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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.2 Goiânia dez. 2007

 

ENSAIOS

 

Configurações familiares - um novo paradigma1

 

Familiar configurations – a new paradigm

 

Configuraciones familiares – un nuevo paradigma

 

 

Marta Carmo

Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta deste ensaio é refletir acerca das configurações familiares tendo em vista a relação entre indivíduo, família e sociedade, além de tecer algumas considerações a respeito do papel do psicólogo nesse contexto. Retoma-se o momento sócio-histórico contemporâneo, o qual é pautado por diversidade e multiplicidade e com tendência para a intolerância às diferenças. Resgatam-se eventos de intolerância às diferenças e propõem-se algumas questões, na tentativa de compreender a temática. Por fim, pondera-se sobre o tipo de atitudes geradas na família e a importância senso de pertencimento à família e à sociedade como promotor da convivência amorosa.

Palavras-chave: Família, Sociedade, Convivência Amorosa.


ABSTRACT

The scope of this essay is to reflect upon familiar configurations concerning the relationships amongst individual, family and society; besides making some considerations on the role of the psychologist in such context. The contemporary social-historic moment is considered, based on diversity and multiplicity, and tending to intolerance towards differences. Events of intolerance towards differences are recalled, and some questions are proposed, aiming to comprehend the theme. Finally, there is an argument on the kind of attitudes generated in the family and the importance of the sense of belonging into the family and society as a promoter of loving husbandry

Keywords: Family, Society, Loving Husbandry.


RESUMEN

Este ensayo propone reflexionar sobre las conformaciones familiares teniendo en cuenta la relación entre individuo, familia e sociedad, además de tejer algunas consideraciones respecto al rol del psicólogo en ese contexto. Se retoma el momento socio histórico contemporáneo, el cual, es pautado por diversidad, por multiplicidad y con tendencia a la intolerancia de las diferencias. Se rescatan situaciones de intolerancia a las diferencias y se plantean algunas cuestiones intentando comprender la temática. Para concluir, se ponderan los tipos de actitudes generadas en la familia y la importancia del sentido de pertenencia de la familia y de la sociedad como promovedoras de la convivencia amorosa.

Palabras clave: Familia, Sociedad, Convivencia Amorosa.


 

 

Ao considerar o processo histórico da humanidade, pode- se constatar a emergência de novos paradigmas no que concerne às relações humanas, e, mais especificamente, às relações íntimas vividas por casais e famílias. A expansão da comunicação, o encurtamento das distâncias físicas e os avanços tecnológicos promoveram a eliminação de muitas fronteiras e possibilitaram formas variadas de encontro entre as pessoas (Perel, 2002; Osório, 1996).

Além disso, observa-se a contemporaneidade alicerçada em um momento sócio-histórico pautado por diversidade e multiplicidade. McGoldrick (2003) faz um alerta para a intolerância da sociedade em relação à diversidade, o que constitui uma ameaça à sobrevivência da civilização.

Não é necessário debruçarmo-nos em pesquisas para compreender as palavras de McGoldrick (2003). Basta evocarmos fatos recentes, como a agressão sofrida pela empregada doméstica que fora espancada no ponto de ônibus por ser confundida com uma prostituta – explicação dada pelos agressores para minimizar o delito. Mais próxima de nós ainda, ocorreu em Brasília, há alguns anos, uma forma de violência que não se apaga de nossa memória – o ataque ao índio Galdino por adolescentes que puseram fogo em suas roupas, provocando a sua morte.

Não é preciso citar mais exemplos, para perceber que nossa sociedade tem gerado pessoas intolerantes. Surge então a pergunta – o que isso tem a ver com a temática proposta para esta mesa? Posso começar a reposta, afirmando que não há como falar acerca de configurações familiares sem resgatar as relações entre indivíduo, família e sociedade que tecem o contexto social que vivemos. Nesse sentido, um evento só pode ser compreendido em um determinado contexto, à medida que se procura o resgate das conexões e das relações entre os diversos elementos do campo (Zinker, 2001).

Uma segunda questão aparece – como a psicologia, como ciência, pode contribuir nesse contexto tão complexo?

Vou começar a responder a essa questão com base em análises de um psicólogo e de um filósofo, que contribuíram de alguma forma para o questionamento da relação ciência-homem. Retomo primeiramente Vygotsky (1999), que em 1927, em seu texto clássico – O significado histórico da crise na psicologia – faz uma crítica à metodologia utilizada pela psicologia. Ressalta o autor que tudo que existia na época deixava de lado a questão fundamental do ser humano, pois as posições assumidas privilegiavam ou a maturação ou o contexto, o que se traduz na perda do ser humano, em sua totalidade. Em 1936, Husserl (1996) em A crise da humanidade européia e a filosofia critica a ciência européia, que refletia a crise do homem europeu, consolidada pela perda do sentido da ciência para a vida humana.

A própria história nos alerta que muito já foi realizado na tentativa de compreender o homem no contexto da totalidade e que, muitas vezes, a totalidade foi deixada de lado, relegada a um segundo plano. Lewin (1973) destaca a importância de compreender um comportamento em relação ao meio que o circunda, ou seja, no campo. Assim, o autor afirma que “toda psicologia científica deve tomar em conta situações totais, isto é, o estado da pessoa e do meio ambiente” (p. 29).

A totalidade na relação familiar inclui cada um dos componentes dessa relação, o campo relacional em que as interações acontecem e o contexto amplo. As interações não ocorrem de formas simplistas como uma simples adição de elementos; trata-se de uma relação complexa em que a totalidade dos fatos tem relevância (Zinker, 2001).

Na formação da família, há a intersecção de vários campos, o que requer a reorganização de cada indivíduo, e uma configuração do espaço relacional ocorre de forma dinâmica ao longo do tempo. A compreensão do espaço relacional é favorecida caso sejam considerados os elementos históricos da origem da família, dos ancestrais e próprio processo histórico da humanidade.

Nesse sentido, no decorrer da história, os conceitos de casal e de casamento foram mudando. Na era medieval, o casamento era grupal (Engels, 1884/1996) e, desde então, a família sofreu transformações até chegar ao modelo de família nuclear constituído pela sociedade burguesa e que exerce influência mesmo nos dias atuais, em que já se fala de famílias constituídas em redes (Vaitsman, 1994).

As famílias em rede, a que Carter e McGoldrick (1995) se referem, apresentam configurações complexas, advindas do recasamento, que implica o entrelaçamento de três, quatro ou mais famílias. Os membros da família passam então a organizarem-se em uma nova constelação.

O desafio da psicologia, e de nós, psicólogos, nesse momento, é lidar com um mundo, que, de acordo com Schnitman (1996), é ao mesmo tempo caótico, rico em evoluções imprevisíveis, de formas complexas e fluxos turbulentos, caracterizado por relações não-lineares.

Como podemos atuar como psicoterapeutas de família nesse contexto tão complexo e que gera, de forma recursiva, configurações familiares também complexas? Nossa percepção das configurações familiares precisa dar um salto qualitativo, o que significa que temos que abandonar nossa visão tradicional de família – branca, heterossexual, de classe média e de apenas um casamento.

Assim, a família e seu papel estão sendo redesenhados à medida que as pessoas se relacionam com os diversos contextos no qual a família se constitui e é constituída. Não se trata mais da família tradicional, com pais, mãe e filhos. Existem diversas configurações familiares – apenas um genitor, mães solteiras, homossexuais com filhos, etc.

Ante essa diversidade de desenhos, faz-se necessário pesquisar o que está sendo gerado no seio dessas famílias. Fica a constante pergunta – até que ponto essas famílias têm conseguido manter a sua singularidade como família e possibilitado a individuação de seus membros, favorecendo a construção de uma sociedade mais saudável?

Por outro lado, parece um contra-senso que, embora se reconheça a importância da família como um espaço privilegiado de práticas socializantes (Ferrarri & Kaloutian, 1998; Sousa & Peres, 2002), percebe-se, ao mesmo tempo, quão tímidas e pouco numerosas são as pesquisas brasileiras, bem como as de outros países, que se ocupam em discutir questões ligadas ao tema de casal ou família, sobretudo, quando se referem ao processo do desenvolvimento interpessoal.

Não podemos negar a importância da família como alicerce das relações interpessoais, pois os primeiros contatos que temos com o outro são realizados no seu espaço. Esse contexto pode favorecer ou empobrecer a pessoa, uma vez que somos seres interativos por excelência.

Se nesse ambiente são fomentadas atitudes competitivas e individualistas, como as praticadas em larga escala na sociedade contemporânea, a qual constitui e é constituída pela família, existe uma grande possibilidade de que sejam geradas pessoas solitárias e com baixa capacidade de interação. Dessa forma, o homem distancia-se de sua essência interativa e põe em risco as relações de intimidade.

Por outro lado, se a família é capaz de co-construir interações promotoras do senso de pertinência, ou seja, se as pessoas que participam da configuração familiar se sentem pertencentes a ela e capazes de estabelecer um mundo mútuo, o processo relacional segue por outras vias. Esse tipo de interação apresenta a fluidez, a transformação e permite que cada membro da relação atualize potencialidades, viabilizando a emergência de novas possibilidades que, por sua vez, produz mobilidade na relação.

O resgate do senso de pertença, iniciado no seio da família, pode ter alcances inimagináveis em um primeiro momento. Tenho aqui a ousadia de dizer que se abre a possibilidade de que esse senso de pertença se alargue de tal forma, que possamos nos sentir pertencentes a uma configuração familiar muito maior, que nos sintamos pais, mães e irmãos do universo. Se nos incluímos nesse tipo de configuração, passamos a considerar a humanidade do outro – a doméstica, o índio, a prostituta, o filho do meu pai, ou da minha mãe com outro parceiro ou parceira. Todos passam então a serem considerados com o respeito que tem direito.

Sejam quais forem as configurações familiares e os paradigmas decorrentes, nós, psicoterapeutas, precisamos pautar nosso trabalho pelo resgate dessa essência interativa do homem. Ao valorizar o que diferencia o homem dos outros animais, não corremos o risco de perder sua totalidade, pois podemos acessar as diversas dimensões do homem em sua complexidade, ou seja, a sua vinculação com tudo e o todo que compõem o seu mundo.

Ao escrever A terapia para uma convivência produtiva e amorosa, Petrelli (1999), destaca o que possibilita o estabelecimento de vínculo entre as pessoas e que se resume a duas dimensões: “Concorrer para a dimensão de uma obra físico-cultural e concorrer para a construção de uma relação de amor com alguém em particular ou com todos universalmente considerados...” (p. 59).

Petrelli (1999) teoriza a respeito de quatro traços que considera os fundamentos de todas as formas de convivência: a tolerância, que implica suportar e aceitar as diferenças; o respeito pelo espaço físico e psíquico do outro; a estima, que significa contemplar, valorizar, encantar, sentir prazer, sentir-se mobilizado pela expressão da experiência, pelo crescimento psíquico e pela evolução espiritual; e a solidariedade no compartilhar fracassos e sucessos do e no processo de convivência.

A plenitude das relações ocorre à medida que as pessoas se diferenciam e conquistam sua identidade única perante o outro. Nesse sentido, ocorre a superação da manipulação do outro, tão comum na sociedade atual, a qual degenera o convívio e o torna uma mera co-existência.

Segundo Caruso (1989), “Talvez não haja exagero em dizer que amar alguém para modificá-lo significa querer assassiná-lo” (p. 284). Pode-se concluir que o verdadeiro amor permite à pessoa ser o que ela pode ser, e inclui a capacidade de amá-la da forma tal qual ela se apresenta.

Assim, a relação liberta-se da objetividade impessoal da sociedade que atribui às pessoas uma constitucionalidade unilateral. Além disso, entre os envolvidos na relação, surge a capacidade de re-ligarem-se e se integrarem. Ampliamos desse modo, a possibilidade de uma sinergia e de solidariedade, bem como uma forma de convivência em que se respeita o outro e tudo que existe e vive.

Esses fundamentos constitutivos das formas de convivência favorecem a relação por patrocinar o calor da intimidade e da confiança, ou seja, amplia o vínculo relacional e possibilita a emergência de facetas inimagináveis de convivência amorosa, em qualquer tipo de configuração relacional, incluindo a familiar.

 

Referências Bibliográficas

Carter, B. & Mcgoldrick, M. (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.

Caruso, I.A. (1989). A separação dos amantes: uma fenomenologia da morte. São Paulo: Diadorim: Cortez.

Engels, F. (1884/1986). A família. In: F. Engels. A origem da família da propriedade privada e do estado. (pp. 63-125). São Paulo: Global.

Husserl, E. (1996). A crise da humanidade européia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS.        [ Links ]

Ferrari, M. & Kaloustian, M.S. (1998). Introdução. In: Kaloustian, M.S. (Org.). Família brasileira, a base de tudo (pp. 26-46). São Paulo: Cortez; Brasília: UNICEF.

Lewin, K. (1973). Princípios de psicologia topológica. São Paulo: Cultrix.

Mcgoldrick, M. (2003). Novas abordagens da terapia familiar: raça, cultura e gênero na prática clínica. São Paulo: Roca.

Osório, L.C. (1996). Família hoje. Porto Alegre: Artes Médicas.

Perel, E. (2002). Uma visão turística do casamento. In: Papp, p. (Org.). Casais em perigo: novas diretrizes para terapeutas (pp. 194-217). Porto Alegre: Artes Médicas.

Petrelli, R. (1999). Para uma psicoterapia em perspectiva fenomenológica-existencial. Cadernos didáticos, 11. Goiânia: Editora da UCG.

Sousa, S.M. & Peres V.L.A. (2002). Famílias de camadas populares: um lugar legítimo para a educação/formação dos filhos. In: I.R.C. Barker & M.H. Zamora (Orgs.). O social em questão. Rio de janeiro: PUC.

Schnitman, D.F. (1996). Introdução: ciência, cultura e subjetividade. In: Schnitman, D.F. (Orgs.). Novos paradigmas cultura e subjetividade (9-21). Porto Alegre: Artes Médicas.

Vaitsman, J. (1994). Flexíveis e plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós modernas. Rio de Janeiro: Rocco.

Vygotsky, L.S. (1999). Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes.

Zinker, J.C. (2001). A busca da elegância em psicoterapia: uma abordagem gestáltica com casais, família e sistemas íntimos. São Paulo: Summus.

 

 

Endereço para correspondência
Marta Carmo
E-mail: martacarmo@terra.com.br.

Recebido em 06.10.07
Aceito em 18.11.07

 

 

Marta Carmo - Psicóloga, Especialista em Gestalt-terapia pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT), Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Católica de Goiás (UCG), Professora do Curso de Especialização em Gestalt-terapia e Coordenadora do Curso Introdutório de Gestalt-terapia no ITGT, e psicoterapeuta na Alter Consultórios de Psicologia.

1Mesa-redonda promovida pelo Conselho Regional de Psicologia 9ª Região – GO/TO, no período de 23 a 25 de agosto de 2007, em comemoração ao Dia do Psicólogo.

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