantes mantém consultório particular, concomitantemente com a atuação na socioeducação. Este aspecto evidencia diretamente a necessidade de complementação de renda como uma possível consequência dos avanços da política neoliberal no país, que se acentuou a partir dos anos 1990. Enquanto trabalhador, a/o psicóloga/o acaba se desdobrando em prol de uma remuneração digna. De forma indireta, nesse cenário é possível vislumbrar a questão da/o psicóloga/o enquanto profissional autônomo, que corrobora a identidade tradicional do psicólogo como profissional liberal, valorizando o empreendedorismo individual. Identidade essa que, mesmo com diferentes experiências em Políticas Públicas, não vem sendo deixada em segundo plano pelos profissionais.

Para além das formações complementares ligadas a área clínica, quando questionadas/os sobre a fundamentação teórica que embasa a atuação, a clínica também teve destaque nas respostas. "É a terapia cognitiva comportamental e a psicologia positiva que é o que embasa o meu trabalho" (P3). "A minha fundamentação é terapia cognitivo-comportamental" (P5). "O que embasa meu trabalho é a, seria a abordagem clínica que eu fiz na graduação, que é a abordagem fenomenológica-existencial com ênfase em Gestalt-terapia" (P6). "A minha fundamentação é a psicanálise" (P2). Resultados semelhantes foram descritos no estudo de Macedo e Dimenstein (2012), corroborando a reflexão de Yamamoto (2007) de que a ação da/o psicóloga/o no setor do bem-estar social não tem se libertado das modalidades convencionais de atuação clínica informada pelas referências teóricas clássicas da Psicologia. Entretanto, esse dado difere consideravelmente dos encontrados por Santos e Menandro (2017) que, em pesquisa com psicólogas/os que trabalham com MSE de internação, identificaram a Psicologia Social e a Psicologia Institucional, respectivamente, como instrumentos teóricos para o trabalho. Ao chamar atenção para a atuação da/o psicóloga/o no setor do bem-estar social, Yamamoto (2007), enfatizou a intervenção do Estado no controle da economia nacional.

Também assinalou que a preocupação maior é de que as/os psicólogas/os estejam problematizando pouco ou não problematizando suas práticas. Este aspecto reforça uma das configurações mais dramáticas da prática das/os profissionais que trabalham no setor social público: o acesso desqualificado por parte de parcelas populacionais cada vez maiores aos serviços básicos no setor social. O atendimento desenvolvido pela Psicologia no Sistema Socioeducativo tem cunho institucional e visa ao acompanhamento (em suas diversas modalidades), das/os adolescentes e de suas famílias, devendo ser balizado pela Proteção Integral (Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro [CRP-RJ], 2019). Fazer a leitura de tantas realidades complexas e distintas (pois são individuais e subjetivas) demanda do profissional uma gama de conhecimentos no campo do social, além do conhecimento acerca do seu campo de trabalho e das técnicas da Psicologia em si. E não menos importante é a necessidade de articular todos esses aspectos da melhor forma possível, visando garantir os direitos de cada jovem que ali se encontra. Isso significa articular conhecimentos teóricos psicológicos, contexto social, direitos, rede de atendimento e trabalho interdisciplinar, preceitos socioeducativos, princípios éticos e responsabilidade profissional; é complexo, mas indispensável.

A ampliação do campo de atuação, proporcionada as/aos psicólogas/os com o advento das Políticas Públicas, não pode ser vista pura e simplesmente como uma ampliação da clientela, mas deve vir acompanhada de uma diversificação e ampliação das práticas. E mais: uma reflexão acerca do compromisso social que a profissão deseja ter, quer dizer, comprometer-se com o que? Para quem? Tais questionamentos visam buscar modos de atuação que possam de fato servir a um propósito que é social, que possa estar a serviço da população em suas mais diferentes e reais necessidades. É ajustar as práticas e possibilidades de trabalho profissional de acordo com as necessidades dos sujeitos e não fazer caber qualquer questão ou sujeito nas práticas psicológicas tradicionais.

Modos de atuação das/os psicólogas/os no contexto socioeducativo: Direitos Humanos em foco

O Sinase (Lei n. 12.594, 2012) prevê o respeito aos direitos individuais das/os adolescentes no seu terceiro capítulo. Porém, sabe-se o quanto ainda existem violação de direitos e tratamentos desumanos em instituições que executam MSE (Paiva, Gomes, & Valença, 2016). Além disso, o discurso social pede o recrudescimento das sanções punitivas sobre os adolescentes em cumprimento de MSE; inclusive no sentido de dar apoio à ideia de diminuição da maioridade penal (Petry & Nascimento, 2016). Tal cenário faz pensar sobre a forma como as MSE vêm sendo vistas pela sociedade, mas, especialmente, como vêm sendo executadas.

Dessa forma, importa conhecer o que tem sido feito pelos profissionais que colocam em prática a política socioeducativa, a qual, apesar de recente, nasceu com muitos compromissos éticos e políticos com a população infanto-juvenil e os direitos humanos. O encontro das/os psicólogas/os com o campo das Políticas Públicas exige o reconhecimento dos modos como produzimos e somos produzidos nesses locais, assim como uma reflexão sobre as estratégias provisórias que tais espaços demandam da profissão (Macedo & Dimenstein, 2012).

Ao serem questionadas/os sobre sua prática profissional junto as/aos adolescentes em cumprimento de MSE, as/os psicólogas/os destacaram que o trabalho tem influência direta e/ou indireta das expectativas e interpretações que a sociedade faz. "[...] o município e a sociedade esperam que a gente transforme esse sujeito assim e que ele saia de lá, daqui melhor" (P1). "[...] por mais que às vezes os guris não tenha aquele resultado que a sociedade imagina né, a gente sabe que alguma coisa os guris modificam" (P2). "o município entende a importância do [nome do serviço] e isso também tem sido relevante porque sabe que o investimento é um investimento que vale a pena..." (P4). Percebe-se que a opinião e a expectativa da sociedade interferem tanto de forma positiva, como no relato de P4, como pode gerar insegurança e ansiedade na/o profissional quando essa expectativa não condiz com aquilo que o trabalho pode alcançar de fato (como uma mudança total nos sujeitos que passam por MSE), de acordo com o relato de P1 e P2. Este aspecto da pressão social direcionada ao trabalho da/o psicóloga/o corrobora os achados na pesquisa de Santos e Menandro (2017), uma vez que para a maioria das/os psicólogas/os entrevistadas/os o que a sociedade demanda da/o profissional de Psicologia, que atua neste espaço, é que ela/ele "conserte" a/o menina/o. Desta forma, tais demandas não levam em conta que alterações na situação das/os adolescentes decorrem de um processo complexo que necessita tempo e estrutura. As exigências por determinados resultados não levam em conta a complexidade dos sujeitos, nem mesmo as condições de trabalho que as equipes têm (ou não) para desempenhar seus papéis. Esse embate de ideias e expectativas coloca as/os profissionais em um lugar desconfortável perante a sociedade e também no contexto de trabalho. Torna-se, portanto, importante desmistificar o trabalho da/o psicóloga/o, seus objetivos reais e compromissos com essa atuação.

O atendimento individual apareceu em primeiro lugar em relação às atividades desenvolvidas. Conforme relato de uma/um participante: "eu faço os atendimentos individuais. Que é um acompanhamento que eu preciso fazer do adolescente nesse processo de comprimento de medida" (P4). Espera-se que o profissional de Psicologia dê explicações sobre o comportamento dessas/es adolescentes pela via da patologização e da rotulação. Esta demanda está alinhada com a imagem (ou representação) hegemônica da atuação da/o psicóloga/o em nossa sociedade, o modelo clínico-médico (Santos & Menandro, 2017). O acompanhamento individual neste contexto não deve servir a um objetivo de diagnóstico e patologização, nem mesmo estar alinhado a uma perspectiva clínica de avaliação psicológica. Tal prática se torna valiosa quando voltada a atenção aos sujeitos em sua totalidade, acolhendo suas trajetórias para verdadeiramente conhece-los e assim poder viabilizar a proteção integral e o acesso aos direitos básicos. Importa compreender os aspectos históricos, sociais, econômicos, políticos e subjetivos dos sujeitos para possibilitar a produção de análises críticas acerca do ato infracional cometido, provocando seu processo de responsabilização, estimulando à construção de perspectivas para sua vida e existência sociopolítica (CRP-RJ, 2019).

Esse modo de atuação foi demarcado como uma forma de reconhecimento por parte da equipe do trabalho da/o psicóloga/o dentro das instituições. Como no relato: "Quando um colega diz 'ah, como o fulano tá bem, como ele tá melhor', isso me deixa também muito feliz assim. Porque eu sei que, eu quero acreditar que muito é um pouco pelo acompanhamento individual que a gente faz" (P1). O reconhecimento do trabalho realizado não parte apenas das/os colegas, mas também das/os próprias/os adolescentes: "a principal diferença é a demanda de atendimento individual, que os guris pedem muito" (P2). Santos e Menandro (2017) levantam uma hipótese para que tal prática seja tão hegemônica: de que uma vez fora do setting clínico privado, a/o psicóloga/o fica meio "desambientado" e com algumas dúvidas sobre suas possibilidades de atuação. Essa insegurança ou desconhecimento acerca de outras possibilidades de atuação pode estar cristalizando os modos de atuação tradicionais como se coubessem em qualquer contexto. Fica evidente com isso a fragilidade da atuação social da/o psicóloga/o ou, ainda, a dificuldade de se desvencilhar do modus operante invidualizante e contemplar uma visão contextual do meio social no qual todas/os estão inseridas/os. Essa leitura pode se tornar superficial quando a/o profissional possui uma formação mais fechada, específica e/ou diretamente ligada as técnicas tradicionais de psicoterapia e avaliação psicológica. Essa leitura pode se tornar complexa quando se tem a compreensão de que o trabalho da/o psicóloga/o exige raciocínio crítico acerca do cenário social, do trabalho institucional e do contexto político o que, muitas vezes, não é visto nem desenvolvido como uma habilidade da/o psicóloga/o. As/os profissionais só se percebem como atores do desenvolvimento das políticas sociais quando encontram nelas oportunidades de emprego, mas, dificilmente, a formação acadêmica potencializa espaços para este protagonismo. A formação, portanto, tem sua parcela de responsabilidade no desenvolvimento de uma leitura plural da psicologia, que possibilite interlocuções com outras áreas, assegurando a consolidação e articulação dos saberes a fim de contribuir com o fortalecimento do significado social da profissão. Torna-se urgente conhecer a complexidade das questões produtoras de fenômenos e processos psicológicos - não apenas em nível individual.

Todavia, ainda que as/os psicólogas/os tenham dado ênfase ao atendimento individual enquanto prática, as/os mesmas/os não deixaram de ter uma leitura crítica acerca do contexto social das/os adolescentes. "A maioria é de nível socioeconômico baixo [...] não são pessoas assim que vinham frequentando serviços da rede, não são. E a escolaridade baixa, muito baixa" (P1). Reconhecem assim que as/os adolescentes, que chegam às instituições socioeducativas, em sua grande maioria, nunca tiveram qualquer outro aparato do Estado, nunca foram assistidos por qualquer outra Política Pública. As políticas de segurança pública por meio do policiamento ostensivo, persecução ou execução penal, muitas vezes são a primeira forma de contato de uma/um jovem com o Estado (Souza, Paiva, & Oliveira, 2013). O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2015, propôs uma reflexão pertinente neste sentido: Se a/o adolescente não teve acesso aos direitos sociais básicos, que poderiam lhes garantir outra trajetória social, como imputar-lhes a responsabilidade integral por ter aderido à criminalidade?

É com essa questão que as/os profissionais do sistema socioeducativo se encontram todos os dias. O grande abismo que existe entre o que é possível fazer e oferecer as/aos adolescentes em cumprimento de MSE e o que preconiza a legislação. Há também o distanciamento entre o que é socialmente esperado da execução das MSE (mudanças mágicas e resultados imediatos) e aquilo que está ao alcance das/os profissionais atuantes nas políticas para garantias de direitos básicos e oportunizar um cumprimento de MSE com qualidade e práticas sociais e educativas de fato.

No desenvolvimento das suas atividades, as/os psicólogas/os relataram que as relações com outros equipamentos da rede de atendimento são primordiais, podendo ser fator facilitador ou dificultador do andamento da MSE. Essas articulações tiveram lugar de destaque nas descrições das atividades. P2 quando falava sobre suas atividades cotidianas, salientou que tais articulações são importantes e ocupam boa parte do tempo de trabalho da Psicologia no serviço. "[...] do círculo de desligamento nós que temos que organizar, então assim, a gente tem que ligar para a família, pro CREAS, pro POD, fazer toda uma articulação de horário, então assim, hoje de manhã eu fiquei fazendo os relatórios e articulando esses círculos..." (P2).

Também se destacou como uma dificuldade a desarticulação de outros equipamentos da rede, fato que foi citado pelas/os psicólogas/os como responsável por prejudicar o andamento das MSE em diferentes aspectos naquela localidade. "[...] aqui, [nome da cidade], ficou por muito tempo sem equipe, no CREAS e nos CRAS, mas assim por muito tempo, e acho que isso prejudicou com certeza o trabalho com esses jovens" (P3). A dificuldade de articulação entre os serviços foi atribuída à alta rotatividade das/os profissionais, que pode ter ocasionado a falta de comunicação entre as equipes. Macedo e Dimenstein (2012) apontaram a rotatividade de profissionais na equipe como aspecto que contribui para a precarização do trabalho. A rotatividade de profissionais nas equipes de trabalho, outra consequência dos avanços da política neoliberal, é decorrente de vínculos precários de trabalhos, arranjos políticos locais e ausência de concursos públicos tanto nos equipamentos da rede municipal quanto estadual. Pode-se questionar se há de fato um real interesse em resolver esta dificuldade. Entende-se que a articulação é importante para que as políticas possam garantir o que foi preconizado pelas legislações (Lei n. 8.069, 1990; Lei n. 12.594, 2012), sendo relevante que as/os profissionais consigam dialogar e tenham condições de estabelecer trabalhos conjuntos, integrados, visando não somente ao êxito das práticas, mas também evitando retrabalhos e almejando o melhor atendimento para a população. P1 apontou que a Psicologia é uma área que tem condições técnicas de lidar com essa demanda de trabalhar em rede e interdisciplinarmente. "[...] a Psicologia, eu acho que tá na nossa formação a importância de um trabalho interdisciplinar, a importância de um trabalho integrado, a importância da comunicação entre os serviços" (P1).

Volpi (2015) alerta que as MSE devem estar articuladas em rede, em um conjunto de serviços, assegurando uma atenção integral aos direitos e, ao mesmo tempo, o cumprimento de seu papel específico. O Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro - CRP-RJ (2019) refere que a Psicologia no Sistema Socioeducativo deve cuidar para que a rede seja acionada desde a entrada da/o adolescente no Sistema e também ressalta que qualquer dos serviços em que a/o psicóloga/o atue, é importante que busque compreender o histórico de atendimento da/o adolescente na rede de serviços. O CFP (2010) pontua que a parceria, articulação com outros programas e serviços é um dos aspectos do trabalho da/o psicóloga/o que trabalha com MSE. São essas parcerias que propiciam a inclusão da/o adolescente e devem, de acordo com a demanda e especificidade, atender com qualidade em suas necessidades, no presente e no futuro.

As/os participantes reconheceram que a articulação com a rede é uma das atividades mais centrais no dia a dia do trabalho, em diferentes momentos das MSE e também com diferentes setores, desde a articulação com serviços de assistência social e saúde, bem como com as famílias das/os adolescentes atendidas/os e escolas. Os motivos que levam uma/um adolescente a cometer ato infracional são tão complexos que o enfrentamento dessa problemática requer uma diversidade de atores em vistas da sua superação.

A capacidade de articular com outros equipamentos da rede e com outras áreas do conhecimento foi identificada no relato das/os psicólogas/os entrevistadas/os, demonstrando comprometimento ético com a população à qual prestam serviço. Tal aspecto também vai ao encontro dos preceitos socioeducativos, principalmente no que diz respeito ao princípio da incompletude institucional, caracterizado pela necessidade de utilização do máximo possível de serviços (saúde, educação, defesa jurídica, trabalho, profissionalização) na comunidade, responsabilizando as políticas setoriais de atendimento, neste caso das/os adolescentes (Volpi, 2015). Já no "Código de Ética Profissional do Psicólogo" (Resolução CFP n. 10, 2005) pontua-se que a/o psicóloga/o baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, articular a rede de atendimento é uma das formas de trabalhar em prol da garantia dos direitos dessas/es jovens.

Estes aspectos confirmam o que aponta o CFP (2010) sobre atuação da/o psicóloga/o em unidades de internação: articulação com outros programas e serviços. A atuação em medidas de meio aberto não é diferente. Neste caso o CFP (2012) ressalta a participação política das/os psicólogas/os, o compromisso e a responsabilidade social da profissão em ações que afirmem uma rede de serviços destinados as/aos adolescentes em cada município e também a articulação dos diferentes campos de saber. O atendimento socioeducativo extrapola as competências de um único segmento institucional, portanto, as relações interinstitucionais no Sistema de Garantia de Direitos são fundamentais para um atendimento que garanta a responsabilização e a devida proteção integral as/aos adolescentes em cumprimento de MSE (Secretaria Nacional de Assistência Social [SNAS], 2016).

Parte das atividades que as/os psicólogas/os entrevistadas/os descreveram como compondo seu cotidiano de trabalho eram realizadas juntamente com outras/os profissionais ou eram também realizadas por outras/os técnicas/os, como assistentes sociais, pedagogas/os e também por educadoras/es socioeducativas/os. Entretanto, foi unânime que o atendimento clínico individual foi a atividade que apareceu com mais frequência, sendo citada como atividade específica da Psicologia nos serviços de atendimento socioeducativo. Apesar disso, as/os profissionais não se limitaram a esse modo de atuação, nem demonstraram negligenciar outros aspectos do trabalho socioeducativo.

 

Considerações finais

A inserção profissional da Psicologia nas Políticas Públicas como um todo é um tema debatido academicamente há algum tempo. Sobre isso, existem estudos e publicações para amparar e instruir a categoria profissional. Entretanto, a atuação na política socioeducativa é mais recente e possui um quantitativo menor de publicações e referenciais teóricos específicos. Ainda assim, existem referências técnicas, relatos de experiência e pesquisas com grupos de profissionais que atuam na área que podem contribuir com as discussões e com o dia a dia do trabalho.

No que tange à reflexão sobre a necessidade de abertura teórico metodológica da formação em Psicologia para a atuação nas Políticas Públicas, entende-se que as discussões que se iniciaram na saúde e assistência social podem amplamente ser utilizadas. E é a partir delas que a categoria profissional vem se alertando para alguns importantes aspectos do trabalho nesses campos, que precisam ainda de atenção e aprimoramento. Todavia, existem especificidades de cada Política Pública que precisa ser pensada para que os modos de atuação profissional possam estar em conformidade com as mesmas. Quer dizer, a Psicologia, enquanto ciência, precisa se apropriar dos conceitos teóricos e das bases ético-políticas que compõem a política socioeducativa para que assim seja possível uma atuação profissional apropriada às demandas desse campo. Também precisa se fortalecer e ter mais consistência no debate para lidar com as concepções e preconceitos que surgem sobre adolescentes em cumprimento de MSE e, igualmente, acerca da política de atendimento a essa população.

As/os psicólogas/os, que participaram deste estudo, estavam no mínimo na sua segunda experiência de trabalho em alguma Política Pública. Fato que confirma a ideia de que, de forma geral, este campo tem recebido cada vez mais psicóloga/os nas suas equipes técnicas. Tais experiências foram compreendidas como formativas, pois possibilitam aprendizagens e inovações no dia a dia do trabalho, conforme as demandas aparecem. Se por um lado estas aprendizagens e inovações nos modos de atuação podem possibilitar ampliar a compreensão sobre o trabalho da Psicologia na socioeducação, por outro lado podem ser vistas como arriscadas, uma vez que a/o psicóloga/o não deve trabalhar de improviso, precisa estar preparada/o e munida/o tecnicamente sobre o que é o seu papel enquanto trabalhador/a de uma política pública. A trajetória de formação das/os participantes revelou o distanciamento da teoria e da prática, na medida em que seus cursos de graduação não contemplaram frequentes reflexões temáticas, ou disciplinas específicas, que os instrumentalizassem para a prática na política socioeducativa. O que se manifesta é uma lacuna na formação, por não preparar os profissionais para o mercado de trabalho. Ao aprofundar esta questão vê-se que se faz necessário formar profissionais capazes de questionar e responder a demandas complexas, cuja origem perpassa questões históricas e sociais presentes cotidianamente. É preciso trabalhar uma formação mais reflexiva e crítica, de análise de circunstâncias contextuais e políticas da realidade brasileira. Não se trata necessariamente de instituir disciplinas específicas de forma indiscriminada, mas de uma reflexão que deve ser transversal a toda a formação (desde as disciplinas teóricas, até os estágios, pesquisas e extensão).

Quanto aos modos de atuação, este estudo pretendeu unificar a análise sobre as práticas das/os psicólogas/os no sistema socioeducativo por entender que não seria possível categorizar uma atuação que deve trabalhar em prol de uma visão e atenção integral à população à qual presta serviço. Para isso, optou-se por fazer uma análise única, na qual foi possível perceber que existem muitas semelhanças entre os modos de atuação das/os psicólogas/os que se encontram nos equipamentos de meio fechado ou aberto.

As/os psicólogas/os relataram que atuam de forma intensa com os atendimentos individuais de característica da clínica psicológica. Essa foi a atividade mais citada e que ocupa boa parte do tempo das/os psicólogas/os na socioeducação. Mas principalmente, as/os psicólogas/os vêm trabalhando de forma intensa em prol da articulação da rede de atendimento, uma vez que entendem que essa prática em rede é primordial para alcançar o atendimento que a/o adolescente em cumprimento de MSE deve receber. Isso também demonstrou a capacidade de atuar interdisciplinarmente e o conhecimento sobre as corresponsabilidades das políticas intersetoriais, compreensões e habilidades desenvolvidas pelas/os psicólogas/os a partir do trabalho no campo das Políticas Públicas. Neste campo existe também um aspecto que é pessoal, que seria uma persistência e capacidade de lidar com situações que não dão certo sem perder a crença naquela causa. Como a/o participante 4 muito bem explicitou: "tu tem que ser muito forte pra persistir e muito sensível pra enxergar as coisas, senão não aguenta".

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Bianca Zanchi Machado
biancaz.machado@gmail.com

Samara Silva dos Santos
silvadossantos.samara@gmail.com

Submetido em: 13/11/2017
Revisto em: 03/04/2018
Aceito em: 26/04/2018

 

 

1 https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2007/10/politicas_publicas_cartilha.pdf
2 Programa de Cooperação Acadêmica Edital n 071/2013. https://www.capes.gov.br/images/stories/download/editais/Edital_071_2013_PROCAD.pdf
3 O gênero dos participantes não será classificado para evitar identificação. Além disso, trata-se de uma pesquisa censitária, pois abarcou o total de psicólogas/os atuantes em Instituições Socioeducativas no município no período da coleta de dados. Assim, optou-se por usar o termo genérico psicóloga/o.

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