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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.13 n.2 Goiânia dez. 2007

 

RESENHAS

 

 

Prof. Dr. Carlos Diógenes Côrtes Tourinho

Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

 

La phénoménologie, 1954
(Jean-François Lyotard)
Collection que sais-je? - 2007 – 14. ed. - p. U.F.

Dedicado à fenomenologia, o volume da coleção enciclopédica Que sais-je?, de autoria de Jean-François Lyotard, nos traz uma importante contribuição para aqueles que procuram uma obra capaz de introduzir, em poucas páginas, os fundamentos da fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938). A referida obra procura ainda, em um segundo momento, promover articulações da fenomenologia com as ciências humanas, remetendo o leitor para as possíveis influências exercidas pelas teses introduzidas por Husserl sobre os campos da Psicologia, da Sociologia e da História.

A primeira parte do livro, além de trazer, já na primeira página, uma nota esclarecedora sobre o itinerário filosófico traçado por Husserl, expõe, de forma clara, o arcabouço conceitual necessário para o entendimento do projeto filosófico anunciado pela fenomenologia no início do século XX. O autor atinge, com êxito, o objetivo de evidenciar para o leitor a originalidade da atitude fenomenológica em contraposição à chamada “atitude natural”, além de expor a especificidade da estratégia metodológica adotada pela fenomenologia de Husserl para cumprir com eficiência a recuperação do projeto filosófico de fazer da filosofia uma “ciência de rigor”. Lyotard procura mostrar que, impulsionado por este projeto, Husserl tomará para a fenomenologia a tarefa de fundamentar a filosofia sob “bases sólidas”, isto é, de fundamentá-la sob evidências plenas. O filósofo não poderá se contentar com qualquer outro tipo de evidência que não assuma, para a consciência, a sua plenitude, tomando para si a tarefa de encontrar uma estratégia metodológica que viabilize o alcance de tais evidências apodíticas e, por conseguinte, a constituição da filosofia como uma ciência rigorosa que servisse de referência para as demais ciências.

O ponto de partida do itinerário traçado por Husserl é, como ele próprio insistentemente nos chamou a atenção, em uma exposição que já se tornou clássica na literatura sobre o tema em questão, a chamada “Tese do Mundo”, isto é, a tese segundo a qual há um mundo que já está dado, constituído independentemente das nossas percepções. Um mundo frente ao qual podemos tomar atitudes variadas, um mundo dentro do qual nos inserimos com os nossos próprios corpos situando-nos entre outros tantos corpos. Em suma, é a tese segundo a qual o mundo é isto que, da maneira a mais imediata possível, me é revelado pela experiência sensível: as coisas com as suas propriedades, em suas relações uma com as outras, situadas em uma dimensão espaço-temporal, percebidas empiricamente por mim (enquanto um sujeito empírico), do meu próprio ponto de vista. Não apenas a vivência da tese do mundo, mas o uso dessa tese, coloca-nos no âmbito do que Husserl chamou de “atitude natural”. Abre-se, de imediato, uma relação que coloca, de um lado, uma consciência empírica (contingente, psicológica, etc) e, de outro, o que poderíamos chamar de “mundo dos fatos”.

Lyotard deixa-nos claro que o alcance de tais “evidências apodíticas” – peça fundamental para o propósito de viabilizar uma fundamentação rigorosa para a filosofia – não poderia se dar a partir do plano empírico-natural, pois, da facticidade do mundo somente podemos extrair evidências parciais (“perspectivistas” ou “existenciais”). Tal constatação exigirá, como acentua a primeira parte do livro de Lyotard, o exercício de uma “reflexão radical” (Selbstbesinnung) que dará sentido ou consistência racional à filosofia. No exercício dessa reflexão, a única realidade cuja existência se revelaria de modo indubitável seria a dos nossos próprios pensamentos (cogitationes), ou seja, dos “fenômenos” que aparecem para o nosso espírito — desde que esse espírito seja definido não como “eu” empírico, mas sim, como “consciência pura”, dotada da capacidade de “ver” as essências em si mesmas, independentemente de qualquer referência a um mundo “posto entre parênteses”. Impulsionada pelo lema do “retorno às coisas mesmas”, a fenomenologia de Husserl adotaria, então, do ponto de vista metodológico, a chamada “redução fenomenológica”, isto é, a suspensão do juízo em relação ao “mundo dos fatos”, para fazer o mundo reaparecer na consciência pura como um “horizonte de sentidos”. O mundo reduzido é o mundo tal como se revela ou aparece na e para a consciência, não mais como “fato”, mas sim, como idealidades meramente significativas.

Na segunda parte do livro, intitulada “Phénoménologie et Sciences Humaines”, Lyotard chama-nos a atenção para a interface da fenomenologia com as ciências humanas. Quanto aos conceitos filosóficos cuja abordagem não deixa de influenciar os rumos das teorias e sistemas em psicologia, Lyotard destaca-nos os conceitos de “reflexão” e de “intencionalidade”. Esclarece-nos que, na própria fenomenologia de Husserl, o conceito de reflexividade assume um lugar crucial. No entanto, tal conceito não deve aqui ser identificado e, portanto, restringido, ao movimento reflexivo de uma consciência meramente empírica (ou psicológica), de um estar “introspectivamente cônscio de algo”, mas sim, de uma “reflexividade radical”, cujo acesso – através do método fenomenológico – deixa-nos nas alturas da subjetividade transcendental, na qual e para a qual o “resíduo fenomenológico” retido pela epoché se revela como um sentido universal.

Quanto ao tema da intencionalidade, cabe-nos dizer – ainda que Lyotard não tenha se aprofundado suficientemente no assunto – que, com a fenomenologia de Husserl, amplia-se a esfera de investigação em torno do referido tema, cabendo agora examinar os elementos que, na consciência pura, são responsáveis pela constituição das diferentes modalidades do “aparecer” enquanto tal. Diferentemente de Brentano, que ainda mantivera a relação intencional em uma dimensão meramente psicológica, Husserl procurou situar, através da redução fenomenológica, a intencionalidade em uma região transcendental, independente de — e anterior a — toda descrição psicológica.

No capítulo reservado às relações entre a fenomenologia e a sociologia, Lyotard chama-nos a atenção para a crítica de Husserl ao programa positivista adotado por certas correntes em sociologia e, por conseguinte, para a insuficiência do método indutivo aceito por tais correntes. Como nos lembra Lyotard, para Husserl, não podemos inferir, como pretendem as correntes positivistas, uma lei geral a partir da observação de casos particulares. Com a fenomenologia, deparamo-nos, de antemão, com uma eidética (isto é, com uma “doutrina de essências”). Não há ciência que não comece por estabelecer um quadro de essências obtidas pela técnica de variação imaginária dos objetos (identificação de aspectos invariáveis dos objetos). Portanto, em uma “sociologia fenomenológica”, se quisermos estudar a existência de uma instituição em um determinado grupo social, sua gênese histórica e o seu papel atual na sociedade, faz-se necessário definir primeiramente o que seja esta instituição. Como nos lembra Lyotard, a sociologia de Durkheim assimila, por exemplo, a vida religiosa à experiência do sagrado, afirmando- nos que o sagrado tem a sua origem no totemismo, cuja origem resulta, por sua vez, de uma sublimação do social. Mas, segundo Lyotard, é exatamente neste ponto que uma visada fenomenológica da sociologia promoveria os seguintes questionamentos: a experiência do sagrado constitui a essência da vida religiosa? Não seria possível conceber (por variações imaginárias) uma religião que não se apoiasse sobre esta prática do sagrado? Enfim, o que significa o “sagrado” propriamente dito? Ao invés de inferir leis gerais a partir da observação de casos particulares, a atitude fenomenológica concentra-se – em um processo inverso aquele adotado pelas ciências positivas – na descrição (ou análise) de essências. Trata-se, com a atitude fenomenológica, de um processo dinâmico, cujo intuito central é o de elucidar, determinar e distinguir o sentido que a coisa expressa, independentemente da sua posição de existência.

E por fim, Lyotard chama-nos a atenção para o que funda existencialmente a história como ciência. Mostra-nos a maneira específica com a qual o objeto histórico se apresenta ao historiador, por meio de signos, fragmentos, narrativas, etc. Segundo Lyotard, tais fontes abrem-nos uma via em direção ao passado, anterior ao trabalho da própria ciência histórica. O que não significa dizer que essa mesma ciência nada acrescente à compreensão destes signos. Muito ao contrário, ao historiador caberá a difícil tarefa de reconstruir conceitualmente este passado, mas tal tarefa exige que os signos sobre os quais o historiador se debruça traga já o sentido de um passado. Sentido esse, que não é, por si só, transparente o bastante, e é por isso que uma elaboração conceitual em história se faz necessária. A realidade histórica seria, portanto, uma realidade essencialmente aberta e inacabada, cabendo ao historiador a recuperação deste passado, através de uma elucidação do sentido originário trazido pelas próprias fontes sobre as quais ele se apóia.

O livro de Lyotard tem o mérito de mostrar ao leitor que, com a fenomenologia, está em jogo uma atitude cujo propósito maior é a recuperação do mundo na consciência, na sua pura significação, ou seja, a fenomenologia se abstém, sem negar a existência do mundo, de tecer considerações sobre a existência ou não existência dos fatos, para reter, então, o sentido (ou a alma) do mundo.

 

Referência

Lyotard, J-F. (2007). La Phénoménologie (Collection Que sais’je?), Paris : Presses Universitaires de France.

 

 

Recebido em 18.10.07
Aceito em 05.11.07

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