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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.2 Goiânia dez. 2007

 

ENSAIOS

 

Gestalt-Terapia no Brasil: recontando a nossa história1

 

Gestalt-Therapy in Brazil: retelling our history

 

Terapia Gestalt en Brasil: recontando nuestra historia

 

 

Walter Ferreira da Rosa Ribeiro

Centro de Estudos de Gestal-Terapia de Brasília

 

 


RESUMO

O texto faz um percurso histórico da construção da Gestalt-Terapia, destacando as figuras de Fritz Perls, Laura Perls e Paul Goodman, como os principais construtores dessa abordagem. Uma apreciação crítica dessa construção é feita, com base no contexto histórico-cultural no qual está alicerçado, posicionando-se a análise na provocação de uma revisão de conceitos, e posicionando a Gestalt-Terapia na direção de uma abordagem que recoloca o ser-no-mundo.

Palavras-chave: Gestalt-Terapia, Fritz Perls, História.


ABSTRACT

This paper traces the historical construction of Gestalt-therapy, with special attention in Fritz Perls, Laura Perls and Paul Goodman, like the main builders of this approach. A critical appreciation of this construction is made, based on cultural and historical context in which it was founded, placing the analysis in provocations about the revision of concepts and putting Gestalt-Therapy in direction of an approach that replaces the being in the world.

Keywords: Gestalt-Therapy, Fritz Perls, History.


RESUMEN

El texto hace un recorrido histórico en la construcción de la Terapia Gestalt, destacando las figuras de Fritz Perls, Laura Perls y Paul Goodman como los principales constructores de ese abordaje. Se hizo una apreciación crítica de esa construcción basada en el contexto histórico cultural que está fundamentada, posicionando el análisis con la intención de una revisión de conceptos y se ubicó a la Terapia-Gestalt en dirección de un abordaje que recoloca al ser en el mundo.

Palabras clave: Terapia-Gestalt, Fritz Perls, Historia.


 

 

Começamos essa prática de falar sobre a História da Gestalt-Terapia em nossos Congressos, em 1991, em Brasília, onde a nosso pedido, Jean Clark Juliano, de São Paulo, contou-nos com a seriedade e espírito de pesquisa que a caracterizam, a história da Gestalt-Terapia, segundo seus achados e opiniões. Nesse dia, ela enfatizou o fato incontestável (mas que precisa sempre ser lembrado) de que cada um conta a história de sua perspectiva, ou seja, a história que existe para cada um de nós é o resultado do encontro, da relação, entre os fatos pesquisados com as características, os anseios, as crenças do pesquisador. Ninguém conta história ou faz qualquer coisa de maneira neutra.

Essa contaminação é inevitável e, quando admitida, esclarece mais do que oculta, trazendo aos ouvintes o salutar hábito de procurar outros contadores da mesma história e, assim, formarem, irem construindo a sua própria história sobre aquele assunto.

Hoje, vou contar a minha, também resultado de muita pesquisa, mas inevitavelmente minha. Para minimizar o viés “inevitável”, ou talvez já para dar o meu colorido a ela, vou contá-la utilizando algumas imagens e declarações de Fritz e Laura Perls (não muitas). Todos estamos mais ou menos familiarizados com a imagem dele. Entretanto, poucos conhecem o rosto de Laura Perls.

Tentarei também não repetir muito o que já foi dito e enfatizado, procurando acrescentar alguns enfoques que, espero, venham somar algo à nossa história. Com a convicção, insisto, de que a História é o fundo do qual emergem as noções que temos sobre a nossa identidade e que, portanto, quanto mais elucidada, mais clareza teremos do que somos e do que pretendemos.

Minha preocupação será, pois, com aqueles pontos que julgo importantes e que, ou não foram abordados por outros contadores ou foram de forma, para mim, insatisfatória.

Apesar de não termos nenhuma imagem de Fritz Perls falando sobre o nosso tema, a História da Gestalt-Terapia, em homenagem ao centésimo aniversário do seu nascimento, selecionamos algumas imagens de 1969, quando em Vancouver ele nos diz coisas importantes sobre a nossa abordagem e onde vocês poderão vê-lo e ouvi-lo em seus últimos dias. Ele morreria em 1970.

Mostraremos também imagens da outra pessoa sem a qual certamente também não estaríamos aqui: Laura Perls. Estas, extraídas de duas entrevistas que ela concedeu em 1976 e em 1984 com o propósito de esclarecer a nossa história; a primeira a James (Jim) S. Simkin e a segunda a Daniel Rosemblatt.

A minha contribuição ficará mais por conta de nossa Pré-História, ou seja, de onde vieram as idéias de Fritz e Laura Perls, e de Paul Goodman? Quem foram os seus antecessores e pares nas idéias fundamentais sobre o ser humano, que deram suporte à Gestalt-Terapia? Esse problema agravou-se pelo fato deles dificilmente citarem esses mestres e pelo mau hábito de não colarem bibliografia em seus livros.

Outros contadores que recomendo:

I) O texto da Jean, que está melhor ainda no último número da Revista de Gestalt, de São Paulo, Ano II, nº 2, 1992;

II) Na mesma revista, o texto de Gerald Kogan; e

III) A entrevista que Laura Perls concedeu a Dan Rosemblatt, que existe em vídeo, de onde tirei algumas cenas para mostrar a vocês, e que também está editada no Volume XIV, nº 1 (1991) do The Gestalt Journal, que também é responsável pela distribuição do vídeo. Parece que, no vídeo, a entrevista está inteira, o que agradecemos aos senhores editores.

IV) recomendo ainda o pequeno texto da própria Laura, “A Talk for the 25th. Anniversary”, vol. XIII, nº 2, do The Gestalt Journal.

Neste Congresso, estamos comemorando o 100º aniversário do nascimento de FREDERICK SOLOMON PERLS, sem cujas geniais intuições acontecidas a partir do conhecimento filosófico/psicológico/psicoterapêutico da época – o processo de criação e desenvolvimento da Gestalt-Terapia dificilmente teria ocorrido. Sendo ele, portanto, um dos principais responsáveis por estarmos aqui.

Vamos a ele

[...que cada modo de sermos é parte de nosso Self fracionado. Isso é tão importante que gostaria de reformular outra vez: Nós somos como temos que ser: pessoas fracionadas, pessoas divididas em pedaços e peças. Não tem sentido analisar esses pedaços e peças e cortá-los mais ainda.

O que queremos fazer em Gestalt Terapia é integrar todos esses pedaços e partes rejeitadas e alienadas do Self e fazer da pessoa um todo novamente.

A pessoa como um todo é a pessoa que funciona bem, que pode confiar em seus próprios recursos e pode assumir o seu crescimento.

2ª parte:

A Gestalt é diferenciada em Figura e Fundo e a relação entre a Figura e o Fundo é chamada de significado.

Em outras palavras, de acordo com a minha idéia, assim que você tira algo do seu contexto, esse algo perde o seu significado ou distorce esse significado.

Agora, esse relacionamento entre figura e fundo aplica-se muito ao EU. O Eu é um símbolo de identificação. p. ex., a expressão: “Eu não estou com fome”.

Tome o contexto: estou com muita vontade de comer e visito uma pessoa a respeito de quem me sinto muito hostil. Não quero aceitar a sua hospitalidade.

Ela diz: – “Você gostaria de comer alguma coisa?”

Respondo: – “Não estou com fome”. É mentira!

Agora, vamos assumir que vamos sair para almoçar e ela diz: -“Você gostaria de algo mais do almoço?”

R: – “Não estou com fome.”

Mentira também. Você se identifica com o seu ódio. O Eu é um símbolo de identificação.

Se digo EU, posso identificar-me com o papel que desempenho, ou com o meu computador, ou posso identificar-me com o meu Self autêntico.

Assim, o EU principalmente indica a função de identificação com.

Isso se aplica ao tratamento da neurose: a neurose é a parte alienada da Personalidade. Se nos identificamos com essas partes alienadas poderemos, então, estar prontos para assimilar essas velhas partes e crescer novamente, nos tornando um todo.]

FIM DA IMAGEM DE FRITZ

Entretanto, hoje, para entendermos melhor a GESTALT TERAPIA, estamos levando em conta não só as geniais intuições e “sacações” de Fritz Perls, verdadeiro inovador, abridor de picadas, de horizontes novos que, inegavelmente, foi – mas também o trabalho paralelo, incansável, de sua companheira, LAURA, que compartilhou com ele, desde a primeira hora, desde os tempos em que estudaram esse assunto na Alemanha, desde a África do Sul, onde viveram 13 anos “isolados” dos seus mestres e companheiros de questionamentos da Alemanha e onde aconteceram os primeiros insights e onde “tudo era comunicado completamente” entre os dois, sendo, pois, impossível separar “quem pensou primeiro o que”, como diz Laura, e vocês verão logo a seguir. Não esqueçamos que esse isolamento foi agravado pela guerra.

Entra Laura:

[Penso que as pessoas fazem muito o quê desejam fazer.

Acho que tive alguma influência nos últimos anos aqui na Costa Oeste com pessoas que eram simplesmente “Fritzens”, pessoas que só imitavam, não sabendo nada a não ser ver a si próprias ou se auto-intitularem Gestalt Terapeutas.

Jim: Você diz que esse modelo é específico da costa oeste; a costa leste é diversificada com um número de pessoas e a costa oeste é muito mais estreita...

Laura: É. Alguém como Isadore é mais orientado para a prática....

{Cuidado! Essa é a afirmação de uma pessoa que já na década de 20 estudava Filosofia com Tillich, Buber e outros em Frankfurt, um dos centros culturais mais respeitados na época. Nota do tradutor}

Laura entrevistada por Dan Rosemblatt: (1984)

Laura: Tudo era falado. É muito difícil dizer agora quem é responsável pelo que. Penso que a influência de Paul Goodman era muito importante e penso que sem ele não haveria absolutamente uma teoria coerente de Gestalt Terapia. (ênfase acrescentada)

D: Há outro aspecto fecundo da GT sobre o qual sempre pensei e que estou interessado em como foi desenvolvido: “O reconhecimento de que a resistência é uma parte criativa da Personalidade”.

L: Originalmente, considerava-se que ela assistia alguma coisa. E o que ela assiste? Para que é boa? O que ela faz por você? Ou, o que ela talvez tenha feito por você em uma época e agora não faz mais?

D: De quem era o conceito? Como se desenvolveu? Você pode lembrar-se disso? Penso que a natureza criativa da resistência e a forma de trabalhar com ela é um dos aspectos revolucionários do tratamento em Gestalt Terapia.

L: Realmente não me lembro. O trabalho era comunicado tão continuamente entre nós (Ela e Fritz) que não posso lembrar-me de quem pensou antes o que.

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L: (Paul Goodman) era um homem do Renascimento, um dos raros feitos na América. Aqui as pessoas usualmente não têm a educação e base para conhecimento de línguas, e filosofia, e modos diferentes de pensamento, e arte, e antropologia, e música. Paul possuía tudo isso em funcionamento integrado.

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(Dos 55`20” a 1:05`44” da entrevista gravada há um pulo na edição escrita: CENSURA?, de quem? É exatamente o momento em que ela fala da personalidade de Perls. Isso o desqualifica para ser censurado? Ou nós, leitores, não temos capacidade para julgar e, por isso, os editores julgaram por nós? Essa atitude é gestáltica?).

L: De alguma forma, a GT é um processo anarquista no sentido de que não se conforma com regras e regulamentos pré-estabelecidos. Não tenta ajustar a pessoa a um determinado sistema, mas ajustá-la ao seu próprio potencial criativo. (ênfase acrescida).

D: Bem, o que você pensa sobre a Gestalt-Terapia tornar-se um introjeto?

L: Estou tentando trabalhar contra isso onde quer que eu possa. A Gestalt-Therapy está em perigo de tornar-se um gestalt fixada, particularmente aqui (por “aqui”, Laura quer dizer os EUA? ou a Costa Oeste?)

D: Você antes mencionou Tillich e Buber...

L: Eles estavam interessados em gente, não falavam de objetos. Ouvindo Tillich ou Buber, você sentia que estavam falando diretamente para você e não apenas falando sobre uma coisa. A ESPÉCIE DE CONTATO QUE FAZIAM ERA ESSENCIAL EM SUAS TEORIAS. (ênfase acrescentada)].

Outra figura, cuja importância para a Gestalt-Terapia cresce a cada dia através do reconhecimento de todos os estudiosos de nossa abordagem é a de Paul Goodman. Vide o que dele fala Laura Perls, logo acima.

Resumindo: o tripé que deu sustentação para a decolagem da GESTALT-TERAPIA é constituído pelo gênio inovador, irreverente e irrequieto de FRITZ; pela paciência, capacidade de construir e cultivar amizades duradouras, de solidificar idéias, da “construtora de ninhos”, LAURA; e pela grande capacidade teórica de PAUL GOODMAN, homem de vasta cultura geral, verdadeiro “homem da Renascença”, como vocês viram e ouviram Laura dizer.

São esses três, portanto, os principais responsáveis por estarmos aqui.

Entre os que deram continuidade ao trabalho, quero destacar, além de PAUL WEIZ, a quem Laura chama de “europeu”; ISADORE FROM, que dedicou quase duas décadas dando cursos de esclarecimento sobre o nosso livro básico “THE GESTALT THERAPY”, de GOODMAN e de FRITZ (com LAURA sempre na sombra, influenciando), que nos é apresentado também com o nome de HEFFERLINE que, parece, possibilitou a sua publicação.

Mais recentemente, GARY YONTEF e finalmente LYNNE JACOBS e o associado da Gestalt-Terapia, RICHARD HYCNER, ambos resgatando, retomando, as idéias de BUBER, idéias e presença, forma humana de se comunicar, tão importante na formação do casal PERLS, principalmente de Laura, que foi sua aluna nos anos 20, como vimos acima em suas próprias declarações.

Quanto ao meu estilo de contador de histórias e em relação às origens da Gestalt-Terapia, vou começar, como já é minha marca, dando uma de caranguejo, ou seja, voltando atrás em busca da sua pré-história.

Ou melhor, explorar um pouco o momento histórico que a antecedeu e que propiciou a geração das idéias mães, ainda hoje revolucionárias, às quais a Gestalt-Terapia está umbilicalmente atrelada.

O filme/entrevista de Laura/Rosemblatt ajudou-me bastante nessa tarefa tão negligenciada.

A idéia, assumida ou não, mas que está aí, de que somos geração espontânea, não resiste ao menor exame que se faça do ambiente/clima/momento histórico em que Fritz e Laura foram formados. Não existe isso. Todo movimento cultural, de qualquer espécie, é produto de uma certa maturação, necessita de um solo, de um determinado estado de prontidão propiciado pelo seu momento histórico, a fim de que possa ser intuído, bolado; enfim, para que possa vir à luz. Surpreende-me que, diante da obviedade gritante desse fato, ainda se queira entender a Gestalt-Terapia sem contextualizá-la no tempo e no espaço em que surgiu.

Essa prontidão geralmente surge primeiro nos trabalhos artísticos. Parece que a intuição artística freqüentemente antecede as grandes descobertas filosófico/cientificas. Mas, dificilmente o artista pode explicar e muito menos transmitir e sistematizar suas intuições.

O maior exemplo que posso encontrar de uma visão de mundo como a nossa e anterior à elaboração dos grandes pensadores, é o do poeta Fernando Pessoa. É tão marcante em sua obra a diferença entre os mundos em que cada um vive em função das diferenças perceptivas de cada um em cada momento, que se dividiu em quatro para assinar a sua obra. Gosto de dizer que os poemas assinados por ele quando se sentia Alberto Caieiro, foram escritos quando a sua visão de mundo era gestáltica.

Acho que dificilmente podemos discernir na contribuição de Frederick Solomon Perls, o que veio da intuição do artista daquilo que veio do cientista/pensador. Essa figura híbrida, essa capacidade de cavalgar em dois mundos de nosso grande mestre, é que nos legou a visão de Gestalt-Terapia mais difundida em todo o mundo. Por um lado, geniais intuições que, entretanto, para serem elaboradas teoricamente, careciam paciência e obstinação do pensador, aquele tipo de personalidade capaz de debruçar-se exaustivamente e, depois, começar tudo de novo, a respeito de todas as questões que se lhe deparam. Tal não era certamente o caso de Fritz Perls:

Laura nos diz:

“O gênio de Fritz estava em seus insights intuitivos, em suas incríveis sacações que, então, teriam que ser substanciadas com elaborações mais exatas. Fritz muitas vezes não tinha a paciência requerida por este trabalho de detalhe”.

A feliz imagem de Jean é a de que Perls seria um desbravador, uma espécie de abridor de picadas que, depois, seriam ampliadas, pavimentadas por outros.

Sobre esse caráter irrequieto e genial, impaciente e inovador de Fritz, hoje temos mais e mais informações que nos ajudam a entender o tanto que nos legou e alguns problemas que nos criou.

Existem textos sobre isso e, em Brasília, fizemos ano passado, um Seminário sobre as diferenças de personalidade dele e de Laura e o que a Gestalt-Terapia ganhou com isso.

É claro que essas diferenças de caráter também provocaram alguns equívocos.

Finalmente, vamos à nossa Pré-História: Para entendermos um pouco melhor o que está acontecendo com a evolução das psicoterapias hoje, é indispensável estudarmos a evolução dos paradigmas utilizados para tentar definir o que seja o ser humano e, a partir daí, pesquisarmos as possibilidades de atuar sobre ele, bem como as limitações dessa pretensão. Limitações e dificuldades que se acentuam em abordagens como a nossa, cujo paradigma científico/filosófico ainda luta com resistências de toda ordem, notadamente as caracteriológicas.

No caso específico da Gestalt-Terapia, acrescente-se a agravante muito pouco ou nada estudada de sermos uma abordagem essencialmente européia, desenvolvida nos Estados Unidos. A subestimação das profundas diferenças dessas culturas nos é denunciada pela Antropologia. Lembremo-nos de que Laura chamava de “europeu” ou de “homem da Renascença” aos dois Paul (Weiz e Goodman), raríssimos na América.

Outra agravante: nós psicólogos, devido à ênfase que se deu por tantos anos ao “intra”, em geral, ainda somos negligentes ou ignorantes em relação à força das diferenças culturais.

Com o objetivo de apenas pincelar o problema, voltemos aos últimos anos do século passado (e primeiros deste), quando a maioria das opiniões se dividia (como ainda acontece até hoje) entre duas posições igualmente essencializadoras, que simplificadamente poderíamos chamar de subjetivistas e de objetivistas. Guerra velha, muito mais velha do que isto, mas que se acentuou no período citado.

A novidade surgida no período foi a visão (e intenção) proposta pelos chamados defensores da 3ª força e sistematizada pelo matemático/filósofo, Edmund Husserl, o “fundador da Fenomenologia no sentido moderno”, que, diretamente (através dos psicólogos da Gestalt e, principalmente de Kurt Goldstein – mestres de Laura e de Fritz Perls) e indiretamente (através de toda a cultura européia da época) influenciou os principais criadores da Gestalt-Terapia, que nasceram, cresceram e se formaram nesse período, nesse clima de riquíssima ebulição cultural.

Movimento essencialmente cultuador da liberdade e que, por isso, foi desbaratado pelo nazismo. Por sinal, é sempre bom lembrar que qualquer tipo de nazismo ainda remanescente em nós mesmos é alérgico a essa postura e surdo aos seus postulados que lhe são ameaçadores, o que, obviamente, dificulta, e mesmo impede, o seu entendimento.

Sobre esse clima de ebulição cultural, diria mais tarde Maurice Merleau-Ponty (1973): “Podemos dizer que tudo o que se fez na Alemanha, a partir de 1915/1920, estava, direta ou indiretamente sob a influência da Fenomenologia, e os cursos de Husserl bastavam para explicá-lo” (p. 20).

Como se trata de visão extremamente rica do ser humano e do mundo, ela espalhou-se meio desordenadamente por todas as áreas da cultura e hoje se apresenta com um sem número de nomes e caras, às vezes até antagônicas, o que vem se constituindo em mais um grave fator de dificultação e mesmo de impedimento para a compreensão de sua essência.

Para nosso uso e proteção contra os labirintos em que podemos nos embrenhar, evitamos o detalhamento dessas múltiplas caras (o que, para ser feito com competência e profundidade, talvez ocupasse o resto de nossas vidas) e, com essa postura “econômica”, extrair desse movimento o que nos interessa mais de perto, deixando o detalhamento para os especialistas, os filósofos.

E, indiscutivelmente, a grande marca dessa novidade e a que mais nos interessa, é o resgate tanto do subjetivismo que o objetivismo solapava, quanto o objetivismo, por sua vez, solapado pelo subjetivismo.

Com isso, houve uma substituição da disjuntiva “ou” pela aditiva “e”. Na Gestalt-Terapia essa substituição é fundamental, tanto para os fundamentos teóricos como para o trabalho clínico. Veja-se, por exemplo, o nosso trabalho de integração de polaridades.

Passou-se, assim, a encarar o real como produto do encontro de ambos. O Ser só pode ser pensado em relação, em contato.

Esse paradigma é tão revolucionário que até hoje provoca reações, por vezes violentas, em quase todos nós. Não parece “científico”, e realmente não o é, se avaliado por outros paradigmas que não os existenciais/fenomenológicos.

A sociedade não quer e talvez não possa assumi-lo em sua radicalidade. Nós também resistimos, porque adotar esse paradigma nos tornaria incomodamente responsáveis por muitas coisas que preferimos atribuir a outras causas ou pessoas: não toleraríamos possíveis feridas narcísicas advindas da assunção de certos comportamentos como nossos.

O primeiro paradoxo que temos de enfrentar para entender melhor e integrar esses conceitos é que, conforme o próprio conceito que pregamos, somos seres de relação e em relação; portanto – em grande medida –, produto delas e que, entretanto, precisamos desenvolver nossa individualidade nessas relações; geralmente tendo que nos adaptar a contextos pouco ou nada favoráveis e estranhos.

A nossa “bíblia”, o The Gestalt Therapy, nos diz que: “O conflito entre o indivíduo e a sociedade é genuíno” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951, p. 1-2).

Essa postura, esse RESGATE do subjetivismo e do objetivismo trouxe-nos ao ponto de vista holístico.

Visão relativamente fácil de entender racionalmente, e dificílima de engolir em toda a sua radicalidade, porque praticamente nos põe de “cabeça para baixo” e em confronto direto com a sedimentação cultural onde estamos submersos. Recorro-me novamente ao The Gestalt Therapy (Perls, Hefferline & Goodman, 1951, p. 6) quando nos diz: “Os erros teóricos fundamentais são invariavelmente caracteriológicos... e não são refutados”. Aí, nessa impossibilidade de refutação, vislumbro a raiz do problema e começo a compreender a dimensão da dificuldade de superar esses “erros fundamentais”.

Além dessas dificuldades, como todas as revoluções, essa nossa também é demorada e dolorosa e, por isso, ainda está em andamento. Aliás, estar em perene andamento é um dos imperativos fundamentais dessa inversão, desse paradigma tão diferente a que nos referimos. Não estar em andamento é fixação de gestalten, conforme preocupação exposta por Laura, acima.

As implicações e desdobramentos dessa inversão radical ainda estão longe de ser esgotadas, tanto pelo choque revolucionário que propõe como, principalmente, pelas resistências que provoca.

Esse resgate, essa visão holística, integrada, do Universo e de nós mesmos como partes inalienáveis dele é o que precisamos entender radicalmente para compreendermos a GESTALT TERAPIA. Para isso, não temos necessidade de nos tornarmos filósofos. Precisamos apenas (apenas?) entender a radicalidade dessa visão, dessa postura existencial, dessa forma resgatada, dessa “(...) abordagem original, não deturpada e natural da vida...” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951, p. 32) de ser-estar-no-mundo.

Bem, como vimos, foi nesse ambiente, nesse clima, que surgiram as figuras de Fritz, de Laura e de Paul Goodman, que também estudou o pensamento alemão, que também freqüentou os cursos da época e se empolgou com as idéias que lá se discutiam com paixão e entusiasmo.

Obrigado, Recife 07/1993

Versão “levemente” atualizada, Brasília, 11/07

 

Referências Bibliográficas

Merleau-Ponty, M. (1973). Ciências do Homem e Fenomenologia, São Paulo: Saraiva.        [ Links ]

Perls, F.S.; Hefferline, R. & Goodman, p. (1951). Gestalt Therapy. New York: Julian Press.

Rosenblatt, D. (1991). An Interview with Laura Perls, The Gestalt Journal, v. XIV, n. 1.

Rosenblatt, D. (1991). An Interview with Laura Perls [Filme-Vídeo]. The Center for Gestalt Development, Inc. – p. O. Box 990, 12528-0990 - Highland, New York.

 

 

Recebido em 16.09.07
Aceito em 08.11.07

 

 

Walter Ferreira da Rosa Ribeiro - Psicólogo e um dos pioneiros da Gestalt-Terapia brasileira. É fundador e coordenador do Centro de Estudos de Gestal-Terapia de Brasília (Cegest).

1Texto originalmente apresentado no IV Encontro Nacional de Gestalt-Terapia e I Congresso Brasileiro de Abordagem Gestáltica, Recife, 1993.

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