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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.1 Goiânia jun. 2007

 

ARTIGOS

 

“Incríveis infratores”: adolescentes estigmatizados em encontro com a Gestalt-Terapia1

 

 

Nara Cristina Leão

 

 


RESUMO

Este artigo trata de uma discussão teórica, que pretende demonstrar como a Gestalt-Terapia pode atuar junto a adolescentes em conflito com a lei, auxiliando-os na ressignificação do estigma e na contatação de sua essência, de modo a atingir a ação ética. A cada dia questões de violência e segurança se tornam mais preocupantes. Frente a essa problemática, as pessoas tendem a procurar um único culpado, no qual possam depositar toda a responsabilidade. Logo, o adolescente que comete crimes recebe o estigma de infrator, e sua identidade fica limitada a esse rótulo - a dimensão humana é destruída, e, em seu lugar, ocorre a construção da destrutividade. Com o intuito de mostrar uma concepção diferente da de culpabilização, aborda-se nesse artigo a visão da criminologia crítica, na qual a responsabilidade pelos atos infracionais é de toda a estrutura social. Considera-se o fenômeno da estigmatização, e o adolescente enquanto ser-no-mundo. Discorre-se também sobre o encontro de adolescentes autores de atos infracionais com a Gestalt-Terapia e a ação ética advinda desse momento. Ressalta-se a importância da relação dialógica no processo psicoterapêutico com adolescentes em conflito com a lei, e a relevância da teoria do contato neste trabalho.

Palavras-chave: Adolescentes em conflito com a lei, Estigma, Gestalt-terapia.


ABSTRACT

This article is about a theoretical quarrel, that it intends to demonstrate as the Gestalttherapy can act next to adolescents in conflict with the law, assisting them in the ressignification of the stigma and the contact of its essence, in order to reach the ethical action. Each day questions of violence and security become more preoccupying. Front to this problem, the people tend to look for a guilty, in which can deposit all the responsibility. Soon, the adolescent who commits crimes receives the stigma of infractor, and its identity is limited to this label - the dimension human being is destroyed, and the construction of the badness occurs. With intention to show a different conception of the one of to guilt, the vision of the critical criminology is approached in this article, in which the responsibility for the infraction acts is of all the social structure. The phenomenon of the stigmatization is considered, and the adolescent while a person in the world. One also discourses on the meeting of adolescent authors of infraction acts with the Gestalt-therapy and the happened ethical action of this moment. The importance of the dialogical relation in the psychotherapeutic process with adolescents in conflict with the law, and the relevance of the theory of the contact in this work is standed out it.

Keywords: Adolescents in conflict with the law, Stigma, Gestalt-therapy.


RESUMEN

En este artículo trata de una discusión teórica, que pretende demostrar como la Terapia Gestalt puede actuar junto a los adolescentes en conflicto con la ley, ayudando-los a resignificar el estigma y hacer con que entren en contacto con su esencia y puedan, así, alcanzar la acción ética. Cada día las cuestiones de violencia y seguridad son más preocupantes. Frente a esa problemática las personas tienden a buscar un único culpado en quien depositar toda la responsabilidad. El adolescente que comete crímenes recibe el estigma de infractor y su identidad se resume a ese rótulo, la dimensión humana es destruida y, en su lugar, se construye la destructividad. Con el propósito de mostrar una concepción diferente de la de culpabilización, se aborda en este artículo la visión de la criminología crítica, en la cual la responsabilidad por los actos infracciónales es de toda la estructura social. Se considera el fenómeno de la estigmatización y el adolescente como ser-en-el-mundo. Se discurre también sobre el encuentro de adolescentes infractores con la Terapia Gestalt y la acción ética procedente de ese momento. Se resalta la importancia de la relación dialógica en el proceso sicoterápico con adolescentes en conflicto con la ley y la relevancia de la teoría del contacto en este trabajo.

Palabras clave: Adolescentes en conflicto con la ley, Estigma, Terapia Gestalt.


 

 

Há bastante tempo as questões de violência e segurança tornaram-se uma preocupação generalizada. Atos infracionais, desde simples pixações até os assassinatos mais perversos, são uma realidade da qual não se tem como fugir. Pode-se tentar ignorá-la, mas não o tempo todo, pois o medo de ser vítima de algum ato violento não deixa que as pessoas esqueçam esse problema social.

E quem é responsável por essa situação? “O delinqüente que comete esses atos” é uma resposta comum, que seria dada por várias pessoas a essa pergunta. Buscando-se um culpado para essa situação, depara-se com a pessoa infratora, e nela deposita-se toda a responsabilidade. Ao dar essa resposta, por mais insatisfatória que seja, a ansiedade que acompanha a pergunta é diminuída, e a busca pela resposta, cessada, pois se acredita que ela já foi encontrada. Mas como é o “inimigo” errado que está sendo “combatido”, o problema não é resolvido.

O contentamento com essa resposta traz uma divisão da sociedade em dois grupos distintos: um composto pelas vítimas, tidas como inocentes, e outro, pelos algozes, totalmente culpados. Essa divisão social gera conseqüências ainda piores. A estigmatização sofrida pelo autor do ato infracional é uma delas, o que limita-o como ser humano. A dimensão humana é destruída, e, em seu lugar, ocorre a construção da destrutividade. Frente a essa problemática, surgiu na autora deste artigo a preocupação e a vontade de escrever sobre este assunto e mostrar uma visão diferente da convencional.

Este artigo trata-se de uma discussão teórica, que pretende demonstrar como a Gestalt-Terapia pode atuar junto a adolescentes em conflito com a lei, auxiliando-os na ressignificação do estigma e na contatação de sua essência, de modo a atingir a ação ética. Para tal, será feita uma explanação de teorias que embasam a Gestalt-Terapia - “teoria do contato” e “relação dialógica”, conectando-as com o tema em questão.

Em certo momento deste texto, a autora utiliza-se de uma passagem de um trabalho com grupo de adolescentes em conflito com a lei, acreditando que muito acrescentará para essa discussão. Este trecho refere-se a escolha do nome do grupo, feita pelos próprios jovens. O nome escolhido, “incríveis infratores”, será aqui utilizado como sinônimo da expressão “adolescentes em conflito com a lei”.

Antes de entrar nessa parte mais específica, percebeu-se a necessidade de discorrer, de forma breve, acerca de algumas teorias da psicologia social consideradas importantes pela autora, com o intuito de esclarecer a delinqüência enquanto fenômeno social.

 

Uma visão social

Segre (1996) coloca que, para algum tipo de comportamento ser considerado criminoso, deve primeiro haver uma lei que diga como é correto e errado agir, que dite uma norma, visando o estabelecimento de uma ordem. Essa ordem obriga cada indivíduo a agir de acordo com ela para preservar um tecido social da forma como ele se constitui no momento, dentro de padrões que lhe permitam a continuidade em condições de segurança. Essa segurança buscada seria contra a extinção e contra a mudança. Assim sendo, percebe-se que a lei é altamente conservadora - busca-se a restrição de condutas que possam mudar o destino da comunidade.

Entretanto, a questão não é a lei em si, pois ela está a serviço da comunidade. Logo, esse desejo de preservação, esse conservadorismo, é um desejo da própria sociedade que, através da justiça, busca formas de concretizá-lo, tentando extinguir as ameaças ao status quo. Por isso o que surge de diferente da ordem é tão temido, já que levaria à desagregação do tecido social (Segre, 1996).

Na década de 70 surgiu a criminologia crítica, opondo-se a visão da criminologia tradicional. Ela defende que a sociedade “fabrica” seus próprios delinqüentes e depois “cria” instituições para tomar conta deles, de modo a ressaltar a diferença entre os “bons” e os “maus”. Desse modo, os delinqüentes desempenham uma função utilitária à medida que sobre eles a sociedade projeta todos seus males e ressalva quem são os ‘cidadãos corretos’, que vivem dentro da lei e dos princípios dominantes na sociedade (Trindade, 1993).

A criminologia crítica sustenta que o delito é muito mais que simplesmente uma ação individual, mais que um resultado da vontade do delinqüente. Dessa forma, o delito deve ser atribuído também à sociedade. É o que Petrelli (comunicação pessoal, 23 de novembro de 2005) chama de CIA - Agenciadores Inteligentes do Crime. Esta é uma visão na contramão, na qual pára de se preocupar meramente com os efeitos, e se vai às causas, investigando e desvelando o sistema criminogênico.

Sob essa perspectiva, o que mais importa não são os fatos, o tratamento dos infratores, e sim a reconstrução das estruturas sociais e sua reforma. Segundo Trindade (1993), a meta principal é a reestruturação da sociedade, mais que a reinserção do indivíduo na sociedade ou sua retirada do convívio social. Afirma, também, que as sanções do tipo penal resultam num mal maior. Por outro lado, quando o sujeito passivo é toda a comunidade, se torna benéfico corrigir as estruturas injustas, considerando a necessidade de se evitar as estigmatizações, as incriminações e as etiquetagens.

Quando um adolescente comete um ato infracional e isso chega ao conhecimento das pessoas, ele passa a carregar consigo o estigma de infrator ou criminoso. “Estigma” é um conceito usado por Goffman (1988), que o define como um “defeito” que a pessoa possui, fazendo com que ela se diferencie das demais pessoas ditas normais. Esse termo costuma ser utilizado em referência a um atributo profundamente depreciativo. Porém, Goffman (1988) destaca que um mesmo atributo que estigmatiza alguém em um contexto, pode confirmar a normalidade de outrem em uma conjuntura diferente. Portanto, o atributo não é desonroso em si mesmo, pois depende das relações envolvidas na situação.

Junto à vivência da estigmatização, pode estar envolvido o processo de “aceitação”. Goffman (1988) explica que quando um indivíduo é estigmatizado, normalmente convive com pessoas que o reduzem ao seu estigma e não conseguem vê-lo em sua totalidade, não o respeitando nem considerando os aspectos não contaminados de sua identidade. Com isso, pode ser que ele próprio passe a se desacreditar e fazer eco a essa negativa. A essa atitude da pessoa estigmatizada, Goffman (1988) dá o nome de “aceitação”.

Dessa forma, diversos aspectos da totalidade do ser estigmatizado tornamse secundários, e a característica estigmatizadora toma uma grande proporção, ocupando boa parte dessa identidade. A vivência da estigmatização deteriora a identidade da pessoa, para então o estigma ser assumido como a própria identidade (R. Petrelli; comunicação pessoal, 11 de maio de 2006).

 

“Incríveis infratores”

A autora deste artigo realizou um trabalho psicoterapêutico com um grupo de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. Seria de grande relevância a discussão deste trabalho como um todo, porém, devido à limitação espacial, isso não é possível. Entretanto, pode-se discutir uma pequena parte dele, a qual traz luz à fundamentação teórica aqui apresentada. Essa parte diz respeito à escolha do nome do grupo.

A terapeuta sugeriu ao grupo a escolha de um nome que representasse o mesmo. Após um tempo de discussão entre os adolescentes, o nome escolhido foi “incríveis infratores”. Pode-se pensar a respeito dessa escolha resgatando a teoria do estigma - um nome contendo a palavra “infratores” demonstra a vivência da estigmatização, sua aceitação e, até mesmo, sua assumência como identidade.

Entretanto, pode-se analisar ainda, de maneira mais profunda, qual sentido teria a escolha do nome como um todo. Juntou-se a característica estigmatizadora, “infratores”, com um adjetivo que a enaltece, descrevendo esses adolescentes como seres extraordinários. Eles não são adolescentes comuns, nem meros infratores, eles são “incríveis infratores”.

A palavra “incrível” pode se referir a aspectos de supremacia e dar ao substantivo característica de superioridade. Pode também ser um elogio a algo ou alguém, usado para ressaltar uma faceta admiravelmente importante. “Incrível” também diz respeito à extrapolação, ao que vai além, que não se contenta com normas, regras ou com a lógica.

Esses adolescentes estão não apenas em um processo de ir contra a cultura dominante, mas também em um processo crítico de se identificar com a sub-cultura transgressora. Eles estão vivenciando um ponto do processo psíquico de identidade, no qual está havendo uma identificação com a sub-cultura criminosa. Esse é o ponto de nascimento da criminalidade (R. Petrelli; comunicação pessoal, 11 de maio de 2006).

Se não lhes foi dada a chance de se mostrarem como são, de serem aceitos e confirmados em suas singularidades, eles deram um jeito de se mostrarem incríveis de alguma forma, que seja como infratores. Ao escolherem esse nome, eles passam a mensagem: “vocês não acreditaram em nós, não nos deram crédito, então encontramos credibilidade de outra forma, sendo ‘incríveis infratores’”. Ao serem excluídos de um sistema, eles procuram um novo sistema no qual possam se incluir. Assim, eles podem mostrar quão incríveis são, e o quanto há de especial em suas existências.

Esse movimento constitui uma busca desesperada por credibilidade, aceitação e inclusão. Forma-se, então, uma identidade baseada na malevolência. A energia desses adolescentes está direcionada para a destrutividade, ao que May (1988) dá o nome de demoníaco diabólico.

Esses adolescentes, em suas relações com os outros e com o mundo, desenvolvem-se e constroem-se da forma como podem, buscando um jeito de sobreviver e de proteger sua auto-estima. Em alguma coisa eles têm que ser incríveis, se não é possível estando de acordo com os padrões da cultura dominante, se não lhes são dadas as condições para tal, que seja então infringindo as leis. Talvez essa seja a única forma que encontraram de se manter no mundo, pode ser assim que eles conseguem algum amor próprio.

Investigar a relação que esses adolescentes e o mundo vêm desenvolvendo entre si, torna possível ampliar a compreensão a respeito da delinqüência.

 

O adolescente enquanto ser-no-mundo

Pode-se questionar qual seria a relevância da relação que o adolescente tem com o mundo que o cerca para o desenvolvimento de sua identidade. Ou ainda, qual seria a relevância da relação jovem-mundo no desenvolvimento da criminalidade.

Em estudos de diferentes autores, percebe-se que as relações interpessoais são imprescindíveis para a formação do ser humano. Augras (1986) coloca que “o mundo humano é essencialmente mundo da coexistência” (p. 55). O homem é um ser social, e seu crescimento individual depende do encontro com os demais. Para a Fenomenologia existencial, o mundo da coexistência não se estrutura em termos de oposição ou de complementaridade, ou seja, um sujeito não se opõe nem é complementado pelos objetos que o cercam. Na realidade, os outros são aqueles dos quais o sujeito não se distingue, e entre os quais se encontra também.

Forghieri (2005) explica que em sua construção enquanto ser-no-mundo, a pessoa vai até a natureza e seus semelhantes, volta para si, percebendo quem é, então volta para o mundo, e assim sucessivamente. Dessa forma, ela conhece o mundo e também a si mesma, obtendo condições para se desenvolver e se construir. Enquanto ser social, o desenvolvimento desses adolescentes depende da convivência com os demais. Os adolescentes em conflito com a lei são pessoas estigmatizadas, que carregam consigo o rótulo de infratores. Esse estigma representa um grande peso na formação de suas identidades. Já após a primeira infração, ao se relacionar com o mundo, esse jovem percebe a imagem de infrator que as pessoas têm dele, e leva isso para ele próprio, ficando cada vez mais limitado a esse rótulo.

Ao se considerar sua história de vida pregressa à infração, pode-se questionar quais os tipos de vínculo que ele teve com pessoas significativas e com o meio do qual fazia parte. Pode-se intuir que elementos importantes para seu desenvolvimento faltaram em seus relacionamentos. Porém, essa questão poderá ser discutida em um outro estudo, devido ao espaço e à especificidade deste.

Essa é uma construção de uma história de vida que também destrói. Esses adolescentes passaram/passam por uma construção da destrutividade do humano. Uma desconstrução dessa destrutividade se torna necessária, para que se torne possível a construção do demoníaco simbólico, ou seja, direcionar a energia desses adolescentes para a ética e desenvolver o respeito aos valores (May, 1988). Nesse sentido, surge a Gestalt-Terapia com sua visão humanista.

 

O encontro de “incríveis infratores” com a Gestalt-Terapia - uma ação ética

Pretende-se, ao promover o encontro dos “incríveis infratores” com a Gestalt- Terapia, desconstruir esse funcionamento voltado para o “diabólico”, para então promover a construção de uma ação ética. Nessa nova construção ocorre a ressignificação do estigma. Toda a história de vida é revista e ressignificada, tornando possível a construção de uma nova forma de funcionamento voltada para a ética, e que nela eles possam atingir sua totalidade, enquanto ser-no-mundo, e “ser”, exatamente o que “são”, e isso ser suficiente para torná-los “incríveis”.

Nesse momento se torna importante esclarecer o que seria a “ação ética” mencionada. A ação ética não se refere a normas e valores sociais, e sim a valores pessoais baseados na missão existencial da pessoa. Minkowski (1933, citado por Andrade, 2005) afirma que os fenômenos sociais e as ações éticas estão em dois planos distintos, e que as virtudes cívicas não podem ser confundidas com a busca profunda e individual da ação ética. A ética é mais que um conjunto de normas, ela está ligada ao sentido da existência humana (Andrade, 2005).

A ação ética é motivada profundamente pela busca da verdade e da ética. Ela é motivada por um impulso originário ligado ao significado do existir. Cada sujeito possui uma vocação existencial (mesmo que essa não seja ouvida pela maioria), e só consegue responder a ela quando desvela a idéia valor, a idéia força que sintetiza sua missão existencial (Petrelli, 1999).

O terapeuta ajuda seu cliente no desvelamento da significação de sua existência. Minkowski (1933, citado por Andrade, 2005) coloca que para buscar a ação ética, o homem necessita esquivar-se dos interesses que constituem a materialidade da vida, para então penetrar em si mesmo até o fundo do seu ser e tomar consciência de si. Isso torna o homem vivo e traz sentido à sua vida.

Vivenciando a ação ética, o homem vê toda a grandeza do universo revelarse diante de si e percebe sua imensidão, então se sente próximo do mundo e livre. Essa liberdade manifesta-se com o livre-arbítrio de suas decisões, não no sentido de poder realizar tudo o que lhe dá prazer, e sim de fazer o que considera estar correto (Andrade, 2005).

O psicoterapeuta auxilia seu cliente na busca de sua ética ao mesmo tempo em que pratica a ética própria. A ação ética do psicoterapeuta é a de auxiliar o outro no resgate de sua autenticidade e também de ajudá-lo a se tornar livre. Isso se torna possível quando a pessoa recupera a liberdade de construir seu próprio destino e se lança ao mundo realizando valores. “Resgatar a autenticidade é uma obrigação ética” (Petrelli, 2004, citado por Andrade, 2005, p.15).

Dessa forma, o gestalt-terapeuta realiza sua ação ética ao trabalhar com adolescentes em conflito com a lei. A psicoterapia de abordagem gesltáltica proporciona a esse adolescente a possibilidade de resgate de sua ética, perdida no decorrer de sua história. Para esses adolescentes, existe um passado determinando seu presente e futuro. A Gestalt-Terapia, enquanto abordagem existencialfenomenológica, pode ajudar as pessoas que vivem essa situação. É papel de cada psicólogo deixar que a intencionalidade de sua consciência apreenda o drama social da atualidade, para que possam entrar em contato com essa realidade, se deixarem ser tocados, e partirem para a ação através de seu trabalho e de sua humanidade, auxiliando na construção da ação ética.

 

Relação dialógica como suporte ao trabalho com “incríveis infratores”

Uma vez em ação, percebe-se a complexidade envolvida no trabalho com adolescentes em conflito com a lei, já que mexe-se com as bases da estrutura destes, a qual é resultado de anos de construção. Por isso, esse tipo de trabalho não se pode resumir a técnicas e a aplicações. Para seu desenvolvimento, é importante que flua entre eles (adolescentes e psicoterapeuta) uma relação que seja de profunda sintonia, numa atitude horizontal e não abusiva. Nesse sentido, a relação dialógica dá o suporte necessário à desconstrução discutida.

Para que esse tipo de relação aconteça, é necessário que o terapeuta não tenha reservas com relação ao adolescente, que ele esteja presente enquanto pessoa e não apenas como profissional, e que se entregue à relação inteiramente. A isso se dá o nome de atitude dialógica. “O terapeuta deixa de ser o detentor da verdade sobre o cliente, aquele que está trabalhando para solucionar sua queixa, e passa a ser ativo como pessoa que é instrumento promotor de awareness (...) e de encontro na terapia” (Ferreira, 2005, p. 243). Assim sendo, o terapeuta e o adolescente conseguem transcender os papéis prescritos socialmente e se encontram de verdade, cada um sendo o que é, e exatamente esse encontro confirma o próprio ser de cada um (Hycner, 1997).

Hycner (1995) esclarece a importância da relação dialógica para o processo psicoterapêutico. Segundo ele, o ponto central da existência humana é o desejo e a capacidade que os seres humanos possuem de estabelecer relacionamentos significativos uns com os outros, respeitando a singularidade de cada um. A vivência de relacionamentos significativos é por si só curadora. Se as pessoas envolvidas estiverem abertas para entrar em contato verdadeiro uma(s) com a(s) outra(s), elas então experienciam o encontro genuíno, o qual é a essência da psicoterapia. Com “incríveis infratores” isso não acontece de maneira diferente.

 

“Incríveis infratores” em contato consigo e com o mundo

A teoria do contato pode ser utilizada como base teórica para o trabalho psicoterapêutico com adolescentes em conflito com a lei. Ao se trabalhar o contato desses adolescentes com eles mesmos e com o mundo, possibilita-se o clareamento de suas experiências. Eles tomam consciência de alguns aspectos novos para eles, para então assimilá-los e ter um comportamento para com esse novo.

Spangenberg (2004) salienta que o contato é fundamental para o crescimento, pois ele possibilita o intercâmbio de nutrientes necessários para a expansão da vida. Polster e Polster (2001) acrescentam que “o contato é o sangue vital do crescimento, o meio para mudar a si mesmo e a experiência que se tem do mundo” (p. 113).

O contato se dá na fronteira de contato. Para Polster e Polster (2001), essa é um local de energia pulsante e permeável, é o ponto em que o indivíduo experiencia o “eu” em relação ao “não-eu”. Dessa forma, não apenas o senso do próprio eu está envolvido, mas também o senso daquilo que colide/encontra essa fronteira. Sua permeabilidade ocorre no processo de seleção das novidades: as que forem assimiláveis são selecionadas e integradas, e as não assimiláveis são rejeitadas.

O contato, apesar de só acontecer entre seres separados, pode também ocorrer da pessoa para com ela mesma quando ela se divide em observador e observado. Com essa divisão, ela busca o contato interno a serviço do crescimento - uma possibilidade inerente em grande parte do auto-questionamento.

O trabalho com “incríveis infratores” se torna muito rico quando lhe são dadas condições que possibilitem o contato, o que pode ser feito de diferentes formas, como pelo próprio diálogo ou por atividades. A vivência do contato é de extrema importância para o crescimento e desenvolvimento desses adolescentes.

Para Spangenberg (2004) se torna evidente a relação entre contato, fronteira de contato e identidade, com o processo evolutivo ou de crescimento, em qualquer indivíduo. Nesse sentido, a identidade é entendida não como uma entidade com qualidades de tal (espaciais, estruturais, etc), mas como um processo em constante fluxo e crescimento, sempre em relação ao meio no qual está inserido.

Esse crescimento se dá em relação ao que não se é. O adolescente “pega” algo de seu meio (“não-eu”), o introduz, e então ele passa por um processo de digestão e assimilação - transição de pertencer a um ou outro lado da fronteira. Na digestão, o que foi introduzido é “desestruturado”, o que for assimilável vai para a assimilação, e o que não for é expulso, rejeitado. Na assimilação, o que foi previamente “desestruturado” é utilizado na construção de elementos próprios, se tornando parte da identidade (“eu”) (Perls, citado por Spangenberg, 2004).

Polster e Polster (2001) nos chamam a atenção para a seguinte questão: a diminuição da capacidade de contato aprisiona o homem na solidão. Eles colocam que todos vêem à sua volta o quanto a redução da capacidade de contato pode sufocar a pessoa numa condição de mal-estar pessoal que envenena o espírito, em meio a um acúmulo mortal de hábitos, conselhos e costumes.

A vivência do contato tem como produto inevitável a mudança. Implicitamente, o contato é incompatível com permanecer o mesmo. A mudança não ocorre de maneira intencional, a pessoa não precisa nem mesmo tentar mudar, pois a mudança simplesmente ocorre (Polster e Polster, 2001).

O que possibilita a mudança é a awareness que acompanha a vivência do contato. Ao se contatar o “eu” e o “não-eu”, ao se fazer contato com o meio e também consigo mesmo, a pessoa percebe suas experiências mais claramente e a awareness surge.

A awareness é a consciência que a pessoa adquire com relação a diversos âmbitos de sua vida via experiência, não considerando aqui consciência apenas como algo racional, mas também emocional. Sendo via experiência, a awareness é uma consciência sentida, emocionada.

Polster e Polster (2001), colocam que a awareness ajuda a recuperar a unidade da função total e integrada do individuo, precisando ele primeiro abranger as sensações e os sentimentos que o acompanham antes de poder alterar de algum modo seu comportamento.

Os mesmos autores salientam que “a awareness é um meio contínuo para manter-se atualizado com o próprio eu” (p. 217). Entre suas experiências e a awareness das peças elementares que formam sua existência, a pessoa vai se movendo num ciclo dinâmico e continuamente auto-renovador.

Sendo assim, ao promover o contato dos adolescentes em conflito com a lei com eles mesmos e com o mundo, a awareness surge. Ocorre uma atualização do “eu” por parte deles. Atingindo-se a awareness, a mudança ocorre de forma natural, sem intenção ou esforço especial. Depois de estar aware de algo, ele não é mais o mesmo, logicamente suas atitudes também não.

Nesse sentido, a teoria do contato, presente na Gestalt-Terapia, e a terapia do tempo vivido, de Minkowski, se encontram. Com o contato, o adolescente se aprofunda em seu ser e toma consciência de si. Com isso, ele contata sua identidade profunda, sua essência, seu existir pessoal e social. Logo, o significado de sua existência desvelase e traz sentido a sua vida. Para Minkowski, esse é o encontro com a ação ética. Com o contato, o adolescente consegue adquirir uma consciência maior, ele se eleva e entende a razão de tudo. Torna-se capaz de responder ao chamado de sua existência. Assim, pode entrar em contato construtivo com o mundo e formar vínculos amorosos.

 

Considerações finais

Muito se discute sobre a problemática dos atos infracionais, principalmente os cometidos por adolescentes, mas enquanto a percepção por parte da sociedade e seus governantes a respeito dessa situação não for ampliada, nada se resolverá.

Percebe-se a necessidade de mudança na estrutura da própria sociedade, o que é altamente complexo. No entanto, pode-se iniciar esse processo desde esse momento. Isso refere-se não apenas a visão e atuação dos psicólogos enquanto profissionais, refere-se, primordialmente, à questão de humanidade. Quanto mais olhares compreensivos e amorosos, isentos de julgamentos e estereótipos, cada um desses “incríveis infratores” receberem, mais perto estaremos da solução do impasse da violência que lhes é atribuída.

Enquanto os “incríveis infratores” estiverem limitados a ocupar o lugar de culpados e totais responsáveis pelos acontecimentos negativos, eles continuarão a carregar o estigma de “infratores” e/ou “delinqüentes” e se manterão no demoníaco diabólico. Com uma mudança no olhar sobre esses adolescentes, um mundo de possibilidades se abre a sua frente, possibilitando a desconstrução do funcionamento destrutivo, em favor da construção do demoníaco simbólico.

O Gestalt-terapeuta tem muito a contribuir nesse sentido. O encontro de “incríveis infratotes” com a Gestalt-Terapia possibillita a esse jovem a ampliação do contato com ele mesmo e com o mundo, se tornando mais aware de si. A relação dialógica, além de dar suporte ao trabalho psicoterapêutico, proporciona ao adolescente a vivência de um relacionamento significativo, o que resgata sua dimensão humana.

Portanto, o gestalt-terapeuta auxilia o adolescente em conflito com a lei na revisão de sua história de vida, na ressignificação do estigma de infrator e no encontro de sua ética. Com essa ressignificação, ocorre a desconstrução da destrutividade e, em seu lugar, é construído um funcionamento construtivo, voltado para a ação ética.

 

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Recebido em 26.02.07
Primeira Decisão Editorial em 10.04.07
Versão Final em 25.04.07
Aceito em 30.04.07

 

 

NARA CRISTINA LEÃO é psicóloga formada pela Universidade Católica de Goiás, especialista em Gestalt-Terapia e especializanda em Terapia de Criança, Casal e Família pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT/UCG). E-mail: leaonara@yahoo.com.br
1 Trabalho apresentado no XIII Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica e II Encontro de Fenomenologia do Centro-Oeste, maio de 2007.

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