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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versión On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.73 no.3 Rio de Janeiro sep./dic. 2021

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2021v73i3p.3-5 

EDITORIAL

 

As relações perigosas do circuito editorial acadêmico no contemporâneo

 

 

Francisco Teixeira PortugalI; Fernando Gastal de CastroII; Mônica Botelho AlvimIII

IEditor-chefe da Arquivos Brasileiros de Psicologia. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). https://orcid.org/0000-0001-6481-6509
IIEditor-associado da Arquivos Brasileiros de Psicologia. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). https://orcid.org/0000-0003-0200-9175
IIIEditora-associada da Arquivos Brasileiros de Psicologia. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). https://orcid.org/0000-0003-3522-4154

Endereço para correspondência

 

 

Choderlos de Laclos manteve-se na memória coletiva por seu romance epistolar As relações perigosas (Laclos, 1987), publicado em 1872. O romance, muito além da dimensão erótica a que, por vezes, é reduzido, traça um conjunto elaborado das relações afetivas, das relações sexuais, da nobreza, do governo, e das hierarquias sociais vigentes em uma certa Paris do século XVIII1. As cartas, em suas diferentes possibilidades de comunicação, em seus diferentes estilos de escrita e em sua centralidade na organização social da nobreza, constituem simultaneamente a expressão e os movimentos nuançados do campo social.

Este editorial descreverá algumas práticas editoriais e seus agentes - por meio da experiência editorial algo assemelhada ao romance de missivas2 -, a fim de contribuir, pela visibilização de seus códigos, para a valorização da publicização de textos acadêmicos relevantes e para combater o produtivismo e a burocratização do processo de produção e de difusão do conhecimento.

O risco de acusação de alcovitaria (já que parte considerada essencial da editoria é realizada sob sigilo e as decisões editoriais são frequentemente recebidas recobertas de avaliações morais totalizantes das qualidades pessoais) explicita a dinâmica editorial naquilo que ela opera no plano invisível. O consenso vigente é o de que todos os textos devem ser avaliados e, mais, avaliados de forma anônima para que possam ser publicados. No processo de avaliação hegemônico nos periódicos acadêmicos, tanto autores como avaliadores são mantidos invisíveis entre si durante o processo que antecede a publicação. Os autores cujos textos foram aprovados tornam-se visíveis com a publicação, já os avaliadores são divulgados regularmente sem relacioná-los aos textos que avaliaram. A presunção de "conflito de interesses" em potencialmente introduzir um viés na avaliação parece colidir com um pressuposto, bastante difundido, de que toda pessoa é inocente até que se prove o contrário. Mas a avaliação, esta entidade cotidiana e glamourizada, justifica que se vá além e que se opere (e produza) na má consciência de forma naturalizada. A desconfiança adentrou as relações acadêmicas editoriais e as tem regulado, produzindo danos e esforços desnecessários.

Somente à editoria reduzida à sua dimensão mais operacional caberia tal procedimento denominado de "duplo cego". Se não deixa de ocorrer no mundo editorial o repasse de avaliações diretamente aos autores sem tratamento apropriado dos argumentos apresentados e sem que se considere o valor dos argumentos apresentados para o aprimoramento do texto e para a decisão editorial a ser tomada, a resposta não corresponde à criação de uma regra geral a coibir tal prática, caberia antes a ressalva de que este procedimento mecânico deve ser evitado e combatido quando aplicado. Deste modo, a comunidade acadêmica é convocada a colaborar fornecendo "pareceres" que dialoguem com as submissões e que ofereçam argumentos para que os editores decidam como encaminhar uma decisão sobre o texto em questão. Editores somente atuam como editores quando participam deste processo como mediadores, constituindo um terreno em que se pode conversar uma boa conversa, aberta, direta, informada sobre o texto, a fim de garantir uma forma textual bem-acabada a ser oferecida para a comunidade. Neste sentido, o trabalho editorial começa antes mesmo do envio do texto aos avaliadores. Não apenas para a verificação do cumprimento ou descumprimento das regras de submissão, mas para uma seleção prévia do material. O produtivismo aumentou exponencialmente o envio de submissões frágeis, de trabalhos fatiados e repetitivos, para os quais os avaliadores não deveriam ser acionados.

Além dos editores, as reações dos avaliadores têm sido atualmente um dificultador do processo editorial. O número de recusas às solicitações de avaliação cresceu e tem pesado como chumbo nas editorias que nadam neste mar atualmente turvo e de clima nebuloso. Não tem sido incomum a consulta a mais de uma dezena de pesquisadores para obtenção de dois pareceres. Não é incomum também avaliações empobrecidas que obrigam os editores a consultar outros pesquisadores que efetivamente contribuam para o processo.

Sabemos como o excesso de demandas tem justificado as recusas. Todo editor é também avaliador. Não pretendemos moralizar o processo atribuindo e disseminando culpa entre a comunidade. Não estamos a afirmar: quem não aceita participar do processo de avaliação quando convocado é culpado. Ou seja, não queremos insistir neste processo, otimizá-lo, queremos expor seus modos de funcionamento e pensar conjuntamente as políticas editoriais que nos levam à produção do conhecimento. O que extrairemos dessas recusas massivas de realizar pareceres, da evidência recorrente de pareceres frágeis, de pouco valor para uma decisão editorial circunstanciada e para a valorização da submissão? Devemos reiterar o apelo subjetivista e culpabilizante para que os pareceristas aceitem realizar a atividade e que a façam de forma dedicada e acionando todos os seus recursos cognitivos e narrativos? Há sempre a saída de "pontuar" a atividade e, pela mais-valia subjetiva, inserir tal atividade no Lattes.

Estes procedimentos já estão em curso e apenas aprofundam a burocratização. Parece-nos que precisamos produzir um caminho que nos leve a outro mundo e, para tanto, propomos resgatar o princípio de que o processo editorial visa não apenas publicizar a produção acadêmica, mas de que ele é parte do processo de produção do conhecimento, ao convocar a participação de pares não previstos a fim de aprimorar o texto e, quando for o caso, recusar sua circulação neste ou naquele veículo.

Este princípio pode ser acusado de ingênuo. Qualquer um que tenha alguma experiência no mundo acadêmico como no mercado sabe que essas "proteções" podem sempre ser contornadas. Em lugar da ingenuidade, propomos uma cultura da confiança (Debaise & Stengers, 2021) em que a produção de dispositivos atuantes na mutualidade constitua territórios existenciais abertos a novas relações de interdependência com outros coletivos.

Para tanto, é preciso recusar a desconfiança e o medo de ser enganado, que funcionam muito bem no modo do consumo e, evidentemente, não apenas do consumo financeirizado, mas na ordenação das relações acadêmicas pelos dispositivos do consumo que envolvem avaliação, hierarquização, individualização e desconfiança generalizada. Tal código do consumo ordena o processo, já bem instalado no mundo acadêmico e bastante adiantado no mundo das publicações acadêmicas, e se conecta a outros dispositivos. Além da publicação numerosa contida pela avaliação dos periódicos (que devem necessariamente ser comparados e hierarquizados no modelo de uma curva gaussiana, isto é, com um meio volumoso e extremidades rarefeitas), temos experienciado relações de cobrança do tempo de tramitação editorial como se fôssemos fornecedores de serviços editoriais no melhor estilo do consumo, com direito a cobranças judiciais. Tal ameaça se apresenta como mais um avanço do medo, da desconfiança, da anulação dos processos densos de criação e de produção do conhecimento acadêmico.

Que esta crise de financiamento nos leve, não a intensificar a competição atualmente existente, mas à produção de algum território em que possamos nos apoiar e nos enriquecer existencialmente.

 

Referências

Andrade, C. D. (2013). Os dias lindos. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Debaise, D., & Stengers, I. (2021). Résister à l'amincissement du monde. Multitudes, 85(4), 129-137. https://doi.org/10.3917/mult.085.0129        [ Links ]

Laclos, P. C. (1987). As relações perigosas. Rio de Janeiro: Globo.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Francisco Teixeira Portugal
e-mail: arquivosbrap@psicologia.ufrj.br

 

 

 

1 A magnífica tradução brasileira feita por Carlos Drummond de Andrade e publicada inicialmente pela antiga editora Globo (antes de pertencer ao conglomerado homônimo) conta ainda com uma introdução indispensável. O próprio Drummond, afetado por este e outros romances epistolares, dedicou-se a publicar em 1974 sua coluna de cronista de jornal um conjunto de missivas reunidas posteriormente sob o título Histórias de amor em cartas no livro Os dias lindos (Andrade, 2013).
2 Apesar de toda roteirização do processo editorial que impõe formas precisas à comunicação desde as numerosas instruções aos autores para submissão de seus trabalhos, passando pela impensada planificação dos processos editoriais resultante da utilização da plataforma OJS (bastante difundida no país) quanto pela induzida planificação dos sistemas de avaliação do sistema Qualis, há sempre certo grau de liberdade e de inesperado na massiva comunicação que a tramitação editorial produz. É neste sentido de ultrapassagem do roteiro que a análise da atividade editorial pode se inspirar no romance de missivas.

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