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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.1 Goiânia jun. 2007

 

ARTIGOS

 

A temporalidade a partir da perspectiva existencial*

 

 

Fabíola Pozuto Josgrilberg

Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista Existencial (SOBRAPHE)

 

 


RESUMO

O presente texto analisa uma das características ontológicas fundamentais do Dasein, o tempo. Tentando ir além da concepção objetiva de tempo, o texto faz uma análise das reflexões heideggerianas, como os quatro caracteres do tempo e as três dimensões temporais, a partir da condição primeira do homem: ser-no-mundo. Tal análise nos serve para a compreensão dos desdobramentos ônticos da dimensão do tempo, como as experiências de tédio. Por último, o texto faz uma análise de caso clínico à luz das reflexões sobre a interpretabilidade, a databilidade, a tridimensionalidade do tempo e a privação.

Palavras-chave: Dasein, Ser-no-mundo, Tempo, Experiência do tempo.


ABSTRACT

The present text draws upon one of Dasein’s ontological fundamental characteristics: the time. As an attempt to go beyond the objective concept of time, this study addresses heideggerian ideas, such as the four time’s characteristics and the three temporal dimensions in light of the first human condition: being-in-the-world. The debate helps us to better understand the time dimension and its ontic derivative issues, ie., the tedium experience. At last, this paper will consider a clinic case in view of reflections upon interpretability, datability, time’s tridimensionality, and privation.

Keywords: Dasein, Being-in-the-world, Time, Time experience.


RESUMEN

El presente texto analiza una de las características ontológicas fundamentales Del Dasein, el tiempo. Pretendiendo ir más allá de la concepción objetiva de tiempo, el texto hace un análisis de las reflexiones heideggerianas, como los cuatro caracteres del tiempo y las tres dimensiones temporales, a partir de la condición primera del hombre: ser-en-el-mundo. Tal análisis nos sirve para la comprensión de los despliegues ónticos de la dimensión del tiempo, como las experiencias del aburrimiento. Por último, el texto hace un análisis de un caso clínico a la luz de las reflexiones sobre la Interpretabilidad, la databilidad, la tridimensionalidad del tiempo y la privación.

Palabras clave: Dasein, Ser-en-el-mundo, Tiempo, Experiencia de tiempo.


 

 

No presente trabalho analisaremos uma dentre as várias estruturas existenciais do Dasein1: o tempo. Dado que o tempo co-determina essencialmente a existência do homem, porque o Dasein “‘é’ o seu passado no modo de seu ser (...) [e] sempre ‘acontece’ a partir de seu futuro” (Heidegger, 1988, p. 48), o tempo se qualifica em uma das características fundamentais mais importantes para o estudo do ser humano.

A análise do tempo em Heidegger (2001) nos serve para a compreensão dos desdobramentos possíveis da dimensão do tempo em termos ônticos, no cotidiano e na prática clínica para que verifiquemos a importância do estudo das características fundamentais do homem. A exposição do trabalho realizará, em primeiro lugar, uma reflexão2 das características ontológicas do tempo em Heidegger (2001) e, em segundo, os desdobramentos ônticos da dimensão do tempo, como as experiências de tédio.

Se quisermos ampliar o âmbito que limita o homem ao funcionamento mental e passar a compreendê-lo a partir de sua relação com o mundo, existe a necessidade de estudar outros modos sobre as características que fundamentam o Dasein e assim pensar em um tempo que não é objetivo e nem mensurável.

Para que possamos entender o tempo e sua relação com o homem, Heidegger (2001) traça um caminho que, à luz da fenomenologia, tenta definir o que é o tempo em termos ontológicos, onde a situação peculiar da existência do Dasein é encaminhar vida, dentro do horizonte de possibilidades do acontecer das relações. O filósofo quer demonstrar outra forma de entender a experiência do tempo, dado que o homem é possibilidade de ser. Fala-se de um tempo que não é este mesmo do pensamento fundamentado na separação sujeito-mundo, nem coloca a questão do tempo na experiência do homem enquanto objetivo.

Na Filosofia Existencial, o tempo é estudado de outra forma da qual estamos acostumados a lidar, já que o ser humano é uma possibilidade de ser e não é compreendido como um ente, assim como faz a Ciência Natural. Este ponto de vista objetivo aplica-se ao estudo de objetos que não pertencem ao âmbito do ser. Sendo assim, o tempo acaba assumindo outro modo de compreensão, quando tentamos compreender os fundamentos do ser humano.

Diante da possibilidade de maior compreensão das características fundamentais do homem, esta percepção objetiva não fala dos possíveis desdobramentos que o tempo possibilita ao ser humano. A relação é muito mais complexa do que a analisada objetivamente. O homem com o tempo existe numa outra forma de entendimento. Para pensar uma ontologia das características fundamentais do tempo, Heidegger (2001) fala de outro tempo, pois “para um selvagem, essa espécie de tempo [o tempo de que falam os físicos] seria um absoluto absurdo” (p.78), pois para o selvagem não significa nada, mas isso não quer dizer que ele não se relacione com o tempo, e que nem faz referências ao amanhã ou ao ontem.

Assim, a questão do tempo é questionável quando entendida como série sucessiva de ‘agoras’ estabelecidos pela Física. Para que possamos entender o tempo e sua relação com o homem, Heidegger (2001) tenta definir o que é o tempo em termos ontológicos, como já havíamos dito. Fala-se de um tempo que não é o mesmo da Filosofia, fundamentada na separação sujeito-mundo, nem coloca a questão do tempo na experiência do homem enquanto objetivo.

O modo aristotélico é uma das possibilidades de compreensão do tempo, que é a mesma com que estamos acostumados a lidar. Quando falamos de tempo, logo nos lembramos do relógio e do calendário. Sempre estamos ocupados em saber o ‘quanto’ de tempo, pois é essa a resposta de qualquer momento em que confiro as horas no relógio. Estamos na relação com o tempo a partir da medição, numa relação sucessiva de ‘agoras’. O tempo está para mim como um ontem, um amanhã e um hoje, como se fosse linear enquanto característica fundamental, numa seqüência após a outra que determinam minha relação de tempo, enquanto penso no que é o tempo.

Dentro do olhar da ciência natural, tudo o que existe só existe se mensurável e quantificável; então o tempo só existe através da mensurabilidade (Heidegger, 2001, p.52). Mas, se existe a saudade, posso dizer que ela é mensurável? Não há modos de mensurar uma saudade, mas, dentro dessa premissa, a saudade então não existiria. Seria possível aplicar ao homem a mesma visão de mensurabilidade aplicada aos objetos?

Na Psiquiatria e Psicologia tradicional o tempo é pensado adotando a visão das Ciências Naturais. Ou seja, permanece numa análise objetiva de sucessivos ‘agoras’, na relação entre causa e efeito, dentro da possibilidade de que algo só existe se mensurável. Passado e futuro são abstrações que têm origem em nossas percepções e memórias.

O tempo na Psicologia e Psiquiatria tradicional é pensando como a somatória, acúmulo de acontecimentos do presente que, com o desenrolar do tempo, tornam-se passado, somando-se causalidade para configurar o quadro presente, determinandose os comportamentos. Este é um modo possível de compreensão do tempo.

Os Psiquiatras exploram as alterações temporais a partir da incoerência da percepção, atenção, memória, orientação temporal, etc., para se chegar a um diagnóstico psiquiátrico. Em uma anamnese psicológica, também são freqüentes as perguntas que se referem à idade e à data de aniversário, pois se investiga a orientação temporal do quanto de tempo está coerente da medição do tempo do mundo.

Portanto, em todas as determinações de tempo quantitativas, feitas com a ajuda do relógio, sempre só nos é dado o quanto do tempo e todas as relações do homem com o tempo só são dadas neste horizonte de pensar o tempo. Mas essa medição do tempo só é possível se algo semelhante ao tempo já nos é dado, se já temos o tempo. De que tempo estamos falando?

De acordo com Heidegger (2001), todo agora tem em si um acaba de e um logo a seguir. O acaba de e o logo a seguir “não são mais e ainda não são, no sentido da presença atual” (p. 62). Porém sempre são um para que. Existe sempre a relação do tempo para um para que. Nunca me refiro a um amanhã vazio para o que farei e acontecerá. Portanto, já nos relacionamos de antemão com o tempo.

Um exemplo é quando uma criança, que mal possui estruturada sua compreensão do tempo em termos objetivos, pergunta: “Quando farei aniversário novamente?”. Revela-nos, além da estrutura temporal que permite a quantificação do tempo ainda não estar adquirida, também um tempo já pré-dado que não é apenas este tempo da compreensão de quantidade. O quando nos diz respeito a uma relação de tempo já existente, ou seja, essa criança já se relaciona com o tempo. Porém, não nos damos conta deste tempo que nos é dado de antemão, então sempre que falamos de tempo, nos relacionamos automaticamente com o tempo do relógio.

Este tempo do relógio só existe pela relação mais primordial com o tempo: o hoje, o ontem e o amanhã. Mas estes também continuam indicações de tempo, que não conseguem, mesmo que mais primordiais que o do relógio, dar-nos o próprio tempo como tal. Por conta disso, Heidegger (2001) se pergunta: de onde tiro o agora, o acaba de e o logo mais? (p. 69). Em seguida, responde:

Em vista da relação com o tempo, devemos, por enquanto, compreender por um lado a diferença entre indicação do tempo [Zeit-Angabe] pelo relógio - como hoje-ontem-amanhã e, de outro lado, dação [Zeit-Gabe] de tempo. Não há indicação de tempo sem anterior dação de tempo (p. 69).

Em outras palavras, se possuímos a possibilidade de medir o tempo, então nós “temos o tempo”, no sentido de que já nos foi dado. Heidegger (2001) fala no tempo que já é dado antes da formulação de toda essa concepção mensurável do tempo.

A aceitação da dação do tempo que sustenta todas as nossas indicações de tempo, a visão deste fenômeno e do tempo como tal dado nesta dação exigem, evidentemente, um modo de pensar fundamentalmente diverso de nossa relação cotidiana com o tempo. Mas isto não significa, absolutamente, que esta relação diferente com o tempo não deveria originar-se de um esclarecimento prévio da nossa relação cotidiana com o tempo (p. 69).

Para tal esclarecimento, Heidegger (2001) pensa em quatro caracteres essenciais do tempo:

1) O tempo sempre é tempo para algo. A expressão ‘para algo’ já é própria do tempo, pois é um apontar para um fazer e um acontecer. Este é um caráter do tempo que Heidegger (2001, p.70) denomina interpretabilidade. Não é algo que o ser humano conquista, pois faz parte do próprio tempo. Não é uma intencionalidade, uma atitude humana para com algo. É o caráter do tempo ‘para’. Por exemplo: “Não tenho tempo para ir ao shopping, pois tenho aula”. Eu destino meu tempo para as aulas, mas não para o shopping. É sempre um tempo usado para, um tempo gasto para, um tempo sacrificado para, etc.

2) Quando dizemos: “Agora que estamos conversando...”, há uma análise deste agora, que se refere a um acontecimento, um dado. Não se refere apenas a um agora enquanto data de um calendário. Existe todo um contexto ‘ligado’, um acontecimento. Posso dizer: “Quando chegar o Carnaval...”, trato de uma datação mais originária, onde o calendário foi fundamentado. Este é o segundo caráter do tempo: a databilidade (p.70)

3) A palavra ‘agora’ não possui necessariamente a duração de um segundo. Pode ser um agora durante o congresso ou um agora durante o verão. Por exemplo, quando digo: “Agora que estamos no verão,...”, a palavra assume a amplitude de quatro meses. Mas, se digo: “Agora pela manhã...”, se refere a um período de horas. Neste caso, um agora pode assumir a extensão de horas, dias, meses ou até séculos. Em contraposição à idéia de tempo usual, onde o agora assume um caráter de um segundo, um ponto - agora. Para esta característica, Heidegger (2001, p.74) denomina amplitude do tempo.

4) O agora datado, interpretável e ampliado nunca é apenas dito por mim. É sempre dito por todos nós. Todos têm a acessibilidade ao agora e é percebido diretamente em comum por todos. O agora sempre revela a inexorável relação de cada Dasein com outras pessoas e a história de suas relações. É chamado de estado público este quarto caráter do tempo ao assumir acessibilidade de todos (p. 75).

Entretanto, é importante lembrar que os quatro caracteres do tempo não fazem menção apenas ao presente, mas também a cada então (naquele tempo) e a cada depois (no tempo futuro). Quando utilizo o ‘então’ e o ‘depois’ falamos para outra coisa do que com o presente. No ‘então’ falamos do passado, no ‘depois’ do futuro e com o agora nos referimos ao presente. São estas as três dimensões do tempo.

Do tempo pensado como uma seqüência de agoras e imaginado como unidimensional e subseqüente, chegamos num modo diferente de pensar o tempo falando em sua tridimensionalidade. Não é possível apresentar a seqüência entre passado, presente e futuro como uma linha reta. Falamos das três dimensões do tempo onde não há uma sem a outra. Ora uma, ora outra dimensão me relaciono. Mas nem por isso as outras duas dimensões desaparecem, porque não são “negação”, mas são “privação”.

O tempo sempre indica, sempre é para algo. Sempre tenho o tempo, e caso diga que não o tenho, isto é uma ‘privação’ (Heidegger, 2001, p.73). Em outras palavras, sempre o tempo me é dado, e sempre tenho o tempo, porém quando digo “não tenho tempo”, não é uma forma de negação deste, mas simplesmente não tenho tempo para isto, porque já me ocupei com aquilo. Dizer: “não tenho tempo” é uma forma privativa de ter tempo. Um exemplo de privação é a sombra, que é a falta da claridade, assim como a doença é uma forma privativa de saúde.

O estudo nessa forma de entendimento é tão importante que, se caso o tempo do relógio tivesse primazia por esse tempo pensado por Heidegger (2001), se os quatro caracteres fossem nivelados à vazia seqüência de agoras, existiria um homem exclusivamente ligado ao tempo como pura seqüência de agoras. O homem, então, “teria que enlouquecer ou nem mesmo poderia enlouquecer” (p.78). Seríamos assim exilados num decorrer de tempo vazio, sem um para que, pois nos mostra a relação do homem com o tempo, que determina sua existência.

Portanto, o homem é um ser que tem o tempo. Mas como assim? Como a relação com o tempo co-determina essencialmente sua existência? O homem só tem o seu tempo na forma de que um dia ele nasce, e outro dia morre? O que é ser-no-tempo, no sentido da relação do homem com o seu tempo? Examinar a relação do homem com o tempo é o que nos permite chegar a um saber maior sobre o próprio tempo e sobre os possíveis modos de se cuidar do tempo. Tal análise possibilita compreender a historicidade como característica fundamental do homem, que ‘tem de dar conta da própria vida’ no horizonte temporal. Assim, somos atingidos pelo tempo.

Mas como pensar o tempo facilita e possibilita a relação clínica?

Quando organizamos o tempo e elegemos esta ou aquela tarefa para se ocupar, o modo como ‘arranjamos’ o dia, revela muito de uma pessoa. Deixar de passear para ler um livro revela, por exemplo, os valores. Pois tenho tempo para ler, mas me privo de ter tempo para passear.

Uma senhora de 72 anos, viúva, sempre contava sobre a angústia e o vazio que sentia com o passar dos dias. Dizia que o tempo ‘não passava’. O que tinha o seu tempo que era diferente daqueles que nem podem ‘perder o tempo’, ou que passa rapidamente? Foi após a morte do marido que sua experiência do tempo tornou-se lenta. Antes, gostava de limpar a casa, arear todas as panelas e deixar a casa muito bem limpa. Mas agora não tem vontade de fazer nada e a casa não precisa mais ser limpa, pois nem fica suja. Ela não sabe como preencher seu tempo. Ela não sabe mais o que fazer com o tempo.

Quando era casada, não tinha tempo porque o tempo era para o marido, agora ela não tem o marido, então o tempo sobra. O tempo é para que? Para nada.

Chegava a dizer que ‘matava’ o tempo indo visitar uma amiga ou indo à Igreja todas as tardes. Ao falar do tempo, esta senhora revela toda uma história e destinação para qual deu a sua vida.

Por que esta senhora tinha tempo para cuidar da casa mas não o tinha para outras coisas? Há uma gama de valores inclusos na ocupação de seu tempo, revelando como ela é. O envolvimento que alguém tem para o cuidado da casa e da família indica todo um universo de significações, importâncias e preferências que estabelece o ter tempo para ser esposa e não ter tempo para outras coisas.

O ‘antes’, ou seja, naquele tempo (databilidade) que era casada havia um ter tempo para, mas o agora que se desdobra a cada depois sofre na perda da possibilidade que tinha de ocupar seu tempo, sua vida que era para a ocupação com o outro. Sua interpretabilidade, seu para que havia se desmanchado, interrompido. Seu para que hoje se instaurava num simples preencher do tempo, sem muito sentido, pois parecia nunca mais poder ser feliz como era ‘naquele tempo’.

O tempo é muito importante para o homem, pois o tempo é a questão da historicidade, o horizonte de possibilidades do acontecer das relações do homem e como aquilo que permeia e determina cada relação.

É sobre esta reflexão que pode ser estabelecida a relação entre a historicidade e a compreensão de desdobramento de uma história de vida que tem como ponto inicial em nosso estudo a esclerose múltipla.

 

Estudo de caso clínico3

Cláudia, nome que darei à paciente, manifestou os primeiros sintomas de esclerose múltipla aos 29 anos4. Naquela época, trabalhava como secretária do presidente de uma empresa, sempre reconhecida por ser muito eficiente no que fazia. Já era casada e com duas filhas.

A paciente entra em meu consultório numa cadeira de rodas, apresenta-se como uma pessoa que “tem esclerose múltipla”, e tenta explicar-me tudo o que sabia a respeito da doença, primeiros sintomas, quando e como foi diagnosticada a doença (naquela época era de difícil diagnóstico), evoluções e datas prováveis dos surtos5. No relato ingênuo da paciente, ela apresentava a doença para mim, mas o relato era muito mais do que isso.

Preenchia o tempo das posteriores sessões retratando a doença e a monotonia que vivia. Seus dias eram voltados para ir a médicos, fisioterapeutas, exames, e queixava-se da tristeza de viver assim. Já havia tentado fazer várias outras coisas como, por exemplo, a faculdade para terceira idade, mas nada disso servia e nada a motivava. A interpretabilidade de que fala Heidegger (2001, p.70), o para que da paciente era vazio de significados, pois seu tempo só existia para cuidar da doença. Nada era significativo e, na falta de opção, cuidava da esclerose por ser a única coisa que a vida havia lhe oferecido. Portanto, ela era a esclerose. Seu discurso ingênuo do primeiro contato apenas contava sobre a esclerose mas, mais do que isso, Cláudia falava dela e mostrava ser a própria doença.

Do retrato de seus dias longos e vazios, pois assim eram experienciados, uma análise da dimensão espacial também pode ser feita. Esta espacialidade não se refere à dificuldade de locomoção da paciente em função da cadeira de rodas (para a compreensão da paciente este era o grande empecilho que dificultava sua aproximação com as pessoas e situações). A espacialidade aqui tratada era da dificuldade em ser atingida ou afetada pelas coisas seja pela atração ou repulsão. Quando ela fala que nada tem a fazer, nada é tão importante, revela certa distância que tinha perante as situações. Para a paciente tudo era distante de seu alcance, ou seja, não havia nada para ser feito no vazio de significados. Estava desencontrada com a vida, pois a dimensão espacial caracteriza-se pelo modo como vivencio as distâncias mapeadas pelo meu próprio ser. A única coisa a se ocupar era com os outros, estes sim eram muito próximos devido à atenção que a ela atribuíam (ou não), mas este é um ponto a ser retratado mais adiante. Sua dimensão corporal também tinha exclusividade na esclerose múltipla. O corpo não é mais aquele disposto e pronto a tudo ou a quase tudo daquilo que sempre aprendera que fosse. Experiencia este corpo como sendo ‘a menos’. Ele não responde às solicitações. É um corpo que ‘dá trabalho’.

Em certa sessão, Cláudia contava-me destas experiências de monotonia relatando o que havia feito (ou o que gostaria de ter realizado, mas não o fez). Num dado momento, entretive-me com um aspecto que falava muito mais do que suas próprias palavras. A paciente, sem a menor percepção do que fazia, retirava a cada minuto a franja que caía em sua testa, e que retornava a cair. O meu mundo se fechou naquele momento, e nada mais era tão importante que olhar para sua mão indo de encontro ao cabelo repetidas vezes, sem que ela tivesse uma atitude em dar um fim à situação que teimava em persistir.

O meu tempo enquanto terapeuta, o meu para que naquele momento se deu apenas para esse gesto corporal, como se meus ouvidos estivessem ‘fechados’ para suas palavras, na tentativa de olhar por quanto tempo (no tempo dela) aquela franja iria repetidas vezes cair em sua testa. Pois para mim era suficiente esta atitude se repetir algumas vezes (para o agüentar do meu tempo), mas para a paciente seu tempo era suficientemente grande para continuar a suportar (no sentido de dar conta) quantas vezes fosse aquela situação.

Um movimento corporal revelava algo que parecia ser importante no modo dela se dar nas relações. Minha intervenção foi para o sentido de ‘mostrar’ aquele gesto corporal que falava mais do que suas palavras. “Não, é que minha franja faz isso mesmo” - disse Cláudia. Após algumas reflexões sobre o que esta atitude tinha a ver com sua vida, ela se põe a pensar e, junto com uma risada, diz: “Não sei se já disse isso para você, mas meu lema de vida sempre foi: não esmorecer para não desmerecer”.

Exatamente aqui as portas se abrem para um entendimento de todo o sentido de história de vida de minha paciente. Ao abordá-la, para saber em sua mais peculiar singularidade, quais as situações que Cláudia se projetava no sentido de agüentar àquilo que se deparava a ela, sua resposta foi um convite para eu participar de experiências anteriores, como quando mantinha em sua casa o convívio com a sogra. Este convite nada mais é do que a própria relação das características colocadas por Heidegger (2001, p.70) sobre a databilidade. Tanto a paciente quanto eu fomos ‘até aquela época’ onde Cláudia não tinha sido devidamente diagnosticada em sua esclerose múltipla, destacando o passado da paciente com relação às duas outras dimensões temporais.

A paciente ainda trabalhava, e relata uma das últimas vezes que chegou do trabalho para almoçar, e a comida deixada pela sogra estava para esquentar. Sem perceber o estado da comida, alguns bichos saíram da sua boca ao morder o primeiro pedaço de um bife. Este acontecimento foi um dos principais motivos de sua retirada do trabalho. Ou seja, solucionou o problema anulando, separando e afastando-se do que era de muita importância e manteve estabelecido o que incomodava. E conviveu por mais dez anos com a sogra.

Cláudia revela seu modo de ser nas relações. Tendo de suportar a tudo e a todos, agüenta até a última reserva de energia que lhe resta para dar conta da situação, pois deixou a sogra morar um total de 15 anos em sua casa, na tentativa de confortar economicamente a mãe do marido. Diz que um pedaço de Cláudia ficou esquecido lá atrás, num momento em que era ativa, se ocupava com os estudos e com o bom emprego que tinha. Mas, em nome de agradar o marido, sentia a necessidade de manter o convívio com a sogra.

Recuperando um assunto deixado anteriormente, já foi dito que a paciente ocupava-se com aquilo que era importante para o outro e deixava para trás, ou melhor dizendo, afastava-se de outras possibilidades para ocupar seu tempo. Não é por menos que seus dias são repletos de monotonia, pois seu tempo é tempo para o outro e nem sempre este outro está disponível pela aproximação, lugar onde Cláudia desejava chegar. Assim, as coisas para si não tinham significado. Não representavam nada e tornavam-se insignificantes, distanciando-se daquilo que poderia ser importante.

Por enquanto, o que temos até aqui é a necessidade de Cláudia em suportar a tudo em nome da aceitação, única via de acesso de suas relações com outro no entendimento restrito da paciente. A todo o momento olha-se para a construção da trama entre história de vida, espacialidade e corporalidade, e seus possíveis desdobramentos. Mas o que fazia a paciente articular-se desta forma?

Mais uma vez leva-me a participar do seu passado e Cláudia revisa inúmeros fatos presentificados, como aquilo que de significativo experienciou. Visualiza muito seu pai como aquele que nunca a deixou fazer nada, impedindo-a de trabalhar, namorar, sair, etc. Mas confiava a ela o papel de ‘tomar conta de sua irmã’ quando saía para namorar. Revelado mais uma vez seu modo de suportar a tudo, ficou por três anos em uma situação que nunca desejou, mas que presentificava o seu tempo para o outro. Destinava seu lazer para acompanhar a irmã, sem reclamar da situação para conseguir se salvar de agressões. Como assim? Falar sobre o pai ‘trouxe’ sentimentos fortes de indignação. Numa privação do presente e futuro, Cláudia convida-me novamente a compartilhar de seu passado.

Presenciou situações como: o pai agredindo e batendo em sua mãe; o mesmo com as irmãs e ele não se importava com os hematomas que restavam de cada agressão. Cláudia não apanhava, pois preferia aceitar as imposições do pai.

Com muita dificuldade em olhar para tais brigas, a paciente tentava separar os pais desta ‘aproximação’ tão negativa. Após cada incidente com a família, Cláudia sofria de grandes tremores no corpo, a ponto de não se suportar em pé. No meu consultório, deitada ‘naquele’ sofá ‘daquele’ tempo que morava com os pais, sente seu corpo fora de si e estremecido. Numa breve reflexão, tenta descobrir se estas situações não foram causadoras ou co-causadoras de sua doença. Lembra da mão de sua mãe que passava pelo seu rosto para lhe acalmar. Perguntava o que havia acontecido e Cláudia contava com um ar irônico para imitar a mãe. Em outras palavras, o que a paciente queria dizer é que os fatos ficavam encobertos pela família quando estes esbarravam em seus limites ou iam além deles, mantendo a situação insuportável e humilhante. É válido analisar que Cláudia sempre suportou a tudo e a todos, mas esta situação ela não suportava.

Para se salvar, escolheu abdicar de si para ser o outro, não desanimando nunca em fazer o solicitado, não desanimando nunca em ser o outro. Tão central este tema escolhido em sua vida que destinou tudo o que fazia, inclusive a profissão.

Em nome do medo de ser agredida e para conseguir sobreviver a este ambiente, Cláudia escolhe seguir uma vida para o outro. Mas não contou com os contratempos que se desdobraram a partir desta tentativa de sobrevivência, num mundo que achou ser construído pela manutenção da exclusividade do seu tempo ser ocupado para o outro. Deu um sentido limitado para sua vida no outro e através dele. Seu projeto de vida instaurou-se numa relação de dependência com o outro, mas que ‘discutia’ com seus valores e principalmente limites, pois este fio que conduziu até então sua vida adoeceu suas relações e seu corpo, mas ao mesmo tempo é o que lhe dá forças para agüentar a doença e tentar “seguir em frente”. Ou seja, deu conta da vida de modo passivo, em nome de salvar-se.

Impossibilitada de levar uma vida ‘normal’, Cláudia sempre acreditou que a doença era a culpada de seus sofrimentos. Entretanto ela sabe, atualmente, que foi na relação das experiências que houve a criação de um modo não saudável. Compreende que a saúde não é simplesmente dada, mas conquistada.

Tornou-se sócia de uma clínica de ortopedia e fisioterapia e preenche seus dias na preocupação de administrá-la. Os surtos da esclerose não apareceram mais por quase três anos, tempo similar ao de terapia. Aos 48 anos de idade diz que sua vida parece ter tomado outro rumo, como que se tivesse ‘resgatado’ a Cláudia que ficara adormecida por muitos anos. Hoje preenche suas sessões relatando suas tentativas certas e incertas na administração desta clínica.

Interessante ater-se ao termo resgatar, no modo de compreensão da paciente. Sugere uma volta ao passado e uma continuação dali em diante. Mas o sentido de vida da paciente é que tomou uma amplitude muito maior diante da compreensão de um projeto que até então não se dava conta. E mais que a amplitude da compreensão do projeto, este se ampliou abrindo possibilidades mesmo a uma pessoa na cadeira de rodas, portadora de uma doença irreversível até o momento. Interessante também relatar uma de suas últimas queixas: sua dificuldade em administrar uma clínica numa cadeira de rodas, pois a limita muito para se deslocar, ler e escrever (a Esclerose Múltipla influencia na falta de visão e coordenação motora). Porém, foi esta mesma esclerose múltipla a ‘responsável’ por trabalhar exatamente na clínica que anteriormente era paciente.

Esta é a questão do tempo em Heidegger (2001). O tempo é o horizonte de possibilidades do acontecer das relações do homem, como aquilo que permeia e determina cada relação. Na analítica de Heidegger (2000) o tempo é o fundamento da história do Dasein, sendo também o fundamento da compreensão dos acontecimentos cotidianos da vida de cada Dasein em particular.

 

Referências Bibliográficas

Heidegger, M. (1988). Ser e Tempo - 2 vols. Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

Heidegger, M. (2000). El ser y el tiempo. México: Fondo de Cultura Económica.        [ Links ]

Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon, Petrópolis: Editora Vozes.        [ Links ]

 

 

Recebido em 10.02.07
Aceito em 10.04.07

 

 

FABÍOLA POZUTO JOSGRILBERG é Psicoterapeuta, Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Humanista Existencial (SOBRAPHE). E-mail: fabiola.pozuto@terra.com.br.
* Texto apresentado no XII Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica e II Encontro de Fenomenologia do Centro-Oeste, Maio/2007.
1 O termo Dasein relaciona-se com o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade. Estudar os existenciais do Dasein é estudar as características fundamentais que o estruturam.
2 O presente texto ocupa-se das reflexões de Heidegger apresentadas nos Seminários de Zollikon, uma vez que tal apresentação foi dedicada a psiquiatras e possui grande contribuição ao trabalho clínico.
3 De acordo com as normas para a publicação do trabalho, foi obtido um termo de consentimento da paciente para a elaboração do texto.
4 A Esclerose Múltipla é uma doença neurológica crônica, de causa desconhecida. Surge a partir da perturbação da bainha de mielina que é responsável pela propagação normal e condução dos impulsos nervosos. Portanto, a Esclerose Múltipla é a lesão do sistema nervoso central, pois lesa a mielina que recobre e isola as fibras nervosas dos impulsos do cérebro, nervo óptico e medula espinhal.
5 Os surtos são esporádicos, ocorrendo mais ou menos duas vezes por ano no caso desta paciente. A cada surto há uma grande evolução do quadro.

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