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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.16 no.1 Goiânia jun. 2010

 

RESENHAS

 

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

 

La Epoca Presente, 2001

(Sören Aabye Kierkegaard)

Santiago, Chile: Editorial Universitária

 

Introdução1

Em outubro de 1845, Kierkegaard2 escreveu a resenha da novela “Duas épocas” de Thomasine Gyllemberg, cujo objetivo consistia em evidenciar os efeitos que a nova vida política produziria na vida cotidiana. Para tanto, comparou duas gerações: a do final do século XVIII com a de 1840.

Em 1840, a Europa apresentava um novo cenário político e consequentemente social. Embora a monarquia ainda fosse a forma de governo predominante, já se apresentavam constituições moderadamente liberais, e então surgiu o início de uma burguesia industrial, que ganhava força pela sua acelerada produtividade.

O fortalecimento da burguesia, a valorização da produtividade, as transformações técnico-científicas, o crescimento do comércio e da indústria, juntamente, com a necessidade de aumentar a oferta da mão de obra, bem como a promessa de melhor qualidade de vida levavam a Europa a um significativo êxodo rural. A entrada de um grande contingente de pessoas nas cidades acabou resultando em desemprego, baixos salários e condições indignas de vida. Além do que, a evasão do campo enfraqueceu a agricultura e com isto encareciam os alimentos, prejudicando ainda mais aos desempregados e aos mal remunerados.

Os críticos da época dividiam-se. Por um lado havia os que defendiam o progresso; por outro, os que temiam as possíveis consequências sociais da estrutura política que se estabelecia. Kierkegaard posicionou-se quanto à nova estrutura política, ao ler a novela intitulada “Duas Épocas”. Em uma primeira leitura, opinou sobre o título, dizendo que o mais acertado seria “Uma história da vida diária”. Em uma segunda leitura, admitiu o seu equivoco, justificando-o pelo fato de por estar inserido na época, ficava impossibilitado de ver o que realmente estava acontecendo, e acabou admitindo que o título era bastante pertinente.

Inspirado em “Duas épocas”, em 30 de março de 1846, Kierkegaard escreveu uma obra intitulada: “La Época Presente”, na qual se propõe a investigar o fenômeno social que se apresentava frente ao quadro político que se impunha. Divide-a em três sessões. Na primeira sessão, comparou duas gerações: a época da revolução, final do século XVIII, com a de 1840, tendo como fundamental a discussão da dialética da razão e da paixão. Na segunda parte, discutiu a nivelação que vinha ocorrendo nas relações, e como deste modo estas se esvaziavam de conteúdo, e assim o homem estaria se transformando em algo da ordem do público, tornando-se uma abstração, sobretudo pela influência da publicidade. A partir daí, estabeleceu categoriais dialéticas e pressupôs as consequências sociais desta nova ordem. Na terceira sessão, descreveu os atributos concretos da atualidade, bem como as afetações que acabariam por atingir a vida familiar e social.

 

1. Primeira Sessão: Comparação de Duas Gerações

Na primeira parte, referiu-se ao pensamento predominante nessa época como carente de paixão, de vida e repleto de teoria. Com isso, mantinha-se a ordem, o ideal de progresso, no entanto, esvaziava-se o sentido da própria existência. Tudo se tornava teoria e abstração. Quando faltava paixão inexistia o ativo do sentimento, do entusiasmo e, também, faltava interioridade tanto no posicionamento político, quanto no religioso. Faltava o ativo do doméstico, a piedade ou a admiração no cotidiano e na vida social. Dizia, ainda que, nesta época, debochava-se da graça que possuem ativos e a massa ria em coro. Por fim, a época desapaixonada não possuía ativos, tudo se convertia em transações com papel moeda.

Referia-se à época presente como a época da publicidade, dos anúncios, que não se constituía como uma época de ação, nem de decisão e, sim de antecipação e de adiantamento, de superficialidade.

Afirmava que a nova estrutura política defendia que a autoridade política caberia ao homem letrado, com conhecimentos em filosofia. Kierkegaard contra-argumentava, defendendo que não é ao homem culto que cabe este lugar, mas ao religioso, pelo simples motivo de que ao religioso qualquer homem do mais simples ao mais sofisticado poderia chegar.

Com relação ao social, Kierkegaard alertava para as mudanças do ocidente, com a decomposição da tradição e a emergente sociedade de massa, tanto a elite quanto o homem comum estavam perdendo a sua individualidade, seus referenciais, principalmente pela influência da publicidade.

Kierkegaard chamou a atenção para o modo como as pessoas se deixavam conduzir pelo numérico, quando os referenciais destes indivíduos se encontravam debilitados. Recomendou, então, que antes dos homens se associarem, o individuo deveria ganhar em si mesmo uma postura, apesar do mundo, seria preciso que cada um tivesse sua própria posição. Para formar uma opinião, os indivíduos precisavam agrupar-se. Assim sendo, a opinião de cada um não é senão a do publico, tornando-se uma abstração.

No entanto, lembrou que o homem consciente de seus necessários poderia desvencilhar-se dos chamados exteriores, que a todo o momento o solicitava, proclamando os possíveis, e até apelando no sentido de convencê-lo que são necessários. Aos atarefados homens contemporâneos, fazia-se urgente provocá-los para que a sua consciência se fortalecesse e, assim, mobilizá-lo para que a escolha singular não fosse esquecida. Kierkegaard mostrou toda a sua preocupação com o período que ele denomina pósrevolução pela perda de toda a tradição e pela ansiosa busca de novidades.

Alertava para o domínio do público, no qual a privacidade ficaria relegada ao trivial. Época do entusiasmo e da indolência, onde o que se gostava era de não levar a sério. Todos eram capazes de compreender perfeitamente em termos de reflexão e observação, porém incapazes de agir e de assumir a responsabilidade pelas suas ações.

 

2. S egunda Sessão: as Relações Niveladas

Kierkegaard apontou como consequência social da ordem política que vinha se instaurando o fenômeno da nivelação social, em que a figura de autoridade desapareceria. Dizia que a nivelação seria o trunfo da abstração sobre os indivíduos. Criava-se a idéia de igualdade entre os homens, transgredindo aquilo que há de mais original entre eles que é a sua singularidade. Ao se nivelar as relações pai - filhos, educador - educando, estas se tornariam vazias de conteúdo, ocorrendo a inveja, a competição. Preocupava-se que em uma época desapaixonada e muito reflexiva, a inveja seria o princípio unificador, enquanto que em uma época apaixonada o que unificava era o entusiasmo.

Em uma época de reflexão e abstração, o cidadão deixou de fazer parte da relação e passou a ser um expectador. Como observador, afastava-se da relação e passava e estudar o problema da relação. Tudo, por fim, terminaria em comitê. A relação pai e filho deixaria de ser vista como tal e passaria a ser interpretada como um problema do vínculo. A relação de um com o outro seria abandonada, pois a importância recairia sobre o vínculo (abstração). Voltar-se-ia toda a atenção para a representação daquilo que se apresenta, por exemplo, um pai que com toda sua raiva atuava de forma autoritária frente a um filho desafiante. Tal situação, na maioria das vezes, acabaria na reconciliação. Este fenômeno agora passaria a ser interpretado como um problema de vínculo.

Quando as relações passam a ser refletidas no modo da representação: problema de vínculo, esquece-se do adolescente rebelde que teme a autoridade. Porém, ao reduzir a questão ao vínculo, a autoridade desaparece, pois se estabelece a igualdade, um intercâmbio mútuo. O mesmo ocorria com o ir à escola, que consistia de fato em respeitar e aprender. Na abstração, o interesse se voltaria para o problema da educação escolar. Estas relações se transformavam em tensão, que acabaria por esgotar a existência, pela imprecisão e pela perda do sentido.

 

3. T erceira Sessão: Atributos Concretos da Época Presente

Na conclusão, portanto, terceira parte, Kierkegaard, influenciado pelo modo como o autor da novela apontava para os reflexos dos atributos concretos da época presente, propôs-se, então, a arriscar fazer profecias acerca do fenômeno social que estava se instaurando em sua época. Sem recorrer aos fundamentos lógicos, puras abstrações de seus contemporâneos, através de uma observação apurada, assumindo a posição de adição3, descreveu os atributos concretos da época moderna e suas determinações na vida doméstica e social:

Tagarelice: consiste na abolição da incompatibilidade entre calar e falar, com esta abolição desaparece a escolha disto ou daquilo, no lugar da disjunção surge o equilíbrio entre opostos: a fala essencial, que sabe falar e sabe calar. Esta quando abolida dá lugar ao falatório e a fala essencial é antecipada pela fala excessiva e sem conteúdo, nesta antecipação, a expressão da reflexão fica debilitada antes de qualquer ação. A tagarelice teme o instante e o silêncio. O silêncio é interioridade e evidencia o vazio. Na época apaixonada, todos falavam do mesmo: os poetas, as conversas comuns; e ao cair do silêncio todos têm o que recordar. A época atual tem-se muito do que falar, ao se calar fica o vazio. A multidão apática, que por si mesma nada compreende e nada realiza, busca uma distração e se entrega a ilusão de tudo o que se realiza é realizado para que se tenha algo sobre o qual tagarelar. Na escassez de imaginário, de criatividade e no excesso de exterioridade, a conversa se dá com uma insignificante repetição de nomes, referências, informações e citações, parecendo que é isto que torna tudo o que se diz em algo confiável. “A tagarelice é uma externalização caricaturesca da interioridade, é inculta” (2001, p. 85);

Informidade: é a abolição da disjunção apaixonada entre forma e conteúdo. Refere-se à falta de seriedade e responsabilidade naquilo em que se atua. Consiste na incompatibilidade entre forma e conteúdo onde a verdade contida, nunca é essencialmente verdadeira. Em uma época reflexiva e desapaixonada, o amor se expressa somente mediante o flerte com a mais incrível diversidade. A informidade em uma época reflexiva é desapaixonada e se inclina a atuar por princípio. O princípio é o primeiro, o substancial, idéia cuja forma ainda não se abriu pelo entusiasmo e pelo sentimento que por sua própria força é capaz de impulsionar o indivíduo. O desapaixonado carece disto. Para o desapaixonado o princípio é algo externo, razão pela qual se permite fazer isto, aquilo e o contrário. Diz Kierkegaard (2001, p. 87) “Com isto o astuto, no entanto insignificante pode tornar-se um herói, por princípio”. Os referenciais para a ação podem ser a moda ou o decoro, já que o que vale são os princípios exteriores, daí não haver mais espaço para a responsabilidade nem para o arrependimento, já que toda escolha se dá por principio;

Superficialidade: é a disjunção apaixonada entre amar essencialmente e ser essencialmente libertino. Atuar por princípio externo também é galantear, seduzir, já que assim também se falsifica a ação moral, esta se converte em abstração e a ação de seduzir, na essência da libertinagem sem o oposto do amor essencial, consiste na pura e simples sedução. Consiste no desejo de exibição, é a incompatibilidade entre a reserva e a revelação. Na revelação essencial há profundidade, na superficial as expressões não alcançam um discurso humano pessoal. Expressões objetivas e indiferentes tornam supérfluo o revelar humano. Fala-se do privado em público, com aparência de algo e de tudo, no entanto, tais expressões revelam o vazio; Anonimato: o homem age por princípio (que para o desapaixonado passa a ser algo externo) e deste modo evita toda a responsabilidade pessoal. Na indolência que se instaura, mais e mais indivíduos aspiram ser nada - aspiram serem públicos. Pela mídia, o homem se transforma em público e em pura abstração;

Loquacidade: é a abolição da disjunção apaixonada entre objetividade e subjetividade. É referir-se a tudo. A loquacidade não possui profundidade dialética, e assim argumenta e com ausência de fundamentos convence. Para ilustrar a loquacidade e o anônimo, Kierkegaard (2001, p. 92) afirma: “Na Alemanha, já existem manuais para os amantes, de modo que no final das contas, haverá casais sentados falando anonimamente”. Os manuais contendo instruções de como se deve fazer isto ou aquilo são da ordem do objetivo, do abstrato e do anônimo. Com a loquacidade desaparece a fronteira entre o público e o privado e se cria um falatório público-privado.

 

Conclusão

Em meados do século XIX, Kierkegaard preocupou-se com o rumo que o pensamento moderno estava tomando. Alertava para o fato de que o homem estava perdendo sua singularidade, deixando-se conduzir pelo geral. Alertava para o grande perigo da publicidade, pela sua estratégia sedutora, capaz de conduzir o homem a escolhas ditadas pelo todo mundo. O perigo consistia em que o homem acabasse por esquecer-se de si mesmo e sem saber sequer o seu nome, acabasse permitindo se levar pelo todo mundo.

Inquietava o filósofo, o destino do homem em um mundo onde predominavam as chamadas da publicidade, com seus critérios de que tudo vale pela obtenção do prazer, com o domínio das sensações e que estas devem ser prolongadas infinitamente, mesmo que para tanto as relações aconteçam ao modo da indiferença e manipulação do outro.

As modificações na cultura engendram mudanças exteriores que, pouco a pouco, vão transformando o modo de ser do homem: o pensar sobre as coisas, os sentimentos, as atitudes. Com todas estas mudanças, a estrutura e a dinâmica das relações também se modificam. As relações humanas passam a ter como referências os critérios da modernidade, perde os valores da tradição, faltam os “ativos”, já que tudo se converte em transações financeiras, em lucro e em poder.

 

Referência

Kierkegaard, S. A. (2001). La epoca presente. Santiago, Chile: Editorial Universitaria.         [ Links ]

 

 

Recebido em 08.03.2010
Aceito em 15.05.2010

 

 

1 Esta introdução ainda não se refere ao livro, consiste em uma tentativa de situar o leitor acerca do contexto histórico, político e social em que o texto de Kierkegaard foi escrito.
2 Embora muitas obras de Kierkegaard tenham sido assinadas por pseudônimos, nesta Kierkegaard assumiu a autoria.
3 Consiste em reconhecer-se nos seus referenciais, naquilo que lhe é mais fundamental e não se deixar perder no geral, nas demandas do mundo.

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