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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.2 Goiânia dez. 2007

 

EDITORIAL

 

Estamos espremidos no tempo e no espaço. Entre o que sonhamos ser e o que podemos realizar. Heidegger disse certa vez que “chegamos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser”. O resultado é que acabamos engolfados pelo que o mundo nos aponta cotidianamente, e passamos a não mais refletir sobre o que somos, sobre o que é o mundo, sobre quem somos nós...

O mundo, diz Merleau-Ponty, “não é o que penso, mas o que vivencio”. E Francisco Varela assinala que “o mundo e eu, existimos em conjunto, nós nos definimos mutuamente”, que o mundo – ao contrário do que críamos anteriormente – não mais pode ser entendido independente de mim. Somos bombardeados por sucessivas tentativas de descaracterizar nossa responsabilidade, e mesmo nossa sanidade, nossa percepção e compreensão do mundo e da mundanidade.

Numa sociedade pautada por premissas absolutamente relativistas como apontadas por uma Matrix, nossa realidade se torna mesmo um Clube da Luta: uma total indefinição e irrealidade. Num mundo destes, não há necessidade de refletirmos sobre nada, nem mesmo existe papel claro para a educação. É neste ponto que acreditamos que a Fenomenologia pode vir a ser uma boa resposta a nossos anseios.

Reflexão é verbo, é ação, não um substantivo. Como substantivo, prescinde de si mesmo; mas como verbo, se torna. Reflexão é perceber, é perceber-se, é perceber-se percebendo, como aponta a eminente formadora, Dra. Maria Aparecida Viggiani Bicudo. Reflexão é ato. Qualquer educador sabe disto, não qualquer professor (Falo aqui daquele que se preocupa mais em ensinar e não em educar. Paulo Freire, creio, me apoiaria). Posto que educar rima com formar, e educação com formação.

Na Fenomenologia, reflexão é ato, é reflexação, ação-reflexa. E é ato composto: primeiro, é perceber, um “olhar” para o vivido, olhar este que é encarnado, na carne. “Olhar é um ato pelo qual o horizonte da visibilidade se amplia e o corpo-próprio estabelece contato com o mundo. Trata-se de um tocar à distância, e é nesse ato que nos abrimos à textura do mundo”, nas palavras da Dra.Bicudo.

O olhar fenomenológico remete-nos a este “outro” mundo, coloca-nos em ato de reflexão, onde reflexão é perceber-se, e perceber-se percebendo (em ato). Foi Edmund Husserl, na esteira de uma tradição principiada por Wilhelm Dilthey e organizada por Franz Brentano, quem sistematizou esta perspectiva de um “retorno às coisas mesmas”: reflexão, na fenomenologia, é um retorno à experiência vivida. Reflexão é ato, percebendo-se.

Neste caminho, educação rima com formação, com construção que, em si, é co-construída, já que o mundo me dá um outro que se me dá a mim mesmo. E, assim, educar significa formar, mas não em mão única, linear, como superposição ou intromissão, não como negação de um viver que é único, real e autêntico (como a “realidade” irreal de Matrix), mas como o sentido vivido e transcendente de um Amor Além da Vida, que, antes de tudo, transforma. Formação é transcendência, é superação (superação), que se dá em mim, a partir de um contato fecundo com um outro. É isto que descobre o personagem Seth, no filme Cidade dos Anjos.

É isto que nos faz humano. Este “olhar” para além. Mikel Dufrenne, ao analisar uma tela de Cézanne, questiona: “Cézanne ao pintar a montanha Sainte-Victoire não nos dá uma lição de geografia: mas o que ela expressa? A potência de uma natureza mineral? A nudez de um mundo que a luz restitui ao elementar? A cumplicidade secreta que o inerte encontra numa alma que se despoja? Não podemos dizer: somente Cézanne o diz, numa linguagem intraduzível que apenas podemos escutar. Mas é certo que nos convida a viver com ele certa experiência do mundo”.

Nesta sensibilidade, o artista toca a essência do humano: a presença, na qual o sujeito pode captar e apreender a significação do mundo, a partir de uma experiência vivida. “É na experiência estética que se manifesta a relação mais profunda do homem com o mundo”, diria Dufrenne. E a partir disto, o mundo se dá à reflexão.

O artista, tal qual o fenomenólogo, des-oculta o mundo, nesta intrínseca relação com um outro, “seu espelho”. Para tal, basta retornarmos ao “mundo da vida”, diria Husserl. Este mundo de crenças e mentes, perdido entre corpos inertes e calados,mas grávidos de sentidos ocultos a serem des-cobertos, desocultados. Por detrás destas cortinas simbólicas encontra-se o significado de um mundo que nada mais é do um sentido.

No fim das contas, o mundo é como Fernando Pessoa destaca: “O único sentido oculto das coisas é elas não terem sentido oculto algum”.

Este número apresenta uma variedade e uma singularidade únicas, contidas num paradoxo e numa complementaridade que revelam novos caminhos de reflexões.

Vimos recebendo visitas de estimadas e renomadas figuras da Gestalt americana e européia e – através do inestimável serviço que nos presta (a toda comunidade gestaltista e humanista brasileira) o ITGT – temos podido refletir mais profundamente não apenas sobre nossa prática e nossas bases teóricas, mas fundamentalmente sobre nossas perspectivas. E o que temos escutado dessas personalidades é que se faz, aqui no Brasil, uma reflexão tão rigorosa quanto nos mais diversos espaços acadêmicos do mundo. Dito em outros termos, temos produzido qualidade suficiente para sermos reconhecidos por nós mesmos.

Esta revista encerra o ano de 2007 com a apresentação de algumas das produções recolhidas entre autores os mais destacados nos campos da Filosofia e da Psicologia. Destaca-se, de início, uma produção vinda das bases da formação em Gestalt, do terreno da própria academia, com um trabalho intitulado Descrição de uma Vivência de Ensino Orientada pela Gestaltpedagogia, de autoria múltipla e produto de esforços de estagiárias em Psicologia (Juliana Arrais de Morais Moreira e Ludymila Pimenta Ferreira são graduandas na Universidade Católica de Goiás e foram orientadas por Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa).

Em seguida apresentamos uma reflexão singular sobre o pensamento dialógico de Martin Buber, de autoria do Dr. Marcos Aurélio Fernandes, intitulado “O Que Significa Dizer Tu?” –Meditação Acerca das Palavras-Fundamentais “Eu-Tu” e “Eu-Isso”.

A Fenomenologia se faz ainda mais presente neste número, graças a contribuições significativas de pesquisadores como Ívena Pérola do Amaral Santos, com o texto A Obra Literária como Expressão Existencial das Concepções Ontológicas do Ser do Homem, e Cinthia Dutra Struchiner, com Fenomenologia: De volta ao Mundo-da-Vida.

Cada vez mais reforçando as opiniões recolhidas de nossos visitantes, somos primados com três produções de renome internacional. Da parte do respeitado Dr.Urbano Zilles – tradutor de Edmund Husserl e de Gabriel Marcel, e membro da Sociedade Brasileira de Fenomenologia – temos o texto Fenomenologia e Teoria do Conhecimento em Husserl, e da parte do Dr.William Barbosa Gomes – o mais produtivo e respeitado pesquisador da psicologia fenomenológica brasileira – temos um debate acer ca da Distinção entre Procedimentos Técnico e Lógico na Análise Fenomenológica. Somos ainda primados com a tradução de um artigo de rara profundidade, onde dois dos mais importantes pensadores na fenomenologia debatem entre si: Albert Michotte e Maurice Merleau- Ponty, intitulado Visão de Causalidade: Merleau-Ponty em Michotte, de autoria do Dr. Lester Embree, professor do Departamento de Filosofia do Florida Atlantic University, em Boca Ratón, Florida (Estados Unidos) e um dos diretores do Center of Advanced Research in Phenomenology.

Por fim, e igualmente produzido no meio acadêmico, temos um artigo oriundo de pesquisas sobre psicologia da religião, numa perspectiva fenomenológica, realizadas na Universidade de Brasília, intitulado “Eu Vim Para Que Todos Tenham Vida e Vida Em Abundância”. Um estudo Comparativo de Aconselhamento Religioso em Três Vertentes Religiosas Brasileiras (Danielle Soares de Macedo; Camila Mariana Mesquita e Fonseca & Adriano Furtado Holanda).

Na seção Ensaios, destaque para duas reflexões com temas distintos, mas com olhares compartilhados. No primeiro ensaio, Walter da Rosa Ribeiro nos fala sobre a Gestalt-Terapia no Brasil: Recontando a Nossa História, e no segundo ensaio, Marta Carmo discorre sobre Configurações Familiares – Um novo paradigma.

Apenas o anúncio de todas estas produções já seria suficiente para atestarmos a qualidade deste número. Todavia, ainda podíamos oferecer mais ao leitor. Diante desta possibilidade, estamos publicando o Prólogo da mais importante obra da Psiquiatria Fenomenológica, editada em 1933, por Eugène Minkowski, com o título de Le Temps Vécu. Études Phénoménologiques et Psychopathologiques. Esperamos em breve estar publicando a totalidade de sua obra em língua portuguesa, permitindo assim que os estudiosos possam se debruçar mais facilmente sobre este fascinante tratado de fenomenologia psiquiátrica.

Por fim, apresentamos ainda os resumos de importantes trabalhos desenvolvidos em mestrado e doutorado no Brasil no ano de 2007.

Agradecemos a todos que contribuíram com este número, e convidamos o leitor a nos primar com suas considerações e colaborações futuras.

 

Adriano Furtado Holanda
- Editor -

 

Referências Bibliográficas

Bello, A.A. (2000). Edith Stein: os laços intersubjetivos; da empatia à solidariedade, Em Ângela Ales Bello, A Fenomenologia do Ser Humano [p. 159-204], Bauru: Edusc.        [ Links ]

Dufrenne, M. (1998). Filosofia e Estética, São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

Husserl, E. (1985). Idées Directrices pour une Phénoménologie et une Philosophie Phénoménologique Pures, Paris: Gallimard.        [ Links ]

Husserl, E. (1992). Apparitions d’esprits, intropathie, expérience de l’autre, Études Phénoménologiques, No 15, pp. 5-24 (Original em alemão de 1924).

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