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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2020v72i3p.113-128 

ARTIGOS

 

Imigração africana e psicologia: uma revisão sistemática da literatura brasileira

 

Immigration and psychology: a systematic review of Brazilian literature

 

Inmigración y psicología: una revisión sistemática de la literatura brasileña

 

 

Lassana DanfáI; Renata Lira dos Santos AléssioII

IPsicólogo. Doutorando em Psicologia. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal de Pernambuco. Recife. Estado de Pernambuco. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Pernambuco. Recife. Estado de Pernambuco. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A presente revisão sistemática objetiva analisar o modo como a Psicologia tem investigado a imigração africana no Brasil. Os dados foram coletados entre fevereiro e maio de 2019 nas bases: Periódicos da Capes, PePSIC e BVS. Os descritores utilizados foram: imigração e psicologia; imigrantes e psicologia; refugiados e psicologia; estudantes e psicologia. Foram encontrados 1.171 estudos, dos quais foram retidos cinco, de acordo com os critérios de inclusão e exclusão. Na análise, foi levada em conta a forma como as relações étnico-raciais foram exploradas, os limites e contribuições teórico-metodológicas. Os estudos foram classificados de acordo com a similaridade dos níveis de análise propostos por Doise, sendo observados três níveis: o intraindividual, interindividual e societal. Na análise das temáticas étnico-raciais, apenas um estudo se alicerça no nível societal. O nível de análise intraindividual apresentou de forma cautelosa os temas definidores de dissensos como racismo e xenofobia.

Palavras-chave: Imigração; Psicologia; África; Níveis de análise; Étnico-racial.


ABSTRACT

This systematic review aims to examine how psychology has investigated African immigration to Brazil. Data were collected between February and May 2019 on the basis of the databases Periódicos da Capes, PePSIC, BVS. The following descriptors were used: immigration and psychology; immigrants and psychology; refugees and psychology; students and psychology. We found 1,171 studies, and after application of inclusion and exclusion criteria, 5 articles were selected. Our analysistook into account how ethnic and racial relationships were explored, limits and theoretical methodological contributions. The studies were classified according to the similarity of the levels of analysis proposed by Doise, and revealed three levels: the intra-individual, inter-individual and societal. After analyzing the ethnic and racial issues, only one study was founded on the societal level ; the level of intra-individual analysis emphasized cautiously issues defining dissent as racism, xenophobia, discrimination and prejudice.

Keywords: Immigration; Psychology; Africa; Levels of analysis; Ethnic-racial.


RESUMEN

Esta revisión sistemática tiene como objetivo analizar la forma en que la Psicología ha investigado la inmigración africana en Brasil. Los datos se recopilaron entre febrero y mayo de 2019 en las siguientes bases de datos: Periódico de Capes, PePSIC, BVS. Los descriptores utilizados fueron: inmigración y psicología; inmigrantes y psicología; refugiados y psicología; estudiantes y psicología. Se encontraron un total de 1.171 estudios, de los cuales 5 fueron retenidos de acuerdo con los criterios de inclusión y exclusión. En el análisis, fue considerada la forma en que se exploraron las relaciones étnico-raciales, los límites y contribuciones teórico-metodológicas. Los estudios se clasificaron según la similitud de los niveles de análisis propuestos por Doise, observándose tres niveles: intraindividual, interindividual y social. En el análisis de temas étnico-raciales, solo un estudio se basa en el nivel social. El nivel de análisis intraindividual presentó con cautela los temas definitorios de la disidencia, como el racismo y la xenofobia.

Palabras clave: Inmigración; Psicología; África; Niveles de análisis; Étnico-racial.


 

 

Introdução

Existem vários gêneros de imigrantes. Alguns se deslocam por vontades e motivações próprias, obtendo formalmente um visto de entrada, configurando a imigração temporária ou "provisória" (Berner, Pires & França, 2016). Para outras pessoas, a imigração ocorre de forma forçada, em contextos desfavoráveis vivenciados nos países de origem, podendo ser concedidas proteções nos países do destino no quadro dos acordos internacionais. Esta última categoria de imigrantes, são aqueles que fogem de conflitos armados ou perseguições, por exemplo (Berner et al., 2016). No caso dos imigrantes africanos, salientam os autores, a grande parcela chega atualmente no Brasil via refúgio ou a estudo. No entanto, os estudantes se destacam devido ao número expressivo dos que entram no território brasileiro, principalmente, via Programa de Estudantes - Convênio de Graduação (PEC-G), resultado da cooperação bilateral Brasil-África. Acrescenta-se ainda, nos dias atuais, o crescente aumento da imigração senegalesa, uma chegada acentuada desde 2010, principalmente no Rio Grande do Sul. Região que nessa época passou a atrair os imigrantes internacionais, em decorrência da grande oferta do emprego nas indústrias alimentícias, mecânica e construção civil. Em 2016, a presença dos imigrantes senegaleses, por exemplo, contabilizava um total de 4 mil pessoas (Brignol & Costa, 2018).

De acordo com Vargem e Malomalo (2015), entender a imigração africana nos dias atuais, implica um recuo histórico, a partir da análise dos primeiros contatos com os europeus antes dos séculos XX e XXI. No século XV assistiu-se à entrada dos europeus no solo africano, tendo a igreja e o império desempenhado papéis cruciais na construção das ideologias que sustentaram a colonização e escravidão. Por um lado, observou-se a edificação da civilização eurocristã e domínio imperialista, através da moral burguesa. E por outro lado, a construção das diásporas africanas na Europa e América, decorrentes da subjugação e deslocamento forçado no tráfico negreiro. Esses processos não ocorreram isentos de violências. Situações semelhantes acontecem com a imigração africana nos dias atuais, tendo em vista que ela é marcada pela violência, incluindo mortes e espancamentos. Aliás, "a história perversa do trato com os africanos escravizados, como vimos, faz com que seus descendentes e os imigrantes africanos sejam objetos de discriminação e do racismo" (Vargem & Malomalo, 2015, p.15).

Na visão de Munanga (2015), o Brasil se configura como um país que emergiu no encontro multicultural e étnico. Os indígenas foram os primeiros a habitarem o Brasil. Em seguida, os invasores e/ou colonizadores portugueses e os africanos submetidos à barbárie da escravidão. E por último, os europeus e brancos de diferentes procedências nacionais. Neste sentido, as antigas correntes imigratórias e a escravidão dos cidadãos africanos aglutinaram no mesmo território descendentes de povos, etnias e culturas diferentes e múltiplas. Acrescenta-se a isso, os fenômenos de pós-descolonização dos países africanos, que fez eclodir as novas ondas imigratórias dos países em vias do desenvolvimento em direção ao norte do globo (Munanga, 2015). O que, para o autor, provocou problemas de convivência mais pacífica entre os diferentes e, por conseguinte, a eclosão de atitudes e práticas racistas, xenófobas e diversas intolerâncias, principalmente as religiosas.

A imigração no Brasil começou com o advento dos portugueses na época colonial, com intuito de apropriar-se das terras brasileiras do ponto de vista militar e econômico. Acontecimento que deu origem à segunda forma de contato dos portugueses com os africanos, resultando no processo de escravidão. Esta última forma de imigrar perdurou três séculos, culminando com a introdução de quatro milhões de cidadãos africanos escravizados. Constrói-se nessa época, portanto, uma sociedade escravocrata, que, por conseguinte, deixou marcas profundas nos africanos e afrodescendentes no período após a escravatura. Segundo Berner et al. (2016), nas primeiras décadas do século XIX, assistiu-se, também, à extensão da imigração aos outros países imperialistas, principalmente os alemães e italianos. Alguns destes foram incorporados na agricultura e outros na infraestrutura (Patarra & Fernandez, 2011).

A mesma integração não aconteceu com os afrodescendentes no Brasil, conforme Florestan Fernandes (2007) apontou nos seus estudos. A integração traz dois dilemas sociais: o primeiro, a absorção da população negra de ex-escravizados à ordem social e econômica competitiva, de modo a combater e superar o desamparado causado pelo passado escravocrata. O segundo dilema incide diretamente sobre o preconceito de cor, na medida em que a cor define a posição social desprivilegiada. Urge, portanto, colocar o negro em condição de igualdade com o branco, de modo a superar problemas sociorraciais. Por sua vez, para Schwarcz & Starling (2015), além do Brasil ser o último país a abandonar o tráfico atlântico de escravos no mundo ocidental, é uma nação campeã das inequidades sociais e perversidade do racismo. E apesar de a legislação inibir quaisquer formas de discriminação, a população negra é a maior vitimada e culpabilizada pela justiça e a com menos acesso aos bens simbólicos, à educação, aos bens materiais e ao emprego.

A oposição à imigração africana começou cedo no Brasil, isto é, desde a assinatura da Lei Áurea em 1888 e a Proclamação da República em 1889. A objeção ocorreu com assinatura do presidente Deodoro da Fonseca, através do Decreto no 528 de 28 de junho de 1890. Estabeleceu-se, assim, a lei que dificultava a entrada dos imigrantes africanos e asiáticos. Porém, a imigração asiática (japoneses e chineses) foi facilitada mais rápido do que a dos africanos, pelo Decreto-lei no 97, aprovado em 1892 (Vargem & Malomalo, 2015). Para a compreender a utopia do Brasil como um país de imigração, torna-se importante destacar o deslocamento forçado dos africanos do além-mar, no período compreendido entre 1890-1930, que contribuiu na formação da sociedade brasileira. Este cenário forjou, de um lado, a assimilação das correntes imigratórios tidas como capazes de elevar o Brasil no plano econômico e racial e, do outro lado, a discriminação das correntes imigratórias tidas como indesejáveis e incapazes de modernizar o Brasil. Os africanos foram assimilados no âmbito discriminatório através de atividades de menor prestígio como na culinária, música e artes, não necessariamente no sentido apreciativo. O que se deve ao fato de se tratar de atividades subalternas marcadas por submissão, expansividade e exotismo. No caso dos europeus, italianos, por exemplo, a integração se dá pela via da industrialização e modernização do Brasil (Patarra & Fernandez, 2011). O que privilegia esta última corrente imigratória.

Essa época, século XIX, foi marcada pela institucionalização da Psicologia como ciência, contando com a contribuição significativa da Liga Brasileira de Higiene Mental para a sua consolidação enquanto saber científico. O seu nascimento se deu em um contexto favorável às ideias eugenistas e ao projeto da publicização do melhoramento da raça. Acrescenta-se a isso a passagem do Brasil-Império para Brasil-República, em 1889, um ano após a "abolição" da escravidão. Neste sentido, a Psicologia não está isenta das condições históricas e contextuais em que emergiu (Faggion & Boarini, 2018). Por sua vez, para Masiero (2005), as teorias raciais entraram no Brasil em 1869, servindo de base para direcionamento teórico e prático da Psicologia. Ressalta-se que as teorias eugênicas se opõem as correntes imigratórias que não sejam da raça branca. Por exemplo, a recomendação do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929), através da 10ª resolução (Masiero, 2005), proferiu a seguinte recomendação ao Estado brasileiro: "o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia aconselha a exclusão de todas as correntes imigratórias que não sejam da raça branca" (Masiero, 2005, p. 203). Estudiosos como Jacó-Vilela, Degani-Carneiro e Oliveira (2016) consideram a questão racial, fruto da sociedade escravocrata, um dos problemas sociais cruciais da vida cotidiana brasileira vinculadas ao desenvolvimento da Psicologia Social.

Os imigrantes africanos no Brasil sofrem problemas semelhantes aos do brasileiro negro: marginalização, discriminação e racismo. Todavia, os africanos são suscetíveis à dupla discriminação. De um lado, por serem negros e, do outro, por serem africanos, neste caso, provenientes de um continente marginalizado. Neste sentido, mesmo nos casos da imigração a estudo, em que o imigrante possui um certo "status", o africano continua sendo visto na ótica colonizadora e racista no Brasil contemporâneo (Vargem & Malomalo, 2015). Na mesma ótica, Gusmão (2011) demonstra que o caso africano envolve a aceitação e acolhimento enquanto estrangeiro e, de outro lado, a negação devido ao seu pertencimento à raça negra. Acrescenta-se a isso, o fato do africano ser visto a partir de uma categoria geral de pertencimento: África. Lugar marcado pela marginalização e visões depreciativas. Apesar das especificidades entre os imigrantes africanos, alguns provenientes dos países da língua portuguesa, outros são provenientes dos países africanos que sofreram a colonização inglesa e francesa, a imigração africana se caracteriza pelos conflitos e crises que igualam os africanos (Gusmão, 2012).

Quando não sofre o racismo, o africano é segregado, visto como um sofredor passivo, digno de pena, devido à procedência de um continente precário e com condições laborais precárias. Nota-se, portanto, que esse sentimento de piedade desfavorece a interculturalidade (Brignol & Costa, 2018), tendo em vista o olhar exótico e subalterno para os imigrantes africanos. O que para Vala (2013) se configura como racismo pela via de sentimentos "positivos", visando colocar o negro na posição do dominado, isto é, um "pobrezinho" incapaz de grandes progressos civilizacionais. Pode-se dizer, portanto, que a imigração africana nos remete a quatro aspectos: à história geral do negro; à imagem do africano; ao olhar sobre o estrangeiro na terra dos outros e aos problemas sociais do século XXI, isto é, às crises humanitárias (Gusmão, 2012).

Os primeiros intercâmbios ocorreram desde 1940, ainda na Segunda Guerra mundial, quando as vivências dos conflitos fizeram com que determinados grupos estabelecessem vínculos de proximidade cultural. A partir daí os valores ligados ao intercâmbio começaram a proliferar (Mallard, Cremasco & Metraux, 2015). Em decorrência dos conflitos na década de 1990 e de crises político-econômicas, a imigração africana passa também, a ser marcada pelos acordos bilaterais no âmbito educacional Sul-Sul. Trata-se da imigração temporária, especial ou a estudo. Porém, esta última categoria de imigrante não constitui objeto da reflexão acadêmico-científico de muitos pesquisadores. Acrescenta-se a esse fato a invisibilidade desses discentes nas universidades, exceto nos casos da violência ou atos discriminatórios explícitos, em sua maioria de ordem racial (Gusmão, 2012; Patarra & Fernandez, 2011). Percebe-se que o estabelecimento da relação dos africanos com os brasileiros ocorre com base na simultaneidade da distância e proximidade, visibilidade e invisibilidade (Gusmão, 2011, 2012).

Para Gusmão (2011), apesar do processo histórico-cultural que une os dois lugares, a inserção do africano no Brasil não se dá pelo laço de irmandade, e sim pela aversão, exclusão, marginalização e racismo. Por sua vez, Mallard et al. (2015), ao contrário da propagação de hospitalidade brasileira para todos os tipos de imigrantes, o não acolhimento de determinados cidadãos diz muito da forma como uma dada sociedade se caracteriza e a forma como ela lida com a tolerância diante do diferente imaginariamente construído. No caso da sociedade brasileira, é perceptível que ela se organiza a partir de uma lógica escravocrata e racista. Nota-se, portanto, que o estudante africano vive na condição de estrangeiridade, uma vez que se trata de um tipo de imigrante que vive em condições caracterizadas pela vulnerabilidade. O que não ocorre necessariamente com todos os imigrantes, principalmente aqueles provenientes dos países europeus, ou seja, nem todos os imigrantes vivem a condição de estrangeiridade. Para que isso aconteça, é preciso que o imigrante se encontre em uma condição de indefensabilidade e do desamparo (Mallard et al., 2015).

A questão racial tem atravessado a construção da Psicologia brasileira enquanto ciência. Temática que igualmente exerceu influência na questão imigratória, principalmente as correntes imigratórias negras como as africanas e/ou negras (Geraldo, 2012; Masiero, 2005, 2014; Villen, 2012). Neste sentido, a vinculação da Psicologia com a higienização e racialização dos povos e/ou grupos sociais no passado pode explicar a atualidade da sua atuação bem como os temas do seu interesse (Faggion & Boarini, 2018). Ressalta-se que o exercício da Psicologia sofreu grandes transformações históricas ao longo do tempo, o que se deve ao fato de que em um dado histórico esteve vinculada à hierarquização dos grupos raciais e, na atualidade em prol da equidade, transformação social e na busca de respostas dos temas emergentes. Por este motivo, é necessário convocar a Psicologia para atuar e dar respostas as situações contextuais e estruturais, como racismo e imigração dos grupos sociais marginalizados. Razão pela qual, a presente investigação visa estudar o modo como a Psicologia tem estudado a imigração africana e como tem tratado as relações étnico-raciais nesse contexto, levando em conta a proximidade histórico-cultural dos dois povos.

 

Método

Trata-se de uma revisão sistemática sobre a imigração africana em Psicologia. Este tipo de revisão favorece a maximização da busca de produções acadêmicas, permitindo que o pesquisador encontre a maior quantidade de estudos possíveis. Esta modalidade de revisão não se restringe apenas na descrição de resultados encontrados, mas também promove a análise crítica e reflexiva dos materiais achados (Costa & Zoltowski, 2014). A seguinte pergunta norteou esta revisão: como a Psicologia brasileira tem investigado a imigração africana? Os dados foram coletados no período compreendido entre fevereiro e maio 2019. Foram utilizados os descritores que abordam estudos em Psicologia: imigração e psicologia; imigrantes e psicologia; refugiados e psicologia; estudantes e psicologia. Foram critérios de inclusão: estudos relacionados à imigração africana em Psicologia publicadas no Brasil. E critérios de exclusão: todos os artigos que não versam sobre a imigração africana, não estudados ou publicadas em Psicologia no Brasil. Ressalta-se que, quando os artigos foram encontrados em mais de um banco de dados, as repetições foram excluídas.

Para a análise foram considerados a fundamentação teórica, objetivos, o delineamento metodológico de cada artigo e seus principais resultados. Buscou-se enfatizar a forma pela qual foram apresentadas e abordadas as discussões étnico-raciais nos artigos publicados, em termos de limites e contribuições dos alcances explicativos gerados. Para isso, os artigos classificados em função dos níveis de análise propostos por Doise (2002). Trata-se de uma proposta de análise no campo de Psicologia Social, que procura conjugar diversidade das formas nas explicações dos fenômenos psicossociais. São quatro tipos de propostas. A primeira, a intraindividual, focaliza as explicações no modo como os sujeitos organizam suas percepções e comportamentos no ambiente social. Os processos interacionais que operam entre os diferentes indivíduos na esfera social não são destacados neste nível. A segunda proposta analítica, nível interindividual, procura explicar os fenômenos sociais analisando as intervenções interindividuais bem como os processos situacionais nas interações entre os sujeitos. Aqui o foco recai nas dinâmicas interacionais e relações intercambiáveis entre os indivíduos. A terceira proposta, a posicional, coloca ênfase nas posições que os diferentes sujeitos e categorias sociais ocupam na arena público. E por último, o nível ideológico ou societal, em que operam os sistemas de crenças, normas sociais e processos ideológicos, que são característicos de uma determinada sociedade (Doise, 2002; Doise & Valentim, 2015).

 

Resultados

No panorama das publicações dos estudos da imigração e Psicologia foram encontrados 1.171 estudos, dos quais foram selecionados 46. No Periódicos Capes foram encontrados 1.029 investigações, tendo sido selecionadas 24 que atenderam os critérios de inclusão. No PePSIC foram encontrados ao todo 15 estudos, tendo sido selecionados os cinco que atenderam critérios de inclusão-exclusão. Nas plataformas BVS foram encontrados 127 estudos, dos quais foram selecionados 17. BVS estão juntas porque os estudos encontrados em uma base foram encontrados na outra. A Figura organiza os nossos achados cronologicamente.

Como mostra a Figura, foram retidos cinco artigos para análise, o primeiro publicado em 2009 e o último em 2018. Um artigo foi publicado em revista qualis A1 para Psicologia (Mallard et al., 2015), três artigos foram publicados em revistas qualis A2 (Garcia & Goes, 2010; Lima & Feitosa, 2017; Pereira & Santos, 2018) e um artigo em revista qualis B4 (Barreto, Coutinho & Ribeiro, 2009). Do ponto de vista teórico, identificam-se dois estudos baseados na Psicologia Social (Lima & Feitosa, 2017; Pereira & Santos, 2018), um na psicanálise (Mallard et al., 2015), um na psicologia do desenvolvimento, a partir do modelo de Hinde (Garcia & Goes, 2010), e um no âmbito da avaliação psicológica (Barreto, Coutinho & Ribeiro, 2009). Os estudos fundamentados na psicologia social, baseiam-se na perspectiva construcionista, práticas discursivas e discussões sobre identidade e memória. O Quadro 1 apresenta os principais objetivos e resultados encontrados nos estudos.

Houve predominância de investigações qualitativas, apenas um estudo foi de natureza quantitativa como mostra o Quadro 2, neste caso, o estudo de Barreto, Coutinho e Ribeiro (2009). Com exceção do referido estudo, todos os estudos são de categoria de imigrantes temporários a estudo ou refúgio. Os imigrantes provenientes dos Países Africanos da Língua Portuguesa (PALOP) Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe foram os mais estudados. O que se explica pela proximidade linguística. Em seguida os países da língua oficial francesa. Nas investigações em que são possíveis identificar a origem nacional dos participantes, não há imigrantes oriundos de países de língua oficial inglesa e espanhola. O Quadro 2 apresenta o delineamento metodológico dos artigos.

De acordo com Vala (2011), o recurso a diferentes níveis de análise é importante nos estudos psicológicos que envolvem grupos minoritários como os imigrantes africanos e/ou negros. Compreender a imigração africana necessita de um olhar que investigue as posições sociais, ser africano e negro, por exemplo, e os fatores ideológicos que são imprescindíveis para forjar experiências individuais e interacionais. Neste sentido, a articulação de diferentes níveis de explicação pode ser fecunda para a produção de conhecimento uma vez que permite o estabelecimento de pontes entre Psicologia e as outras áreas de ciências humanas nos estudos que envolvem diferentes grupos sociais e os contextos socioinstitucionais (Vala, 2011).

 

Discussão

Os estudos analisados foram agrupados de acordo com a similaridade nos níveis da análise adotados. Os cinco estudos se distribuem entre os níveis de análise ou explicação intraindividual, interindividual e societal.

Investigações com explicações de tipo intraindividual

Na medida em que suas análises estiveram centradas no modo como os sujeitos estudados vivenciam suas experiências na relação com o meio ambiente (Doise, 2002), dois estudos (Barreto, Coutinho & Ribeiro, 2009; Mallard et al., 2015) apresentam ênfase no nível de análise intraindividual. O estudo de Barreto, Coutinho e Ribeiro (2009) objetivou compreender a qualidade de vida dos africanos imigrantes, em sua maioria a estudo. A investigação foi feita através de testes individuais sobre qualidade de vida. Considerando o instrumento utilizado, que não permite explicar o processo de aculturação, algumas conclusões revelam imprecisões teórico-metodológicas. A imprecisão metodológica aparece no seguinte trecho: "Na esfera social, verifica-se a dificuldade no processo de aculturação e adaptação do indivíduo, que se encontra entre a cultura de origem e a de acolhimento (Ramos, 2004), que são superadas pela convivência com a própria comunidade de imigrantes" (Barreto, Coutinho & Ribeiro, 2009, p. 121).

O instrumento empregado não permite chegar a tais conclusões quando não conjugado com outras ferramentas metodológicas. Aliás, o processo de aculturação pressupõe contato cultural entre pessoas duas culturas diferentes (Marconi & Presotto, 2005), aspecto inexequível para mensuração através da escala escolhida. O estudo não avalia também possíveis determinantes culturais na avaliação da qualidade de vida. Para Adelowo (2015), por exemplo, a vida africana pautada no comunalismo, relação de interdependência e suporte pela comunidade e grupos de pertença, explica as diversas formas de ajustamento psicológico do africano.

O artigo ainda parece coadunar com as imagens negativas, preconceituosas e depreciativas imaginariamente vinculadas a cultura africana e/ou negra: "Não obstante, fatores negativos, como costumes e cultura diferenciada, não são suficientes para comprometerem suas interações, provavelmente por conviverem em repúblicas com outros imigrantes" (Barreto, Coutinho & Ribeiro, 2009, p. 120). Ao atrelarem os costumes e cultura dos africanos entrevistados como negativos, revela-se uma visão preconceituosa acerca da "cultura diferenciada".

O estudo de Mallard et al. (2015) apresenta lacunas metodológicas, nomeadamente na descrição dos dados relativos aos participantes do estudo (omite o número de participantes que só aparece nos resultados e discussão) e da análise dos dados. Não, permitiu, portanto, elucidar a proveniência nacional dos entrevistados. Houve, por outro lado, uma contradição do estudo ao vincular a semelhança linguística com o não sentir estrangeiro, como ilustra o seguinte trecho:

Falar português no Brasil faz com que, perante os brasileiros, não seja reconhecido seu estatuto de estrangeiro. A aparente facilidade em falar a mesma língua logo se mostra pouco facilitadora para esses sujeitos quando em condição de estrangeiros (Mallard et al., 2015, p. 125).

Observa-se, portanto, uma contradição na medida em que ao mesmo tempo em que os autores falam da perda da condição do estrangeiro pela similaridade linguística, argumentam também que a língua é pouco facilitadora para esses sujeitos. Neste sentido, a experiência de ser africano, negro e proveniente de um lugar marginalizado é fator que entra em jogo.

Os autores acreditam que o tratamento aos estudantes africanos não se diferencia no falar português, francês ou inglês, tendo em conta que o partilhar linguístico não necessariamente significa a integração do imigrante. Tal como salienta Lima e Feitosa (2017), Mallard et al. (2015) consideram que falar a mesma língua que o brasileiro não é vantagem, na medida em que os sotaques são estranhados, ridicularizados e zombados. O estudo aponta que a estrangeiridade é dependente da vulnerabilidade em que se encontra o imigrante. Neste sentido, implicitamente os autores querem demonstrar que ser estrangeiro e/ou imigrante não é igual para todas as categorias sociais da imigração. E, por conseguinte, coloca em questão o mito da democracia racial brasileira, amplamente propagada mundialmente. Percebe-se, a partir dos autores, que a língua que poderia servir de aglutinador, serviu também de divisor na manutenção da relação de distanciamento entre os estudantes africanos a estudo e os brasileiros.

Nota-se, uma elevada cautela em tocar de forma contundente nas questões delineadoras da relação africano-brasileiro, neste caso, o passado escravocrata, e consequente imagem do negro na sociedade brasileira bem como a imagem africana ligada ao trágico. Apesar de terem considerados a forte rejeição à diferença e o racismo como norteador da relação entre os africanos e brasileiros, os autores discutem o assunto de forma rápida, superficial e imprecisa. Assim, as questões raciais, que são estruturantes nas políticas imigratórias no Brasil, serviram como meras "palavras triviais" no texto. Neste sentido, a imagem de harmonia social e/ou mito da democracia racial fez também com que os autores se debrucem superficialmente na questão da discriminação racial, conforme pode constatar no exemplo a seguir:

O racismo, a rejeição ao diferente aparecem ao longo da experiência, produzindo reações diversas por parte dos estudantes. Para alguns, ser o destinatário desse sentimento desencadeou um sofrimento que dificultou a construção de relações sólidas nas quais pudessem acontecer trocas, entre diferenças (Mallard et al., 2015, p. 130).

Os autores colocam a probabilidade de ocorrência do racismo, conforme a frase "aparecem ao longo da experiência". Porém, não como fenômeno estruturante na relação brasileiro e o imigrante africano a estudo, conforme apontado pelos autores como Gusmão (2012), Villen (2012), Souza e Malomo (2016), entre os outros. Neste sentido, devido o vínculo intenso entre o racismo e imigração, torna-se importante pensar o imigrante enquanto sujeito imerso numa teia de relações sustentadas pela coletividade e/ou estruturas macrossociais racistas.

Ao ligar os empecilhos da integração dos estudantes com o problema social brasileiro, os autores apresentam o argumento de forma ambígua. Ou seja, perceberam os problemas e não os apontam. O racismo como organizador das relações raciais pode estar em jogo, mas os autores deste artigo colocam como um "mistério", isto é, como se existisse algo que gera exclusão e rejeição dos estudantes africanos, mas não se sabe do que se trata "essa coisa". Precisando, portanto, ser desvendado. Conforme vimos na citação a seguir:

Mesmo escolhendo tratar dos componentes intrapsíquicos que podem ou não justificar essa condição numa migração temporária, como é o caso dos intercâmbios investigados em nossa pesquisa, reconhece-se que exista algo a mais que precisa ser esclarecido. Esse algo diz respeito à comunidade que não acolhe o estrangeiro. O não acolhimento diz respeito às características da sociedade, se ela é mais ou menos tolerante diante da diferença e, mais ainda, ao imaginário constituído a respeito desse estrangeiro (Mallard et al., 2015, p.131).

A afirmação "reconhece-se que exista algo a mais que precisa ser esclarecido" demonstra a dificuldade de os autores tocarem no assunto. O que coloca a discriminação, racismo e preconceito racial como enigma a serem desvendados. Todavia, este estudo destacou o sofrimento ao ego, ocasionada pela rejeição à diferença e a discriminação racial. Porém, não articula a clínica psicanalítica com o social, estando restrito a explicações do tipo intraindividual. A propósito, no prefácio do livro "Racismo e negro no Brasil questões para a psicanálise", Rosane Borges (2018) considera que as temáticas relacionais à discriminação, preconceito racial e racismo no Brasil devem levar em conta que os sintomas, traumas e outras formas de sofrimento só fazem sentido quando visto do ponto de vista social e coletivo. Assim, a autora ressalta que o racismo faz parte da estrutura brasileira e, portanto, não tem a ver com os acasos ou desvios de comportamento individual. Por sua vez, Vannuchi (2017) atribui ao racismo o sintoma coletivo, fruto da herança escravocrata, constituindo nada mais do que a reatualização da violência constitutivo nas diversas formas da sociabilidade brasileira.

Investigações com explicações interindividuais

Os dois estudos do segundo agrupamento estão focados no nível interindividual (Doise, 2002), na medida em que privilegiam os aspectos interacionais no que se refere à amizade e adaptação dos estudantes africanos nas relações com estudantes universitários brasileiros (Garcia & Goes, 2010; Lima & Feitosa, 2017). Garcia e Goes (2010) realizaram entrevistas com pessoas de origem da Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe e demonstram que a amizade entre o discente estrangeiro e do país de acolhimento assume grande importância na integração e adaptabilidade dos estudantes imigrantes. Os estudiosos salientam, ainda, que a identidade étnico-racial assume um papel importante no estabelecimento de vínculos amigáveis entre os estudantes imigrantes e estudantes do país acolhedor, favorecendo ou dificultando a inserção:

Nas amizades em geral, há uma grande participação de amigos de mesma nacionalidade ou de outros países africanos, sendo a maioria de africanos residindo no Brasil. Possivelmente, a identificação étnica e racial seja um fator importante na escolha de amigos (Garcia & Goes, 2010, p. 148; Antônio, 2004).

As limitações e dificuldades dos estudantes africanos para estabelecer amizades com pessoas do país anfitrião e a tendência a fazer amizades com conterrâneos constatadas no presente estudo têm sido observadas em outros estudos com estudantes internacionais (Garcia & Goes, 2010, p.149).

A mesma tese foi defendida por estudiosos como Anthony Lising Antonio et al. (2004), segundo os quais a interação no ambiente estudantil entre os imigrantes a estudo e estudantes do país anfitrião é mediada pela raça e etnicidade. Segundo os autores, é possível verificar nos ambientes escolares, a balcanização racial, fazendo referência à história da separação territorial na península balcânica. Neste sentido, há uma supremacia da categoria raça sobre as outras quando se trata da escolha da amizade desejável. Outra questão colocada por este estudioso deve-se à forma pela qual as experiências pessoais e interpessoais aliadas às diversidades raciais e multiculturalidade contribuem para a construção das amizades no ambiente universitário. No contexto brasileiro, Tcham (2016) investigou a dinâmica e novas configurações da imigração a estudo no Brasil no mundo contemporâneo. Um dos aspectos levantados pelo autor diz respeito ao desconhecimento do racismo por parte dos estudantes africanos nas universidades, no período anterior à imigração no Brasil. E Gusmão (2012), em seus estudos, considera que o racismo desfavorece a construção e, consequentemente, a integração dos estudantes africanos nos ambientes universitários no Brasil. O que leva estes estudantes a procurar mais amizades acolhedoras, majoritariamente provenientes dos seus conterrâneos e em alguns casos, com os estudantes brasileiros, migrantes, oriundos de outras cidades brasileiras.

Percebe-se a existência de elementos capazes de serem pensados para além das relações de identificação com os conterrâneos, neste caso, as relações étnico-raciais presentes na sociedade brasileira. Todavia estes estudiosos não os abordam. Apesar de reconhecerem as dificuldades dos estudantes africanos na construção das amizades, limitam-se a olhar o fenômeno à luz das dinâmicas interacionais, e não no âmbito macrossocial.

Lima e Feitosa (2017) investigaram as experiências dos discentes africanos provenientes do PEC-G na relação com os congêneres brasileiros, por meio da observação participante, durante seis meses. Os autores percebem o distanciamento dos estudantes brasileiros de um lado, e a manutenção dos vínculos intracontinentais dos estudantes africanos, por outro. As observações corroboram com os achados dos autores como Gusmão (2012), segundo os quais a experiência africana nas universidades é marcada pelo isolamento, desconhecimento e dificuldade da construção de vínculos fora dos ambientes africanos imigrantes. Podemos constatar esse fato no seguinte trecho:

Ao longo da observação foi possível verificar que os africanos e a africana andavam em grupo com seus conterrâneos ou sozinhos(a). Durante o intervalo das aulas, e principalmente no horário do almoço, era comum vê-los reunidos. Outro fato perceptível foi o distanciamento entre brasileiros(as) e africanos(as) (Lima & Feitosa, 2017, p. 4).

Importante frisar que andar juntos com os respectivos conterrâneos pode ser devido a identificação e sentimento de pertença que a relação com os outros estudantes do mesmo continente e/ou região é capaz de proporcionar. Ou seja, essas relações podem envolver tanto as relações de identificação assim como a discriminação ou preconceito com relação a estes estudantes. O racismo via antilocução verbal e física, neste caso, evitar-se comunicar e manter distância física com o outro "diferente", racismo moderno (ver Vala, 2013, 2013a) e entre outros debates poderiam ser articulados com os dados. Por outro lado, falam da negação do racismo por parte dos estudantes como estratégia de "defesa", sem especificar o contexto da democracia racial e tabu sobre racismo no Brasil. Aliás, Vannuchi (2017) considera que a negação do racismo pode ser o reflexo da sua face impiedosa e iminentemente violenta, em que os sujeitos optam por esquivar do sofrimento, aderindo por vezes ao ideal de branquitude. Conforme o trecho a seguir:

Todavia, numa tentativa de negociar interpretações que lhes protejam dos efeitos dessa discriminação, criam várias estratégias, seja negando para eles próprios que isso os atinge (conforme comprovamos nos fragmentos "eu nunca me importei com isso"; "mas pra mim não cabe isso como preconceito não") (Lima & Feitosa, 2017, p. 8).

Nota-se que a percepção tardia do racismo por parte dos estudantes africanos pode ser em decorrência da larga difusão do mito da harmonia inter-racial no Brasil, e não por causa das defesas de negação. Ou seja, existe todo um contexto sócio-histórico que circunscreve essa compreensão, que, por conseguinte, dificulta o entendimento da relação étnico-racial como principal regulador da relação africano-brasileiro.

Apesar dos dois estudos apontarem as dificuldades na construção de amizades e inserção dos estudantes africanos nos ambientes universitários, em decorrência também das questões étnico-raciais, os autores não se debruçaram sobre esses elementos nos seus estudos. Aliás, Lima e Feitosa (2017) reconhecem o mito da democracia racial que paira na sociedade brasileira, mas se limitam nas explicações interindividuais. Abdicaram, portanto, de debater as posições da dupla vulnerabilidade com que os estudantes africanos se deparam, neste caso, um estrangeiro negro e proveniente de um continente marginalizado, conforme apontam os estudiosos como Gusmão (2011); Vargem e Malomalo (2015); Villen (2012). Neste sentido, a ideologia de embranquecimento da raça brasileira, o imaginário negativo sobre a África, racismo e a construção da nação brasileira são fatores macrossociais e psicossociológicos que podem entrar em jogo na compreensão da imigração africana no Brasil.

Investigação com explicações societais

O estudo de Pereira e Santos (2018), por seu turno, investigou o vínculo entre a identidade e a preservação da memória, via oralidade, nos imigrantes angolanos a refúgio. A investigação debruçou-se ainda sobre a contribuição da diáspora angolana no Brasil na salvaguarda da memória oral. Para estes autores, a presença dos imigrantes angolanos vai além de uma simples ação humanitária, uma vez envolve também o modo como a cultura africana é significada no solo brasileiro. Este estudo, diferentemente dos outros, não se limitou apenas em um olhar denunciador ou que coloca os africanos imigrantes como alvos de discriminação. Uma vez que traz os outros elementos capazes de contribuir para a construção positiva da identidade africana via angolanos, extrapolando o olhar escravocrata. Neste sentido, os africanos, angolanos inquiridos, foram vistos como agentes com contribuições imprescindíveis para resgate memorial da identidade africana por via da memória oral, conforme o trecho a seguir: "Neste caso, respaldar o lugar da diáspora angolana hodierna como conteúdo cultural imaterial afro-latino brasileiro corrobora a construção de outros olhares sobre o continente africano, para além da herança histórica escravocrata" (Pereira & Santos, 2018, p. 3).

Para os autores, há uma centralização dos estudos no passado escravocrata, narrado de forma humilhante, sobre os cidadãos provenientes sobre do continente africano. Neste sentido, o propósito desta investigação procurou frisar no modo como a memória pode contribuir para que o passado seja vangloriado e ressignificado de forma positiva. O que, por conseguinte, é capaz favorecer a construção da autoimagem positiva via memória oral da cultura perdida. Para além de proporcionar a elaboração da imagem positiva e influenciar a recuperação da ancestralidade africana, a capoeira constitui um fator importante na garantia do lugar em um espaço do não lugar dos imigrantes angolanos entrevistados. Neste caso, um meio para a inserção e integração de forma menos dolorosa no solo brasileiro. Conforme seguinte trecho do artigo:

Por muito tempo Manoel não conseguia entender e aceitar esse imaginário exótico que foi construído sobre ele, bem como sua relação com a capoeira angola. Depois, com a prática da capoeira, ele conseguiu encontrar elementos de produção de sentido para sua vida e incorporar em seu corpo a capoeira como lugar do não-lugar (Pereira & Santos, 2018, p.5).

Nota-se que o modo como as experiências individuais se vinculam com a tradição cultural e da coletividade merece destaque nesse estudo. Assim, a capoeira, construída coletivamente, passa a ser um meio de se sentir amparado e acolhido, favorecendo a elaboração da dor da forma menos traumática. E ao mesmo tempo preenche o vazio deixado pelo não lugar, ocasionado pela desterritorialização. Os autores se mostram também atentos às questões como exotização, hipersexualização, "valentia", marginalização, discriminação e racismo, comumente atribuídos aos africanos. Assuntos pouco tratados nos estudos citados anteriormente e, quando tratados, aparecem de forma superficial. Estes estudiosos abordaram, ainda, a continuidade da violência herdada do Brasil colonial, que se expressa através do racismo, preconceito e discriminação contra os afrodescendentes e africanos no território brasileiro, expressando uma ênfase em nível de explicação do tipo societal. Os autores estiveram ainda atentos às especificidades dos refugiados, evitando a universalização das suas experiências. Atentaram igualmente ao estranhamento a que os imigrantes negros, africanos, latinos, asiáticos, lésbicas, gays e mulheres são suscetíveis nos dias atuais (Pereira & Santos, 2018). Percebe-se, portanto, que este estudo articulou os níveis intraindividuais, interindividuais e societais. Na medida em que as experiências dos angolanos entrevistados foram articuladas com outros níveis da análise, através de um olhar psicossociológico que concebe o imigrante como sujeito imerso na teia das relações.

 

Considerações finais

O nível de análise intraindividual acentuou uma forma de apresentação cautelosa de temas polêmicos e/ou definidores de dissensos como racismo, xenofobia, discriminação e preconceito. A que se deve a ideia de paz social das relações étnico-raciais no Brasil, largamente propagada a nível internacional, o mito da democracia racial, mas que os autores não discutem de forma enfática, omitindo questões raciais, tão caras no Brasil e em Psicologia. Os textos apresentam esses estudantes como agentes apáticos da discriminação racial e das vulnerabilidades, não tratando do ponto de vista e/ou imagem destes sobre o brasileiro. Ou seja, os estudos apresentam questões mais da denúncia do que da influência cultural. Os estudos debruçam-se, também, nos assuntos mais gerais, isto é, aqueles relacionados ao olhar sobre o Brasil, e não especificamente sobre a instituição de acolhimento, neste caso as universidades.

A relação dos imigrantes africanos a estudo com os parceiros brasileiros extrapola questões individuais, envolvendo a história geral do negro no Brasil e o imaginário pejorativo sobre ser africano. O que pode explicar a dificuldade de inserção, invisibilidade e distanciamento dos estudantes brasileiros. Aliado a esses fatos, temos a não percepção dos estudos africanos como estudantes inseridos no quadro da circulação internacional dos estudos, mas, sim, pela via da "caridade". Assim, o africano imigrante é apresentado como gente dominada e submissa às discriminações, e não aquele capaz de contribuir para a interculturalidade com os congêneres brasileiros. Percebe-se, ainda, nestes estudos, a não articulação dos resultados com as teorias psicossociais sobre o racismo, discriminação social e preconceito. Uso que poderia contribuir grandemente para discussão mais alicerçada em um nível de explicação posicional e/ou societal.

 

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Endereço para correspondência:
Lassana Danfá
lassana1985@gmail.com

Renata Lira dos Santos Aléssio
renatalir@gmail.com

Submetido em: 13/06/2019
Revisto em: 16/07/2019
Aceito em: 08/09/2019

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