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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.14 n.1 Goiânia jun. 2008

 

ARTIGOS

 

O holismo em Jan Smuts e a Gestalt-terapia

 

The holism in Jan Smuts and the Gestalt Therapy

 

El holismo en Jan Smuts y la Gestalt Terapía

 

 

Patrícia Valle de Albuquerque Lima

 

 


RESUMO

Este artigo busca apresentar o pensamento holístico de Jan Smuts, conforme suas idéias expostas no livro intitulado “Holism and Evolution” (1926). Este material foi inicialmente utilizado na tese de doutorado da autora e intitulada “Psicoterapia e mudança – uma reflexão” (2005) e aqui ele é sistematizado de um modo mais sucinto para que seja uma introdução ao pensamento holístico e as suas conexões com o pensamento gestáltico.

Palavras-chave: Holismo; Gestalt-terapia; Filosofia; Ciência.


ABSTRACT

The main goal of this article is to present Jan Smuts’ holistic thought according to his ideas exposed in the book “Holism and Evolution” (1926). This material was initially used in the doctorate thesis of our authorship entitled “Psychotherapy and Change – a reflection” (2005), herein systematized and summarized in order to make it an introduction to the holistic thought and its connection with the gestalt thought.

Keywords: Holism; Gestalt-therapy; Philosophy; Science.


RESUMEN

El artículo presenta el pensamiento holístico de Jan Smuts, de acuerdo con sus ideas expuestas en el libro titulado “Holism and Evolution” (1926). Este tema fue inicialmente utilizado en la tesis de doctorado de la autora titulada “Psicoterapia y cambio”– una reflexión” (2005) y aquí está sistematizado de un modo mas sencillo para que sea una introducción al pensamiento holístico y sus conexiones con el pensamiento gestáltico.

Palabras clave: Holismo; Terapia Gestáltica; Filosofía; Ciencia.


 

 

Introdução

Sabemos que a obra de Jan Smuts, Holism and Evolution, publicada pela primeira vez em 1926, foi uma enorme influência na vida de Fritz Perls e na construção das bases filosóficas da Gestalt-terapia. Além disso, Fritz Perls e Laura tiveram a oportunidade de ter uma convivência relativamente próxima com Smuts, pois o mesmo ocupou posições diplomáticas na época em que o casal morou na África do Sul.

Optamos neste artigo por tratar deste assunto como ele é apresentado diretamente no livro do próprio Smuts, dada ter sido essa a referência de Perls. Esse livro é escrito por Smuts com o intuito de servir como um guia introdutório, tanto para a Filosofia quanto para a Ciência, ao pensamento holístico. Smuts apresenta no prefácio do livro o seu objetivo em sistematizar mais tarde a doutrina holística em outra obra. No entanto, não sabemos se de fato houve outra publicação posterior. Mas não tivemos a preocupação em pesquisar mais sobre outras publicações do autor, pois sabemos que foi esse primeiro livro a grande inspiração filosófica de Perls ao tema do Holismo.

 

Holismo e Ciência

Smuts (1996) abre o livro dizendo que em sua opinião o progresso na ciência e na filosofia só seria possível a partir do momento que acontecesse uma interlocução maior entre ambas. Desse modo, diz que seu livro não poderia ser classificado nem como uma obra de filosofia, nem como uma obra científica, mas sim como uma obra cuja intenção seria promover uma aproximação entre ciência e filosofia.

O autor define o Holismo como uma tendência sintética do universo em evoluir por meio da formação de todos (wholes). A evolução não é nada além do que o desenvolvimento gradual em todos compostos por séries progressivas. Essa formação de todos se dá desde a estratificação dos princípios inorgânicos até o nível da criação espiritual. Smuts destaca que formação da personalidade seria então mais um caso representativo dessa tendência da natureza em evoluir na direção da composição de todos.

Nesse livro, Smuts (1996) faz uma séria crítica ao modelo científico que dominou o século XIX. Diz que o conceito de causalidade das ciências modernas era estreito e inflexível. Esse ponto de vista continuava persistindo na ciência através do modelo da seleção natural vista como um mero mecanismo. Para contrapor-se a esse modelo Smuts propunha a adoção da Teoria de Campo como a mais adequada. Acreditava que só através do conceito de campo a visão da natureza pudesse ser restituída de seu caráter fluído e maleável. A limitação dos conceitos mecanicistas teve a função de simplificar os problemas das ciências e do pensamento da época, mas se não houvesse uma reconsideração dessa visão, a ciência continuaria tratando dos processos da natureza dentro de uma ótica reducionista e superficial. Uma das maiores rupturas promovidas pela ciência moderna foi pela separação rigorosa entre os assuntos relativos ao campo da matéria, da mente e da vida.

Smuts acreditava que uma verdadeira revolução no pensamento estaria ocorrendo, desde meados do século XIX, no que diz respeito à visão de homem relativa à natureza. No entanto, considerava que, no momento em que estava escrevendo seu livro, os efeitos dessa revolução ainda não pudessem ser plenamente avaliados, pois a mesma ainda estava em processo. A idéia da fixidez nos elementos inorgânicos e da fixidez nas espécies orgânicas, fora abandonada por um ponto de vista mais fluido, contrário à tentativa de estabelecimento de padrões fixos de análise.

Ele destacava a importância da Teoria da Relatividade Geral de Einstein como um dos grandes marcos nessa revolução de pensamento. O germe da idéia da Relatividade estava na noção de que o movimento de um corpo nunca é absoluto, mas sempre relativo a outros corpos de referência. Como conseqüência dessa ruptura conceitual evidenciou-se o fato de que espaço e tempo, separados, são meras abstrações e que em qualquer tipo de movimento a ação de ambos é inseparável. Isto, por si só, alterava toda a concepção de universo até então aceita. A Teoria da Relatividade trazia uma importante contribuição para se redefinir os critérios de objetividade e subjetividade nas experiências. O espaço e o tempo não podem ser compreendidos como meras condições subjetivas das experiências, nem como simplesmente dados pelos elementos objetivos das experiências – são sempre a resultante de fatores objetivos e subjetivos que operam conjuntamente no campo da experiência total.

As novas contribuições da física também vinham alterando os estudos relativos à estrutura química do átomo mostrando que essas também não seriam estáticas, mas sim dinâmicas, levando-se em conta o continuum espaço-tempo. A conseqüência desse ponto de vista dinâmico foi o entendimento de que a matéria não seria nada além do que uma forma de energia em ação. A matéria passa a ser vista como uma estrutura de energia concentrada que assume aspectos diferentes, que são os estados líquido, sólido e gasoso. A noção de matéria como algo morto, passivo e inerte é abandonada em nome dessa nova visão de concentração de energia em atividade e movimento constante. Desse modo, a matéria também está em processo de criação, de transformação. A vida não é inserida, colocada na matéria – antes uma estrutura morta – mas ela interpenetra a matéria e ambas (matéria e vida) se conectam.

Outra importante contribuição trazida por Smuts é referente ao seu ponto de vista quanto à visão da evolução da Natureza. Ele defendia que a evolução era um processo de criação e não meramente um processo de reagrupamento de formas velhas em novas. O processo evolutivo propiciava o surgimento de novidades em termos materiais, mas também mentais. Através da evolução surgem novos valores morais, espirituais e religiosos. Quando um organismo assimila algo do meio ele não o faz como uma mera adição mecânica, mas sim adequando através da transformação aquilo que é assimilado às suas necessidades peculiares. O processo evolutivo libera a Natureza da escravidão aos fatos passados – liberta o futuro de qualquer pré-determinação fixa.

Smuts chamava atenção para o distanciamento que ocorrera entre a ciência e a filosofia, distanciamento esse que ele julgava lamentável. Esse resultou na exacerbação da visão mecanicista na ciência que perdera a amplitude de avaliação dos processos da Natureza e se fixou na tentativa de explicar mecanismos de funcionamento das estruturas. Ao mesmo tempo, a filosofia se perdeu buscando princípios mais gerais que regem a vida desconectada dos fatos concretos da realidade. Para que haja uma compreensão adequada da evolução, novos modelos conceituais precisariam surgir através de conceitos que pudessem tratar tanto da concretude dos processos quanto da universalidade dos mesmos. Essa era uma das propostas do Holismo – estudar tanto os aspectos universais da realidade como os aspectos estruturais, pois a experiência é uma interação dos aspectos subjetivos e objetivos.

A realidade, para Smuts, é ordenada e agregadora. Até mesmo as células são sistemas ajustáveis que funcionam em um modelo de auto-organização semelhante aos sistemas sociais. Ele dizia que: “Matéria e vida consiste, atômica e celularmente, de unidades estruturais ordenadamente agrupadas em conjuntos naturais que denominamos corpos ou organismos” (Smuts, 1996, p. 97).

A criação de todos no universo é um fator operativo fundamental enunciado pelo Holismo. Qualquer organismo é um todo que apresenta um padrão de organização interno. Isto se dá desde os mais simples microrganismos, até a formação da complexa personalidade humana. Por essa visão: “…‘todos’ são básicos para o caráter do universo, e o Holismo, como fator operacional na evolução dos todos, é o princípio decisivo do universo” (Smuts, 1996, p. 98). Tanto a filosofia quanto a ciência do século XIX ignoravam esse princípio.

Os todos não são entidades individuais formadas pela simples composição de partes, e sim unidades complexas nas quais as partes se relacionam e interagem. Para Smuts, o desenvolvimento dos organismos acontece através de relações fluidas entre partes que se movem e mudam constantemente. A teoria holística considerava que além das forças externas que agem nos organismos existem ações internas nesses que se traduzem em mudança e evolução. Os todos são dinâmicos e funcionam de modo criativo sendo o progresso e o desenvolvimento geradores de maior grau de complexidade. A personalidade surge como o ápice desse processo de desenvolvimento do todo em estruturas cada vez mais complexas.

Smuts acreditava que a realidade final do universo não era nem material, nem espiritual, mas composta por todos. Esse todo não pode ser visto como um princípio geral ou como uma tendência, pois ele se apresenta como uma forma, uma estrutura. O todo é uma unidade complexa formada por partes que são intimamente relacionadas e as unidades individuais afetam o todo, assim como são afetadas por esse.

A realidade formada por essa íntima reunião das partes passa, por si, a ter suas próprias reações e novas funções. Quando qualquer distúrbio em uma dessas partes pode afetar o todo, há um esforço cooperativo entre as outras partes de modo a reajustar as suas funções para que uma nova rotina se estabeleça visando manter o equilíbrio no funcionamento desse todo. É praticamente impossível delimitar onde se inicia o todo e onde termina cada parte – há uma interação profunda, na qual as partes e o todo se influenciam continuamente. Todas as partes se representam no todo do mesmo modo que o todo está em todas as partes.

A noção de causalidade mecanicista mostra-se totalmente inadequada nesse contexto, pois não se pode isolar uma causa sem levar em conta essa síntese estruturada. No “todo”, a nova estrutura não é apenas o somatório das estruturas individuais de cada parte. O todo é criativo e forma uma nova e diferente estrutura que não é a mera agregação mecânica de partes. Essa capacidade de criação de novos formatos no todo é uma característica da natureza organísmica; portanto, o processo evolutivo é criativo e traz, em cada estágio do seu desenvolvimento, o aparecimento de novas qualidades nos todos que vão se configurando.

 

Holismo e Evolução

Segundo Lima (2005), uma importante contribuição trazida por Smuts é relativa à noção de evolução. Esse processo de criação de novidades (novas espécies, novas características em espécies já existentes ou novas qualidades nos elementos internos), se dá durante um longo percurso que perpassa várias gerações até o surgimento de algo realmente novo. Lima (2005) destaca que: “Esta visão da evolução como um processo criativo trouxe uma grande ruptura no pensamento evolucionista que imperou até início do século XX” (p. 65).

Smuts, assim como Goldstein, entendia o organismo humano como um sistema. Essa idéia de sistema possui leis próprias de funcionamento. Uma das principais características desse tipo de sistema é a relativa independência em relação ao meio ambiente – ao mesmo tempo em que o ser humano é influenciado pelo meio, essa influência é indireta e passa por um filtro que a transforma e metaboliza, antes de ser assimilada pelo organismo. Podemos descrever o organismo como um centro de regulação interna que coordena e ajusta as suas atividades e funções às demandas do meio ambiente. O meio ambiente não é passivamente aceito pelo homem e esse se apropria do ambiente para os seus próprios propósitos e de modo particular. A liberdade é uma característica dos organismos mais evoluídos nos quais o princípio holístico impera.

A causação externa é transformada em algo novo a ser assimilado pelo organismo. A evolução, nas bases holísticas, liberta o homem do aprisionamento da matéria para parâmetros de liberdade do espírito. A inteligência do homem é que permite que esse sistema complexo funcione de modo ordenado. Smuts então acreditava que a inteligência fosse um processo orgânico em si.

O Holismo é o princípio que ordena a formação de “todos” no universo, sendo o organismo humano parte desse modelo. O princípio holístico também ordena o mundo do espírito. Smuts não via os princípios mecanicista e holístico como opostos, mas sim como princípios que regem esferas diferentes dos processos da natureza. O Holismo se faz presente nas esferas de maior evolução onde há maior grau de liberdade. Já nos sistemas mecanicistas as ações dos componentes podem ser calculadas matematicamente. No caso dos seres humanos, alguns processos do corpo físico são regidos por princípios mecanicistas, mas a personalidade é totalmente holística. De acordo com Smuts:

O Homem tem por base ambos os mundos; enquanto mantém um pé plantado no plano mecanicista, o outro está firmemente assentado no plano holístico, com uma distinta inclinação para este. Ele é essencialmente um ser espiritual e holístico, não de um tipo mecanizado, com categorias de ordens mental e ética sui generis...” (Smuts, 1996, p. 152).

Smuts defendia a idéia de que é a propriedade da seletividade que distancia os processos inorgânicos dos processos orgânicos. Os organismos são seletivos em todos os seus processos de intercâmbio com o meio ambiente, incluindo aí a nutrição. A seletividade é um atributo inerente ao Holismo. O poder de auto-direcionamento é uma característica da vida orgânica. No ser humano, é por intermédio do exercício do poder de auto-direcionamento e da seletividade das suas ações que a mente pode influenciar os processos corporais.

Os sensos de escolha e de auto-direção libertam o homem da falta de consciência dos processos mecanicistas. Nos sistemas psicofísicos, é a vida que responde pela seletividade e a mente que dirige as funções gerando a possibilidade de um princípio de funcionamento harmônico.

As leis que regem a vida e a mente (estruturas superiores) são leis coerentes com as leis da energia (estruturas primárias). Sucessivamente, as estruturas mentais pressupõem as estruturas vitais que pressupõem as estruturas energéticas primárias. Smuts compreendia as estruturas físico-químicas da natureza como sendo as primeiras estruturas holísticas, já a vida surgiria em uma fase posterior a essa.

A vida então só pode se desenvolver partindo dessas estruturas mais simples que serviriam como um degrau para o surgimento da vida no processo evolutivo. Assim como a matéria, a vida também é uma estrutura em equilíbrio instável. O ser humano enquanto um organismo complexo e holístico desenvolveu um poder de auto-regulação que o dota de um maior grau de liberdade diante da instabilidade dos processos vitais. Smuts dizia que nos organismos superiores haveria um princípio de seleção holística que suplantaria o princípio da seleção natural onde é o todo que funciona como um controle central seletivo. A eficiência na manutenção do funcionamento holístico é assim privilegiada ao invés do padrão de luta pela sobrevivência que direciona a seleção natural.

 

A Construção da Mente

Sem dúvida o conceito de personalidade é um dos conceitos mais importantes para a Psicologia e as contribuições de Smuts nesse sentido trouxeram grandes inovações. Lima (2005), em referência a obra de Smuts destaca que: “Para este autor, no caso da personalidade, a seleção holística funciona tanto potencializando mudanças nos valores e padrões éticos quanto também as reprimindo, sendo o funcionamento harmônico do todo o princípio maior” (p. 69). Há uma interação dos fatores internos e externos no processo evolutivo. O surgimento da variedade nos organismos é bastante valorizado pelo meio ambiente.

A evolução holística privilegia os padrões da estética e da beleza no todo. Portanto, o senso ético e estético é inerente ao processo de evolução holística que norteia a evolução da mente e da personalidade humanas. A mente não é vista por Smuts como um todo, mas sim como uma estrutura holística – a terceira estrutura fundamental holística após o átomo e a célula. A personalidade é sim um todo. O sentido de individualidade foi a grande novidade que a estruturação da mente, enquanto uma estrutura holística trouxe. É a partir desse substrato mental da individualidade que a personalidade se constrói. As tensões do corpo chegam à mente e se decodificam como sensações de desconforto e sentimentos. A mente faz a conexão dos processos orgânicos com as possibilidades de ações e comportamentos criativos do homem.

Smuts dizia que sua concepção holística de mente diferia da concepção da psicologia sobre esse tema. Enquanto para a psicologia a mente é um fenômeno a ser estudado por si, para o Holismo a mente constitui-se como a fase culminante do processo evolutivo universal. A mente se estrutura como um sistema complexo que emerge a partir da matéria e da vida. É através da mente que o homem tem controle sobre o seu funcionamento organísmico e sobre os seus valores.

No seu livro, Smuts (1996) usava uma metáfora na qual descrevia a mente como uma chave que servia para o grande mestre, que é a personalidade. Ele define a mente como uma superestrutura que se traduz como uma grande novidade e nunca como um mero prolongamento das instâncias que lhe servem de base – matéria e vida.

O sentido de individualidade, que faz com que cada pessoa seja única e tenha essa consciência de si, é a base da construção da personalidade no homem. Essa etapa da evolução só pode ser alcançada a partir do surgimento da mente que marcou uma grande quebra e mudança de rumo no processo evolutivo. A mente rompe com todos os sistemas mecanicistas e automáticos que suportavam os processos vitais e materiais e cria uma nova ordem – uma ordem plástica e variável na qual a consciência e a vontade se fazem presentes. A função mais primitiva da mente surge da consciência do homem do desconforto trazido pelas tensões no processo da auto-regulação organísmica.

Essa auto-consciência no homem só é possível pelo desenvolvimento das funções mentais, dotando-lhe do poder de liberdade e controle sobre suas ações. Smuts nomeia essa capacidade de awareness, termo posteriormente adotado por Fritz Perls na abordagem gestáltica. A awareness intensifica a influência que o homem sofre no contato com o meio ambiente, mas ao mesmo tempo, aumenta também o seu poder de responder e agir no meio para diminuir seus desconfortos. A mente então tem uma função dual desde sua origem – ela codifica as mensagens geradas no meio e coordena a resposta do organismo a essas. É na dualidade da mente que a relação sujeito/objeto se constrói. O sujeito como um dos pólos dessa relação; àquele que se conscientiza de algo, e o objeto como o outro pólo. É desse jogo relacional que sujeito e objeto emergem, simultaneamente e imbricada-mente.

Smuts compreendia sujeito e objeto em uma relação de interdependência, pois ambos não são nunca independentes. Para que essa relação pudesse ser adequadamente estudada na psicologia, esse autor defendia a utilização da Teoria da Relatividade de Einstein como suporte epistemológico necessário. A noção de individualidade é construída na realidade física a partir da experiência do contato sujeito/objeto que se dá no espaço e no tempo. Essa premissa de Smuts foi utilizada integralmente pela Gestalt-terapia na sua construção teórica organísmica e fenomenológica.

Para Smuts então, os estudos psicológicos só poderiam se aprofundar quando a contribuição das ciências naturais se somasse a esses. Fritz Perls já dizia que Gestalt-terapia deveria ser compreendida mais como uma “visão de mundo” do que como uma teoria psicológica propriamente dita. Certamente, na visão holística de Smuts sobre as funções mentais e a construção da personalidade humana como etapas mais avançadas do processo evolutivo dos “todos”, esses objetos de estudo não são meramente psicológicos. Como já apresentado anteriormente, Smuts acreditava que o Holismo promoveria uma reintegração entre ciência e filosofia.

Assim como Smuts acreditava que a psicologia precisava se munir de conceitos das ciências naturais para compreender melhor o padrão da relatividade na construção da personalidade, também dizia que a compreensão da personalidade enquanto uma construção individual e relacional poderia em muito contribuir para as ciências naturais. As ciências naturais haviam privilegiado os aspectos objetivos nas suas pesquisas, esquecendo-se de que existem especificidades em qualquer fenômeno a ser considerado. O Holismo se propunha a considerar a individualidade, que no homem destaca-se como a construção do self individual. Sem perder de vista que o grande avanço acontece quando esse self pode ser o centro de um sentido de ordem e de harmonia universal. A mente é que dota o self dessa razão universal, desse sentido de harmonia. A razão, no homem, transcende a individualidade e expressa o princípio de regulação universal.

Nenhum ser humano pode se conhecer e ter consciência de si mesmo sem que se dê conta de que não é o único no universo. A consciência do self individual é sempre consciência dos outros. O processo de crescimento se dá pela experiência da alteridade que vem pela convivência com os outros na vida social. Todos esses elementos se fundem para o surgimento de um todo, o self holístico. É a mente que possibilita ao homem a experiência do mundo.

Quando o homem se percebe como esse ser social, é a linguagem que o dota do poder de se nomear e de nomear o mundo que o cerca. Essa experiência do senso comum vai sendo refinada cada vez mais na evolução da mente até alcançar o sentido de construção racional do universo. Na evolução holística da mente ela ganha o poder da consciência sobre os objetos que estão no campo da experiência. A mente passa a funcionar então como uma grande organizadora que se dota do poder criativo de modelar as condições do meio por meio do planejamento das ações. A mente nesse estágio se liberta do jugo das condições objetivas do mundo e se transforma em um agente de transformação social. Desse modo, a mente diminui no homem a importância dos fatores estruturais e lhe dota de plasticidade e maleabilidade no inter-jogo relacional homem/mundo. O campo mental é uma área que abrange os aspectos que a pessoa tem consciência da sua existência, campo esse que é bem mais largo do que o campo material do organismo. Além disso, Smuts acreditava que existe no homem um sensus communis que agiria como um substrato para todos os outros sentidos humanos.

É pela atividade mental que o passado e o futuro podem ser integrados no presente. A memória é uma das grandes bases para a construção da personalidade no homem, trazendo a influência dos fatos passados nas experiências presentes. As experiências ancestrais também se fazem presentes na construção da personalidade chegando ao homem pelos componentes hereditários da memória. O futuro também se faz presente por intermédio de um sentido de propósito que é uma das funções da mente. Esse sentido de propósito é mais do que uma mera presença do futuro no presente, mas dota a mente da liberdade do poder de criar modificando, na medida do possível, as condições materiais da realidade. O propósito é a mais completa manifestação de liberdade e de criatividade da atividade holística da mente.

A personalidade humana surge a partir da interação mútua entre mente e corpo como a mais elevada estrutura na evolução holística, sendo a mente consciente o seu constituinte mais importante, sem a qual não há a formação desse todo. A personalidade é o aspecto mais criativo e original no ser humano e na evolução holística. Smuts achava que, na sua época, muito pouco se sabia ainda sobre a personalidade. Sugeria que fosse criada uma nova ciência dedicada apenas ao estudo da personalidade, dada a complexidade e a originalidade desses estudos para serem desenvolvidos pelos métodos adotados pelas ciências da época.

O pensamento do paralelismo psicofísico da época impossibilitava um real entendimento do funcionamento da personalidade humana. Na verdade, Smuts dizia que até a noção da interação entre mente e corpo era limitado, pois ambos são elementos da personalidade humana que se influenciam por que de fato estão co-presentes nesse todo. É impossível analisar uma parte desse todo separadamente e é aquilo que chamamos vida que une todos os elementos que compõe a personalidade de modo integrado.

A personalidade é então um todo único que não é herdado nem transmitido mas, no qual, existem qualidades e elementos que o compõe que podem ter sido herdadas. A personalidade é sempre uma novidade. Seria essa nova disciplina dedicada ao estudo da personalidade a responsável pela re-ligação entre o conhecimento filosófico e científico. Essa nova ciência serviria de base para uma nova Ética e uma nova Metafísica.

Smuts enaltecia a importância da personalidade enquanto o todo mais holístico existente no universo. A personalidade teria inúmeros atributos entre os quais a capacidade de auto-realização, de auto-cura, auto-expressão e de purificação. Smuts entendia a purificação como a capacidade que a personalidade possui de eliminar os elementos desarmônicos da natureza humana. Esses atributos resultam do poder de criação e de liberdade que são dons da personalidade enquanto esse todo holístico mais perfeito. O grande motor da personalidade são os desejos que a tornam o movimento ativo do todo representado em cada indivíduo. Lima (2005) ressaltou que:

Quando a personalidade encontra a possibilidade de desenvolver suas habilidades, ela ganha cada vez mais este sentido de completude no qual mente e corpo, razão e sentimentos, desejo e emoções se desenvolvem de forma harmoniosa e integrada. Para que isto ocorra a personalidade precisa encontrar na sua relação com o meio que a cerca os recursos necessários, tanto materiais quanto morais,intelectuais e sociais, para seu desenvolvimento. Quando isto não acontece, a personalidade sucumbe e não se realiza na sua completude (p. 74).

Smuts valorizava a importância do processo de assimilação pelo qual a personalidade pode metabolizar aquilo que recebe do meio. Quando esse processo não ocorre de forma a permitir que a personalidade exerça o seu potencial criativo da auto-regulação de modo satisfatório, a auto-regulação fica deteriorada e o funcionamento organísmico deficitário.

Esse foi um dos aspectos bastante valorizados no pensamento organísmico de Fritz Perls que defendia a idéia de que o principal papel do processo psicoterápico era promover o resgate do potencial de auto-regulação das pessoas. Assim como Smuts, Perls acreditava que o exercício da liberdade era uma conquista do homem na evolução holística. É por meio da liberdade que o homem se liberta da cadeia das determinações causais e pode mudar o rumo da sua vida de modo consciente e auto-regulativo. “A liberdade não é, portanto, um conceito meramente formal, senão uma atividade real, na qual o Holismo molda e desenvolve a personalidade individual” (Smuts, 1996, p. 309).

A mudança é vista por Smuts como inerente ao processo da evolução organísmica, não sendo essa determinada de modo linear ou casual, mas a conseqüência natural de um processo de harmonização dos aspectos velhos e novos que se fazem presentes no “todo”. O processo evolutivo holístico é complexo e repleto de variedade e de adversidade.

Smuts já deixava implícita a noção de campo na teoria holística. Os todos são sempre pensados como unidades inseridas em um campo onde o campo não é algo diferente ou adicional, mas sim a continuação de si mesmo na experiência sensível. O campo é uma extensão energética do sistema mostrando as mesmas propriedades que esse. O campo funciona como uma ponte por meio da qual outros sistemas se interpenetram. O organismo e o campo formam uma estrutura contínua, sendo o organismo um ponto sensível por intermédio do qual essa estrutura se inicia. Nos grupos e nas sociedades há uma interpenetração dos diversos campos individuais gerando a re-configuração de um novo todo resultante dessa interação de forças. Fechando com as palavras do próprio Smuts:

Assim como um campo físico tem suas linhas de força, também o campo orgânico da natureza, que resulta da interpenetração de todos os campos de conjuntos que a compõem, tem suas próprias curvas estruturais de progresso. Na sociedade humana vemos como o campo social ou atmosférico torna-se um sistema de controle, uma influência moldadora à qual todos os membros nele introduzidos estão sujeitos (Smuts, 1996, p. 342).

 

Considerações Finais

Sem dúvida, o pensamento holístico foi uma das principais contribuições às bases filosóficas e teóricas da Gestalt-terapia. No entanto, Smuts trouxe inovações aos conceitos de personalidade, evolução e mente e essas não foram consideradas nesta abordagem. Neste artigo busquei destacar estas contribuições para que possamos refletir sobre elas, dada a atualidade do pensamento de Smuts dentro de um ponto de vista de campo, ecológico e sistêmico.

Levando em consideração que o pensamento sistêmico já se fazia presente na teoria de Smuts, percebemos a sua originalidade quando esse autor reforça a importância do papel da transformação na evolução do homem e tendo a criatividade como a principal ferramenta nesse processo evolutivo. Sua contribuição à noção de personalidade como o sistema holístico mais evoluído é de grande valia para todos àqueles que buscam reformulações ao conceito de self, conceito esse que tem sido bastante rediscutido, não só na Gestalt-terapia, mas também nas teorias sociais de um modo mais amplo.

 

Referências Bibliográficas

Lima, P. A. (2005). Psicoterapia e mudança – uma reflexão. Tese de Doutorado em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.        [ Links ]

Smuts, J. C. (1996). Holism and evolution. New York: The Gestalt Journal Press (Original de 1926).

 

 

Recebido em 23.07.08
Primeira Decisão Editorial em 06.08.08
Aceito em 21.08.08

 

 

Patrícia Valle de Albuquerque Lima - Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; professora do Centro Universitário IBMR-RJ; professora dos cursos de Especialização em Gestalt-terapia do Instituto Carioca e do Instituto de Gestalt-terapia e Atendimento familiar. Endereço para correspondência: Rua Eduardo Guinle 60/602 Botafogo CEP 22260-090 Rio de Janeiro. Email: <ticha@infolink.com.br>

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