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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.15 n.1 Goiânia jun. 2009

 

ARTIGOS

 

A Gestalt-terapia e a Abordagem Centrada na Pessoa são enfoques fenomenológicos?

 

Are Gestalt-therapy and Person Centered Approach therapy phenomenological approaches?

 

La Terapia Gestáltica y el Enfoque Centrado en la Persona son enfoques fenomenológicos?

 

 

Virginia Moreira

Universidade de Fortaleza

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A questão sobre o fato de serem ou não a Gestalt-terapia e a Abordagem Centrada na Pessoa enfoques fenomenológicos é controvertida no cenário contemporâneo da psicologia humanista no Brasil. Em 1991, Luis Claudio Figueiredo publicou um livro sobre as matrizes do pensamento psicológico, onde estas duas abordagens não são consideradas fenomenológicas. Este artigo tem como objetivo contribuir para esta discussão estabelecendo um diálogo entre a Abordagem Centrada na Pessoa e a Gestalt-terapia com as matrizes psicológicas tal como concebidas por seu autor.

Palavras-chave: Fenomenologia; Abordagem centrada na pessoa; Gestalt-terapia.


ABSTRACT

The matter of whether the Gestalt-Therapy and Person Centered Approach are phenomenological approaches is controversial in the contemporary scenario of humanistic psychology in Brazil. In 1991, Luis Claudio Figueiredo published a book about the main stream psychological thoughts, in which both approaches are considered not phenomenological. This article intends to make a contribution to this discussion by establishing a dialog between the Person Centered Approach and Gestalt- Therapy with the psychological main streams as conceived by the author.

Keywords: Phenomenology; Person centered approach; Gestalt-therapy.


RESUMEN

La cuestión sobre el hecho de que sean o no la Terapia Gestáltica y el Enfoque Centrado en la Persona enfoques fenomenológicos es controvertida en el senario contemporáneo de la psicología humanista en Brasil. En 1991, Luis Claudio Figueiredo publicó un libro sobre las matrices del pensamiento psicológico, donde estos dos enfoques no son considerados fenomenológicos. Este artículo tiene como objetivo de contribuir para esta discusión, estableciendo un diálogo entre el Enfoque Centrado en la Persona y la Terapia Gestaltica con las matrices psicológicas tal como concebidas por su autor.

Palabras-clave: Fenomenología; Enfoque centrado en la persona; Terapia gestáltica.


 

 

Introdução

Luis Cláudio Figueiredo, no seu livro Matrizes do Pensamento Psicológico (1991) trata da crise permanente em que se encontra a psicologia para desenvolver- se como ciência independente, tendo em vista a diversidade de posturas metodológicas “em persistente e irredutível oposição” (p. 11). Esses diferentes modelos e interesses, que originam uma variedade de modelos e “seitas”, são denominados por Figueiredo (1991), em sua leitura da história da psicologia nestes seus mais de cem anos, como matrizes do pensamento psicológico.

Por meio de um diálogo entre os escritos dos criadores da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) e da Gestalt-terapia (GT) &– Carl Rogers e Frederick Perls &– e das matrizes do pensamento psicológico propostas por Luis Cláudio Figueiredo, este artigo tem como objetivo discutir uma questão bastante polêmica nas psicologias humanistas, em nossos dias, no Brasil: a Abordagem Centrada na Pessoa e a Gestalt-terapia são abordagens fenomenológicas?

 

Matrizes do Pensamento Psicológico

Figueiredo (1991) divide o pensamento psicológico em duas grandes matrizes que, por sua vez, se subdividem em outras submatrizes:

1) As escolas e os movimentos psicológicos que têm sua origem em matrizes de pensamento cientificista, que tendem a desconhecer a especificidade do objeto da psicologia em favor de uma imitação pretensamente bem sucedida e convincente das ciências naturais, o que pode levar à extinção da psicologia como ciência independente para tornarse uma disciplina biológica; e,

2) As escolas e os movimentos psicológicos gerados por matrizes “românticas” ou “pós-românticas”, que reconhecem a especificidade do objeto da psicologia como ciência independente &– atos e vivências do sujeito e seu significado para ele &–, mas que, por outro lado, “carecem completamente da segurança que as de índole cientificista de uma forma ou de outra ostentam” (p. 11).

Como parte das matrizes românticas e pós-românticas, encontramos duas matrizes: a matriz vitalista e naturista (na qual se inserem a ACP e GT) e as matrizes compreensivas (onde se inserem as fenomenologias-existenciais).

A matriz vitalista e naturista recolhe, segundo Figueiredo (1991), tudo o que fora excluído das matrizes cientificistas: o qualitativo, o criativo, o espiritual etc., mas permanece presa à divisão entre razão e vida, tomando partido em favor da vida e contra a razão. Os vitalistas priorizam a vida espiritual, substituem a inteligência conceitual pela intuição e destacam o fluxo de um élan vital, originando “seitas” psicológicas “unificadas pelo anti-racionalismo, pela mística da vida autêntica, pré-social e pré-simbólica” (p. 32).

É na matriz vitalista e naturista que Figueiredo insere as várias correntes das psicologias humanistas (entre elas, a Abordagem Centrada na Pessoa de Carl Rogers e a Gestalt-terapia de Frederick Perls e colaboradores), assinalando que esta matriz “está profundamente enraizada no senso comum da prática psicológica e nas representações sociais da psicologia” (p. 33).

Figueiredo (1991) trata do humanismo romântico como preconizado por “seitas” que proliferam a cada dia nas grandes metrópoles e são importadas para o Brasil, prometendo a cura, a reeducação e a solução de problemas e mesclando a figura do psicólogo com a do guru ou do mago. Assinala que a mística da liberdade, do vitalismo energético e da autorrealização aparecem metaforicamente como o “orgon da energia cósmica” nos humanismos de Carl Rogers e de Maslow, sendo o objetivo da psicoterapia libertar esta energia e dar-lhe campo para atualizar-se. Por outro lado, identifica o otimismo que caracteriza o pensamento de Rogers e de Perls no que se refere a uma visão de natureza humana na qual “a inteligência é limitada, mas felizmente a intuição é possível...” (p. 131).

Sempre com uma forte pitada de ironia, Figueiredo (1991) assinala que a autoatualização estaria identificada, nas matrizes românticas humanistas, com a genuína vida comunitária, o que supõe uma compatibilidade entre a autêntica realização do individuo e a felicidade coletiva. Lembra que, para Rogers, a psicoterapia deve facilitar a emergência de indivíduos abertos à experiência, receptivos, sem defesas, capazes de funcionar como participantes e observadores dos processos vitais, indivíduos confiantes nos próprios sentimentos e engajados no processo de ser e de tornar-se pessoas. Reconhecendo que o vitalismo representa, historicamente, uma reação ao imperialismo mecanicista, Figueiredo conclui que “o vitalismo reduz-se a uma pura ideologia sem qualquer valor cognitivo” (p. 133) porque renega a racionalidade e o impulso crítico, sem ambição de rigor e regido pela intuição delicada dos sentimentos, pois transpira as melhores intenções, eminentemente românticas “na sua acepção mais vulgar de belo, fantasioso e suave” (p. 133).

Já nas matrizes compreensivas, Figueiredo (1991) define três grandes linhas: o historicismo idiográfico, o estruturalismo e a fenomenologia, entendendo a fenomenologia como “um dos coroamentos da tradição filosófica racionalista, iluminista e, portanto, anti-romântica” (p. 33). Como matrizes do pensamento psicológico, estas três matrizes se inserem numa problemática instaurada pelo romantismo: a problemática da expressão, sendo unificadas por visarem a experiência humana inserida no universo cultural.

Como matriz compreensiva, a fenomenologia é, para Figueiredo (1991), uma tentativa de superação, tanto do cientificismo quanto do historicismo. Criada para buscar a fundamentação do conhecimento, a fenomenologia surge com Edmund Husserl como uma critica à legitimação naturalista do conhecimento:

(...) o fundamento, ao contrário, deve ser procurado ao lado da consciência pura, do sujeito transcendental (...). Os objetos nesta disciplina não são os eventos naturais, mas os fenômenos, aquilo que se dá à consciência, ou, dito de outra forma, é visado por ela como pura essência. A consciência para a fenomenologia seria uma pura intencionalidade: sempre consciência de algo. A fenomenologia (ciência eidética) procura descrever a essência do algo visado pela consciência... (p. 36).

Aqui, quando trata da fenomenologia, Figueiredo se refere à fenomenologia do primeiro Husserl, aquela do idealismo transcendental, de uma fenomenologia da consciência pura. Ainda segundo Figueiredo (1991), a fenomenologia da consciência transcendental, confluindo com outras tradições filosóficas e literárias, está na origem dos existencialismos, que terão influências mais diretas nas várias abordagens psicológicas do que as correntes provenientes da filosofia fenomenológica propriamente dita. Essas várias correntes existencialistas unificam-se, segundo sua leitura, com o intuito de descrever e elaborar as categorias analíticas da existência concreta. Assim, as vertentes fenomenológicas existenciais enfatizam que o homem é um ser no mundo (como o Dasein de Heidegger, ou o mundano de Merleau-Ponty), ou seja, que não tem uma essência pré-definida. A existência é um modo de ser que se projeta para o futuro (o homem como projeto de Sartre), realizando o seu destino, vinculado a uma situação, que tem como cerne a idéia do sujeito responsável por suas escolhas. Em termos das contribuições desta matriz, Figueiredo (1991) acrescenta que a antropologia fenomenológica existencialista proporciona o modelo de sujeito que será investigado pelas ciências humanas empíricas, contribuindo no sentido de explicitar que a compreensão do indivíduo são ou doente, “implica na reconstrução do seu mundo, na explicitação dos horizontes implícitos que conferem sentidos a seus atos e vivências conscientes, no desvelamento do projeto existencial que subjaz a todas as suas ações” (p. 37).

Na medida em que tem como objetivo o esclarecimento do homem como sujeito constitutivo da experiência e da reflexão do mundo, a fenomenologia é considerada por Figueiredo (1991) como herdeira do Iluminismo, ao abolir crenças ou preconceitos mal fundados. Nesta medida, a fenomenologia é um antirromantismo, pois se diferencia das matrizes românticas, que mantêm a mesma separação entre sujeito e objeto que marca as matrizes cientificistas (e contra a qual elas se insurgiram) na medida em que abole a cisão sujeito-objeto.

Para Figueiredo (1991), tanto as matrizes românticas &– vitalistas e naturistas (representadas, aqui, pela Abordagem Centrada na Pessoa e pela Gestalt-terapia) &– quanto as matrizes pós-românticas compreensivas (representadas pela fenomenologia) produzem, frequentemente, ideologias pararreligiosas por conta da divulgação de uma experiência única, irredutível e intransferível, da mística de uma liberdade de escolha individual e do seu indeterminismo: “no altar desta nova religião será colocado o ‘indivíduo’ e a ‘liberdade’ e outras imagens do gênero, sem que se coloque com seriedade uma análise das condições concretas que poderiam permitir sua realização” (p. 38). Tais ideologias legitimam, em sua opinião, o retraimento do sujeito sobre si mesmo, numa inflação inconsequente da subjetividade.

Estas posições de Figueiredo (1991), um tanto quanto radicais, embora não se tratem de totais inverdades &– vemos na enorme proliferação de vertentes contemporâneas das psicologias humanistas tanto trabalhos consistentes e fundamentados como outros que são passíveis da leitura de Figueiredo &– serão discutidas aqui no que se refere, especificamente, à Gestalt-terapia e a Abordagem Centrada na Pessoa.

 

Gestalt-Terapia e Fenomenologia

Frederick Perls, criador da Gestalt-terapia, nasceu em Berlim, em 1893, numa família judaica. Era médico e sua proposta psicoterapêutica sofreu várias influências, tais como da psicanálise, da análise de caráter de Reich, da Psicologia da Gestalt, da teoria organísmica de Goldstein, da filosofia existencial e do zen-budismo (Tellegen, 1984; Boris, 2002). Parece possível dizer que Perls foi, acima de tudo, um severo crítico da psicanálise, dialogando com ela, muitas vezes com alguns enganos, como dão a entender Araújo (2002) e Frazão (2002), até seus últimos escritos, publicados postumamente com o título de A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia (Perls, 1981). Segundo Boris (2002), Perls esteve preso à psicanálise até o fim de sua vida, fosse por admiração ou por ressentimento de Freud, desde sua fria recepção no congresso de 1936, na antiga Tchecoslováquia, onde Perls apresentara um trabalho sobre Resistências Orais, que fugia da concepção psicanalítica freudiana onde as resistências eram entendidas como anais. Uma revisão ampliada deste trabalho foi publicada em 1942, na África do Sul, como sua obra seminal: Ego, Fome e Agressão: Uma Revisão da Teoria e do Método de Freud, cujo subtítulo foi eliminado na edição norte-americana de 1969 e reintroduzido na tradução de Georges Boris para a primeira edição brasileira (Perls, 1942/2002). A partir daí se dá o surgimento da Gestalt-terapia enquanto uma proposta diferenciada da psicanálise de Freud, embora ligada a esta, no bojo de sua origem eminentemente critica da psicanálise.

Psicanalista de origem, apesar de conhecer parte das obras de Wertheimer, Köhler, Koffka e Lewin, Perls teve como um de seus fundamentos principais a Psicologia da Gestalt, com a qual ele teve um contato mais direto por meio da teoria organísmica de Goldstein, de quem foi assistente no Instituto de Soldados Portadores de Lesões Cerebrais, onde Goldstein estudava as conseqüências comportamentais de tais lesões a partir das noções básicas da Psicologia da Gestalt de Wertheimer, Köhler e Koffka. Goldstein propôs a concepção de organismo como um todo, rompendo com a tradição clássica de que temos órgãos isolados. Com base nesta concepção, Perls ampliou as bases da Gestalt-terapia, tomando por objeto não mais funções psicológicas isoladas, tais como percepção, aprendizagem etc., mas o organismo como um todo em seu funcionamento (Tellegen, 1984; Loffredo, 1994; Holanda & Faria, 2005). Assim, em seu livro Escarafunchando Fritz, Perls (1979) afirma: “nós somos organismos...” (p. 21). Dessa forma, ao contrário de buscar as causas ou os porquês, a abordagem gestáltica pretende captar como ocorre um dado fenômeno, tomando- o em sua totalidade e buscando detectar em função de quê se estrutura o todo, daí o termo gestalt, que significa configuração, estrutura, tema, relação estrutural ou todo significativo (Loffredo, 1994). Um dos princípios da Psicologia da Gestalt afirma que existe uma tendência à organização que se atualiza na dinâmica figura-fundo, princípio que foi utilizado por Goldstein em seus estudos da relação organismo-meio com portadores de lesões cerebrais. Nesta proposta, é fundamental a concepção de campo organismo-ambiente, que, para a Gestalt-terapia, constitui a situação psicológica, derivando na noção de contato. As bases da Gestalt-terapia são, portanto, provenientes da abordagem fenomenológica de campo, presente na Psicologia da Gestalt, que, por sua vez, se inspira na fenomenologia de Husserl (Col. Os Pensadores, 1980).

Segundo Boris (1992a), a fenomenologia proporciona a metodologia básica de todas as abordagens existenciais, entre elas, a Gestalt-terapia. No entanto, em 1946, Perls imigrou para os Estados Unidos, passando a enfatizar a divulgação da Gestalt-terapia como uma criação sua e negligenciando teoricamente suas raízes filosófico-metodológicas: “assim, a maioria de suas obras da fase norteamericana (...) parece sofrer do pragmatismo característico desta sociedade, particularmente nos anos 60” (Boris, 1995). Ainda assim, Boris indica possíveis influências existenciais e fenomenológicas na Gestalt-terapia de Perls: a crença na subjetividade, possivelmente influenciada por Kierkegaard (Col. Os Pensadores, 1979) e Nietzsche (Col. Os Pensadores, 1978); a incorporação da noção de intencionalidade, de Husserl (Col. Os Pensadores, 1980), a característica básica da consciência, um conceito central na psicoterapia de Perls (1977, 1979, 1981 e 1942/2002); a concepção de dasein de Heidegger (Col. Os Pensadores, 1989), quando Perls (1977, 1979, 1981 e 1942/2002) trata do ser humano como capaz de realizar as categorias básicas da existência humana; a idéia de homem responsável por suas escolhas, herdada de Sartre (Col. Os Pensadores, 1978); os conceitos de encontro e de relação, da filosofia dialógica de Buber (1974); e a filosofia de Merleau-Ponty (1945) na sua perspectiva organísmica, que elimina uma interpretação causal entre mente e corpo (Boris, 1992b).

É interessante lembrar que tais bases fenomenológicas apontadas por Loffredo (1994), Tellegen (1984) e Boris (1992a, 1995) dentre outros gestalt-terapeutas, não são reconhecidas por Figueiredo (1991), que, como crítico externo da Gestalt-terapia, a inseriu na matriz vitalista e naturista. Com relação à crítica que faz Figueiredo de que esta abordagem se mantém presa ao pensamento dualista cartesiano, assim como as matrizes cientificistas, parece possível encontrar no conceito de campo, originado da Psicologia da Gestalt, e na própria teoria organísmica de Goldstein idéias que, justamente, se propõem a ir além de uma visão cindida em partes ou funções e buscam uma perspectiva mais integrada e holística de ser humano. Também Perls (1981), no seu livro A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia, critica explicitamente as escolas tradicionais de psicoterapia, que continuam a operar em termos da velha cisão corpo/mente, mantendo-se presas à concepção de causalidade. Segundo ele, “o homem não é uma criatura puramente racional” (p. 24); em psicoterapia, o conceito de campo unificado “nos dá um instrumento para lidar com o homem global. Agora podemos ver como suas ações mentais e físicas estão entrelaçadas” (p. 30).

Mas é com seu conceito de limite de contato que Perls (1981) mergulha mais fundo sua proposta psicoterapêutica na idéia de campo fenomenal, herdada de Husserl via Psicologia da Gestalt. Para Perls, “o estudo do modo que o ser humano funciona no seu meio é o estudo do que ocorre na fronteira de contato entre o indivíduo e seu meio. É neste limite de contato que ocorrem eventos psicológicos” (p. 31). Ainda nesta sua obra mais amadurecida, Perls, em seu estilo sempre um tanto quanto estouvado, se posiciona radicalmente contra a cisão sujeito-objeto, que, segundo Figueiredo (1991), faria parte de seu pensamento, bem como das demais assim chamadas psicologias humanistas. Perls (1981) critica as psicologias que

(...) dividiram a experiência em interior e exterior e então se defrontaram com a pergunta insolúvel de se o homem é regido por forças de fora ou de dentro. Este tipo de abordagem, esta necessidade de uma causalidade simples, esta omissão do campo total, estabelece problemas de situações que, na realidade são indivisíveis (p. 31).

Ou, mais adiante, nesta mesma obra: “os psicólogos que mantêm uma concepção dualista do homem o vêem operando como forças opostas que partem o indivíduo em pedaços. Por outro lado, nós os vemos como aspectos de uma mesma coisa (...)” (Perls, 1981, pp. 36-37).

É possível, portanto, afirmar que Perls criticava uma visão dualista na psicologia. No entanto, é possível também observar que seu pensamento se mantém preso ao dualismo consciente versus inconsciente, por exemplo, (Perls, 1977, 1979, 1981, 1942/2002). Assim, esta questão merece pesquisas mais aprofundadas que esclareçam este tema. É questionável afirmar, como o faz Figueiredo (1991), que a Gestalt-terapia tem uma visão dualista de ser humano, o que seria uma característica básica das matrizes românticas, inserindo-a nesta matriz. Talvez Figueiredo o faça um tanto preconceituosamente, quando discute, por exemplo, a idéia de holismo e a influência do pensamento oriental, presentes nos escritos de Perls (1977, 1979, 1981, 1942/2002) como sustentação da sua visão de homem integrado. De fato, Frederick Perls foi tudo menos uma figura tradicional. Seu estilo agressivo e atrevido é uma marca em toda a sua trajetória profissional, marcada pela eterna crítica à psicanálise. No entanto, seu livre trânsito em experiências e pensamentos menos ortodoxos não faz da Gestalt-terapia uma “seita”, como sugere Figueiredo (1991), embora o estilo controvertido de Frederick Perls possa dar margem a possíveis associações com a figura de um guru, o que ocorreria nas matrizes românticas, tal como assinala Figueiredo.

Uma segunda característica criticada por Figueiredo (1991) como própria das matrizes vitalistas e naturistas, entre as quais encontraríamos a Gestalt-terapia, é a idéia de autoatualização. Neste caso, Figueiredo parece ter razão, já que os pressupostos da teoria organísmica de Goldstein envolvem diretamente a idéia de que o organismo tem um movimento natural para o crescimento e a autorrealização. Apesar de Perls defender constantemente que a interação organismo-meio deve ser entendida de modo plural, englobando aspectos biológicos, psicológicos e socioculturais, a grande maioria de seus exemplos de tal interação são metáforas digestivas e fisiológicas, o que, possivelmente, indicaria a forte influência de Goldstein em todo o seu pensamento, que, neste sentido, acaba se desenvolvendo fortemente em torno de um eixo biologicista (Tellegen, 1984; Loffredo, 1994). Ainda em sua obra póstuma, A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia, Perls (1981) descreve a neurose como “a doença que surge quando o indivíduo, de alguma forma, interrompe os processos contínuos da vida e se sobrecarrega com tantas situações incompletas que não pode prosseguir satisfatoriamente com o processo de viver” (p. 38). O vitalismo e o naturismo referidos por Figueiredo (1991) encontram-se, neste aspecto, fortemente presentes na Gestalt-terapia de Frederick Perls, a partir da idéia de vida enquanto um fluxo contínuo.

Finalmente, um terceiro aspecto assinalado por Figueiredo (1991) vale ser mencionado: o homem como responsável por suas escolhas, idéia marcante no existencialismo, que se insere, segundo ele, na matriz compreensiva pós-romântica. Tal idéia pode ser encontrada em Perls (1981), ao descrever, por exemplo, o funcionamento de fuga do contato do neurótico: “perdeu a liberdade de escolha, não pode selecionar meios apropriados para seus objetivos finais porque não tem a capacidade de ver as opções que lhe estão abertas” (p. 38). Ainda que a liberdade de escolha mencionada por Perls possa ser compreendida, conforme Figueiredo (1991), como a “mística da liberdade” (p. 38), característica da matriz vitalista e naturista, tal afirmação tem, sem dúvida, uma conotação fortemente existencial, o que inseriria a Gestalt-terapia mais na matriz compreensiva pós-romântica do que na matriz vitalista e naturista.

De fato, embora sejam possíveis muitas aproximações entre a Gestalt-terapia e a Fenomenologia Existencial, e o próprio Perls (1977) tenha afirmado considerar a Gestalt-terapia como um dos três tipos de psicoterapia existencial, juntamente com a Logoterapia, de Victor Frankl e a Daseinanálise, de Ludwig Binswanger, em suas palavras,

(...) o que é importante é que a Gestalt-terapia é a primeira filosofia existencial que se apóia em si própria (...). Se vocês olharem os existencialistas, eles dirão que são não conceituais, mas se olharem os indivíduos verão que todos emprestaram seus conceitos de outras fontes: Buber, do judaísmo; Tillich, do protestantismo; Sartre, do socialismo; Heidegger, na linguagem; Binswanger, na psicanálise e assim por diante (p. 33).

Assim, Perls (1977) critica pensadores existencialistas que deveriam, de fato, estar libertos de conceitos externos: “o existencialismo deseja se libertar dos conceitos e trabalhar com o princípio da ‘presentificação’ (awareness), com a fenomenologia” (p. 33). Na verdade, esta é uma das raras passagens, em sua obra, em que Perls referese mais explicitamente à fenomenologia. Por outro lado, tal como considerado por Perls (1977, 1981, 1942/2002), a noção de presença em Heidegger (1989) e Binswanger (1947/1971, 1956/1972) seria sinônima de presentificação ou de awareness. Este tema merece, sem dúvida, um estudo mais cuidadoso e aprofundado no que se refere a tal concepção na obra desses pensadores, o que não é o objetivo deste artigo.

Ainda que Frederick Perls tenha pouco explorado seus fundamentos filosóficos, raramente mencionando a fenomenologia como possível influência ou base metodológica de seu trabalho, talvez sua função tenha sido, como assinala Tellegen (1984), “a de abrir pistas para quem quisesse segui-las” (p. 45). O mais provável é que o pragmatismo norte-americano tenha tido uma importância considerável no desenvolvimento de sua proposta, tal como observa Boris (1992a, 1995), tanto que não é pouco freqüente o engano de se considerar a Gestalt-terapia uma psicoterapia constituída por uma série de técnicas, apresentadas por Perls (1973/1981, 1977, 1979) em grande parte de seus escritos. Possivelmente, o próprio Perls deu margem a tais enganos. Seja como for, se não foi explicitada a base fenomenológica da Gestalt-terapia em Perls, certamente ela é apontada na atual produção teórica da área no Brasil, tal como se pode encontrar nas obras Fenomenologia e Gestalt-terapia, de Müller- Granzotto & Müller-Granzotto (2007) e Gestalt-terapia e Contemporaneidade, de Holanda & Faria (2005) onde a ênfase fenomenológica por meio do diálogo com vários pensadores fenomenológicos e existenciais (entre estes, Husserl, Buber, Nietzsche e Merleau-Ponty) potencializa novos caminhos para uma compreensão fenomenológica e existencial dos conceitos da Gestalt-terapia originalmente formulados por Frederick Perls.

A tradição fenomenológica da Gestalt-terapia brasileira já se desenvolve há alguns anos, podendo ser ilustrada na síntese de Loffredo (1994) das principais características do método fenomenológico, presentes na Gestaltterapia &– na opinião desta autora &– a partir da Psicologia da Gestalt:

1) dar ênfase à experiência imediata aqui-e-agora, colocando-se entre parênteses pré-concepções estranhas a este vivido imediato; 2) buscar insight dentro da estrutura própria ao todo fragmentado que é o campo experiencial da percepção; 3) voltar-se a um trabalho de experimentação sistemática pra descrever com acuidade a estrutura dos fenômenos implicados; 4) buscar insight no próprio processo de awareness; 5) estar imbuído da ‘atitude fenomenológica’, que supõe ser a consciência sempre ‘consciência de’, criando condição de existência do mundo e dando-lhe sentido (p. 77).

É possível observar, na argumentação de Loffredo, uma apropriação dos conceitos da fenomenologia para a descrição da Gestalt-terapia que potencializa uma compreensão fenomenológica da Gestalt-terapia. Na medida em que esta vertente se fortalece, deixa para trás uma compreensão meramente tecnicista da Gestalt-terapia, mais vulnerável a acusações como a de ser utilizada como “seita”.

 

Abordagem Centrada na Pessoa e Fenomenologia

A Abordagem Centrada na Pessoa foi criada pelo psicólogo norte-americano Carl Rogers como uma proposta inovadora de psicoterapia a partir de uma palestra proferida na Universidade de Minnesota, em dezembro de 1940, sobre Novos Conceitos em Psicoterapia, que causou uma grande polêmica entre os espectadores. A palestra versava sobre conceitos que tinham como base o impulso individual para o crescimento e para a saúde, colocando maior ênfase nos aspectos emocionais do que nos intelectuais, enfatizando a situação imediata ao invés do passado do indivíduo e tomando a própria relação psicoterapêutica como uma experiência de crescimento. Essas idéias foram publicadas, nos Estados Unidos, no livro Psicoterapia e Consulta Psicológica (Rogers, 1973). A partir de então, a proposta rogeriana assumiu, ao longo dos anos, várias denominações: Aconselhamento Não-Diretivo, Terapia Centrada no Cliente, Ensino Centrado no Aluno, etc., até chegar à atual denominação &– Abordagem Centrada na Pessoa &– que, segundo Rogers (1983b), é a denominação mais abrangente e que descreve melhor sua teoria. A evolução da denominação expressa um movimento na teoria rogeriana, que, partindo de uma proposta de atendimento clínico (aconselhamento e psicoterapia) se amplia a outras áreas, tais como educação, grupos, etc. Encontramos, assim, diversas fases do pensamento rogeriano, que têm sido descritas como:

1) Psicoterapia Não-Diretiva (1940-1950);
2) Terapia Centrada no Cliente (1950-1957);
3) Terapia Experiencial (1957-1970) (Hart & Tomlinson, 1970; Wood, 1983, Cury, 1987);
4) Fase coletiva (1970-1987) (Moreira, 2001, 2007) ou Inter-Humana (Holanda, 1998).

Com base na análise de Segrera (2002), que identifica uma proliferação de versões contemporâneas da Abordagem Centrada na Pessoa após a morte de Carl Rogers, em 1987, poderíamos acrescentar uma quinta fase:

5) Fase pós-rogeriana (a partir de 1987 até os dias atuais).

Ainda que os interesses de Carl Rogers tenham se modificado, seu foco se manteve o mesmo ao longo de toda a sua vida: a Abordagem Centrada na Pessoa, como é sugerido pela própria denominação, tem a pessoa como centro das preocupações. Para Rogers (1977), todo organismo tem uma tendência para desenvolver suas potencialidades de forma positiva; trata-se de um potencial natural de crescimento pessoal inerente à pessoa, que se desenvolve sob condições facilitadoras. A teoria rogeriana tem como postulado fundamental a tendência atualizante, definida como intrínseca e inerente à pessoa. Assim, o homem é considerado como seu próprio arquiteto (Moreira, 2001, 2007). A confiança no potencial da pessoa encontra-se presente no pensamento rogeriano desde o início de sua carreira, ao trabalhar com crianças, em 1939, quando afirma: “deve haver uma disposição para aceitar a criança como ela é (...) e dar-lhe liberdade para tentar soluções próprias para os seus problemas” (Rogers, 1978, p. 247).

Em 1942, Rogers propôs a confiança no indivíduo como uma característica da consulta psicológica (Rogers, 1979), explicitando posteriormente, que “a abordagem centrada na pessoa baseia-se em uma premissa que a princípio pareceu arriscada e incerta: uma visão de homem como sendo, em essência, um organismo digno de confiança” (Rogers, 1976, p. 16). Trata-se da tendência atualizante, definida como “um fluxo subjacente de movimento para uma realização construtiva de suas possibilidades intrínsecas (...) uma tendência natural para o desenvolvimento completo” (p. 17), ou ainda, como uma tendência inerente à pessoa (Rogers, 1977a). A tendência atualizante é, portanto, o conceito central sobre o qual está construída a Abordagem Centrada na Pessoa (Moreira, 2001, 2007). O trabalho do psicoterapeuta, do professor ou do facilitador de grupos é favorecer que a tendência atualizante possa se desenvolver por meio de atitudes facilitadoras &– empatia, congruência e aceitação positiva incondicional: “a terapia (...) desempenha um papel extremamente importante na libertação e no processo de facilitação da tendência do organismo para um desenvolvimento psicológico ou para a sua maturidade, quando essa tendência se viu bloqueada” (Rogers, 1976, p. 63). Ou seja, a psicoterapia teria como objetivo facilitar o desbloqueio da tendência atualizante quando esta &– que é intrínseca e inerente ao ser humano &–, por algum motivo não esteja fluindo naturalmente em uma direção positiva.

A idéia de que a natureza humana é, fundamentalmente, positiva está baseada, segundo Rogers, em sua própria experiência clinica. Desde o seu conhecido artigo A note on the nature of man, de 1957, ele afirma que é a sua experiência que mostra que os clientes são fundamentalmente bons; e, ao longo de toda a sua obra, Rogers se referiu à sua experiência pessoal como fonte de seus escritos &– “não posso fazer mais do que tentar viver segundo a minha própria interpretação da presente significação da minha experiência...” (Rogers, 1976, p. 38) &–, o que situa seu pensamento na corrente funcionalista pragmatista norte-americana.

Cavalcante Jr. (2008) lembra que o pragmatismo foi criado por Peirce, havendo William James resgatado sua dimensão experiencial. Por intermédio de Kirkpatrick, seu professor de filosofia da educação na Universidade de Columbia, Rogers teve contato com a teoria de Dewey, que teve profundas repercussões em seu pensamento, tanto na compreensão do significado do crescimento como processo contínuo, quanto na ênfase pragmática da experiência. Segundo Cavalcante Jr (2008), foi esta ênfase pragmática, sempre se perguntando “se funciona”, que fez de Carl Rogers o mais renomado psicoterapeuta dos Estados Unidos, o país do pragmatismo por excelência.

Desta forma, as concepções de Rogers (1979, 1983a) se inserem na matriz vitalista e naturista, tal como formulada por Figueiredo (1991), o que torna significativa a polêmica se seu pensamento é fenomenológico ou não. É bem verdade que, em algumas passagens, os escritos de Rogers parecem bastante fenomenológicos. Por exemplo, quando sugere que

(...) nos aproximemos dos fenômenos com o mínimo de pré-conceitos possível [em uma atitude de redução fenomenológica, colocando entre parênteses idéias pré-concebidas?], que assumamos a atitude observadora e descritiva [sendo a descrição o ponto de partida da fenomenologia para a compreensão da experiência vivida?] do naturalista... [e aqui volta a assumir sua vertente naturalista, mesmo se soou fenomenológico no início de sua afirmação] (Rogers, 1976, p. 110).

Portanto, o conceito de tendência atualizante e, posteriormente, o conceito de tendência formativa do último Rogers (1983a) que amplia esta tendência positiva ao universo como um todo, não deixam qualquer margem de dúvida quanto à inserção de seu pensamento na matriz vitalista e naturista. Assim, ainda que se possa considerar Carl Rogers um mestre do pensamento compreensivo contemporâneo, não é possível afirmar que ele faça parte da matriz compreensiva fenomenológica, tal como formulada por Figueiredo (1991). No entanto, quem leu a obra de Rogers mais a fundo e, principalmente, que tenha tido a oportunidade de conhecê-lo ou de trabalhar com ele pessoalmente, terá certeza de que, em nenhum momento, ele ou qualquer membro de sua equipe de trabalho de La Jolla teve alguma pretensão de ser guru, criador de seitas ou algo do tipo. Ao contrário, Carl Rogers e seus colegas eram os mais modestos e sérios dos profissionais e estavam, de fato, profundamente interessados em ajudar o outro, contribuindo para o desenvolvimento da psicoterapia e da compreensão do ser humano. Rogers sofreu, durante toda a sua vida, com o difícil dilema entre pessoa e ciência (Rogers, 1976), haja vista que, para ele, a experiência subjetiva o levara a criar uma proposta inovadora de psicoterapia, quando, como cientista, se angustiava, dado que seu modelo de ciência era eminentemente positivista, presa da objetividade, entendida como a ciência de sua época e de seu momento histórico cultural. Provavelmente seu estilo pragmático, tipicamente norte-americano, aliado ao seu contexto histórico, onde metodologias qualitativas não eram consideradas cientificas, o impediu de buscar metodologias qualitativas mais apropriadas para seus estudos clínicos. Não contou com o método fenomenológico ou outro método qualitativo em suas pesquisas pioneiras em psicoterapia, que, na época, para serem reconhecidas como “científicas”, precisaram ser desenvolvidas como investigações positivistas, ou seja, apenas quantitativas.

O compromisso rogeriano com a ciência (mesmo que ingênuo e positivista) torna sem sentido a acusação de Figueiredo (1991) ao relacioná-lo à figura de um guru. Além disso, Rogers, ao contrário do que afirma Figueiredo com relação às abordagens psicológicas que se inserem na matriz vitalista e naturista, nunca prometeu qualquer cura. Critica a utilização de tais critérios de êxito psicoterapêutico, afirmando que “o conceito de cura é totalmente inadequado...” (Rogers, 1976, p. 203).

No entanto, em sua fase tardia, denominada de “fase coletiva” ou “fase inter-humana” (Holanda, 1998; Moreira, 2007), quando deixa de trabalhar como psicoterapeuta e passa a se interessar prioritariamente por grupos e pela resolução de conflitos internacionais de ordem coletiva, Rogers (1983a) afirma

(...) existe uma tendência formativa no universo que pode ser rastreada e observada no espaço estelar, nos cristais, nos micro-organismos, na vida orgânica mais complexa e nos seres humanos. Trata-se de uma tendência evolutiva para uma maior ordem, uma maior complexidade, uma maior inter-relação. Na espécie humana, essa tendência se expressa quando o indivíduo progride de seu início unicelular para um funcionamento orgânico complexo, para um modo de conceber e de sentir abaixo do nível de consciência, para um conhecimento consciente do organismo e do mundo externo, para uma consciência transcendente, em harmonia e unidade com o sistema cósmico no qual se inclui a espécie humana (p. 50).

Nesta fase, o conceito vitalista e naturista de tendência atualizante, cuja ativação era o foco de sua proposta de psicoterapia, passou a ser entendido com base em um movimento universal igualmente construtivo &– a tendência formativa &– a partir das descobertas da física e da biologia (Holanda, 1998; Moreira, 2001, 2007). A utilização de termos como “consciência transcendente”, “espaço estelar”, “cristais” ou “sistema cósmico”, tal como pode ser encontrado na citação acima, provavelmente deu lugar à crítica de Figueiredo (1991) aproximando-a das chamadas terapias alternativas, que proliferam na contemporaneidade.

A visão dualista apontada por Figueiredo (1991) como característica da matriz vitalista e naturista é evidente ao longo de toda a obra rogeriana até em seus escritos mais recentes, publicados em Um Jeito de Ser, onde Rogers (1983a) utiliza os termos “interior” e “exterior”: “(...) parece que em nosso mundo interior está sempre ocorrendo algo que absolutamente não conhecemos, a não ser que eliminemos os estímulos externos” (p. 105), ou “o bom da vida é interior e não depende de fontes externas” (p. 67). A idéia de uma abordagem centrada na pessoa está associada à concepção de uma pessoa “interior”.

Em pesquisa que analisou as intervenções clínicas rogerianas nas décadas de 1940, 1960 e 1980 mostra-se que, ainda que Rogers tenha adotado um direcionamento fenomenológico na década de 1960, em sua fase experiencial, ele voltou a se distanciar de uma fenomenologia clínica na década de 1980, em sua fase coletiva ou inter-humana (1970-1987), pois se manteve preso à idéia de pessoa “interior” como centro (Moreira, 2001, 2007).

É importante lembrar que apenas em 1951, na primeira edição do livro Terapia Centrada no Cliente (1975), Rogers fez as primeiras alusões à filosofia existencial e fenomenológica. Introduziu, então, o conceito de campo fenomenal, como sua primeira tentativa de elaborar teoricamente a relação terapeuta-cliente. Em 1961, em seu livro Tornar-se Pessoa, Rogers reconheceu seu dilema entre o positivismo lógico e a abordagem existencial, de fato, experiencial, pois mais baseada em sua própria experiência do que em qualquer corrente existencialista.

Rogers declarou, explicitamente, não ter estudado a filosofia existencial, com a qual tomou contato tardiamente a partir da leitura de Buber e de Kierkegaard, em resposta à insistência dos seus alunos. A partir do trabalho com Gendlin (1970), no Center for Studies of the Person, em La Jolla, na Califórnia, Rogers sentiu-se atraído pela ênfase na experiência como conceito fenomenológico-existencial, que, posteriormente, derivou na abordagem experiencial, uma vertente atual da Abordagem Centrada na Pessoa, fundada por Gendlin. Seu contato com Gendlin, possivelmente, contribuiu para que Rogers passasse do positivismo lógico para uma orientação existencialista, na sua fase experiencial; no entanto, considerar toda a psicologia rogeriana como fenomenológica seria um exagero evidente, haja vista que Rogers adotou tal denominação tardia e incidentalmente e nunca tentou praticar, intencionalmente, uma abordagem fenomenológica (Spiegelberg, 1972; Cury, 1987; Moreira, 2001, 2007).

Não é rara a busca, por parte de psicoterapeutas humanistas brasileiros, de fundamentação teórico-epistemológica em filósofos fenomenológicos e/ou existenciais. Entre eles, se destacam os que buscam relacionar os pensamentos de Rogers e de Buber (Boris, 1987, 1990; Amatuzzi, 1989; Holanda, 1998). No entanto, já no debate público realizado entre Buber e Rogers (1965), o filósofo existencial negou que a relação psicoterapêutica fosse um exemplo de relação Eu-Tu, discordando de Rogers por conta da mutualidade que se verifica nesta última, o que não ocorreria na relação psicoterapêutica (Amatuzzi, 1989; Moreira, 2001, 2007). Mais do que tentativas de fundamentação teórico-epistemológica de tais psicoterapeutas brasileiros, bem como de diversos outros (Advíncula, 1991; Fonseca, 1998; Holanda, 1998; Dutra, 2008; Belém, 2004; Gobbi, Missel, Justo & Holanda, 2005; Messias & Cury, 2006; Moreira, 2007), ao buscar fundamentação em filósofos fenomenológicos e/ou existenciais, como Kierkegaard, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Merleau- Ponty, Sartre, além de Buber, essas iniciativas devem ser encaradas como desenvolvimentos contemporâneos de psicoterapeutas “pós-rogerianos” (que partem de seus pensamentos, mas realizam um caminho próprio), o que nunca foi um empreendimento do próprio Rogers. Parece possível buscar afinidades entre as bases filosóficas fenomenológicas e/ou existenciais e o pensamento rogeriano como é desenvolvido na atualidade, mas não devemos nos iludir de que tais filósofos tenham influenciado a teoria rogeriana original. Afirmar que a fenomenologia influenciou a Abordagem Centrada na Pessoa (Gobbi et al., 2005) é um engano. No entanto, é possível considerar que as fenomenologias existenciais passaram a ter um papel fundamental em muitas das vertentes atuais da Abordagem Centrada na Pessoa. Tais vertentes “pósrogerianas” contemporâneas, na medida em que assumiram uma direção fenomenológico-existencial, passaram a ter vida própria nestes mais de 20 anos após a morte de Rogers, ainda que partam de seu pensamento.

 

Considerações Finais

O diálogo da Gestalt-terapia e a da Abordagem Centrada na Pessoa, tal como formuladas originalmente por seus criadores, Frederick Perls e colaboradores e Carl Rogers, com as matrizes do pensamento psicológico, propostas por Luis Claudio Figueiredo (1991), dá lugar a reflexões interessantes, que podem contribuir para a sempre polêmica e atual discussão: elas são abordagens fenomenológicas?

Este artigo mostra que tal classificação em termos de matrizes psicológicas não pode ser adotada rigidamente nem considerada definitiva; talvez possamos pensálas como os “múltiplos contornos” que Merleau-Ponty (1960) identifica em sua filosofia com base na pintura de Cézanne (Moreira, 2007, 2009). A Gestalt-terapia de Perls, em certos momentos &– na compreensão da vida como um fluxo positivo, ou no pragmatismo de Perls ao afirmar que sua proposta parte dele mesmo &– se insere na matriz vitalista e naturista; em outros &– em especial no que se refere ao conceito de campo organismo-ambiente, ou quando critica o dualismo nas psicologias &– parece se inserir na matriz compreensiva, própria do pensamento fenomenológico-existencial, que rompe com o pensamento dualista. A Abordagem Centrada na Pessoa, que em sua fase experiencial (1957-1970) se aproximou da fenomenologia via ênfase no conceito de experiência a partir da influência de Gendlin (Messias & Cury, 2006; Moreira, 2001, 2007), assume, na fase coletiva ou interhumana de Rogers (1970-1987), seu caráter pragmático e naturalista, reforçando o conceito de tendência atualizante que se amplia no conceito de tendência formativa, o que caracteriza a matriz vitalista e naturista.

Tanto Perls quanto Rogers, cada um a sua maneira, possivelmente dão margem, em suas obras inovadoras no campo da psicoterapia, a interpretações eventualmente um tanto preconceituosas de suas teorias. No entanto, não se pode esquecer, a Gestalt-terapia e a Abordagem Centrada na Pessoa representam contribuições fundamentais para o desenvolvimento da psicoterapia hoje.

É importante observar um movimento similar, tanto na Gestalt-terapia quanto na Abordagem Centrada na Pessoa, na direção de uma aproximação ou mesmo de um desenvolvimento contemporâneo de uma abordagem humanista- fenomenológica (Moreira, 2009), isto é, que parte do pensamento humanista, seja baseado em Perls, seja em Rogers e se desenvolve fundamentado na fenomenologia existencial em Heidegger, Merleau-Ponty, Buber e assim por diante. Quem sabe esse movimento aconteça, no Brasil, exatamente como uma tentativa de se livrar das acusações de tais abordagens serem teorias alternativas pouco sérias. Ou quem sabe a atitude pragmática, tanto de Rogers quanto de Perls, ao desenvolverem suas teorias com base em suas próprias práticas (bem diferentes não apenas em estilo como em teoria, diga-se de passagem, ainda que ambas humanistas), não dê conta da clínica psicológica, que tanto tem, ainda, a aprender sobre o Lebenswelt (mundo vivido).1

 

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Endereço para correspondência
APHETO - Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica
Universidade de Fortaleza
Avenida Washington Soares, nº 1.321
Fortaleza, Ceará, Brasil
Email: virginiamoreira@unifor.br

Recebido em 12.05.09
Primeira Decisão Editorial em 25.07.09
Aceito em 14.09.09

 

 

Virginia Moreira - Psicoterapeuta, Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós-Doutora em Antropologia Médica pela Harvard University. É Professora Titular da Universidade de Fortaleza e Visiting Lecturer da Harvard Medical School.
1 Agradeço a Georges Boris, pelos valiosos comentários à versão preliminar deste artigo.

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