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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.1 Goiânia jun. 2007

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

Cultura e neurose, 1936*

 

 

Karen Horney

 

 

Uma mudança de ênfase teve lugar no conceito psicanalítico de neurose. Originalmente o interesse centralizava-se no quadro sintomático dramático, atualmente dá-se conta cada vez mais de que a real fonte dessas desordens psíquicas repousa em distúrbios do caráter, cujos sintomas são um resultado manifesto de traços conflitivos de caráter. Portanto, não sendo descoberta e devidamente tratada a estrutura neurótica do caráter, a neurose não pode ser curada. Muitas das vezes, na análise desses traços de caráter nos chocamos com a observação de que, ao contrário dos quadros onde os sintomas são diferenciados, as dificuldades invariavelmente centram-se em torno dos mesmos conflitos básicos.

Essas similaridades no conteúdo dos conflitos apresentam um problema. Às mentes abertas à importância de implicações culturais, elas apontam para a questão sobre “se” e “em que medida” as neuroses são moldadas por processos culturais, essencialmente da mesma maneira que a formação do caráter “normal” é determinada por essas influências. E, caso isso seja verdadeiro, o quanto tal conceito necessitaria de certas modificações na visão freudiana sobre a relação entre cultura e neurose.

Nas observações que se seguem tentarei delinear, a grosso modo, algumas características tipicamente recorrentes em todas nossas neuroses. A limitação de tempo não nos permite apresentar dados - bons estudos de casos - nem método, mas apenas resultados. Tentarei selecionar de um material observacional extremamente complexo e diversificado, os pontos essenciais.

Existe outra dificuldade na apresentação deste material. Eu gostaria de mostrar como as pessoas neuróticas se tornam aprisionadas num círculo vicioso. Na impossibilidade de apresentar em detalhes os fatores que conduzem ao círculo vicioso, eu terei que começar, arbitrariamente, com um dos traços mais proeminentes, apesar de que isso por si só já seja um produto complexo de vários fatores mentais desenvolvidos e interrelacionados. Começarei, portanto, com o problema da competição.

O problema da competição, ou rivalidade, parece ser um eterno centro de conflitos neuróticos. O lidar com a competição já é um problema para qualquer um em nossa cultura; para o neurótico, no entanto, ela assume dimensões que geralmente ultrapassam as reais vicissitudes. Isso acontece de três maneiras.

(1) Existe uma constante comparação com outros, mesmo em situações que não requerem tal atitude. Enquanto esforçar-se para superar os outros é essencial para todas as situações competitivas, o neurótico se compara com pessoas que de maneira alguma são potenciais competidores e não têm nenhum objetivo comum com ele. A questão sobre quem é mais inteligente, mais atrativo, mais popular, é aplicada indiscriminadamente com relação a todos.

(2) O conteúdo das ambições neuróticas não é simplesmente conquistar, ou fazer algo que seja recompensador, ou ser bem sucedido, mas é ser absolutamente o melhor de todos. Essas ambições, entretanto, existem principalmente em fantasias - fantasias que podem ou não ser conscientes. O grau de consciência difere largamente de pessoa para pessoa. As ambições podem aparecer somente em momentos ocasionais de fantasia. Nunca há uma clara percepção do poderoso papel dramático que essas ambições têm na vida do neurótico, ou da grande parcela de contribuição que elas têm nessas reações comportamentais e mentais. O desafio dessas ambições não é atendido pelos esforços adequados que poderiam levar ao alcance dos objetivos. Elas (as ambições) estão em extraordinário contraste com as inibições existentes em relação a trabalho, a assumir liderança e com todos os meios que iriam efetivamente garantir sucesso. Existem muitas maneiras pelas quais essas ambições fantásticas influenciam a vida emocional das pessoas envolvidas: hipersensibilidade às críticas, depressões ou inibições após derrotas, etc. Essas derrotas não necessariamente precisam ser reais. Tudo o que estiver aquém da concretização das ambições grandiosas é sentido como derrota. O sucesso de outra pessoa é sentido como uma derrota pessoal. Essa atitude competitiva não apenas existe em referência ao mundo externo, mas é também internalizado, aparecendo como uma constante comparação a um ideal de ego. As ambições fantásticas aparecem nesse painel como demandas excessivas e rígidas ao eu, e falhas em atender a essas demandas produzem depressões e irritações similares às produzidas em competições com outros.

(3) A terceira característica é a quantidade de hostilidade envolvida na ambição neurótica. Enquanto competições intensas contêm implicitamente elementos de hostilidade - a derrota do competidor significando vitória para si - , as reações de pessoas neuróticas são determinadas por uma expectativa insaciável e irracional de que ninguém no universo além delas próprias deveriam ser inteligentes, influentes, atrativas, ou populares. Elas se tornam irritadas, ou sentem que seus esforços estão condenados ao fracasso, se alguém escreve uma boa peça ou um documento científico ou tem um papel de destaque na sociedade. Se essa atitude é fortemente acentuada, observa-se na situação analítica, por exemplo, que esses pacientes consideram cada progresso realizado como uma vitória por parte do analista, negligenciando totalmente o fato de que progresso é de vital importância para seus próprios interesses. Em tais situações eles menosprezarão o analista, evidenciando, pela intensa hostilidade mostrada, que eles se sentem ameaçados numa posição de suprema importância para si próprios. Eles são via de regra completamente alheios à existência e intensidade dessa atitude “ninguém senão-eu ”, mas podem seguramente assumir e conseqüentemente sempre descobrir essa atitude a partir de reações observáveis na situação analítica, conforme indicado acima.

Essa atitude leva facilmente ao medo da retaliação. Ela resulta em um medo do sucesso e também em um medo do fracasso: “Se eu quero esmagar todo mundo que se sai bem, então eu vou automaticamente prever reações semelhantes nos outros, de forma que o caminho para o sucesso implica expor-me à hostilidade dos outros. Além disso: se eu fizer qualquer movimento na direção deste objetivo e fracassar, então eu serei esmagado”. O sucesso torna-se, assim, um risco e qualquer fracasso possível torna-se um perigo que deve ser evitado a qualquer custo. Do ponto de vista de todos esses perigos, parece ser mais seguro ficar no canto, ser modesto e discreto. Em termos mais positivos, este medo conduz a um afastamento definitivo de qualquer objetivo que implique em competição. Essa estratégia de segurança é garantida por um processo de auto-checagem constante e acurado.

Esse processo de auto-checagem resulta em inibições, particularmente inibições relativas ao trabalho, mas também relativas a todos os passos necessários à busca dos objetivos próprios, tais como aproveitar oportunidades, ou revelar a outros seus objetivos ou habilidades. Isso eventualmente resulta em uma incapacidade de lutar por seus próprios desejos. A natureza peculiar dessas inibições é melhor demonstrada pelo fato de que essas pessoas podem bem ser capazes de lutar pelas necessidades dos outros ou por uma causa impessoal. Elas irão por exemplo, agir da seguinte forma:

Quando tocando um instrumento com um parceiro menos qualificado, elas irão instintivamente tocar pior que o parceiro, embora de outra forma elas sejam bastante competentes. Quando discutindo sobre um assunto com alguém menos inteligente que elas, elas irão compulsivamente descer abaixo do nível daquela pessoa. Elas preferem ser soldados rasos para não se identificarem com os superiores, nem mesmo para receberem aumentos de salários, racionalizando essa atitude de alguma maneira. Mesmo seus sonhos serão ditados por essa necessidade de segurança. Ao invés de utilizarem a liberdade de um sonho para se imaginarem em situações gloriosas, elas vão, na verdade, se ver em seus sonhos em situações humildes ou até mesmo humilhantes.

Esse processo de auto-checagem não se restringe a atividades em busca de algum objetivo, mas vai além, tendendo a arruinar a auto-confiança, a qual é um pré-requisito para a realização de qualquer feito, por meio de auto-depreciação. A função da auto-depreciação nesse contexto é eliminar-se de qualquer competição. Na maioria dos casos essas pessoas não se dão conta de que se menosprezam, mas se dão conta das conseqüências somente quando se sentem inferiores a outros e têm então, a certeza da sua própria inadequação.

A presença desses sentimentos de inferioridade é um dos distúrbios psíquicos mais comuns do nosso tempo e cultura. Permitam-me falar mais sobre eles. A gênese dos sentimentos de inferioridade não é sempre a competição neurótica. Eles são fenômenos complexos e podem ser determinados por várias condições. Uma implicação básica e sempre presente é o fato de que eles resultam de e servem a uma evitação da competição. Esses sentimentos resultam de uma evitação à medida que eles são a expressão da discrepância entre ideais berrantes e conquistas reais. O fato, entretanto, de que esses sentimentos dolorosos preenchem ao mesmo tempo a importante função de tornar segura a atitude de evitação, torna-se evidente através do vigor com o qual esta posição é defendida quando atacada. Não apenas nenhuma evidência de competência ou atratividade convencerá essas pessoas, mas também elas poderão realmente tornar-se amedrontadas ou irritadas por qualquer tentativa de convencê-las de suas qualidades positivas.

O que aparece na superfície como resultado dessa situação poder variar grandemente. Algumas pessoas parecem inteiramente convencidas de sua importância única e podem ficar ansiosas para demonstrar sua superioridade em cada oportunidade que tiverem, mas se traem com a excessiva sensibilidade a qualquer crítica, a qualquer opinião discordante da própria, ou qualquer resposta que não demonstre admiração.

Outras pessoas são simplesmente inteiramente convencidas de sua incompetência ou falta de valor, ou de não serem queridas ou apreciadas; mesmo assim realmente traem suas grandes demandas reagindo com hostilidade aberta ou velada a qualquer frustração de suas demandas não atendidas. Outras, ainda, irão balançar-se em sua auto-estima entre sentir-se totalmente importante e sentir-se, por exemplo, honestamente surpresas por alguém lhes dar atenção.

Se você conseguiu acompanhar-me até aqui, posso agora delinear o círculo vicioso específico no qual essas pessoas se movimentam. É importante aqui, como em qualquer quadro neurótico, reconhecer o círculo vicioso, porque se o negligenciamos e simplificamos a complexidade do processo, e prosseguimos considerando uma simples relação de causa-e-efeito, estaremos fadados a fracassar no entendimento das emoções envolvidas, ou a atribuir uma importância indevida a uma causa única. Um exemplo desse erro seria considerar uma atitude de rivalidade altamente carregada de emoção como derivada diretamente da rivalidade com o pai. A grosso modo, o círculo vicioso mostra-se da seguinte forma:

Os fracassos, em conjunção com um sentimento de fraqueza e derrota, conduzem a um sentimento de inveja das pessoas que têm mais êxito, ou são meramente mais seguras ou mais satisfeitas com a vida. Essa inveja pode ser manifesta ou pode ser reprimida sob a pressão da mesma ansiedade que leva à repressão e à fuga da rivalidade. Ela pode ser inteiramente eliminada da consciência e substituída por uma admiração cega; ela pode ser mantida fora da consciência por uma atitude depreciativa em relação à pessoa invejada. Seu efeito, entretanto, é aparente na incapacidade de conceder aos outros o que se foi forçado a negar para si próprio. A qualquer custo, não importando em que grau a inveja foi reprimida ou expressada, ela implica um aumento na hostilidade existente contra pessoas e conseqüentemente um aumento na ansiedade, que agora toma a forma particular de um medo irracional da inveja dos outros.

A natureza irracional deste medo é mostrada de duas maneiras: (1) ele existe independente da presença ou ausência de inveja na situação dada; (2) sua intensidade é desproporcional às ameaças oferecidas pelos competidores invejosos. Esse lado irracional do medo da inveja dos outros permanece sempre inconsciente, pelo menos em pessoas não-psicóticas, não sendo, portanto, jamais corrigido por um processo de teste da realidade, e é ainda mais eficaz em reforçar as tendências existentes de recolhimento.

Conseqüentemente, o sentimento da própria insignificância cresce, a hostilidade contras as pessoas cresce, e a ansiedade cresce. Retornamos então ao início, porque agora as fantasias emergem, com um conteúdo semelhante a: “Eu queria ser mais poderoso, mais atrativo, mais inteligente que todos os outros; então eu estaria mais seguro, além disso, eu poderia derrotá-los e pisá-los”. Assim, vemos um desvio cada vez maior das ambições na direção do difícil, do fantástico, do hostil.

Esse processo piramidal pode ser paralisado sob várias condições, geralmente a um custo excessivo em perda de expansividade e vitalidade. Existe sempre algum tipo de resignação das ambições pessoais, permitindo por sua vez a diminuição da ansiedade de competição, mas permanecendo os sentimentos de inferioridade e as inibições.

Cabe, no entanto, uma ressalva. Não é de modo algum evidente que a ambição do tipo “ninguém-se-não-eu” deva necessariamente evocar ansiedades. Existem pessoas que são capazes de ignorar ou aniquilar qualquer um no caminho de sua brutal busca por poder pessoal. A questão é: sob que condição especial é a ansiedade evocada em pessoas neuroticamente competitivas?

A resposta é que elas ao mesmo tempo querem ser amadas. Enquanto a maioria das pessoas que buscam na vida uma ambição de cunho não social pouco se importa com o afeto ou opinião dos outros, os neuróticos, apesar de possuídos pelo mesmo tipo de competitividade, tem simultaneamente um anseio ilimitado por afeição e apreço. Por isso, tão logo elas façam qualquer movimento na direção de autoafirmação, competição ou sucesso elas começam a temer a perda da afeição dos outros, e automaticamente refream seus impulsos agressivos. Esse conflito entre ambição e afeição é um dos mais graves e mais típicos dilemas do neurótico hodierno.

Por que essas duas aspirações incompatíveis estão tão freqüentemente presentes no mesmo indivíduo? Tais aspirações se relacionam em mais de uma maneira. A mais breve formulação desta relação seria talvez que as duas se originam da mesma fonte, qual seja, ansiedades, e ambas servem como meio de se reassegurar contra as ansiedades. Poder e afeição podem ambos ser meios de proteção. Reciprocamente eles se geram, se controlam e se reforçam. Essas inter-relações podem ser observadas mais acuradamente dentro da situação analítica, mas às vezes são óbvias a partir de apenas um conhecimento informal da história de vida.

Na história de vida pode ser encontrada, por exemplo, uma atmosfera de infância deficitária em afeto e confiança, mas abundante em elementos amedrontadores - batalhas entre os pais, injustiça, crueldade, preocupação excessiva - aparecimento de uma necessidade crescente de amor - decepções - desenvolvimento de uma competitividade ostensiva - inibição - tentativas de obter afeto por meio de fragilidade, desamparo ou sofrimento. Nós às vezes ouvimos dizer que um jovem de repente recorreu à ambição depois de uma decepção aguda em sua necessidade de afeição, e então desistiu da ambição de apaixonar-se.

Particularmente, quando os desejos expansivos e agressivos foram severamente contidos em uma fase precoce da vida por uma atmosfera proibitiva, a necessidade excessiva de uma afeição reasseguradora terá um papel mais importante. Como princípio orientador para o comportamento, isso implica uma sujeição aos desejos ou opiniões dos outros, muito mais que uma asserção dos desejos ou opiniões próprios; uma supervalorização do significado para a própria vida das expressões de afeto dos outros, e a dependência de tais expressões. E similarmente, isto implica uma supervalorização dos sinais de rejeição e uma reação a tais sinais com apreensão e hostilidade defensiva. Aqui novamente um círculo vicioso facilmente se inicia e reforça os elementos singulares. Em um diagrama o círculo se assemelharia ao seguinte:

 

 

Essas reações explicam porque o contato emocional com outros conseguido tendo como base a ansiedade pode ser, na melhor das hipóteses, apenas uma instável e facilmente fragmentada ligação entre indivíduos, e é a razão pela qual essa ligação é sempre ineficaz para tirá-los de seu isolamento emocional. Ela pode, entretanto, servir para lidar com a ansiedade e pode até ajudar à pessoa a atravessar a vida de forma tranqüila, mas somente à custa de crescimento e desenvolvimento da personalidade, e apenas se as circunstâncias forem bastante favoráveis.

Perguntemos agora, que traços especiais em nossa cultura podem ser responsáveis pela ocorrência freqüente das estruturas neuróticas até aqui descritas? Nós vivemos em uma cultura competitiva e individualista. Se os gigantescos progressos econômicos e técnicos de nossa cultura foram e são possíveis somente na base do princípio da competição é uma questão para economistas ou sociólogos decidirem. O psicólogo, entretanto, pode avaliar o preço pessoal que pagamos por isso.

Deve-se ter em mente que a competição não é apenas uma força motora em atividades econômicas, mas impregna nossa vida pessoal em todos os aspectos. O caráter de todas as nossas relações humanas é moldado por uma competição mais ou menos ostensiva. Ela se faz presente na família entre irmãos, na escola, nas relações sociais (demonstrando superioridade sócio-econômica ou cultural) e em relações amorosas.

No amor, ela se apresenta de duas maneiras: o desejo erótico autêntico é geralmente ofuscado ou substituído pelo objetivo meramente competitivo de ser o Ansiedade + hostilidade reprimida Necessidade de afeição reasseguradora Antecipação de / sensibilidade a rejeição Reações hostis ao sentimento de rejeição mais popular, tendo o maior número de encontros, cartas de amor, amantes, sendo visto com o homem ou a mulher mais desejável. Ela pode igualmente penetrar a relação amorosa. Cônjuges, por exemplo, podem estar vivendo uma constante disputa por supremacia, com ou sem consciência da natureza e até mesmo da existência desse combate.

A influência dessa competitividade nas relações humanas reside no fato de que ela cria inveja do mais forte, desprezo pelo mais fraco, desconfiança de todos, sentimentos esses que emergem com facilidade. Em conseqüência de todas essas tensões potencialmente hostis, a satisfação e a segurança que se pode conseguir a partir das relações humanas são limitadas e o indivíduo torna-se mais ou menos emocionalmente isolado. Parece que, aqui também, interações mutuamente reforçadoras ocorrem, e, por sua vez, a insegurança e insatisfação em relações humanas compelem as pessoas a buscar gratificação e segurança em aspirações ambiciosas e vice-versa.

Outro fator cultural relevante à estrutura de nossa neurose reside na nossa atitude com relação a fracasso e sucesso. Nós estamos inclinados a atribuir sucesso a boas qualidades e capacidades pessoais, tais como competência, coragem, iniciativa. Em termos religiosos essa atitude está contida na expressão de que sucesso é devido à graça divina. Enquanto essas qualidades podem ser eficazes - e em certos períodos, como na época dos pioneiros, possam ter representado as únicas condições necessárias - essa ideologia omite dois fatos essenciais: (1) que a possibilidade para o sucesso é estritamente limitada; mesmo condições externas e qualidades pessoais sendo iguais, apenas poucos poderão atingir o sucesso; e (2) que outros fatores, além daqueles mencionados, tem papel decisivo, tais como, por exemplo, falta de escrúpulos ou circunstâncias fortuitas. À medida que esses fatores são ignorados na avaliação do sucesso, os fracassos, além de colocarem a pessoa em uma situação realmente desvantajosa, também refletem com certeza em sua auto-estima.

A confusão envolvida nessa situação aumentada devido a uma espécie de dupla moral. Embora de fato o sucesso suscite uma adoração, quase que sem considerar os meios empregados na sua consecução, somos ao mesmo tempo ensinados que a modéstia e uma atitude complacente e altruísta são virtudes sociais ou religiosas, e somos compensados por elas com elogios e afeição. As dificuldades particulares que o indivíduo enfrenta em nossa cultura, podem ser assim sumarizadas: para a luta competitiva ele precisa ter disponível uma boa porção de agressividade; ao mesmo tempo ele é solicitado a ser modesto, altruísta e até mesmo abnegado. Enquanto a situação vital competitiva, com as tensões hostis nela envolvidas, cria uma maior necessidade de segurança, as chances de obter um sentimento de segurança nas relações humanas - amor, amizade, contatos sociais - são ao mesmo tempo diminuídas. A medida do valor pessoal de alguém é extremamente dependente do grau de sucesso alcançado, enquanto ao mesmo tempo as possibilidades de sucesso são limitadas e o sucesso em si mesmo é grandemente dependente de circunstâncias fortuitas ou de qualidades de caráter individualistas.

Talvez esses comentários gerais tenham sugerido a direção na qual explorar a verdadeira relação de nossa cultura com nossa personalidade e seus desvios neuróticos. Consideremos agora a relação dessa concepção com as visões de Freud sobre cultura e neurose.

A essência da visão de Freud sobre esse assunto pode ser sumarizada brevemente da seguinte forma: Cultura é o resultado de uma sublimação de impulsos sexuais e agressivos dados - “sexual” na conotação ampla dada por Freud ao termo. Sublimação pressupõe uma supressão não intencional desses impulsos instintivos. Quanto mais completa for a supressão desses impulsos, mais alto será o desenvolvimento cultural. Como a capacidade de sublimação é limitada e como a supressão intensa de impulsos primitivos sem sublimação pode levar à neurose, o crescimento da civilização deve inevitavelmente implicar um crescimento da neurose. Neuroses são o preço que a humanidade tem de pagar pelo desenvolvimento cultural.

A pressuposição teórica subjacente a essa linha de pensamento é a crença na natureza humana como biologicamente determinada, ou, mais precisamente, a crença de que impulsos orais, anais, genitais e agressivos existem em todos os seres humanos em aproximadamente igual quantidade1. Variações na formação do caráter, de indivíduo para indivíduo e de cultura para cultura, são devidas, então, à variação na intensidade da supressão requerida, com o fator adicional de que essa supressão pode afetar diferentes tipos de impulsos em graus variados.

Esse ponto de vista freudiano parece realmente encontrar dificuldades com dois grupos de dados. (1) Achados históricos e antropológicos2 não apóiam a hipótese de que o crescimento da civilização está em proporção direta com o crescimento da supressão de instintos. (2) A experiência clínica na área indicada neste artigo sugere que a neurose é devida não simplesmente à quantidade da supressão de um ou outro impulso instintivo, mas muito mais devida a dificuldades causadas pelo caráter conflitante das demandas que a cultura impõe aos indivíduos. As diferenças em neuroses típicas de diferentes culturas podem ser entendidas como sendo condicionadas pela quantidade e qualidade de demandas conflitivas dentro uma cultura particular.

Em uma determinada cultura, aquelas pessoas que encontraram de forma acentuada essas dificuldades culturalmente determinadas, principalmente por meio de experiências infantis, e aqueles que não foram capazes de resolver suas dificuldades, ou as resolveram apenas com grande ônus à personalidade, essas pessoas provavelmente tornar-se-ão neuróticas.

 

DISCUSSÃO

WALTER BECK, PH.D. (BOSTON UNIVERSITY)

(1) O Conceito de Neurose - Embora eu concorde com a maior parte do que a Dra. Horney diz a respeito de sintomas e dinâmicas neuróticas, eu não concordo com a afirmação com a qual ela abre sua apresentação. Ela apresenta seu conceito de neurose como uma “mudança de ênfase no conceito psicanalítico de neurose”. Eu sustento que seu conceito mais aponta uma divergência fundamental do conceito psicanalítico do que uma mera mudança de ênfase. De acordo com a psicanálise, neurose é essencialmente o resultado de um conflito entre o Id e o Ego - isto é, entre dois “compartimentos” distintos do indivíduo - os quais, embora determinados por apenas uma corrente dinâmica, são antagônicos entre si pela própria natureza de suas funções. Em tal esquema de explicação e interpretação, não existe lugar para nem necessidade de certos traços conflitivos de caráter. O mecanismo prazer-inibição trabalha em direção ao ajustamento ou à neurose sem mais do que uma mera referência periférica a tais determinantes qualitativos. Portanto, interpretar a neurose como o resultado de traços conflitivos de caráter não pode ser considerada uma mera mudança de ênfase. O conceito de neurose da Dra. Horney, tanto quanto suas conclusões com relação a elementos culturais do processo neurótico, portanto, em lugar de meras correções ou elaborações das hipóteses psicanalíticas, são basicamente formulações não-psicanalíticas. Isso é indicado pelo fato de que a apresentação da Dra. Horney pode passar por uma apresentação adleriana muito mais facilmente do que uma freudiana. Dra. Horney está perfeitamente justificada ao divergir do conceito freudiano de neurose. Certamente existem neuroses que podem ser melhor interpretadas e explicadas do ponto de vista freudiano, e talvez somente a partir do ponto de vista freudiano. Mas essas são tipos bastante especiais e específicos, e uma teoria inclusiva da neurose tem que adotar um escopo bem mais amplo, uma versão bem mais abrangente e complexa da personalidade e das inter-relações pessoa-cultura do que aquelas oferecidas pela psicanálise. Dra. Horney contribui essencialmente para esse fim. Eu tenho que, entretanto, criticar sua contribuição a partir de um outro ângulo, qual seja, seu uso do termo “traços de caráter”. Não é afirmado explicitamente, nem é implicado, se o termo refere-se a traços psicanalíticos altamente específicos (oral, uretral, anal). Tampouco é dada outra definição ou descrição, a não ser que a Dra. Horney pense em competição e afeição como “traços de caráter”, o que, no entanto, é altamente questionável. À parte essa dificuldade terminológica, o fator significante na apresentação da Dra. Horney é que ela demonstra a neurose não como um fenômeno de mão única resultante do mecanismo caracterologicamente incolor de prazer-inibição do indivíduo caracterologicamente incolor, mas um distúrbio de uma personalidade particularmente determinada em uma situação particularmente determinada. Isso naturalmente é uma formulação um tanto vaga (pela qual eu me responsabilizo). A intenção é indicar a direção que deve ser tomada ao estudar e interpretar a neurose, e não obter um esquema conclusivo de explicação e interpretação. Tomando essa direção deixamos toda uma proteção e segurança de teorias bem definidas e imanentemente consistentes, tais como a psicanálise, e nos deparamos com uma variedade grande e desorganizada de fenômenos que oferecem evidência da verdade parcial de todas as várias escolas e teorias, e deixamos ainda muito mais para ulterior pesquisa e correlação.

Mas, desde que se necessita de um denominador comum daquela multiplicidade de fenômenos, gostaria de sugerir o conceito (biológico) de falta ou perda de equilíbrio, a qual pode ocorre em, ou entre, quaisquer estratos, quaisquer fases, quaisquer traços, quaisquer funções e quaisquer relações da personalidade. Tais perdas de equilíbrio, e os conflitos a ela pertencentes, são normais e necessários no processo da vida. Neurose, então, ocorre, quando tais conflitos - não importa onde eles estejam localizados dentro da estrutura da personalidade - são administrados malogradamente. Especificamente, neurose ocorre quando os conflitos são administrados - isto é quando o equilíbrio é restabelecido - por meio do estabelecimento de uma estrutura vital artificial (Ersatz-Struktur) a qual, por seu tom emocional inerente e seu contraste contínuo, mais ou menos consciente, com maneiras vitais normais, conduz àquela oscilação característica de atitudes, e àquele “círculo vicioso” ao qual a Dra. Horney se referiu extensivamente em sua apresentação.

(2) O Tipo de Relação entre Cultura e Neurose - Com relação a este problema, o artigo da Dra. Horney novamente expressa mais do que uma mera mudança de ênfase. Substituindo “demandas culturais conflitantes” pelo mecanismo psicanalítico de supressão-sublimação, ela introduz um novo elemento qualitativo que não tem lugar periférico (ou tem um lugar meramente periférico), no esquema psicanalítico de interpretação. Novamente, a Dra. Horney justifica-se fazendo referência mais ao conflito de demandas culturais e não ao mero fato de demandas culturais e supressões. Esta justificativa origina-se do fato de que a quantidade de diferenciação e a falta de associação e coordenação de nossos vários sistemas culturais têm uma carga mais pesada sobre os processos neuróticos do que o mero fato da supressão. Nós temos, acho eu, exagerado na afirmação de que nós estamos sofrendo de falta de autoexpressão. Nós temos, especialmente neste país, oportunidades suficientes de autoexpressão. Mas nós não temos uma estrutura cultural bem definida, bem coordenada, bem integrada na qual encontrar um lugar e uma função definidos, e da qual derivar significado e importância pessoal e trans-pessoal para nossa atividade. O problema, portanto, não é a supressão cultural apenas (como pode parecer de acordo com a psicanálise), mas adicionalmente ou mesmo primariamente: falta de definição e determinação cultural confiável. Não é verdade que a satisfação direta de nossos desejos libidinais seja o único objetivo de nossa energia inata e o único meio normal ou natural para atingir satisfação e equilíbrio. Que nós temos que fazer alguma coisa e ser alguém dentro da estratificação da civilização é apenas um aspecto da situação. O outro é que nós queremos fazer alguma coisa e ser alguém socialmente significativo, e que, até hoje, não está suficientemente determinado quem nós somos e o que nós somos dentro do sistema cultural. Ou em outras palavras, domesticação - ou seja, coerção - é apenas um componente possível na situação neurótica. Incerteza, inadequação e desintegração do processo de socialização necessário e íntegro (como tal) são outros componentes negligenciados pela psicanálise, mas mais significantes - pelo menos no meu entendimento - e mais característicos de nossa situação particular do que o super valorizado fenômeno de supressão. Naturalmente, essa opinião pressupõe uma relação entre personalidade e cultura a qual é mais intrínseca e mais complexa do que indica o conceito psicanalítico de relação pessoa-cultura. Enquanto psicanálise refere-se à dramática colisão entre indivíduo e sociedade como princípios antagônicos a priori, nós nos referimos a um processo inerente na unidade pessoa-cultura. Esta é a razão pela qual eu mantenho que nós não estamos lidando meramente com uma modificação da psicanálise, mas com um tipo diferente de relação entre cultura e neurose. Uma futura teoria da neurose terá que unificar os dois tipos e provavelmente incluir alguns outros aspectos dessa complexa situação, transcendendo formulações e definições psicanalíticas.

(3) Características da Civilização Atual Relacionadas com a Neurose - A partir disso, eu gostaria de apontar outras características de nossa civilização as quais achei relevantes para o processo neurótico. Dra. Horney referiu-se ao caráter competitivo da civilização atual e às suas múltiplas conseqüências com relação aos processos neuróticos. Não há nada a adicionar à sua excelente descrição e interpretação desse fenômeno, o qual na verdade é um dos maiores componentes das neuroses modernas. A apresentação da Dra. Horney ilustra claramente o que dissemos sobre perda de equilíbrio e sobre as intrínsecas inter-relações pessoacultura envolvidas no processo, as quais não podem ser percebidas em apenas uma fórmula, não obstante útil.

Eu não posso, nessa discussão, seguir o exemplo da Dra. Horney e analisar de forma completa algum outro fator cultural em sua relação com a neurose, e eu tenho que limitar-me a algumas poucas observações que mais implicitamente do que explicitamente podem contribuir para a elaboração de nosso problema.

Um fator é que sofremos uma perda de resistência contra meios e modos neuróticos. Existe uma tendência ampla (particularmente em alguns estratos de nossa população) em aceitar neurose como uma experiência um tanto interessante e excitante, e, mais que isso, como um padrão de comportamento que nos torna notáveis e merecedores de aplausos da comunidade. A neurose tornou-se quase que um sistema cultural em si, e algumas pessoas “se aficcionam a” ela, enquanto outras “se aficcionam a” arte, religião e política. Os problemas envolvidos são: Como e porque essa situação veio a existir? Como esta suscetibilidade aumentada serve com um impacto cultural específico em casos neuróticos reais? Outro fator cultural é a crescente discrepância entre relações pessoais e institucionais. Não importa quão boa ou quão má é a família que nos comunica nossas primeiras experiências formativas, ela é em qualquer caso um grupo baseado em inter-relações, e essas são per se emocional e subjetivamente significativas. Nossa vida como adultos, entretanto, é para ser vivida, em grande medida, em relações institucionais, e essas são primariamente impessoais, racionais e objetivamente significativas. Este é um tipo específico de relação. A transição e o ajustamento a essa relação não são simplesmente atendidos pelos processos de transferência e projeção na sociedade dos padrões de comportamento que adquirimos nas famílias personalísticas, mas, no entanto, requerem esforços específicos. Eu encontrei uma quantidade considerável de incerteza e confusão com relação a esse dois tipos de relações sociais diferentes e divergentes, e eu os encontrei em neuroses como sintomas e também como fatores causativos.

Um terceiro fator, intimamente relacionado ao que eu acabo de mencionar, é a freqüente inabilidade e falta de vontade de discriminar entre várias formas de relações sociais. A falta ou a precariedade de elementos estruturais em nossa organização social, o tremendo número de pessoas que encontramos, a pressa e superficialidade de tais relações, a rápida mudança na constituição de nossa comunidade - estes fatores interferem severamente no cultivo de relações seletivas e contribuem para sua desvalorização. Amor e amizade, liderança e lealdade, e outras relações pessoais delicadas, tão necessárias para uma integração saudável da personalidade, foram desvalorizadas, minimizadas, menosprezadas no curso da evolução social. E tal desvalorização convida conflitos, conduzindo a soluções curto-circuito tais como sociabilidade gregária e apressada, ou retraimento e isolamento - a inabilidade de ser verdadeiramente social e a inabilidade de ser verdadeiramente só - mais uma vez atitudes que são potenciais elementos de processos neuróticos. O que acabamos de dizer concernente a relações interpessoais é igualmente verdadeiro para as relações pessoa-cultura. Aqui, também, encontramos uma inflação e desvalorização de valores, uma desintegração e indefinição desorientadora do simbolismo social, nacional e cultural, uma perda de significado em todas as esferas da cultura. E aquele que sabe, por um lado, quão significante é o valor do simbolismo para a integração da personalidade, e, por outro, quão significante é o simbolismo na formação de neuroses, facilmente se dará conta da conexão essencial entre esta situação cultural particular e o processo neurótico.

Elaborando estes ou quaisquer outros aspectos do problema de cultura e neurose, nós temos que estar cientes do fato de que nem cultura nem neurose são entidades definidas e concluídas. Um ângulo particular deste fato é que a personalidade vivencia e interpreta cultura diferentemente em diferentes fases da vida, e, além disso, que vários tipos de personalidade diferem basicamente em sua relação com a cultura. Esta variação em relações pessoa-cultura é diagnosticamente e terapeuticamente importante, e pode muito bem ser também um dos elementos mais envolvidos na relação causativa entre cultura e neurose. Mas este é um campo que foi insuficientemente tratado até agora - é algo a ser pensado, talvez, mas não ainda não discutido.

 

 

Tradução: Marizete Gouveia Damasceno
Revisão: Marcos Gouveia Damasceno

Nota Biográfica
Karen Horney (1885-1952), nasceu em Hamburgo (18 de setembro) e faleceu em Nova York (04 de dezembro). Fez sua formação em medicina em Berlim e em Psicanálise no Instituto Psicanalítico de Berlim, entre 1918 e 1932, tendo sido analisada por Karl Abraham e Hans Sachs. Ficou conhecida por suas críticas a alguns aspectos da teoria freudiana, notadamente no tocante à sua ortodoxia, relevando aspectos culturais na formação da personalidade e na neurose. Ao lado de Erich Fromm e Harry Stack Sullivan, fez parte do grupo conhecido por aplicar conceitos sociais e culturais à psicanálise, comumente denominado como “Neo-Freudianos” ou “Culturalistas”. Foi analista de Fritz Perls em 1926.
* Publicado originalmente no American Sociological Review (1936), Volume I, Nos 1-6, p.221-230.
1 Desconsiderando o reconhecimento de Freud de diferenças constitucionais individuais.
2 Ruth Benedict, Padrões de Cultura; Margaret Mead, Sexo e Temperamento em Três Sociedades Selvagens.

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