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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.14 n.2 Goiânia dez. 2008

 

DIÁLOGOS (IM)PERTINENTES – DOSSIÊ RELIGIOSIDADE II

 

Antropologia semítica de Paulo Apóstolo em confronto com a antropologia grega

 

A confrontation of the Semitic anthropology of the Apostle Paul with Greek anthropology

 

Antropología semita del Apóstol Pablo en la confrontación con la antropología griega

 

 

Joel Antonio Ferreira

Universidade Católica de Goiás

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Abordarei a corporeidade em Paulo. Boyarin, um judeu norte-americano acusou Paulo de dicotômico na questão da corporeidade. A partir desta ótica, ele reflete sobre as conseqüências que isto trouxe para os judeus até os dias de hoje. Não é verdade. Boyarin, equivocadamente, interpretou Paulo a partir de Filon. Mostrarei aqui um Paulo que vê o ser humano total e completo, a pessoa toda inteira. A partir desta visão, mostro como o apóstolo sugere que a unidade pessoal, portanto, sem dicotomia, leva à unidade comunitária.

Palavras-chave: Cultura semita; Cultura grega; Corporeidade; Dualismo; Unidade.


ABSTRACT

I will treat the concept of corporality in Paul. Boyarin, a North American Jew accuses Paul of dichotomy. And in this view, he reflects on the consequences this has brought to Jews up to the present time. This is not true. Boyarin, equivocally, interprets Paul from the point of view of Philo. I will show here that Paul sees the human as a complete and unified being, an entire human person. And starting from this view I will show how personal unity without any dichotomy can lead to unity in a community.

Keywords: Semitic culture; Hellenic culture; Corporality; Dualism; Unity.


RESUMEN

Será abordada en este trabajo, la corporeidad en Pablo. Boyarin, un judío estadounidense acusó a Pablo de dicotómico en la cuestión de la corporeidad. A partir de esta óptica, él reflexiona sobre las consecuencias que esto les trajo a los judíos hasta los días actuales. No es verdad. Boyarin, erróneamente, interpretó a Pablo a partir de Filón. Mostraré aquí a un Pablo que ve al ser humano total y completo, a la persona toda, entera. A partir de esta visión, muestro como el apóstol sugiere que la unidad personal, por lo tanto sin dicotomía, lleva a la unidad comunitaria.

Palabras clave: Cultura semita; Cultura griega; Corporeidad; Dualismo; Unidad.


 

 

Introdução

Quando, no fim do século passado, eu estava preparando minha tese de doutorado em torno da Epístola de Paulo aos Gálatas, Gálatas 3,26-28, tomei conhecimento de duas obras de D. Boyarin (1994a, p. 1-12; 1994b, p. 240-1), onde ele acusava Paulo Apóstolo de ser dicotômico. Boyarin diz que o judaísmo rabínico é uma formação judaica específica do final da Antiguidade. Apesar de este tipo de judaísmo ser o ancestral histórico de praticamente todos os grupos posteriores que vieram a se chamar judeus, nos primeiros séculos da nossa era tratava-se apenas de uma das modalidades do judaísmo. Vários tipos de judaísmo helenista, grupos apocalípticos (como a seita de Qumran) e o cristianismo primitivo disputavam a hegemonia com o judaísmo dos rabis e seus seguidores, e o discurso do corpo era uma grande área de discórdia.

É assim que ele trabalha fazendo uma conexão do pensamento de Paulo com Fílon (Boyarin, 1994ap. 19-22). Em uma de suas obras (Boyarin, 1994b, p. 241), ele diz que para a maioria dos judeus do final da antiguidade (assim como para muitos não-judeus), o ser humano era entendido como um espírito que estava abrigado, vestido ou até mesmo aprisionado pela carne. Porém, os rabis resistiam a esta noção e viam o ser humano como um corpo animado por um espírito. Esta definição está por trás de diversas práticas rabínicas, como a insistência no caráter obrigatório do sexo e da procriação, a interpretação midráshica em oposição à alegoria e o foco na identidade corporal de Israel como uma unidade étnica específica.

Após dizer que também o judaísmo palestino era helenizado e que havia uma forte resistência por parte dos rabis ao platonismo, reflete sobre a influência helênica no pensamento de Paulo. O que se complica em Boyarin, é querer conectar o pensamento dicotômico e platônico de Fílon, especialmente, sua visão antropológica do ser humano, a Paulo (Boyarin, 1994a, p. 19-22). O dualismo de Fílon não tem nada a ver com Paulo Apóstolo. Este artigo pretende mostrar que, quando Paulo entra na questão antropológica, ao contrário da interpretação de Boyarin, tem uma visão não dicotômica, mas unitária da pessoa humana.

Antes de se olhar o que queria dizer Paulo sobre "carne" e "espírito", precisa-se perguntar qual é a concepção da pessoa humana na Bíblia1, livro bem conhecido por Boyarin. A Bíblia vê a pessoa humana numa grande unidade (Kleinknecht, 1975, p. 767-848; Kuss, 1976, p. 108ss; Baumert, 1999, p. 231-247).

Ela não tem um termo para alma sem corpo, nem para corpo sem alma2. Cada conceito que se faz da pessoa humana compreende a pessoa toda inteira. No Antigo e no Novo Testamento vemos as seguintes situações existenciais:

O Ser Humano-carne

(Em hebraico "basar", em grego "sarx") - É a pessoa em sua existência terrestre empírica, gerada em contacto com duas carnes que se fazem uma (Gênesis 2,24). Homem-carne é o homem biológico dos órgãos e dos sentidos que está em contacto com a terra. É um ser-carência, sujeito ao pecado e à morte (Romanos 7). Fala-se em homem-carne quando ele se fecha sobre si mesmo. Uma existência carnal é a do "homem-sem-Cristo", ou inautêntica. "Tudo isso é carne" (Gálatas 5,18-21;1 Coríntios 1,26; Romanos 8,2s) como mostram Baumgärtel, Schweizer & Meyer (1975, p. 1265-1398), Boff (1971, p. 62) e Dussel (1969,p.28-30).

E para Paulo, o que é a carne?

Ele, tantas vezes, usa a expressão "carne", significando "homem" na linha do Antigo Testamento e da Septuaginta ou LXX (Gálatas 2,16: citando Salmos 143,2; Romanos 3,20; 1 Coríntios 1,29). É em Gálatas 5 e no díptico Romanos 7-8 que Paulo precisa o conceito teológico de "carne".

O "homem-sem-Cristo", sem o Espírito, o homem não redimido é carnal, vendido ao pecado (Romanos 7,14). Sob a dominação implacável do pecado (Romanos 5,12) a carne se opõe à lei espiritual (Romanos 7,14), uma resistência invencível (7,17-18). Com a carne, ele serve à lei do pecado (Romanos 7,25). Na carne, as paixões pecaminosas, servindo-se da lei, operavam produzindo frutos para a morte (Romanos 7,5). Na carne não habita nada bom (Romanos 7,18); a "outra lei" está em luta com a lei da razão (Romanos 7,23).

Assim, o conceito "carne" para Paulo significa o homem em sua impotência diante de Deus, depois que a morte e o pecado impuseram sua dominação sobre o mundo (Romanos 5,12). Se olharmos na perspectiva da unidade antropológica, embora Paulo esteja vivendo e convivendo num ambiente helenista, quase sempre dualista, sendo ele mesmo um judeu helenista, procura manter a visão bíblica da concepção da pessoa humana, como uma unidade.

O seu contínuo ir e voltar na questão da carne versus espírito abrange uma concepção pedagógica e antropológica muito mais ampla. O apóstolo quando usa estes dois conceitos está se referindo a duas possibilidades existenciais. A pessoa-carne é a que se contenta consigo mesma e se fecha no seu próprio horizonte. A pessoa-espírito é a que se abre totalmente para Deus, e, conseqüentemente, para os outros, clareando uma infinidade de possibilidades de busca, desafio, sempre na busca do novo (Gálatas 6,15).

Quem vive segundo a carne se corrompe (Gálatas 6,8). É novamente em Gálatas 5,19-21 que Paulo descreve quais são as obras da carne, obras que tornam a pessoa cada vez menos pessoa, ou seja, pessoa-sem-Cristo:ora, as obras da carne são manifestas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos previno, como já vos preveni: os que tais coisas praticam, não herdarão o Reino de Deus.

Segundo Kuss, o "homem carnal", contra um uso lingüístico falso, não é o que peca sem freio no terreno sexual. Com o conceito "carne", o apóstolo coloca tudo o que é estranho e inimigo de Deus. A pessoa humana é carne por ser um ser caído e estar sujeito a qualquer desordem (Kuss, 1976, p. 108s).

Na carne, Paulo vê o ser de pecador.

O Ser Humano-corpo

(Em hebraico "basar", em grego "soma") - Se os hebreus tinham uma idéia ampla de “basar”, os gregos, ao traduzi-la, vão fragmentando-a. Para os hebreus, designa o homem todo inteiro enquanto é pessoa-em-comunhão-com-outros (Romanos 12,1; 1 Coríntios 7,4; 9,27). Em algumas passagens, "corpo" pode ser traduzido simplesmente por "eu" ("Isto é o meu corpo (eu) que será entregue por vós": 1 Coríntios 9,27; 13,3; Filipenses 1,30). O ser humano é corpo (Koch, 1973, p. 469; Pesch, 1973, p. 227s). É vital ter esta compreensão antropológica semita, principalmente, quando virmos, à frente, a “ressurreição do corpo”.

Nessa compreensão, pertence à pessoa o ser para outra pessoa, envolvendo a dimensão social e política (Boff, 1971, p. 62; Baumert, 1999, p. 239-241)3.

O Ser Humano-alma

(Em hebraico "nefesh", em grego "psiche") - Aqui não se pensa em alma como distinta do corpo, mas na pessoa toda inteira como ser vivente. Alma para a Bíblia é sinônimo de vida (Marcos 8,36). A pessoa humana não tem vida. É vida. Por isso, após a diluição da vida (alma) biológica, permanece ainda o homem-vida, embora sob outra forma. Homem-alma pode significar ainda a pessoa em sua vida consciente como eu. Por isso, pode substituir o pronome pessoal (Gênesis 2,7; 12,5; 46,22; Êxodo 13,8-9). Daí que homem-alma e homem-corpo são equivalentes. Corpo e alma não se opõem mas exprimem o homem inteiro (Boff, 1971, p. 62; Baumert, 1999,p. 238; Koch, 1973, p. 469).

O Ser Humano-espírito

(Em hebraico "ruah", em grego "pneuma") - Quer dizer a pessoa-corpo-alma enquanto se abre totalmente para Deus, para valores absolutos e se entende a partir deles. Como espírito, o ser humano extrapola os limites de sua existência como carne-corpo-alma, para se comunicar com a esfera divina. Por isso, é um sinal da transcendência e da destinação divina do ser humano. Para o Novo Testamento, viver no espírito é viver uma existência humana nova no horizonte das possibilidades reveladas pela Ressurreição de Jesus, o Senhor (Boff, 1971, p. 62-63; Kleinknecht (1975, p. 767-848), Schweizer, 1975, p.720- 723; Baumert, 1999, p. 239).

Kuss diz que quando Paulo quer falar dos dotes humanos, da inteligência natural, ele usa, como em 1 Coríntios 14,14-15, a palavra "noos" (mente) para distingui-la do significado de "pneuma" (espírito). Esta significa o próprio ser do homem, no que tem de natural-espiritual. Ainda, conforme Kuss, pneuma num sentido teológico profundo, significa em Paulo, o próprio ser de Deus, de modo especial em suas intervenções sobre o mundo criado. Então, o característico do cristão é a posse do Espírito. Quem o possui participa do ser íntimo de Deus (Kuss, 1976, p.110-114). Todo o amplo campo da vida entre Deus e o ser humano está dominado pelo Espírito Santo (1 Coríntios 2,10).

O Espírito é o divinopara a pessoa humana, por isso, que Espírito e carne estão em oposição irredutível (Gálatas 5,17). As pessoas humanas obtêm o Espírito divino por meio da fé (Gálatas 3,2.5.14.28) e do batismo (Gálatas 3,26-28; 1 Coríntios 6,11; 12,13). Conforme Gálatas 5,22-23.25 (“mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio ... Se vivemos pelo Espírito, pelo Espírito pautemos também a nossa conduta”) e Romanos 8,4-5, o Espírito é a norma de comportamento dos cristãos, que na identificação com este Espírito Vivo podem dizer; "Jesus é o Senhor" (1 Coríntios 12,3).

O Ser Humano-coração

(Em hebraico leb ou lebab, em grego kardia) – Significa, no Novo Testamento, que coração é o orgão central por intermédio do qual Deus se dirige aos seres humanos. É ai que se desenrola toda a vida interior; aí se concentra a vida emotiva. Daí vêm os pensamentos e reflexões (1 Coríntios 2,9), como os propósitos (1 Coríntios 7,37) e as intenções (1 Coríntios 4,5). Também do coração surgem as manifestações da vida ético-religiosa, como a fé e a dúvida (2 Coríntios 1,22) e o amor a Deus e aos irmãos (Mateus 22,37). Como reflete Koch (1973, p. 470), o Espírito Santo habita nos “corações” das pessoas (2 Coríntios 1,22) e os “prova” (1 Tessalonicenses 2,4) e um dia trará à luz “os propósitos dos corações” (1 Coríntios 4,5).

 

Respondendo a Boyarin

Avaliando as contribuições de nossos interlocutores, é possível perceber como na antropologia bíblica o ser humano forma uma unidade. Acerca da visão bíblica do ser humano, percebemos que o sistema do pensamento integral dos semitas é contemplado. Ao contrário, o parâmetro do dualismo greco-ocidental não aparece na literatura bíblica. Pudemos ver que o ser humano é carne, corpo, alma, espírito, coração, compreendido como uma unidade total (Schaik, 1971, p. 703-4). Pode o ser humano viver duas opções fundamentais: como homem-carne e como homem-espírito. Como homem-carne contenta-se consigo mesmo e fecha-se em seu próprio horizonte; como homem-espírito abre-se para Deus, de quem recebe a existência e a imortalidade. Ele é desafiado a viver uma destas possibilidades existenciais (Boff, 1971,p. 63). Paulo também, embora vivendo num mundo helenizado, teve uma clara visão da unidade antropológica da pessoa humana. Quando ele usa termos como carne e espírito está se referindo à mentalidade de fechamento em si mesmo ou de abertura total para Deus e os outros (Boff, 1971, p. 63).

A visão de corporeidade em Paulo tem que ser vista sob duas perspectivas: na conceituação antropológica e na conceituação teológica. Tendo agora a visão antropológica semita diante dos olhos, podemos arriscar, com Baumert, uma síntese teológica: no nível “psíquico” o ser humano é suscetível ao pecado e incapaz para Deus. No nível “carnal” o ser humano se coloca diante de Deus: é o seu humano impotente, pecador e, por isso, mortal. No nível “espiritual” o ser humano é perpassado pelo Espírito de Deus. No nível “cordial”, o ser humano está diante de Deus em seu processo de conhecimento e ação, “consciência” e “meio”.Paulo não era dualista (Boyarin, 1994, p. 6-7; 13-16; 19-22 e 25-38)4. Sua visão de corporeidade é uma unidade incrível. Nele, a expressão corpo tem o sentido popular, designando por meio dela a pessoa toda, o ser humano em si mesmo.Em Paulo, parte-se do pessoal para o comunitário. Ele tem uma visão unitária da pessoa humana. Isto é corporeidade. Cada pessoa é vista numa grande unidade. Nesta unidade pessoal, cada ser humano se realiza numa unidade mais ampla que é a comunitária. Ele compreende isto como unidade em Cristo ou unidade eclesiológica. Quais as implicações desta visão do apóstolo?

A unidade pessoal e comunitária em Cristo abre as fronteiras para que sejam superadas todas as divisões sociais, religiosas, sexuais, raciais (nacionais e biológicas) e culturais. Também para que os muros da dominação sejam derrubados. A pessoa humana é uma grande unidade que se realiza na busca transformadora da sociedade. Esta é a força dinamizadora da corporeidade.

Quero pontuar alguns equívocos de Boyarin e acentuar a perspectiva de Paulo:

1) Amarrando esta reflexão, não concordo que o apóstolo, dentro de u’a mentalidade judaico-helenista estivesse imbuído de uma visão dicotômico-dualista. Paulo não era dualista. Sua visão de corporeidade é uma unidade incrível. Nele a expressão corpo tem o sentido popular, designando por meio dela a pessoa toda, o ser humano em si mesmo.

2) Boyarin defende que, por causa da dicotomia, pela alegorização, tenha descorporificado as práticas de ritos e costumes tribais bem como a genealogia corporal e a memória histórica concreta, criando uma espiritualização que levou ao universalismo incorpóreo do judaísmo helenista e do cristianismo. Como Boyarin entrou pelo campo filosófico, a perspectiva de Paulo, na minha opinião, está mais para a dialética da mudança de Heráclito do que para o imobilismo acomodador néo-platônico.

Iniciei a reflexão, dizendo que li Boyarin quando estava preparando o meu doutorado sobre Gálatas. Acho que, rememorando aqueles tempos, posso retomar as colunas daquela epístola para mostrar, por fim, o que eram os horizontes de abertura de Paulo Apóstolo que, mais tarde, fluirão em outras suas epístolas. A visão de unidade em Paulo, particularmente na Epístola aos Gálatas, é:

a) “una” (há a comunhão com Jerusalém. Paulo aí veio e houve o sinal de comunhão (2,9)5;

b) “tríplice” (na Igreja tinha lugar (2,1-10) para o grupo de Jerusalém, os helenistas Paulo e Barnabé e Tito, o étnico);

c) “múltipla” (judeus e gentios de todas as localidades do universo).

Ao contrário do que insinuou Boyarin, que a visão espiritualizante criava um imobilismo na perspectiva da unidade, Paulo apresenta esta mesma unidade como a conseqüência de comunidades que lutam por uma nova criação (6,15), onde a busca da igualdade e da liberdade são a tônica concreta de uma vida em comunidade (5,13-6,10).

3) Neste diálogo, após a leitura de dois textos importantes de Boyarin, gostaria de salientar minha decepção no conjunto da obra.  A questão é esta: por que ele se baseou em dois projetos fortes de Gálatas 3,28, ou seja, “não há judeu nem grego” e o outro “não homem e mulher” deixando de lado o “não há escravo nem livre”? As suas reflexões em torno da etnia e do gênero trazem ao leitor reflexões e ponderações interessantes. É de se estranhar a fuga de Boyarin da questão social. Tenho minhas suspeitas que prefiro não apontar aqui, neste momento, mas insinuar: Boyarin é judeu norte-americano. Vive, pois, em uma potência opressora, principalmente, com relação aos países de terceiro e quarto mundos. É, também, uma nação que desrespeita, agride, invade e se assenhoria dos adversários (inimigos), como os Iraques da vida. Por que Boyarin não enfrentou o “não há escravo nem livre” e aplicou à nação que o acolheu? É uma lacuna grave porque a questão da corporeidade tem acentos fundamentais nas relações sociais. Paulo tem uma visão transformadora da sociedade. Isto era perigoso para o seu tempo (Gálatas 6,12-15), isto o é para os dias de hoje, isto é para Boyarin.

4) Em Paulo, parte-se do pessoal para o comunitário. Ele tem uma visão unitária da pessoa humana. Isto é corporeidade. Cada pessoa é vista numa grande unidade. Nesta unidade pessoal cada ser humano se realiza numa unidade mais ampla que é a comunitária. Ele compreende isto como unidade em Cristo, ou unidade eclesiológica. Quais as implicações desta visão do apóstolo?

A unidade pessoal e comunitária em Cristo abre as fronteiras para que sejam superadas todas as divisões sociais, religiosas, sexuais, raciais (nacionais e biológicas) e culturais. Também para que os muros da dominação sejam derrubados. A pessoa humana é uma grande unidade que se realiza na busca transformadora da sociedade. Esta é a força dinamizadora da corporeidade. A unidade em Cristo proporciona a luta pela igualdade, porque este é o grande valor buscado pelas comunidades pré-paulinas e por Paulo para a experiência da liberdade.

 

Referências Bibliográficas

Baumert, N. (1999). Mulher e Homem em Paulo. São Paulo: Ed. Loyola.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Rua 225, Nr. 316, Ap. 602
(Setor Universitário), Goiânia/GO
Email: joelfer@cultura.com.br

Recebido em 12.05.08
Aceito em 15.09.08

 

 

1 No dia 06/06/2008, na VI Jornada de Pesquisa em Filosofia, promovida pelo Núcleo de Pesquisa em Filosofia, pude debater com a Academia esta questão da unidade integral da pessoa humana para o pensamento semita, diante da visão dicotômica grega nos tempos de Paulo Apóstolo.
2 Escrevi um artigo amplo para a Revista Interações v. 3, n. 3, da Faculdade Católica de Uberlândia, enfocando a corporeidade em Paulo para se entender a Primeira Epístola aos Coríntios. Lá, eu abordo, também, muitos destes aspectos que trabalho aqui.
3 É interessante o esboço feito por Baumert apresentando duas concepções do corpo: a 1ª apresenta o corpo como conceito antropológico. A 2ª reflete sobre o corpo como conceito teológico. Supondo, como acham alguns, que o gnosticismo já começara a ter raízes no cristianismo, esta conotação global que envolve o ser humano numa perspectiva transformadora em nível sócio-político, não é concebível numa ótica gnosticista. Esta define-se pelo triunfo do individualismo (Brakemeier, 1984, p.212-215). Amor ao próximo não cabe neste sistema.
4 Como eu disse, no início, Boyarin, equivocadamente, leu Paulo, a partir de Filon. Com isso, interpretou o Apóstolo como alguém do pensamento dicotômico e dualista, afirmando muita coisa que Paulo não expressara.
5 É importante apresentar estes dados: Paulo vê o ser humano como uma unidade. E, no nível do compromisso, este ser se abre para o horizonte das comunidades. Aí, há o outro pilar da unidade: unidade comunitária em torno de Cristo. Paulo foi o evangelizador das comunidades. Não se pode pensar nele sem esta palavra pontual: comunidade.

Joel Antonio Ferreira - Doutor em Ciências da Religião na área de Concentração em Bíblia pela Universidade Metodista de São Paulo. Professor Titular na Universidade Católica de Goiás. Atua no Mestrado e Doutorado de Ciências da Religião desta mesma Universidade na Área de Religião e Literatura Sagrada.

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