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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.73 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2021v73i1p.19-33 

ARTIGOS

 

Sofrimento psíquico e assédio moral no contexto universitário

 

Psychic suffering and bullying in the university context

 

Sufrimiento psíquico y acoso moral en el contexto universitario

 

 

Fabiana Midori OikawaI; Marcos Roberto Vieira GarciaII

IPsicóloga. Departamento de Assuntos Comunitários e Estudantis. Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). São Carlos. Estado de São Paulo. Brasil
IIDocente. Departamento de Ciências Humanas e Educação. Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). São Carlos. Estado de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo descreve a parte qualitativa de uma pesquisa que investigou o contexto universitário e suas implicações na saúde mental de graduandos atendidos no Serviço de Psicologia de uma universidade pública paulista. A partir de um levantamento quantitativo das principais queixas apresentadas por estes alunos, foram realizados quatro grupos focais com as temáticas "relação com a família", "dificuldades acadêmicas", "preocupação com a carreira" e "dificuldades de relacionamento interpessoal", com estudantes que apresentaram cada uma dessas queixas. Destacaram-se nos resultados da análise qualitativa situações de angústia relacionadas a mudanças associadas à vida universitária, preocupações referentes à carreira e queixas voltadas aos professores, indicando forte presença de assédio moral no ambiente universitário. Observou-se que a dinâmica institucional das universidades prejudica as relações e dificulta a formação de vínculos afetivos entre professores e alunos.

Palavras-chave: Sofrimento psíquico; Assédio moral; Ensino superior.


ABSTRACT

The article describes the qualitative part of a research that investigated the university context and its implications on the mental health of undergraduate students attended at the Psychology Service of a public university in São Paulo state. From a quantitative survey of the main complaints presented by these students, four focus groups were conducted with the themes "family relationship", "academic difficulties", "career concern" and "interpersonal relationship difficulties" with students who presented each of these complaints. The results of the qualitative analysis highlighted situations of distress related to changes associated with university life, career concerns, and complaints directed to teachers, indicating a strong presence of bullying in the university environment. It was observed that the institutional dynamics of universities undermines relationships and hinders the formation of affective bonds between teachers and students.

Keywords: Psychic suffering; Bullying; Higher education.


RESUMEN

El artículo describe la parte cualitativa de una investigación que investigó el contexto universitario y sus implicaciones en la salud mental de los estudiantes de pregrado atendidos en el Servicio de Psicología de una universidad pública en São Paulo. A partir de una encuesta cuantitativa de las principales quejas presentadas por estos estudiantes, se realizaron cuatro grupos focales con los temas "relación familiar", "dificultades académicas", "preocupación profesional" y "dificultades de relación interpersonal" con los estudiantes quien presentó cada una de estas quejas. Los resultados del análisis cualitativo destacaron situaciones de angustia relacionadas con los cambios asociados con la vida universitaria, las preocupaciones profesionales y las quejas dirigidas a los docentes, lo que indica una fuerte presencia de acoso moral en el entorno universitario. Se observó que la dinámica institucional de las universidades deteriora las relaciones y dificulta la formación de vínculos afectivos entre docentes y estudiantes.

Palabras clave: ufrimiento psíquico; Acoso moral; Enseñanza superior.


 

 

Introdução

O presente artigo descreve uma pesquisa que teve como objetivo geral investigar algumas implicações do contexto universitário na saúde mental de estudantes a partir de um estudo realizado em um Serviço de Psicologia de uma universidade pública. Nasceu de inquietações da primeira autora acerca do aumento da procura por atendimento psicológico no serviço em que atua, com a profusão de queixas semelhantes, como ansiedade e traços depressivos, relacionadas a aspectos de ordem institucional.

Neste artigo serão apresentadas, em um primeiro momento, algumas pesquisas referentes ao tema da adaptação de estudantes ao contexto universitário, ao sofrimento gerado por questões de ordem institucional e às estratégias de seu enfrentamento. Na sequência será descrita a pesquisa qualitativa realizada, seus principais resultados e discussão, com as considerações finais enfocando algumas linhas de ação possíveis para se lidar com o sofrimento mental discente.

O ingresso na universidade é uma grande conquista dos jovens, já que pode representar não somente a realização do curso escolhido, mas significa, muitas vezes, uma maior autonomia em relação ao mundo familiar. Entretanto, esse momento também pode ser carregado de dificuldades e complicações que demandam atenção e cuidado. As dificuldades, muitas vezes, advêm das transformações vivenciadas nesse processo, exigindo do estudante formas de se adaptar a essas mudanças.

O estudo de Teixeira, Dias, Wottrich e Oliveira (2008) revelou um sentimento dúbio dos estudantes em relação à experiência de saída de casa de origem, já que, ao mesmo tempo em que a ausência das figuras paternas causa um desamparo, ela possibilita a independência e uma sensação de autonomia. Nesse novo contexto, os estudantes são impulsionados a construção de novas relações interpessoais, Teixeira, Castro e Zoltowski (2012) apontaram a importância das relações sociais para uma adaptação satisfatória, já que as amizades podem atuar como suporte emocional através do compartilhamento das experiências. A relação com os docentes também foi valorizada, principalmente quando extrapola a sala de aula e o professor se aproxima do estudante com intuito de acolhê-lo.

Outro elemento que o estudante precisa lidar refere-se à escolha profissional. A decisão pelo curso de graduação é permeada por dúvidas, pressões e anseios, não sendo uma tarefa fácil, também porque antecipa uma escolha pelo trabalho futuro. Muitas dúvidas sobre a escolha do curso podem surgir quando os universitários têm contato com as disciplinas e encontram dificuldades de compreensão do conteúdo e resolução das tarefas solicitadas, resultando em reprovações e permanência estendida na universidade. A dificuldade é vista pelo estudante como um sinal de que não se enquadra na profissão, o que impacta na autoimagem do estudante, abalando sua autoestima e o fazendo questionar sobre suas habilidades e competências. Inicia-se uma busca incessante para se adequar aos padrões de exigência do contexto universitário (Muzzolon, 2016).

Segundo Caixeta (2011), a própria organização do ensino superior, voltada para a formação profissional, provoca uma necessidade no aluno de corresponder às expectativas referentes a essa formação, que muitas vezes, pode entrar em choque com as necessidades do sujeito, desencadeando sofrimento psíquico. Essa autora descreve o sofrimento psíquico como um conjunto de condições psicológicas, ocasionadas por situações reais ou não, que gera mal-estar, este, por sua vez, ultrapassa o desconforto de ordem fisiológica, sendo seus principais sintomas de ordem emocional e relacional (Caixeta, 2011, p. 29).

Na busca por corresponder às expectativas de familiares, de professores e às próprias, muitos universitários utilizam como referência uma imagem ideal de profissional, a qual esbarra na perfeição e, por isso, pode não ser alcançada, levando a frustração (Caixeta, 2011). Esse cenário pode ser desencadeador de sofrimento mental.

O sofrimento e adoecimento psíquicos na vivência universitária demandam atenção e cuidado das instituições, muitos das quais respondem a essa demanda por meio de serviços voltados ao acolhimento e acompanhamento dos universitários, buscando seu bem-estar mental. A atuação do psicólogo nas instituições universitárias como agente de promoção da saúde mental se situa no limiar entre as práticas da psicologia clínica, social e escolar. Oliveira e Marinho-Araújo (2009) discutem as mudanças ocorridas na atuação dos profissionais, defendendo a necessidade de adoção de "concepções relacionais, integradoras e amplas" para se entender o fenômeno (p. 655). Oliveira (2011) apresenta um panorama dos serviços realizados por esses profissionais em instituições de ensino superior e constata que o público mais atendido são os discentes e a principal atividade executada pelo psicólogo é o atendimento e orientação aos alunos. A modalidade mais empregada é da terapia breve focal, pois conforme Caixeta (2011, p. 50), "a ideia de uma escuta terapêutica breve a estudantes é uma possibilidade de intervenção em crise, muitas vezes desencadeados na universidade, mas não necessariamente pela universidade".

Algumas pesquisas já foram realizadas com propósito de descobrir os principais motivos de busca e o perfil da população atendida em serviços psicológicos de campi universitários. A pesquisa de Hahn (1994) mostrou uma clientela majoritariamente feminina, na faixa etária de 19 a 22 anos, e o predomínio de ansiedade, depressão reativa ou situacional e reações de ajustamento entre os quadros psicopatológicos, com poucos quadros graves, resultados semelhantes aos obtidos por Peres, Santos e Coelho (2004). Cerchiari, Caetano e Faccenda (2005) apontaram que 88% dos atendidos tinham entre 19 e 20 anos, 83% eram mulheres e 38% tinham diagnóstico de ansiedade generalizada. Finalmente, a pesquisa de Campos (2016) revelou que a população atendida tinha idade média de 25,3 anos, 62% pertenciam à graduação, 57% eram de mulheres, 81% eram solteiros e 60% não dependiam de recursos familiares para se sustentarem. No que concerne aos diagnósticos, aproximadamente 15% do total apresentavam casos mais graves.

 

Método

O contexto foi o do Serviço de Psicologia de uma Universidade Pública, localizada no interior do Estado de São Paulo. O serviço em questão pertence a uma seção voltada à prevenção e promoção da saúde da comunidade acadêmica, que conta com uma equipe multidisciplinar, composta por duas assistentes sociais, um médico ginecologista, uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e uma única psicóloga, primeira autora deste estudo. Assim, o Serviço de Psicologia é um serviço de saúde que consta com uma psicóloga para atender as demandas advindas de toda comunidade acadêmica. Inicialmente, funcionava no sistema de portas abertas, porém, com o aumento da demanda foi necessário implantar uma lista de espera. Em casos de emergência, é realizado atendimento imediato ou o mais rápido possível.

Essa seção pertence a um departamento, o qual está inserido em uma Pró-Reitoria dessa Universidade Pública. Tendo em vista que a psicóloga foi a pesquisadora do estudo, durante toda realização da pesquisa procurou-se considerar os possíveis atravessamentos administrativos e éticos advindos do lugar em que ocupa dentro da estrutura da instituição analisada.

Foi feito um levantamento quantitativo para capturar a extensão dos fatores que geram sofrimento mental nos estudantes, seguida de uma abordagem qualitativa, a partir da realização de grupos focais, como forma de aprofundar a compreensão dos fatores mais prevalentes. No presente artigo, será feita a descrição e análise detalhada apenas da parte qualitativa da pesquisa, uma vez que a exposição detalhada de ambas as etapas seria inviável, tendo em vista as exigências editoriais do presente periódico. A descrição completa do levantamento quantitativo pode ser consultada em Oikawa (2019).

O levantamento de 288 fichas aplicadas aos discentes de graduação pela psicóloga ao iniciarem o acompanhamento psicológico revelou quatro grandes eixos de queixas:

Relação com a família: embates entre pais e filhos devido às mudanças advindas com a universidade; fiscalização excessiva ou proibições dos genitores; sentimento de não retornar o investimento dos pais no estudo devido às notas baixas e reprovações; cobrança dos pais por ajuda financeira; sentimento de saudades da família e da cidade de origem, em grau elevado; desejo de retorno para a casa dos pais.

Dificuldades de relacionamento interpessoal: reclamações dirigidas à cidade e colegas de curso; dificuldades de convivência em república, que envolve assumir responsabilidade pelos outros, não cumprimento de acordos referentes à limpeza e manutenção da casa e não respeito ao espaço dos colegas; não estabelecer vínculos de amizade por se considerar tímido ou por se sentir excluído; rompimentos de amizades; conflitos entre grupos.

Dificuldades acadêmicas: sobrecarga de tarefas (trabalhos, provas, participação em entidades) afetando desempenho; falta de motivação; notas baixas devido a dificuldades de aprendizagem, conteúdos difíceis ou provas que não avaliam adequadamente; dificuldade em estabelecer rotinas de estudo; sentimento de perseguição por algum docente; falta ou troca constante de professores, o que atrapalha o andamento da disciplina.

Preocupação com a carreira: questionamentos referentes ao curso inscrito, demonstrando incertezas sobre a escolha; receio de não se enquadrar no perfil profissional; cobrança por não ter terminado a faculdade/ou não estar dentro do mercado de trabalho.

Frente a estes resultados, optou-se por aprofundar a pesquisa por meio de grupos focais, pois: "O grupo focal representa uma fonte que intensifica o acesso às informações acerca de um fenômeno, seja pela possibilidade de gerar novas concepções ou pela análise e problematização de uma ideia em profundidade" (Backes, Colomé, Erdmann, & Lunardi, 2011, p. 439). Estes foram planejados na pesquisa conforme os quatro eixos resultantes da etapa quantitativa da pesquisa. O critério de seleção dos participantes foi estar no conjunto de estudantes que apresentaram queixas relacionadas à universidade no período analisado, ou seja, 2015 a 2017, e a queixa apresentada, a qual deveria se encaixar na temática do grupo focal. Procurou-se limitar o grupo somente a estudantes que apresentaram uma única queixa, ou mais de uma queixa, mas que ambas pertencessem ao mesmo eixo. Adotou-se esse procedimento a fim de dificultar que outras queixas ganhassem foco demasiado e garantir que cada grupo conseguisse discutir o tema proposto.

Em um primeiro momento, os participantes foram convidados por e-mail; diante das poucas respostas, a pesquisadora entrou em contato por telefone ou pelas redes sociais. No entanto, devido à recusa em participar da atividade ou à impossibilidade de muitos, por incompatibilidade no horário ou por já estarem formados e residindo em outra cidade, foi necessário convidar todos que se enquadravam no perfil. Mesmo assim, houve pouca participação, sendo que um dos grupos teve sete participantes e os demais, cinco cada.

Antes de iniciar o grupo, foi apresentado aos participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assinado e com cópia fornecida a eles. Foi informado que o encontro seria gravado e transcrito. Nos grupos foi explicada a dinâmica da atividade e apresentada a pessoa que auxiliaria a pesquisadora na função de observadora do grupo. O roteiro consistiu em três perguntas simples, as quais tinham o propósito de provocar o diálogo e possibilitar que os participantes falassem sobre suas experiências abertamente, garantindo um fluxo nos discursos e o compartilhamento das vivências relativas ao ambiente acadêmico. As perguntas foram as seguintes:

1. Vocês já possuem uma trajetória aqui na (nome da instituição). Gostaria que contassem sobre as dificuldades encontradas nessa trajetória no tocante às queixas apresentadas (para cada eixo, um conjunto de queixas).

2. Por que ocorreram essas dificuldades (esperou-se que os alunos falassem, nesse momento, se atribuíam a eles mesmos ou atribuíam às dificuldades encontradas a instituição, ao seu ambiente)?

3. Há algo que pode ser feito pra evitar ou diminuir essas dificuldades?

No geral, os grupos ocorreram de forma satisfatória; todos os participantes demonstraram interesse em colaborar, respondendo as perguntas a sua maneira. Embora alguns tenham falado mais, todos puderam se expressar nos grupos, que foram realizados no prédio em que está alocado o Serviço de Psicologia no campus. A duração dos encontros foi de uma hora e quinze minutos a uma hora e trinta minutos.

Para o tratamento dos dados, foi empregada a Análise de Discurso proposta por Minayo (2014). A escolha pela análise de discurso deve-se ao fato dessa metodologia valorizar o contexto em que a fala é produzida, ou seja, o discurso é concebido como uma construção de elementos do contexto sócio-histórico em que o indivíduo está inserido.

A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com protocolo 81163817.2.0000.5504 e parecer 2538777. Os nomes utilizados são fictícios a fim de garantir o sigilo e anonimato dos participantes. Por este motivo, optou-se pela não divulgação do curso dos participantes.

 

Resultados e Discussão

O grupo focal relativo ao Eixo Relação com a Família teve participação de dois homens e três mulheres. Observou-se que a palavra "pressão" foi empregada por todos, referindo que é exercida pela família antes mesmo de entrarem na universidade ou para que os estudantes trabalhem: "Mas com o tempo começou a pressão, de quanto tempo eu levo para formar... a gente entrou e agora, quanto tempo você vai sair, até quando vai ficar nesse negócio, porque você não trabalha" (Jéssica).

Verificou-se que, em alguns casos, o avançar para o Ensino Superior não foi um projeto familiar e, por isso, há a cobrança do trabalho, sequência considerada natural pelos familiares após o término do ensino obrigatório. Outra referência ao termo "pressão" foi para expressar as imposições no dia a dia da universidade:

É uma pressão muito grande, todos os dias, tem épocas que a gente consegue levar mais suave sabe, "vai dar tudo certo, uma hora vai acabar", e tem épocas que a gente não consegue, que é absurdo, então eu tenho três provas essa semana, eu não tive tempo pra respirar e pensar no que eu estou sentindo, e aí vai virando uma bola e chega uma hora que você explode (Maria).

Apesar do eixo temático desse grupo não ser o acadêmico, a reclamação da sobrecarga de tarefas despontou na fala dos participantes. Essa sobrecarga surge em forma de cobrança, principalmente pelos professores, os quais são equiparados aos pais, o que é apontado como uma infantilização dos estudantes e o consequente paternalismo nas posturas dos docentes:

Os professores, eles quase que reproduzem a função dos pais que tentam fazer de longe, que é essa cobrança que continua, é a forma paternalista de encarar, sei lá, os processos...ele tem que entender de uma forma um pouco mais profissional e menos que pessoal as coisas (Alan).

Outro termo bastante pronunciado pelos estudantes foi "independência", o qual caracteriza o novo status possibilitado com a entrada na universidade e o distanciamento da família:

Porque foi meio que acidental, eu não vim para cá para poder me tornar independente e tals e aí isso meio que virou uma coisa que eu não sabia lidar, inclusive. Tipo, meus pais fizeram muitas coisas por mim e eles são muito protetores, então quando eu vim pra cá, tipo, eu não sabia como lidar com a independência que eu tinha aqui, então tinha coisas que eles não queriam que eu fizesse, mas eu queria fazer e aqui eu podia fazer, e aí eu não sabia como lidar (Verônica).

Muitos estudantes se mudam para a cidade onde se localiza a universidade para iniciar a graduação e se afastam da supervisão constante dos familiares. Isso acarreta a sensação de independência, a qual pode promover autonomia e maturidade (Teixeira et al., 2008). Porém, ao mesmo tempo, pode gerar insegurança e conflito com os pais por não saber agir com essa liberdade e com a possibilidade de realizar situações que antes eram proibidas.

O grupo focal relativo ao Eixo Dificuldades de relacionamento Interpessoal teve a participação de cinco pessoas, três mulheres e dois homens. A temática "fazer trabalho em grupo" foi manifestada por alguns participantes, sendo um indicativo das dificuldades que encontraram para se socializar.

Principalmente no começo, quando eu cheguei aqui, tive mais dificuldade, me adaptar aqui, dificuldade até, enfim, conseguir um círculo social [...] Eu também tive algumas dificuldades com a minha sala também, de fazer grupo de trabalho. Enfim, até hoje eu ainda me sinto um pouco deslocada nessa questão social (Claudia).

Pode-se associar a competência de fazer trabalho em grupo com integração acadêmica, pois esta se relaciona ao sentir pertencente ao contexto universitário, diferente da integração social, a qual se refere ao convívio com outras pessoas, a satisfação e sucesso nessas vivências (Teixeira, Castro, Zoltowski, 2012).

Pode-se fazer uma relação desse problema com as diferenças individuais, afloradas ou até mesmo ressaltadas pelos estudantes nesse momento da vida. Assim, a palavra "diferente" também emergiu em alguns relatos: "A gente entra em contato com pessoas de culturas diferentes, sei lá, a forma como as pessoas foram criadas durante a vida inteira delas são totalmente diferentes das nossas" (Tânia).

As diferenças entre as pessoas podem ocasionar dificuldades na convivência, principalmente nas repúblicas: "Eu fui morar em uma república, mas eu não usei nenhum critério para escolher as pessoas com quem eu iria morar. O lugar era totalmente desorganizado e o lugar era literalmente um lixo" (André).

Apesar disso, o contato com a diversidade de pensamento, posturas, comportamentos é típico das mudanças com a entrada na universidade e, assim, é necessário um esforço de adaptação (Teixeira et al., 2008) para se adequar às novas responsabilidades advindas do processo de sair de casa para estudar, como realizar tarefas domésticas.

Quando se perguntou sobre as possíveis causas para os problemas que eles enfrentaram, algumas pessoas trouxeram explicações mais individuais, como características de personalidade, formas de agir e pensar, resultado da educação familiar e até de hábitos culturais.

Tem essa parte individual, que cada pessoa já traz, porque normalmente quem entra pra faculdade tem no mínimo 18 anos pra cima. Então você já tem uma carga muito grande de, sei lá, hábitos mesmo, e também tem essa parte coletiva (Renata).

Porém, há ressalvas sobre a influência do ambiente universitário nas relações sociais: "Aqui na [Universidade] eu vi a dificuldade de trabalhar em grupo, as pessoas somem antes de entregar o trabalho e não avisam porque você tem que fazer por elas, e é difícil, as pessoas competem entre si, no próprio grupo" (Marcelo).

Participaram do grupo focal do Eixo Dificuldades acadêmicas quatro mulheres e três homens. A primeira participante a falar apresentou a dificuldade de conciliar o tempo entre as demandas do curso e o estágio. Essa exigência está simbolizada na expressão "dar conta de tudo", verbalizada pelos outros participantes.

Eu trabalhava em São Paulo, eu ia e voltava todo dia e minha aula é a noite. E aí eu chegava aqui, com toda essa mudança que teve, e os professores com muita cobrança, prova, e aí eu não conseguia estudar e eu virava a noite estudando, e eu ia trabalhar e foi virando essa bola de neve, até que eu conseguia fazer tudo mas eu não ficava bem, não conseguia dormir, não comia direito, então eu acabei tendo muita crise de ansiedade, até quando eu vim aqui eu tava chorando um monte, eu fiquei desesperada... ficar conseguindo dar conta de tudo e aí esse "dar conta de tudo" que prejudicou bastante (Márcia).

Também, a entrada no ensino superior provoca certo afã de participar em inúmeras atividades, pois tudo se mostra novo e interessante. Entretanto, isso pode se tornar um fardo ou um peso a mais para a autocobrança:

Aí no segundo semestre eu estava totalmente envolvido com duas entidades e eu tinha muita responsabilidade nas duas e eu nunca tinha tido nenhum contato com a minha área antes, nunca fiz nem técnico nem nada. Então eu tava tendo que mudar minha forma de pensar para conseguir dar conta do meu curso, me envolver nas atividades da faculdade junto com problemas pessoais, problema com a minha mãe, de relacionamento, ai eu percebi que precisava de ajuda porque além de não estar conseguindo dar conta das coisas, porque eram muitas coisas, eu também não conseguia dormir, chegava a noite e eu simplesmente não tinha sono nenhum porque eu tinha coisa pra fazer (Alberto).

As falas retratam a autocobrança para "dar conta de tudo", "o sentimento de obrigação a atender todas as exigências do curso", como é descrito por Muzzolon (2016). Esta autora ainda traz a reflexão sobre o preço a pagar por essa cobrança e pela busca por excelência, percebida pelo estudante como algo esperado pelo meio acadêmico. Assim, nota-se que o "preço pago" pela estudante Márcia foram noites mal dormidas, alterações no apetite e crises de ansiedade; já no estudante Alberto foi o quadro de insônia e suas consequências.

É possível observar que essa cobrança que os estudantes se impõem aumenta quando se percebem não preparados para a universidade, em decorrência do próprio sistema falho de ensino.

Eu estudei a minha vida inteira em escolas públicas, eu estudei por conta própria pra passar no vestibular e quando eu cheguei aqui eu percebi que eu não estava preparada. Eu sentia que as pessoas estavam bem mais preparadas do que eu, pelo déficit da escola pública mesmo, do ensino publico que eu tive, e eu ficava muito mal porque eu achava que eu não deveria estar aqui, que aqui não era o meu lugar (Bruna).

Esse sentimento de deslocamento do ambiente da universidade, como se não pudesse frequentá-lo, também foi manifestado pelos participantes do estudo de Piotto (2010), provenientes das escolas públicas. Soma-se a esse sentimento a falta de apoio da universidade percebida pelos estudantes, como a inexistência de ações mais eficazes relacionados ao nível alto de reprovação de uma disciplina: "Eu não sei se a universidade pode fazer alguma coisa porque é surreal um professor ter uma taxa de reprovação de 90%" (Luciana).

Outro fator que surgiu no discurso dos participantes relaciona-se a autoimagem, o quanto essa é abalada na passagem do Ensino Médio para o Ensino Superior:

Eu tinha uma noção quando sai do Ensino Médio e quando eu vim pra faculdade era totalmente diferente, eu me senti meio, eu não sei se vocês passaram por isso, mas eu, quando tava no Ensino Médio, os professores falavam "você é muito boa nisso", então eu me sentia muito boa. E quando eu vim pra faculdade, eu percebi que todo mundo é muito bom e aí você fica meio deslocada porque você se sente meio bosta (Luciana).

Esse abalo na autoimagem ao se dar conta que a posição de melhor aluna ou aluno conquistado no Ensino Médio, muitas vezes, não subsiste ao Ensino Superior, é abordado por Benevides-Pereira e Gonçalves (2009). Conforme as autoras, essa consciência ocorre, em muitos casos, diante da primeira nota insatisfatória ou da primeira reprovação.

Participaram dois homens e quatro mulheres no grupo focal relativo ao Eixo Preocupação com a carreira. Inicialmente, os estudantes falaram sobre o período que antecedeu a entrada na graduação ou o seu início, momento em que se depararam com a dúvida na escolha de carreira. "Acho que no momento do vestibular eu era muito novo, eu tinha 17 anos, e eu não tinha maturidade suficiente nem autoconhecimento pra decidir o que eu queria fazer de carreira" (Leonardo).

Os relatos mostram uma pressão para que a escolha de carreira seja feita logo após o Ensino Médio, sendo que alguns não se sentem preparados para essa decisão, até mesmo pela pouca idade e falta de preparação, o que pode facilitar a atuação dos pais na escolha do curso:

A procura do curso veio quando, meu sonho no Ensino Médio era fazer Medicina, aí meus pais, conscientes que era muito difícil de conseguir, já colocaram essa idéia na minha cabeça que era muito difícil de conseguir e aquela pressão de que quando você sair no Ensino Médio você já tem que entrar numa graduação (Juliana).

No que se referem às causas das queixas, alguns estudantes não culpam a universidade, mas sim todo processo que culmina na chegada ao Ensino Superior e a um desconhecimento do curso escolhido:

A gente chega aqui e tem que descobrir o que vai fazer com 18, 20 anos, sem ter nem uma preparação, sei lá, a gente não tem nem um aconselhamento no Ensino Médio, a gente só tem que fazer vestibular, passar na prova e fazer a faculdade, a gente não tem noção do que está acontecendo (Elisa).

Conforme apontado por Lehman, Uvaldo e Silva (2006), sobre a mudança de critério de escolha de carreira dos jovens - estariam mais voltados para as perspectivas do mercado de trabalho que para a realização pessoal na escolha do curso -, identifica-se que esses aspectos podem ter influenciado na escolha, entretanto, não foram suficientes e surge um desconforto quando não há um entrosamento com os planos de atuação do estudante.

Instituição e assédio moral

Ao se analisar e comparar as categorias emergentes de todos os grupos, as queixas dirigidas aos professores se destacam, tanto devido à frequência, pois surgiu em todos os grupos, como também pelos diversos tipos de reclamações.

Para se discutir essa questão, faz-se necessário olhá-la não como algo descontextualizado, mas sim situado dentro da instituição universidade. Albuquerque (1987, p. 55) ressalta três elementos para uma análise da prática institucional: o objeto, o âmbito e os atores institucionais. Referente a esse último, explica:

Se definirmos como instituição uma estrutura de práticas institucionalizadas, isto é, que tendem a se reproduzir e se legitimar, definindo, portanto, uma instituição como estrutura, ela não poderá existir, senão na prática dos atores concretos que a constituem praticando-a (Grifos do autor).

Ao transpor para o contexto da Universidade, pode-se compreender como prática principal o ensino, sendo o professor e o aluno os atores institucionais principais. Para Albuquerque (1987), o professor é um agente privilegiado, já que esse "é dotado de um saber e um poder reconhecido institucionalmente" (p. 56). O estudante ou o seu conjunto representa os atores concretos, com os quais a instituição visa à transmissão do conhecimento, a qual é realizada através do ensino, resultando na formação profissional do aluno.

O conhecimento adquirido no Ensino Superior tem suas particularidades que difere das outras etapas da trajetória escolar do estudante. Uma delas é o entrelaçamento com a pesquisa e a ciência, elevando o conhecimento difundido nesse espaço num outro patamar. Quando se associa essa característica com os aspectos próprios de uma organização, como a instituição Universidade, há atravessamentos:

As ciências constituem parte do modo de dominação burocrático-meritocrático que caracteriza nossas vidas. [...] Altamente sistematizada, a teoria organizacional estabelece uma divisão de trabalho que distingue o "saber comum" do "saber científico", os leigos dos profissionais. Estabelece, da mesma forma, uma estratificação meritocrática que dá aos ocupantes dos níveis mais altos o direito de se referirem à área organizacional de forma autoritária e rígida (Motta, 1986, p. 19).

Em relação à burocracia, o autor emprega o termo tecnoburocracia e como essa permeia as instituições e afeta o modo de pensar:

O processo de inculcação de formas de pensar tecnoburocráticas implica tanto as formas adequadas à dominação quanto à submissão; começa muito cedo, seja na família, seja na pré-escola, e progride sistemática e paulatinamente nas diversas instâncias organizacionais da educação formal, tendo, nesse processo, a universidade papel crucial (Motta, 1986, p. 24).

Ao analisar o ambiente universitário e, tendo em vista que os atores principais dessa instituição são os imbricados no processo de ensino - professor e aluno -, é possível inferir que as formas de pensar tecnoburocráticas perpassam essa relação e podem se tornar mecanismos facilitadores de opressão, dominação e submissão, configurando-se em assédio moral.

Hirigoyen (2010, p. 65) caracteriza o assédio moral como "toda e qualquer conduta abusiva, manifestando-se, sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa".

Um dos tipos de assédio moral é o denominado vertical descendente, que ocorre quando um indivíduo em posição hierárquica superior assedia subordinados ou pessoas de nível hierárquico inferior (Hirigoyen, 2002). O assédio cometido pelo professor ao aluno enquadra-se nessa categoria e "é bastante comum em razão das características do sistema de ensino do país" (Paixão, Melo, Souza-Silva, & Néria, 2014, p. 420). Para esses autores, a posição de superioridade dos docentes é alimentada pelo reconhecimento e exaltação, da instituição universidade, ao professor como figura de transmissor do conhecimento.

A pesquisa de Coleta e Miranda (2003) identificou situações de humilhação e constrangimento praticadas pelos professores nas instituições de ensino superior. Os resultados indicaram 12 categorias de assédio moral sofridas por estudantes universitários:

Agressão física; agressão verbal aos alunos; ameaças aos alunos; acusação agressiva e sem provas; assédio sexual; comentários depreciativos, indecoros e preconceituosos; tratamento discriminatório e excludente; rebaixamento da capacidade cognitiva dos alunos; desinteresse e omissão; uso inadequado de instrumentos pedagógicos, prejudicando os alunos; recusa em realizar seu trabalho e abandono do trabalho em sala de aula (Coleta, & Miranda, 2003).

Os autores definiram cada categoria com exemplos de sua manifestação. Ao analisar os relatos apresentados pelos estudantes da pesquisa aqui relatada, foi possível identificar a maioria dessas categorias e encontrar semelhanças com suas descrições, as quais estão em parênteses:

Ameaças aos alunos (ameaçar aumentar o nível de dificuldade das provas):

Tem muitos professores do meu curso que são assim, eles super aterrorizam a gente [] Teve uma professora esse semestre que a sala toda foi mal na prova dela, e ela foi na sala falar com a gente, e ela falou: "vocês foram péssimos na prova" só que rindo, "como vocês vão estudar na prova que vem porque com certeza estará muito mais difícil do que essa" (Luciana).

Assédio sexual (assediar sexualmente o aluno, convidando-o para manter relações sexuais, fazendo-lhe sinais e carícias, propondo-lhe permuta de notas por favores sexuais, tentando agarrá-lo nas dependências da instituição): "Ele foi afastado das aulas do curso porque ele apresentava muitos problemas relacionados a assédio e coisas do tipo" (Bruna).

Tratamento discriminatório e excludente (dar tratamento diferenciado a alunos): "Eu acho que, no primeiro ano, muitos dos nossos professores eles enxergam o desempenho dos alunos como uma seleção, como aqueles que conseguem ficar aqui ou aqueles que não conseguem, vão embora" (Rodolfo).

Rebaixamento da capacidade cognitiva dos alunos (enaltecer seus próprios conhecimentos, ridicularizando os erros dos alunos em provas, perguntas e trabalhos; impedir que os alunos opinem por considerar que eles não possuem capacidade para tal, fazer comentários em público sobre as dificuldades, desempenho ou erros dos alunos):

Por que a prática é mais uma questão do professor do que da coletividade? Enfim, é porque eles não confiam que a gente tem realmente autonomia pra pensar, pra propor, eles encaram a gente de uma forma muito subalterna e subestimando a gente intelectualmente o tempo todo sabe (Alan).

Desinteresse e omissão (ser omisso, demonstrar desinteresse, não repassando aos alunos as devidas orientações para a realização de trabalhos práticos, ao ministrar o conteúdo; pela apresentação dos trabalhos dos alunos):

Na aula, os alunos não conseguem absorver nada, porque o professor não consegue passar: "lá na prova é isso, isso, isso que eu quero de vocês, é isso, isso, isso, que você precisa aprender". Não, aí a pessoa fica perdida, chega na prova é aquela decepção, é aquela frustração (Maria).

Uso inadequado de instrumentos pedagógicos, prejudicando os alunos (aumentar o nível de dificuldade das provas, como forma de punir os alunos): "Ele soltou em outra turma, porque ele dá duas matérias, que a matéria que ele vai dar semestre que vem, vai estar impossível, que nem a ouvidoria vai ajudar" (Carlos).

Recusa em realizar seu trabalho (negar-se a esclarecer as dúvidas ou ouvir os comentários dos alunos, demonstrando desinteresse, alegando que a dúvida é desnecessária, que o aluno consultou material inadequado, que já havia explicado a questão anteriormente):

Eu fico observando a forma que ela dá aula, não o conteúdo porque eu já aprendi, e aí ela virou para as meninas, com puta dificuldade na frente, se esforçando, tentando entender e ela perguntou paras as meninas "vocês entenderam, gente?" e elas olharam pra professora e ela ficou brava, falou "to começando a ficar irritada, vocês não entenderem essa matéria, vocês tem que estudar, vocês tem que fazer exercício, vocês não vão entender, vocês acham que eu vou colocar na cabeça de vocês? É difícil mesmo!". Aí eu olhei e ela brava, de verdade, que é isso, é muito difícil, é óbvio que elas não estão entendendo. E isso ficou na minha cabeça, ela simplesmente falou que estava irritada porque os alunos não aprendiam (Alberto).

O enquadramento dos relatos dos estudantes em alguns tipos de assédio moral evidencia a existência dessa prática dentro da universidade, permeando as relações entre professor e aluno. Nesse cenário, os docentes surgem como agentes de sofrimento psíquico, tendo diversas facetas, podendo ser explícitas, como o professor que ri enquanto os alunos fazem prova, ou mais velado, em declarações com mensagens angustiantes, ao falar que o estudante somente conseguirá terminar a universidade se vivenciá-la totalmente - dedicar-se exclusivamente - permanecendo o máximo de tempo na instituição, nem que isso prejudique as outras áreas de sua vida e que não tenha tempo para o lazer. Ao mesmo tempo em que há muitas críticas ao comportamento dos professores, há também o reconhecimento das pressões que os atingem:

A produtividade acadêmica que é exigida dos professores, eles além de fazer o ensino, eles têm que fazer a pesquisa, a extensão e as questões políticas, administrativas, do campus. Então, assim, realmente é muita cobrança, porque eu to aqui dando aula, fazendo vários projetos, pesquisas, orientando várias pessoas e agora tem que ser coordenador do curso também, ou vice-coordenador. Tem que ir lá pra fazer representação de não sei o que e lidar com essa chuva de burocracia (Alan).

Além disso, é evidente na fala dos alunos que não há uma generalização, ou seja, há uma separação entre docentes mais inflexíveis, que acentuam a distância entre professor e aluno, e docentes mais abertos ao diálogo com os estudantes e até se aproximam de um nível de amizade:

Eu tive a oportunidade de estar meio que descontraída no meio dos professores. Eu vi que tem professor que, nem ta na área que eles realmente são, e eles contam um pouco como eles foram para essa área, porque eles foram, que às vezes eles nem gostam do que estão ensinando, mas fizeram concurso pra isso (Gisele).

Por um lado, há uma demanda por docentes mais próximos e interessados nos alunos; por outro, o perfil dos professores das instituições de Ensino Superior está mais voltado para a pesquisa, com foco em produtividade científica, como aponta um dos participantes:

Vários professores não têm didática, eles são pesquisadores, entendeu? Pra ser pesquisador no Brasil tem que estar no mínimo em uma universidade ou numa instituição muito boa. Tem professor que não tem didática nenhuma e quer que a gente aprenda como? (Carlos).

Dessa forma, evidencia-se um descompasso, o qual pode estar atrelado à reprodução do sistema capitalista dentro da instituição universidade, valorizando a produtividade e o individualismo e eliminando ou dificultando as relações de afeto e da coletividade. Sobre a afetividade, essa é abordada dentro de uma perspectiva psicossocial, onde se busca compreendê-la como implicada em cenários socioculturais" (Paiva, 2013).

Para Codo e Gazzotti (2006, p. 45), na lógica capitalista há uma objetivação do trabalhador que dificulta o emergir da subjetividade no cotidiano do trabalho, em sua prática diária - no caso do professor, o ensinar - tornando-se entrave para o estabelecimento e manutenção de vínculos entre docentes e discentes. Normas, salários, regras configuram-se em obstáculos para o fechamento do circuito afetivo, já que prejudicam o retorno do afeto investido no fazer laboral para a pessoa que o empregou. Todo esse cenário, com esses impedimentos, também pode desencadear sofrimento psíquico nos professores, até mesmo levar ao adoecimento.

Para se alterar essa realidade, faz-se necessário refletir sobre a tecnoburocracia na instituição universidade, tendo em vista que essa "sustenta-se na existência de um sistema de condutas significativas, modos comuns de interpretação e compreensão que possibilitam a manutenção da atividade organizada" (Motta, 1986, p. 23). Referente a esse sistema, pode-se dizer que ele se associa a relação entre saber-poder.

Para Gallo (2008), a universidade enquadra-se num perfil de "instituição classificadora e legitimadora dos saberes", contribuindo para a constituição da "comunidade científica". Dessa forma, essa instituição colabora para a "disciplinarização dos saberes", ou seja, há saberes que se encaixam em critérios adotados pela própria universidade, com base em preceitos científicos, e por isso são reconhecidos e alcançam a categoria de "verdadeiros". Outros saberes são menosprezados ou nem ao menos considerados e avaliados pela comunidade científica.

A Universidade, por ser vista por muitos como um lugar de conhecimento, do saber legítimo, transformou-se em alvo de desejo de muitos estudantes e representa conquista quando conseguem sua tão sonhada vaga. Entretanto, como o saber muitas vezes se atrela ao poder e para sua manutenção se utiliza de métodos rígidos e inadequados, essa instituição pode causar sofrimento psíquico e influenciar nos processos de subjetivação dos estudantes.

 

Considerações Finais

Com o aprofundamento das queixas levantadas na etapa quantitativa, através da realização dos grupos focais e escuta dos relatos dos participantes, foi possível notar que alguns aspectos da transição para o Ensino Superior demonstram ser comuns a essa passagem, como o contato com novas experiências e o impacto na identidade. Ao mesmo tempo em que essa vivência é vista como positiva, ela também gera angústia. O ambiente universitário se revela novo para os estudantes, sendo factível a ansiedade que advém do não conhecimento do espaço, das regras, das pessoas, e que, em alguns casos, aumenta pela distância da família, pois a presença ou proximidade dos pais muitas vezes proporcionava segurança. Entretanto, a partir dos resultados dessa pesquisa, identificaram-se aspectos institucionais que agravam esse estado de instabilidade latente e acabam por potencializar e levar ao sofrimento psíquico.

Observou-se também a forte presença de assédio moral, no qual a posição hierárquica que o docente ocupa favorece para a desqualificação e opressão dos estudantes. Essa hierarquia sustenta-se no poder que a universidade atribui aos docentes, principalmente pela valorização da pesquisa, elevando a universidade ao status de lugar do saber e do conhecimento. É inegável a relevância da pesquisa e como essa enriquece o ensino, entretanto, a transmissão do conhecimento é prejudicada quando burocracias, normas, disputa pelo poder e pelo lugar do "saber legítimo", invadem as relações das pessoas da comunidade universitária. Esses mediadores bloqueiam o circuito afetivo entre professor e aluno, transformando-se em empecilho para a concretização do processo ensino-aprendizagem. Como apontam Codo e Gazotti (2006, p. 40), "no caso do professor a relação afetiva é obrigatória para o próprio exercício do trabalho, é um pré-requisito. Para que o trabalho seja efetivo, ou seja, que atinja seus objetivos, a relação afetiva necessariamente tem que ser estabelecida".

Em relação às possibilidades de diminuição da vulnerabilidade ao sofrimento psíquico na universidade, diversas sugestões foram levantadas pelos participantes dos grupos focais que se mostram promissoras para embasar ações voltadas para promoção de saúde dentro da universidade: criar espaços de troca entre professores e alunos fora do contexto de sala de aula, visando diálogo e compartilhamento da trajetória profissional; modificar grades curriculares dos cursos com redução de disciplinas, reconhecimento da participação em entidades como atividade curricular, aumento de disciplinas práticas e diminuição das teóricas; ampliar quantidade de bolsas acadêmicas e número de profissionais da saúde, principalmente psicólogos; criar espaços acolhedores, a fim de facilitar o contato entre os integrantes da comunidade acadêmica; elaborar programa que proporcione o contato de alunos que já apresentaram dificuldades com os que estão apresentando, a fim de orientar e colaborar no enfrentamento do problema.

Nesse contexto, os Serviços de Psicologia dentro dos campi universitários são vistos como um espaço de escuta e de apoio emocional diante do caos que, muitas vezes, se transforma essa passagem pela universidade. Ao considerar o que foi exposto e adotando o olhar da não patologização e da não medicalização, fugindo do risco de enxergar o sujeito separado do contexto que o circunda e o afeta, as ações voltadas para minimizar o sofrimento psíquico no contexto universitário devem envolver todos os setores e categorias como também devem estar asseguradas por uma política institucional.

 

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Endereço para correspondência:
Fabiana Midori Oikawa
fbkawa@ufscar.br

Marcos Roberto Vieira Garcia
mgarcia@ufscar.br

Submetido em: 16/07/2019
Revisto em: 28/11/2019
Aceito em: 21/12/2019

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