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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2020v72i3p.129-139 

ARTIGOS

 

Enação, ensino e aprendizagem

 

Enaction, teaching and learning

 

Enación, enseñanza y aprendizaje

 

 

Póti Quartiero GavillonI; Renata Fischer da Silveira KroeffII; Cleci MaraschinIII

IDoutor em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil
IIIDocente. Programas de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional e em Informática na Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta a teoria da enação e implicações desta para o ensino e a aprendizagem. Uma das preocupações principais dessa teoria é como considerar de modo não somente teórico, mas principalmente metodológico, a experiência nos estudos da cognição. Varela, Thompson e Rosch (2016) buscam criar um campo interdisciplinar para que diversas ciências da cognição possam interagir. Nesse intuito, produziram diálogos com a fenomenologia, com a imunologia e com a neurociência. Como resultado, apontamos que, ao considerar o caráter incorporado do conhecimento, a enação apresenta uma explicação da aprendizagem que não é centrada no conhecimento declarativo e ressalta a importância da imersão para o aprender. A agência de quem aprende é importante por todo conhecimento ser entendido como uma forma de saber-fazer, como ativo. Uma ferramenta importante para a produção de aprendizagem segundo a enação é a criação de espaços de experimentação, para que se possa aprender de forma engajada.

Palavras-chave: Enação; Aprendizagem; Ensino.


ABSTRACT

This paper presents the theory of enaction and its implications for teaching and learning. One of the main concerns of this theory is how to consider not only in a theoretical, but mainly in a methodological way, the experience in the studies of cognition. Varela et al. (2016) seek to create an interdisciplinary field so that different cognitive sciences can interact. With this intention, they produced dialogues with phenomenology, immunology and neuroscience. As a result, we point out that, when considering the embodied nature of knowledge, enaction presents an explanation of learning that is not centered on declarative knowledge, and emphasizes the importance of immersion in learning. The agency of the learner is important because all knowledge is understood as a form of know-how, active. An important tool for the production of learning according to enaction is the creation of spaces of experimentation, so that one can learn in an engaged way.

Keywords: Enaction; Teaching; Learning.


RESUMEN

Este artículo presenta la teoría de la enación y sus implicaciones para la enseñanza y el aprendizaje. Una de las principales preocupaciones de esta teoría es cómo considerar de modo no solo teórico, sino principalmente metodológico, la experiencia en los estudios de la cognición. Varela et al. (2016) buscan crear un campo interdisciplinario para que diversas ciencias cognitivas puedan interactuar. Para ese fin, produjeron diálogos con la fenomenología, con la inmunología y con la neurociencia. Como resultado señalamos que, al considerar el carácter incorporado del conocimiento, la enación presenta una explicación del aprendizaje que no se centra en el conocimiento declarativo y resalta la importancia de la inmersión en el aprendizaje. La agencia del alumno es importante porque todo conocimiento se entiende como una forma de saber hacer, como activo. Una herramienta importante para la producción de aprendizaje según la enación es la creación de espacios de experimentación para que se pueda aprender de manera comprometida.

Palabras clave: Enación; Ensino; Enseñanza.


 

 

Introdução

Os estudos da cognição baseados em uma visão representacional do conhecimento embasam teorias educacionais e propostas didáticas voltadas à transmissão de informações. Segundo essa perspectiva, aspectos como a qualidade do envio e da recepção da comunicação ganham especial relevância, uma vez que o conhecimento é compreendido como algo que precisa ser transferido de professores a estudantes. Além disso, a discussão acerca do conteúdo a ser ensinado torna-se uma questão fundamental à medida que o conhecimento teórico é compreendido como uma condição necessária à solução de problemas práticos, pois configura o fundo sobre o qual a pessoa pode tornar-se capaz de realizar ações adequadas em um determinado contexto. Assim, a capacidade de resolver problemas é um dos focos centrais que orientam ações de ensino e de avaliação da aprendizagem.

Essa compreensão representacional do conhecimento traz alguns problemas às práticas de ensino. Compreender a aprendizagem como um processo de "aquisição de informações" impõe a necessidade de um sistema de ensino capaz de formar indivíduos aptos a reproduzir conhecimentos teóricos em larga escala, embora sua utilização em situações cotidianas possa ser percebida como difícil, distante demais para ser transposta ou muito abstrata para embasar ações concretas. A conexão entre teoria e prática é prejudicada, pois ambas tendem a ser consideradas como dois polos distantes do conhecimento. A teoria corresponderia a um conhecimento mais preciso - pois emerge a partir de modelos passíveis de verificação empírica - e a prática, a uma instância mais experiencial e subjetiva, passível de enganos, imprecisa, embora mais aplicável. Dessa forma, se constituem relações hierárquicas. Em contextos voltados à explicação declarativa, o conhecimento teórico é considerado mais importante e mais correto - mesmo que oriente à ação de maneira muito abstrata. Em contextos aplicados, o conhecimento que emerge da experiência prática - ou seja, informações advindas da "ação em campo" que geralmente não estão disponíveis em manuais teóricos - é considerado superior, uma vez que o saber teórico é percebido como incapaz de abarcar todas as derivações provocadas por contingências no momento da ação. Vistos dessa forma, tais conhecimentos podem ser colocados em relação e compor uma dimensão explicativa mais ampla, embora de forma limitada, pois não há a possibilidade de compreendê-los de forma a configurarem um continuum.

Teorias contemporâneas da cognição, que explicam o conhecimento segundo uma base incorporada e não representacional, apresentam algumas contribuições interessantes nesse sentido. Neste artigo, discutiremos a teoria da enação desenvolvida por Francisco Varela et al. (2016), descrevendo como tal teoria apresenta uma alternativa à visão representacional, possibilitando abordar a relação entre teoria e prática de maneira não dicotômica. Nosso objetivo é discutir como a abordagem incorporada da cognição proposta pela teoria enativa traz implicações para as práticas de ensino e aprendizagem.

Uma das preocupações principais no desenvolvimento da teoria da enação é como considerar de modo não somente teórico, mas principalmente metodológico, a experiência nos estudos da cognição. Ou seja, não somente afirmar a importância da experiência para os estudos da cognição, como também encontrar modos de operar com ela metodologicamente. Para isso, Varela et al. (2016) buscaram, em distintos campos, conceitos e modos de operar que pudessem articular experiência e cognição. Nesse intuito, produziram diálogos com a fenomenologia, com a imunologia e com a neurociência. Os autores procuram, nessa aproximação, ampliar o campo interdisciplinar das ciências da cognição, trazendo novos intercessores a partir de uma outra forma de colocação do problema da cognição. A questão metodológica colocada pela experiência passa por utilizar conhecimentos orientais (em especial da escola Madhyakika do budismo Mahayana) para propor uma explicação fundamentada na ciência e na filosofia que aborda a mente em processo, em vir-a-ser. Varela (1994) apresenta a enação em contraste com ideias cibernéticas que passam pelo cognitivismo e pelo conexionismo. A diferença da enação em relação àquelas é a negação da explicação da cognição como representação forte.

Enação é um estrangeirismo para enact, em inglês, que é utilizado como atuação, no sentido teatral. De acordo com a teoria enativa - e em congruência com a teoria autopoiética -, cada ser vivo é considerado como um sistema autônomo, por possuir um fechamento operacional - é, então, auto-organizado. A autoprodução do sistema vivo só é possível por ele estar imerso em um mundo, que não se separa dele, apenas define sua autonomia (Rossi, Prenna, Giannandrea, & Magnoler, 2013). A autonomia é um fechamento com base no qual um sistema seleciona ou enatua um domínio de significância.

Tais redes não caem na classe de sistemas definidos por mecanismos externos de controle (heteronomia) mas na classe de sistemas definidos por mecanismos internos de auto-organização (autonomia). O ponto chave é que tais sistemas não operam por representação. Em vez de representar um mundo independente, eles enatuam um mundo como um domínio de distinções que é inseparável da estrutura incorporada pelo sistema cognitivo (Varela et al., 2016, pp. 139-140, tradução nossa).

Na enação, o que fazemos se constitui no momento presente mantendo sempre relação sensório-motora com o mundo, a partir do fato de estarmos sempre imersos nele, "estruturas cognitivas emergem dos tipos de padrão sensório-motor recorrente que permitem à ação ser perceptualmente guiada" (Varela et al., 2016, p. 176). A ênfase sensório-motora é um dos fatores que contribui para um melhor detalhamento do processo em relação à teoria autopoiética. Toda cognição, nesse sentido, tem ancoragem sensório-motora, mesmo as mais abstratas. O saber-sobre (know-what) é também um saber-fazer (know-how), visto que toda experiência tem sempre um caráter de ação e de atualização dos modos anteriores de operar. O novo (o que se aprende) é construído com base em uma problematização do que já se sabe, na ação e parte de uma modificação das coordenações sensório-motoras.

A percepção e a ação são corporificadas em processos sensório-motores auto-organizáveis; segue-se, então, que as estruturas cognitivas emergem a partir de padrões recorrentes de atividade sensório-motora. [...] a experiência possibilita e ao mesmo tempo restringe a compreensão conceitual por entre os múltiplos domínios cognitivos (Varela, 2003, pp. 84-85).

Da mesma forma, o conhecimento só se mostra na ação (Masciotra, Roth, & Morel, 2007); ele não é representação, mas a possibilidade de agir de certa forma. Conhecemos o mundo sempre a partir de nossa existência nele, assim toda aprendizagem é incorporada, ou seja, depende da nossa experiência de viver em um mundo. É nessa perspectiva que, segundo a teoria da enação, a aprendizagem constitui uma mudança nas possibilidades de ação do sujeito em determinadas circunstâncias (Varela, 2003). Neste trabalho utilizaremos os termos ensino e aprendizagem considerando-os como uma forma de descrever duas partes interconectadas de um mesmo processo. Utilizaremos apenas um dos termos quando o objetivo for focar em um dos polos, mas este é sempre um processo interdependente entre aprender e ensinar.

A seguir, apresentamos a enação; em especial, as principais reverberações da teoria para a compreensão dos processos de ensino e aprendizagem a partir de um entendimento incorporado da cognição. Abordamos a aprendizagem como breakdown, um rompimento nos padrões habituais de funcionamento da cognição e, por fim, propomos uma forma integrada de pensar a teoria e a prática na produção de espaços de experimentação para a aprendizagem.

 

Enação, ensino e aprendizagem

A abordagem enativa problematiza a teoria desenvolvida por Jean Piaget, mas também possui proximidades com ela (Masciotra et al., 2007). Varela et al. (2016) classificam Piaget como próximo da enação por sua teoria basear a aprendizagem como condicionada à relação sensório-motora com o mundo. Apesar dessa proximidade, o trabalho de Piaget considera o mundo como dado e como um elemento que acelera ou retarda o desenvolvimento cognitivo. Para essa abordagem, o desenvolvimento cognitivo é um processo espontâneo, relacionado à embriogênese, ou seja, ao desenvolvimento do corpo, do sistema nervoso e das funções mentais. Não é questão, para a teoria piagetiana, como as ações de um ou mais sujeitos em desenvolvimento modificam seu mundo. Masciotra et al. (2007) afirmam que o "construtivismo de Piaget está mais preocupado com o estudo das estruturas cognitivas internas e não com o acoplamento estrutural de sujeito-objeto (eu-outro ou eu-mundo) que melhor descreve nossa unidade de estar-em-situação" (p. 27). Estar em situação é uma expressão usada para apontar que o sujeito está situado, e que a cognição é situada, ou seja, ressalta a importância da circunstância para o sujeito no momento de uma ação. "Com a enação nós e o mundo somos inseparáveis; nós coemergimos - cognição (aprendizagem) não pode ser separada de ser (viver). Conhecimento é o domínio de possibilidades que emerge quando respondemos a e causamos mudanças no nosso mundo" (Begg, 2013, p. 82, tradução nossa).

Como a cognição emerge de padrões recorrentes de atividade sensório-motora, Varela et al. (2016) afirmam que não podemos trabalhar com a ideia de um mundo dado antes de o conhecermos. Em vez disso, propõem que tanto o sujeito que conhece como o mundo que é conhecido por ele surgem na experiência. É apenas a ansiedade para encontrar uma base para a cognição que nos faz colocar tal base ora no mundo (objetivismo), ora no sujeito (idealismo). É o que Varela et al. (2016) chamam de ansiedade cartesiana. Se abandonamos essa ansiedade, entenderemos que a percepção não é nem fruto de uma mente isolada, nem a reconstituição de um mundo que já existe, ela é o "direcionamento perceptivo da ação em um mundo que é inseparável de nossas capacidades sensório-motoras" (Varela, 2003, p. 86). Aprender significa uma mudança nos padrões sensório-motores que utilizamos em uma circunstância específica. A ênfase da enação ao focar a sensório-motricidade nos leva a considerar o tempo presente como o momento no qual a novidade acontece. A ação efetuada no momento presente, encarnado e acoplado a determinada circunstância, faz-fazer, ou seja, faz emergir ação e pensamento. Cabe destacar que mesmo aprendizagens ditas abstratas se realizam em padrões sensório-motores envolvendo, portanto, toda a corporeidade. Rossi et al. (2013) afirmam que:

Se o sujeito, imerso na realidade, está em relação com o outro, conhecimento não é apenas um processo cognitivo/racional e especificamente individual, mas, ao contrário, parece surgir do fluxo circular e contínuo de interações sensório-motoras entre mente-corpo-artefato-mundo (pp. 38-39, tradução nossa).

A articulação com a sensório-motricidade implica considerar o tempo presente, o momento em que algo nos acontece, como ocasião de aprendizagem. Isso não significa que a memória e o desejo estejam fora da articulação. O que a teoria da enação busca enfatizar é que é no presente que as mudanças têm lugar ao experienciar o colapso (breakdown), as hesitações, oportunizando à cognição diferir de si mesma, vir a variar e, portanto, aprender.

De acordo com essa abordagem, aquilo que sabemos é enatuado em um processo de coprodução de si e do mundo em presença. A aprendizagem se dá sempre a partir de um desdobramento entre um fora-dentro. Tal como uma fita de Moebius, uma aprendizagem nunca é somente a enação de um objeto, significado ou modelo, mas, reciprocamente, a enação de um si, um outramento. Esse entendimento da cognição enativa faz pensar o quanto propostas de ensino e de aprendizagem possibilitam deslocar/problematizar as coordenações sensório-motoras habituais e o quanto consideram os devires de si, diferentemente de uma postura de reforço de um ego, de um eu.

Para estudar a aprendizagem, Varela (2003) se atenta aos hábitos. O mundo é transparente no hábito, agimos sem deliberação. Constituímos prontidões-para-ação, que Varela (2003) chama de microidentidades - o que acima definimos como enação de si -, as quais são disparadas pelo encontro com micromundos (situações) correspondentes. Quando algo acontece fora do que é previsto pelo hábito, se produz uma descontinuidade na experiência, um colapso (breakdown) que, ao ser solucionado, tende a se estabilizar novamente, criando um novo padrão sensório-motor que pode vir a se tornar habitual. É importante notar que o colapso não é uma interrupção da cognição, mas uma mudança (interrupção no padrão) e é caracterizado não por uma pausa, mas por uma maior atividade. Quando o hábito não dá conta de algo que acontece, surgem diversas possibilidades - o colapso se produz como ativação - e depois uma delas se estabiliza gerando uma outra microidentidade, e um novo micromundo associado, tal como a fita de Moebius. No que se refere ao sistema nervoso, Varela (2003) afirma que podemos ver uma maior atividade neuronal durante o colapso e um posterior retorno ao equilíbrio. Quando há um acoplamento efetivo entre microidentidades e micromundos, essa congruência parece natural, transparente. No momento em que os modos de agir anteriores não produzem os resultados desejados, torna-se evidente que o que parecera natural fora resultado de um processo de aprendizagem.

Uma aprendizagem não é necessariamente um aumento das possibilidades de ação; pode, também, ser a restrição ou reconfiguração dessas possibilidades. Quando percebemos que determinada ação não é válida em um domínio e paramos de realizá-la, isto é um aprendizado. Aprender, muitas vezes, pode significar inibir certas ações. Estamos sempre aprendendo e mesmo quando poderíamos dizer que "desaprendemos" algo, houve a quebra de um hábito que proporcionou variações nos mundos, uma outra microidentidade. O foco na experiência como coordenações sensório-motoras moduladas e/ou extintas pelo enfrentamento dos breakdowns que se dão no momento presente, no momento da ação, ajuda a demonstrar que toda aprendizagem é sensório-motora, o corpo tem necessariamente um papel central nesse processo.

A atividade perceptiva não é um mapeamento de algo exterior, uma captação, e sim uma forma criativa de enatuar a significância (a partir do histórico de acoplamentos do sujeito), "a cognição consiste não de representações, mas de ação corporificada" (Varela, 2003, p. 86). Nós aprendemos quando nos encontramos em uma situação com a qual não podemos lidar apenas por meio de nosso hábito, então surgem diversas possibilidades, que depois se estabilizam, criando uma nova forma de estar no mundo ou reafirmando uma já existente.

Varela (1994) abre espaço para uma explicação do surgimento da diferença na cognição através do breakdown (colapso), que é uma interrupção a partir da qual pode surgir algo completamente novo. No momento de ativação caracterizado pelo breakdown pode surgir uma nova microidentidade a partir das experiências do sujeito, e ela pode depois se estabilizar como parte de seus hábitos. Assim, na enação, podemos explicar a consistência da experiência por meio dos hábitos e micromundos estabelecidos e a mudança a partir do colapso. A aprendizagem, nesse caso, apesar de depender da história de quem aprende, pode ter um caráter descontínuo. Se produz, assim, a ideia de um sujeito que pode mudar profundamente diante de uma experiência inesperada, ao encontrar algo que o problematize e problematize seus mundos.

Depraz (2014) descreve a surpresa como uma ruptura no fluxo temporal subjetivo, em que existe um momento irredutível de ausência de sentido (não sentido). Essa descrição é, segundo a autora, condizente com a enação, em que a autonomia do organismo seria definidora de uma abertura para a novidade. Podemos entender essa quebra como o breakdown. Assim, o momento de ativação de diversos micromundos no colapso seria entendido como não sentido, um momento que não tem sentido em si, é surpreendente e propicia o surgimento de novos sentidos e, diríamos, de um outro corpo, de outra microidentidade e, correlativamente, outro micromundo.

O racional surge do não racional e pré-consciente (momento de ativação neuronal em que coexistem diversos micromundos e rapidamente um se estabelece). O aprendizado é uma estabilização a partir de um momento de ruptura que produz um si e um mundo. Assim, a aprendizagem é produtiva, e não reprodutiva. Esse processo de aprendizagem explica a criação (produção de algo novo) e faz evidente a característica corporal do conhecimento (o estado de ruptura surge de uma articulação entre os estados do corpo que se encontra com perturbações, ou seja, da relação sujeito-mundo).

Cuffari (2014) comenta que algo semelhante ocorre na produção de sentidos na linguagem: passamos de um sentido estabelecido para um momento no qual esse sentido não se aplica mais e, finalmente, para a produção de um novo sentido. Acreditamos que esse processo seja análogo ao colapso como proposto por Varela (2003). Desse modo, poderíamos falar de uma descontinuidade da aprendizagem, ou de um desaprender de hábitos anteriores, para criar um novo corpo, uma outra coordenação. Para Cuffari (2014), o primeiro momento se caracteriza por um sentido estável e compartilhado, que implicitamente ou explicitamente assumimos que temos em comum. Muitas vezes acreditamos que esse sentido seja universal, mas é incorporado de formas diferentes por cada um, de acordo com sua história pessoal. O segundo momento se caracteriza por um desentendimento que surge de idiossincrasias e leva a uma falta de sentido (nonsense) temporária. O terceiro momento se constitui como a produção de um novo sentido, local e interativamente disponível. Nós temos sentidos estabilizados (a partir de nossas experiências pessoais e culturais), então nos encontramos com alguém em uma conversa específica e esses sentidos podem não operar, o que pode levar a desentendimentos. A partir desse momento de falta de sentido - breakdown -, podemos produzir novos sentidos, localizados e compartilhados. Ou seja, existe uma suposição de um comum, que na prática nunca é completamente compartilhado. Nós assumimos, quando falamos, que o outro entende o que dizemos a partir de um sentido universalizado, quando, na verdade, sempre há diferenças na forma como incorporamos tal sentido compartilhado. Essas diferenças podem fazer surgir desentendimentos, que podem ser seguidos de um entendimento a partir da produção de um sentido compartilhado, mais local, ou não. Assim, a participação de um domínio de ação passaria por assumir um certo universal não existente, em que há uma proximidade entre entendimentos que possibilita a comunicação, mas exigindo que lidemos com as idiossincrasias quando o desentendimento surge.

Cuffari (2014) diz que é necessário trabalho para produzir o entendimento mútuo, ele não acontece automaticamente. Afirma também que é possível ter uma atenção reflexiva sobre nossas conversas para perceber que não estamos produzindo sentidos bem compartilhados. Isso poderia nos levar a estar abertos a uma desorientação, ao não saber compartilhado, que pode levar a um saber compartilhado (entendimento mútuo) em um segundo momento.

Uma pessoa percebe que suas próprias experiências pessoais e os desdobramentos do que sente não são do outro. Percebe os próprios limites. O ponto não é notar como o outro é diferentemente incorporado, racializado, classificado, educado ou traumatizado, mas notar como a própria produção de sentido é contingentemente esculpida nestas dimensões em uma constelação única. Fazer isso graciosamente, com compaixão e, de fato, com expertise suficiente para a interação em questão não desmoronar presumivelmente requer uma prática deliberada1 (Cuffari, 2014, p. 232, tradução nossa).

Conversas superficiais dão uma sensação de certeza, na qual não interpretamos os sentidos, tomamos estes como dados, e não há uma coordenação forte. Poderíamos aprender a repetir o que foi dito, assumindo um significado reificado, em vez de produzir um significado compartilhado do qual fazemos parte. Tal significado compartilhado se produziria ao voltarmos nossa atenção para os desentendimentos (perceber as diferenças entre o que cada um assume). Aqui poderíamos pensar na multiplicação das fake news que, repetidas à exaustão pelas redes sociais e por bots, passam a ser assumidas como verdadeiras, sem necessidade de problematizar seus sentidos. Embora Cuffari (2014) se refira ao conversar em geral, acreditamos que o mesmo fenômeno que acontece nas conversas superficiais possa acontecer nas relações de ensino-aprendizagem nas quais há uma mera repetição de informações, por exemplo. No lugar desse modo de lidar com a aprendizagem, podemos pensar uma forma que englobe os desentendimentos como parte da comunicação. Nesse caso, assumimos que uma das pessoas já sabe algo, ou seja, sabe operar dentro de determinado domínio compartilhado de conhecimento e pode guiar os que aprendem a produzir os fazeres correspondentes desse domínio - congruências operacionais - e não somente repetindo informações. Esse modo de guiar é atento aos desentendimentos e os utiliza para produzir conhecimentos novos, ao invés de tentar suprimi-los com a repetição da "informação correta".

Cuffari (2014) alerta que muitas vezes tomamos como óbvias as palavras e as ações dos demais e não prestamos atenção aos desentendimentos, às problematizações. Isso é especialmente perigoso em uma relação ensino-aprendizagem, pois, ao tentar convidar alguém a participar de um domínio estável compartilhado, podemos nos sentir representantes de algo dado. Por acreditarmos que representamos algo estabelecido, tomamos o significado das palavras como exato e não pensamos nas nuances de cada comunicação, ou na nossa própria forma de entender e participar do conhecimento compartilhado, além de distanciar a atenção daquilo que o outro já sabe ou assume. "Como o sujeito e seu mundo se especificam mutuamente, a unidade mínima para a compreensão de qualquer processo de aprendizagem é a relação estabelecida entre ambos" (Kroeff & Maraschin, 2018). Ou seja, convidar a aprender engloba o aprender situado e o aprender no próprio exercício do ensinar, sendo sensível ao que provém do encontro e não de uma representação de algo.

Nesse sentido, Varela et al. (2016) diferenciam representação forte e fraca. A representação fraca é a ideia de que a mente pode se referir a objetos da mesma forma que um mapa se refere a um local, sem ser uma cópia do mesmo, e não se universaliza a representação como forma original do conhecimento. A representação no sentido forte é assim chamada pois carrega o pressuposto epistemológico, de que toda cognição é uma representação. A enação é uma teoria que parte da representação fraca para explicar como a cognição opera.

Não conhecemos o mundo recriando relações nele já existentes por meio de um modelo que o representa, e sim nos coproduzindo com ele, o que gera um saber-fazer processual, que pode ser explicado a posteriori, como representando algo. Essa reformulação da experiência - de um saber-fazer em um saber-sobre - constitui o que descrevemos como representação fraca, uma vez que faz referência ao vivido, sem a pretensão de correspondência direta e objetiva a uma realidade externa ao sujeito (Baum et al., 2017, p. 96).

Utilizamos saber-fazer como uma forma de descrever o conhecimento como possibilidade de ação no mundo e saber-sobre como uma forma de conhecimento relacionada à capacidade explicativa sobre algo. A aprendizagem declarativa (saber-sobre/know-what) não é automaticamente transformada em um saber-fazer (know-how) do campo ao qual se refere, embora sejam campos de ação relacionados, que podem influenciar a aprendizagem do outro (Kroeff, Gavillon, & Maraschin, no prelo). Apesar de a cultura ocidental e escolar tratar o saber reflexivo como pertencente a uma ordem superior, na enação, como salientamos, todo saber-sobre está acoplado a um fazer (Kroeff & Baum, 2017). O saber reflexivo, como propomos acima, é um fazer no domínio explicativo. Ou seja, é uma reformulação da explicação anterior com base na experiência.

O saber-fazer e saber-sobre constituem conhecimentos que não se sobrepõem e não se anulam, se conectam a partir de uma mesma origem ontológica: a ação no mundo. Cada um em seu conjunto próprio de relações constitui um campo de fazer. Um compreende, de forma mais ampla, o domínio corporal da ação (saber-fazer), e o outro, mais específico, o domínio corporal no campo linguístico (saber-sobre). A teoria é uma prática do campo explicativo. Nessa perspectiva, a relação entre teoria e prática é uma relação entre ações em dois campos de fazeres e não a transposição da informação entre dois campos ontologicamente diferentes, necessitando de uma tradução do conhecimento abstrato ao conhecimento concreto ou vice-versa.

Pensando a centralidade do saber-fazer na aprendizagem, Haskell (2000, 2004) propõe uma "pedagogia de queda livre" ("freefall pedagogy"), na qual a queda livre se refere a um momento em que a atenção incorporada surge de acontecimentos inesperados, como quando se aprende a saltar esquiando. O exemplo do salto de esqui é utilizado para demonstrar que podemos preparar uma situação, mas parte do aprendizado só acontece ao se explorar as possibilidades no momento em que estamos no ar. Para Haskell (2004), é importante favorecer quem está aprendendo a viver experiências em ato, explorando possibilidades. Ao criar alternativas, professores aprendem sua própria pedagogia emergente e enativa. Desse modo, se aprende a ensinar no próprio ato de criação de possibilidades. As situações criadas são espaços de possibilidades que enatuam aprendizagens e sujeitos que aprendem e ensinam.

Rossi et al. (2013) propõem que é possível intervir com situações-problema que desestabilizem conceitualizações habituais. Tal quebra provocaria uma auto-organização. Pode-se dizer que os autores propõem produzir um colapso para ativar processos de aprendizagem. Além disso, Rossi et al. (2013) apontam que aprender coemerge na situação e tanto estudante como professor aprendem, mesmo que aprendam coisas diferentes. Assim, as relações em um espaço compartilhado (entre estudantes e professores) são centrais para a aprendizagem, pois "conhecer emerge coletivamente através de engajamento em ação compartilhada" (Haskell & Linds, 2004, p. 3, tradução nossa).

Para Haskell (2004), o processo é interativo, no qual professores oferecem situações inesperadas e guiam os estudantes em sua exploração, experimentando diferentes possibilidades. Essa prática convida os estudantes a serem seus próprios educadores, aprendendo na experiência encarnada. Haskell e Linds (2004) afirmam que um conhecimento de forma incorporada produz a capacidade de interagir com o desconhecido. Ao nos mantermos abertos, o fazer e o conhecer emergem do fluxo das ações. O aprendizado proposto pelos autores é potente exatamente por tratar de um campo de possibilidades a ser explorado, e por isso não pode ser completamente planejado. É possível estruturar um espaço para a experiência, mas não se pode prever seu resultado, ele depende inerentemente do imprevisto e da ação no momento presente. Nesse entendimento, "podemos pensar em uma ética da experimentação, da problematização, isto é, uma ética propriamente dita, e uma política da multiplicidade" (Baum et al., 2017, p. 104).

 

Conclusão

Neste estudo abordamos a teoria da enação para pensar como a visão incorporada da cognição produz implicações para práticas de ensino e aprendizagem. Discutindo a relação entre saber-fazer e saber-sobre, propomos reduzir a distância entre prática e teoria, compreendendo as duas sob uma mesma matriz ontológica. Além disso, afirmamos que um contexto de aprendizagem precisa ser um espaço aberto à necessidade de adaptações que emergem durante a própria experiência do aprender.

Ao considerar o caráter incorporado do conhecimento, a enação apresenta uma compreensão da aprendizagem que não é centrada no conhecimento declarativo e ressalta a importância da imersão para o aprender. Rossi et al. (2013) afirmam que a articulação da aprendizagem é produzida na colaboração entre professores e estudantes, apontando a importância da agência de quem aprende. A agência é importante, também, por todo conhecimento ser entendido como uma forma de saber-fazer, como ativo. Uma ferramenta importante para a produção de aprendizagem segundo a enação é a criação de espaços de experimentação, para que se possa aprender de forma engajada.

Compreendendo a teoria e a prática como domínios de ação performados por modos diferentes de agir, propomos que situações de aprendizagem podem ser compreendidas como espaços de experimentação. Tais espaços são caracterizados por conter, preferencialmente, possibilidades de desenvolver ações relacionadas tanto à teoria quanto à prática, de forma integradora. Podemos considerar, por exemplo, encontros nos quais sejam realizadas discussões em grupo a partir de leituras prévias, assim como a produção escrita de resenhas críticas, de forma que cada estudante experimente produzir explicações a partir dos conceitos estudados, aliado à realização de role-plays (interpretação de papéis) para simular uma atuação no campo de prática profissional. A complementaridade entre essas atividades proporciona que uma retroalimente a outra, produzindo saberes práticos-teóricos integrados. Assim, os espaços são potencializados ao deixar de produzir a cisão tradicional entre teoria e prática.

A aprendizagem acontece a partir de momentos de breakdown que rompem com os padrões de conhecimento existentes. Esses momentos podem ser produzidos intencionalmente por meio da apresentação de situações que diferem do hábito de quem está aprendendo. Nesse contexto, a falta de entendimento pode ser tomada como potência para a aprendizagem em vez de ser um obstáculo. A partir de uma abordagem enativa, entende-se o aprendizado como um processo de mudança (diferenciação de si mesmo no tempo) de um sujeito autônomo imerso em um ambiente, em um acoplamento que destaca o caráter processual do conhecimento.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Póti Quartiero Gavillon
poti.gav@gmail.com

Renata Fischer da Silveira Kroeff
kroeff.re@gmail.com

Cleci Maraschin
cleci.maraschin@gmail.com

Submetido em: 21/06/2019
Revisto em: 30/07/2019
Aceito em: 08/09/2019

 

 

1 "One notices how one's own personal experiences and unfolding felt sense is not the other's. One comes up against one's own limits. The point is not to notice how the other is differently embodied, raced, classed, educated, or traumatized, but to notice how one's own sense-making is contingently carved along these dimensions in a unique constellation. Doing this gracefully, compassionately, and, indeed, expertly enough to not completely devolve the interaction in question presumably requires deliberate practice".

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