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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.2 Goiânia dez. 2007

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

Le temps vécu

 

(Études phénoménologiques et psychopathologiques)

 

Prólogo

 

 

Eugène Minkowski (1933)

 

 

 

O problema do tempo e do espaço é o problema central da psicologia, da filosofia, e diria mesmo, de toda a cultura contemporânea. Responsável por profundos conflitos em nossa existência, ele deve necessariamente ser examinado de perto por cada um de nós.1

A técnica, por de suas descobertas, busca vencer o tempo e o espaço. Felizes por serem beneficiários do progresso que ela não cessa de realizar desse ponto de vista, não podemos nos sentir menos agradecidos em relação a ela. Entretanto, este sentimento de gratidão permanece incompleto. Freqüentemente nós nos sentimos invadidos por uma lassitude profunda, como se o ritmo da vida nos violentasse. É que este progresso se dá em detrimento de outros valores essenciais. Ir rapidamente não nos é suficiente. A expressão “barbárie científica” nos vem por vezes aos lábios, para designar um dos traços característicos de nossa época, e é com certa pena que pensamos então nas “lentidões” e nos ócios dos “bons tempos”. Sentimos crescer em nós a revolta; desejamos reconquistar nossos direitos sobre o “tempo”, direitos que a vida contemporânea parece nos arrebatar.

O que faríamos com esse tempo reconquistado? Mas, a bem dizer, esta questão realmente exige uma resposta? Não lhe basta a si mesma? Falta “saber” efetivamente o que será feito de seu tempo, para se dar conta do valor do “tempo livre”, desse tempo livre que não é nem sinônimo de repouso concedido aos nossos músculos e ao nosso cérebro esgotados, e menos ainda sinônimo de aborrecimento, mas que nos permite relaxar realmente, contemplar a vida que nos rodeia e nos confundir com ela, permanecer cara-a-cara conosco mesmos mergulhando nosso olhar até o fundo do nosso ser, de refletir enfim, sem que seja necessário precisar o objetivo dessas reflexões? Não, decididamente, não queremos dar resposta a esta questão, visto que respondê-la já é estabelecer um programa, é designar algo que pode ser feito mais ou mesmo rapidamente, é oferecer novamente o flanco aos progressos da técnica, é forjar um novo elo para a cadeia à qual nos sentimos aprisionados, é suspender enfim tudo o que há de imprevisto, de indefinido, de misterioso, de criativo no tempo livre no qual experimentamos com tanta necessidade.

A ciência aqui se encontra com a técnica. Procedendo por abstrações, ela coloca de lado uma grande quantidade de fenômenos que se mostram refratários ao pensamento discursivo. Ao aplicar ao tempo os mesmos métodos aplicados ao espaço inteligível, ela o priva de imediato, como mostrou Bergson, de todas suas riquezas naturais. E à medida que avança, à medida que formula leis mais e mais gerais, ela não faz mais do que se distanciar cada vez mais da fonte viva na qual teve sua origem, para alcançar ao fim das contas, concepções que não são mais do que a expressão derradeira desta “abstração” crescente em relação à vida real. Aqui também não se pode deixar de sentir a necessidade de voltar para trás. Os progressos da ciência exata, como os da técnica, nos enchem de admiração, mas não nos sossega. Cansados desse progresso, nós experimentamos o desejo de desviar nosso olhar tanto do ideal de rapidez e do tempo tomado até as bordas como da “quarta dimensão do espaço”, para fazer como marcha a ré, para voltar nosso olhar para... Mas para o quê queremos voltar nosso olhar? É aqui que devemos novamente desconfiar das respostas apressadas. “Para a natureza”, estaríamos tentados a dizer, com a reserva que esta fórmula não seja tomada ao pé da letra, que a necessidade de voltar atrás não seja substituída por um “programa” que tenha por objeto fazer renascer os “velhos tempos” ou regressar a uma vida mais primitiva; isso equivaleria a cair na própria armadilha; a “volta atrás” se veria dessa forma assimilada de golpe com o “passado” da história, sem que nem mesmo houvesse sido tentada uma análise do fenômeno do tempo, como se esta volta tivesse necessariamente que ter uma significação temporal. Na realidade, esse passado, quando era presente, não deve ter sido mais sedutor que o presente que nos obscurece e, creio, não falamos dos “velhos tempos” mais do que projetamos neles, sem nos darmos conta, o que o nosso presente parece recusar. Ademais – e este é seguramente o argumento mais importante – não seríamos capazes, em nenhum caso, de colocar nosso ideal, feito de criação e futuro, no passado; isso seria contrário a sua natureza. Não queremos negar, nem renunciar, nem destruir, nem retroceder; com isso daríamos novas provas de barbárie. Deste modo, o desejo de voltar atrás não pode significar para nós mais do que uma coisa: recuperar o contato com a vida e com o que ela tem em si de “natural” e de primitivo; voltar a sua fonte primeira da qual brota não somente a ciência, mas também todas as demais manifestações da vida espiritual; estudar de novo as relações essenciais, que primitivamente, antes que a ciências as tenha colocado em conformidade a seu modo, se dão entre os diversos fenômenos dos quais se compõe a vida; ver se podemos deduzir alguma coisa que todavia a ciência não tenha descoberto, sem cair, por isso, nem num naturismo primitivo, nem em um misticismo, com freqüência tão afastado da realidade como a ciência, tão “racionalista” nas imagens a que recorre. Queremos olhar “sem instrumentos” e dizer o que vemos. Esta tarefa, por outra parte e contrário ao que poderia parecer, é muito difícil.

Assim nasceram em nosso tempo, a fenomenologia de Husserl e a filosofia de Bergson. A primeira propôs como meta estudar e descrever os fenômenos que compõem a vida, sem deixar-se guiar ou limitar por nenhuma premissa em suas investigações, seja a que fosse sua origem ou sua aparente legitimidade. A segunda opôs, com uma ousadia admirável, a intuição à inteligência, o vivente ao morto, o tempo ao espaço. Não levou muito tempo a estas duas correntes exercer uma influência profunda sobre todo o pensamento contemporâneo. E eis que respondem a uma necessidade real e profunda do nosso ser.

Mais particularmente no que concerne ao tempo, nos ajudou a darmos conta que a conquista do tempo, longe de reduzir-se ao logro de alguns ócios suplementares, não podia consistir mais do que uma revisão crítica de nossa atitude com respeito a este fenômeno. Tão somente a este preço, parecia possível livrar-se da escravidão a que nos sujeitava a cultura moderna, com a idéia de tempo que nos impunha. Não se tratava de ter tempo livre, mas de aprender a viver e a avançar livre e espontaneamente no tempo. O problema do tempo, apesar de seu caráter abstrato, se convertia assim em um problema mais vivo, o mais pessoal para cada um de nós.

De minha parte, este problema era, desde há muitos anos, o ponto central das minhas preocupações científicas. Em julho de 1914, nas vésperas da mobilização, concluí um estudo sobre “Os elementos essenciais do tempo-qualidade”. A expressão “tempo-qualidade” demonstra em si mesma, a influência que a obra de Bergson exerceu sobre mim. Mais tarde, essa influência foi crescendo. Foi tão grande que, com freqüência, ao reler as obras de Bergson, encontrava pensamentos que acreditava serem meus e, mais de uma vez, pleno de dúvidas, me perguntei se em geral chegaria a acrescentar a elas algo de pessoal. O mesmo Bergson me ajudou a calar esses escrúpulos. “Uma filosofia desse gênero – escreve – não se fixa em um só dia. Diferentemente dos sistemas propriamente ditos, cada um dos quais foi obra de um homem genial a mais que apresentar-se como um bloco que há de aceitar ou rechaçar, ela não chegará a constituir-se mais do que por esforço coletivo e progressivo de muitos pensadores, de muitos observadores também que se completem, se corrijam e se enderecem uns aos outros”. Estas palavras me incitaram a perseverar em meu esforço.

O estudo que acabei de citar nunca veio a lume. A guerra, durante largos anos, relegou a último plano o pensamento filosófico. Se vivia uma vida fundamentada em valores completamente diferentes daqueles de tempos de paz e não era possível integrá-los. Não obstante, o pensamento filosófico não se extinguiu por completo. Às vezes, ao abrigo de uma trégua passageira, tratava de abrir-se passo. E assim, em 1915, eu esboçava dois estudos; um sobre “As características fundamentais do ímpeto vital” e outro, sobre “A Memória e o Esquecimento”; e, durante o inverno de 1916-1917, em um setor tranqüilo do Aisne, aproveitando um acampamento relativamente confortável, tratei de fixar os primeiros traços de um trabalho sobre a fenomenologia da morte. Por fim, depois do armistício, tratei de determinar um plano detalhado de uma obra mais importante, à qual me propunha intitular: “Como vivemos o futuro (e não o sabemos dele)”. Esta obra deveria ter por objeto o estudo sistemático dos fenômenos dirigidos para o futuro, e tanto de suas relações quanto do modo em que participam, em seu conjunto, na união do futuro vivido. Uma verdade fundamental se fazia cada vez mais clara para mim nestas investigações, a saber, o vínculo íntimo, para não dizer a identidade, que existe entre o futuro vivido, por um lado, e o ideal ou, se se prefere, a tendência ética para o bem e para o melhor, por outro.

Entretanto, todos os estudos ficaram no nível dos esboços. Durante a guerra, se esperava a paz; se esperava reiniciar a vida, de onde se havia deixado. Na realidade, se principiava um novo período de dificuldades, de decepções, de fracassos, de esforços dolorosos e, com freqüência, vãos para adaptar-se aos novos problemas da existência. Estava todavia muito longe de renascer a calma propícia ao pensamento filosófico. Sucederam à guerra, longos anos áridos e sombrios. Meus trabalhos dormiram para sempre no fundo de uma gaveta.

Este não é o lugar para estendermo-nos sobre o tema e os problemas psicológicos dos anos de guerra e pós-guerra. Peço perdão por esta digressão. Levou-me a ela o desejo de indicar alguns fatos de minha vida pessoal que, assim o creio, ajudarão a compreender melhor a gênese e orientação geral desta obra.

A guerra modificou profundamente a minha vida.

Havia terminado meus estudos médicos em 1909, mas – atraído pelos problemas filosóficos – me havia afastado cada vez mais da medicina; até o ponto de estar perto de abandoná-la por completo. A guerra me fez voltar à medicina e, em particular, à psiquiatria. Depois da guerra, as ocupações profissionais, os exames, os afazeres diários, me deixaram muito pouco tempo de ócio e ainda menos tempo de tranqüilidade espiritual. Não se podia nem pensar, diante destas circunstâncias, em philosophari. Meus estudos se dirigiram para questões de psiquiatria clínica e de psicopatologia. Os projetos de meus trabalhos sobre o tempo repousavam definitivamente em minha gaveta. Mas os pensamentos, reduzidos a prolongado silêncio, não queriam emudecer por completo; se agitavam como fantasmas, pareciam reclamar seu direito à vida, e foi assim que as noções psicopatológicas que tratava de pôr em relevo, como a de contato vital com a realidade, delatavam de plano uma grande afinidade com as concepções bergsonianas, o mesmo que o estudo das modificações que podia sofrer a noção de tempo nas distintas psicoses não cessava de reter minha atenção. Deixei assim que meus pensamentos se infiltrassem em minhas investigações psicopatológicas. O fiz, confesso, com certa vacilação. Os dados recolhidos anteriormente acerca do tempo não haviam jamais sido publicados, portanto, o intento de aplicá-los aos fatos psicopatológicos necessariamente carecia de base, por resultar fragmentário, incompleto e, em certas ocasiões, até incompreensíveis. Poderia, pensava eu neste momento, truncar o problema do Tempo ao baixá-lo, desde as “alturas” do pensamento filosófico, até o nível “inferior” dos fatos observáveis e, mais em particular, dos fatos patológicos.

Agora vejo as coisas de outro modo. Agradeço à vida por ter me obrigado a fazer este grande retorno. A psiquiatria aproxima-se da vida, pode servir de corretivo não ao pensamento filosófico, mas ao filósofo que a maneja; quando hoje me ponho a reler minhas notas anteriores à guerra, creio que corria o perigo de perder-me em especulações abstratas e irrealizáveis. Por outro lado, o fato mesmo de poder aplicar os dados gerais acerca do tempo aos dados psicopatológicos não somente não degrada em absoluto àqueles, como que, ao contrário, fazendo-os fecundos, os anima com nova vida. Estou convencido hoje, que toda uma série de manifestações psicopáticas podem ser compreendidas e aprofundadas sob o ângulo do fenômeno do tempo e de que a confrontação constante do normal e do patológico, considerados desde este ponto de vista, é o caminho principal, para não dizer o único, para estender suficientemente nossos estudos relativos a esse fenômeno.

O patológico, ao demonstrar-nos que o fenômeno do tempo e provavelmente também o do espaço se situam e se organizam na consciência mórbida diversamente a como os concebemos de modo habitual, põe em relevo as características essenciais de tais fenômenos, os quais, precisamente pela pouca distância que nos separa deles, passariam despercebidos ou não seriam considerados como naturais. A patologia, deste modo, veio a resultar para mim, não somente uma espécie de deságüe que me permitia dar-lhe saída, um pouco de contrabando, a minhas concepções originais, mas também um manancial precioso do que tenho podido perceber o melhor do quanto sei. Hoje já não poderia trabalhar de outra forma que como a vida me obrigou a fazê-lo.

Posso dizer o mesmo de outra grande mudança que ela me impôs. Por ter vivido e estudado durante muitos anos na Alemanha, ganhei o hábito de escrever em alemão. Depois da guerra, escrevo e penso em francês. Para realizar uma obra de conjunto, tive que traduzir minhas notas anteriores. “Traduzir” não é, por outra parte, a palavra apropriada. Dado que a língua não é um instrumento inerte, mas um organismo vivo, seria mais exato dizer “transpor”, quando se tratava de idéias gerais e pessoais. Frente às notáveis diferenças que se manifestam no campo do pensamento e de sua expressão, e que, à primeira vista, parece que se transformaram em barreiras, vemos com freqüência todo o assunto resolvido por uma oposição lapidária de qualificativos: “profundo” e “superficial”. Mas a vida se encarrega, às vezes, de clarear esse ponto. Então aprendemos a compreender que a pretendida “superfície” pode ter sua própria profundidade, enquanto que, por outro lado, a profundidade, levada mais além, corre o risco de converter-se no mais superficial. Seja como fosse, em meu caso, quando tratou de reunir em um todo os meus pensamentos e minhas notas, cheguei a me encontrar desde logo, frente a dificuldades tais que, mais de uma vez, estive a ponto de abandoná-lo todo. Entretanto, tratei de superar ditas dificuldades e hoje, como no caso da psicopatologia, me inclino mais para ver igualmente, nesta segunda mudança, uma vantagem mais do que um obstáculo.

Não obstante, uma evolução tão larga apresenta também alguns inconvenientes. Um se apega às idéias tanto quanto aos seres vivos, senão mais; por isso as vê desvanecer- se com pena; um não se resolve por abandoná-las de todo, ainda que se mostrem antiquadas; desde o momento em os acariciou em um momento dado e que tenham marcado uma etapa em nossa evolução pessoal, se tende a reservar-lhes um lugar na exposição, se as deixa penetrar apesar de tudo, com perigo que resulte menos límpida, mas sobrecarregada de detalhes que o que houvera devido estar.

Dessa forma, esta obra se compõe, em sua origem, de fragmentos díspares, que vêm a escalonar-se sobre uma vintena de anos. Inspirados, por uma parte, pelos problemas filosóficos, nascidos, por outra, do estudo dos problemas psicopatológicos, uns publicados já em forma de artigos, outros em repouso desde há anos entre meus papéis, esses fragmentos parecem constituir, à primeira vista, uma massa disforme e heteróclita. Esforcei-me para fundi-los em um todo e fazer com eles uma síntese; quero esperar que tenha logrado êxito, ao menos em parte.

Para designar este esforço de conjunto, havia pensado na palavra “cronologia”. Aqui haveria tido seu lugar preciso esta palavra. Mas o uso ordinário a emprega em um sentido totalmente distinto, um sentido, em cima, o mais trivial. Por isso renunciei a colocá-la à frente de minha obra. Mas talvez um dia possamos falar de “cronologia” no sentido próprio e profundo da palavra.

 

 

Tradução: Adriano Holanda

 

 

Eugène Minkowski (1885-1972) - É de origem judaico-polonesa. Nascido em São Petersburgo (Rússia), fez seus estudos de Medicina na Polônia e na Alemanha, tendo sido assistente de Bleuler em Zurich. Em 1922, na 63ª Jornada da Sociedade Suíça de Psiquiatria em Zurich, apresentou seu estudo sobre “Um Caso de Melancolia Esquizofrênica” que, juntamente com o artigo de Binswanger sobre a fenomenologia, no mesmo evento, são considerados os marcos da psicopatologia fenomenológica. Destacam-se dentre suas obras La Schizophrénie (1927), Le Temps Vécu (1933), Vers une Cosmologie (1963) e Traité de Psychopathologie (1966), dentre outras.

1 Publicado originalmente em 1933, Delachaux & Niestlé, Neuchâtel (Suisse).

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