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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.16 no.2 Goiânia dez. 2010

 

ARTIGOS

 

Reflexões fenomenológicas sobre a experiência de estágio e supervisão clínica em um serviço de psicologia aplicada universitário

 

Phenomenological reflections on the experience of training and clinical supervision in an applied psychology service within an university

 

Reflexiones fenomenológicas sobre la experiencia de la formación y supervisión clínica en un spa de la universidad

 

 

Roberto Novaes de Sá; Oditon Azevedo Junior; Thais Lethier Leite

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe uma reflexão acerca de dificuldades específicas da formação clínica pela perspectiva fenomenológico-existencial. Observamos que, no âmbito do estágio curricular em psicologia clínica na perspectiva fenomenológico- existencial, algumas dificuldades emergem devido à inadequação da bagagem de representações teóricas recém adquiridas no curso e o tipo de atitude compreensiva que somos convidados a exercitar. É como se a atitude natural cotidiana de objetivar e cristalizar os sentidos da existência e das experiências de sofrimento ganhasse, com as representações teóricas, um reforço, dificultando ainda mais a atitude fenomenológica de suspensão. Há a suposição de que o lugar do psicoterapeuta apenas pode ser legitimado a partir de um saber positivo sobre a vida psíquica e, consequentemente, pela detenção de técnicas eficazes de intervenção. A experiência como alunos e supervisor de estágio em psicologia clínica na abordagem fenomenológico- existencial do curso de psicologia da Universidade Federal Fluminense, indica que esses momentos de impasse, em que se instala uma "crise" de paradigmas teóricos e identidades profissionais, são essenciais para um redimensionamento do lugar das teorias e técnicas psicológicas nas práticas de cuidado clínico sob a luz de uma compreensão propriamente fenomenológica da existência.

Palavras-chave: Fenomenologia existencial; Formação clínica; Experiência de estágio.


ABSTRACT

This work proposes a reflection on the specific difficulties of clinical training for the existential-phenomenological perspective. We observed that in the training curriculum in clinical psychology in existential-phenomenological perspective, some difficulties arise due to the inadequacy of the theoretical baggage of newly acquired representations in the course and the kind of comprehensive approach that we are asked to exercise. It is as if the natural attitude of everyday objectifies and crystallizes the meaning of existence and experience of suffering, gaining a reinforcement with the theoretical representations, further blurring the phenomenological attitude of suspension. There is the assumption that the place of psychotherapyst can only be legitimized from a positive knowledge about mental life and, consequently, the attainment of effective techniques for intervention. The experience as students and supervisor training in clinical psychology in addressing the existential-phenomenological psychology course of Fluminense Federal University, shows that these moments of impasse, which installs a "crisis" of theoretical paradigms and professional identities are essential for a redefinition of the role of psychological theories and techniques in the practices of clinical care in the light of a proper understanding of the phenomenological existence.

Keywords: Existential phenomenology; Clinical training; The internship experience.


RESUMEN

El presente estudio propone una reflexión sobre las dificultades específicas de la formación clínica por la perspectiva fenomenológica-existencial. Observamos que, en el ámbito de la pasantía en psicología clínica con perspectiva fenomenológico- existencial, surgen algunas dificultades debido a la inadecuación de la apoyatura de representaciones teóricas recientemente adquiridas en el curso y el tipo de actitud comprensiva que se nos invita a ejercitar. Es como si la actitud natural de la vida cotidiana de objetivar y cristalizar los sentidos de la existencia y de las experiencias de sufrimiento obtuviera, con las representaciones teóricas, un refuerzo, dificultando aún más la actitud fenomenológica de suspensión. Existe la suposición de que el lugar del psicoterapeuta sólo puede ser legitimado a partir de un conocimiento positivo acerca de la vida psíquica y, en consecuencia, por la aprehensión de técnicas eficaces de intervención. La experiencia como estudiante y supervisor de pasantía en psicología clínica con mirada fenomenológico-existencial del curso de psicología de la Universidad Federal Fluminense, muestra que esos momentos de impasse, donde se instala una "crisis" de paradigmas teóricos y de identidades profesionales, son esenciales para una redefinición del lugar de las teorías y técnicas psicológicas en las prácticas de atención clínica a la luz de una comprensión propiamente fenomenológica de la existencia.

Palabras-clave: Fenomenología existencial; Formación clínica; Pasantía.


 

 

Introdução

As reflexões que se seguem são uma tentativa de tematização da experiência compartilhada entre supervisor e estagiários da disciplina de "Estágio Supervisionado em Psicologia Clínica" no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal Fluminense. No curso de Psicologia desta Universidade, o estágio curricular deve ser obrigatoriamente vinculado a algum projeto coordenado por docente ligado ao SPA e a participação dos alunos em cada projeto deve ser de no mínimo um ano, podendo estender-se a dois.

Na área de clínica, embora existam projetos dirigidos a clientelas específicas, tem sido priorizado o atendimento universal. O ingresso dos pacientes se dá por meio de plantão psicológico, no qual os estagiários recebem indiscriminadamente a população que procura o Serviço. A orientação geral é de que o próprio estagiário que faz a entrevista de plantão continue, sempre que possível, com o paciente, caso se confirme a demanda de atendimento psicológico.

As equipes de estagiários em nosso projeto oscilam numa média de oito a doze alunos por grupo e os encontros se dão duas vezes por semana: um encontro de quatro horas para a supervisão clínica propriamente dita e um encontro de duas horas para leituras e discussões teóricas, que diz respeito a uma disciplina obrigatória, associada ao estágio, denominada "Estudos Complementares ao Estágio Supervisionado". Ao final de cada período letivo, realizam-se seminários clínicos em que cada equipe apresenta um estudo de caso para os demais estagiários e docentes supervisores das outras equipes.

O número de clientes atendidos por cada estagiário pode variar bastante, ficando a critério dos supervisores avaliarem os limites adequados para preservar a qualidade da formação, bem como dos atendimentos prestados.

No entanto, a continuidade do funcionamento do serviço junto à comunidade não é desconsiderada, para tanto, cada equipe deve manter, no mínimo, uma hora semanal disponível para o plantão de recebimento. Com isso, tem sido possível evitar a formação de listas de espera para os atendimentos de primeira vez.

Os alunos ingressam no estágio a partir do sétimo período letivo, em sua maioria, já tendo participado de projetos de pesquisa, mas sem nenhuma experiência clínica anterior. No sexto período é oferecida uma disciplina intitulada "Introdução ao Estágio", na qual os participantes recebem informações sobre as diversas práticas psicológicas, sobre o funcionamento do SPA e dos projetos de estágio aos quais poderão se candidatar.

No caso do estágio que oferecemos na abordagem fenomenológica, a escolha dos alunos nem sempre é feita em função de um conhecimento prévio deste enfoque teórico, mas apenas enquanto alternativa às outras abordagens já vistas e com as quais não se identificaram. Ao contrário do que se poderia pensar, esses alunos não se mostraram, em geral, menos motivados ou engajados do que aqueles que fizeram uma escolha baseada em uma suposta identificação teórica.

O nível de expectativa dos alunos que ingressam no estágio é, geralmente, alto. Junto com a elevada motivação pela experiência do envolvimento direto com a prática psicológica clínica, aparece, quase sempre, uma grande ansiedade gerada pelos medos e fantasias acerca do encontro clínico com o outro e da situação de exposição da própria supervisão. Há uma preocupação - legítima na intenção, mas ingênua na aplicação - em tentar dar conta do atendimento e da demanda do cliente, de estar preparado, de saber de antemão o que deve ser feito, como agir. No entanto, é impossível dar quaisquer garantias do que vai acontecer no momento que o estagiário e o cliente estiverem frente à frente, estabelecendo uma relação. Aquilo que é próprio do encontro não pode ser antecipado, apenas vivido.

Assim, do ponto de vista do supervisor, os primeiros encontros do grupo privilegiam a produção de um espaço de confiança em que os estagiários possam sentirse mais à vontade para externar suas dúvidas e receios, sem um clima persecutório de competição e julgamento. Apesar de não nos preocuparmos, ainda neste início, com jargões específicos ou elaborações conceituais, já começamos a propor, de forma tácita, uma atitude fenomenológica de escuta.

A investigação adequada sobre o sentido das experiências que fazemos no mundo, não pode prescindir do exercício de suspensão do estatuto de "realidade simplesmente dada" que geralmente atribuímos a estas experiências na perspectiva de nossa atitude cotidiana, denominada por Husserl como "atitude natural". Compreender a diferença entre "falar da realidade em si" e "falar sobre a nossa experiência da realidade" implica necessariamente algum grau de "des-identificação" com respeito ao naturalismo ingênuo em que permanecemos presos a maior parte do tempo.

Quando autorizamos e estimulamos os alunos a exprimirem suas fantasias sobre a clínica sem preocupações críticas, estamos propondo um exercício de suspensão daqueles preconceitos sobre a "verdade" da clínica, que tornam tais fantasias a priori "erradas" e "condenáveis". Obviamente, este deslocamento cognitivo não se restringe a um mero dispositivo intelectual. Como diz Heidegger (1989, § 29), a compreensão humana é inseparavelmente dotada de uma dimensão afetiva, por ele denominada como "disposição" (Befindlichkeit).

Por isso, não acreditamos ser eficaz nesse contexto uma simples exposição teórica da atitude fenomenológica; é necessário que o próprio estar-no-mundo-com-o-outro propiciado pelo grupo forneça o espaço de abertura necessário para um movimento de desapego em relação aos preconceitos que determinam os limites de nossa experiência cotidiana. "Todo pensar essencial exige que seus pensamentos e proposições sejam extraídos, a cada vez, Reflexões Fenomenológicas sobre a Experiência de Estágio e Supervisão Clínica em um Serviço de Psicologia Aplicada Universitário como minério a partir da disposição afetiva fundamental. Se faltar a disposição fundamental, então tudo é palavreado conceitual e vazio" (Heidegger, 2006, p. 35).

Sabemos que, para Heidegger, essa disposição afetiva fundamental é a angústia. Apenas quando se dissolvem as estruturais habituais de sentido da cotidianidade e não contornamos, apressadamente, a angústia, provocada por essa dissolução, encontramo-nos em uma abertura compreensiva propícia para apreender a existência humana em seu modo próprio, isto é, não como um ente simplesmente dado no interior do mundo, mas como aquele ente cujo modo essencial de ser é ter o sentido sempre em jogo no seu devir histórico.

Embora o termo "supervisão" evoque, a partir de sua etimologia, a idéia de uma "visão superior", não devemos entender aquilo que legitima a posição do supervisor, nas práticas psicológicas, apenas como transmissão e fiscalização dos conhecimentos técnicos pertinentes às intervenções supervisionadas.

O supervisor não pode saber mais acerca do caso supervisionado do que o próprio supervisando diretamente envolvido na relação clínica. Se ele tem algo a mais, nesta situação específica, que o legitima como supervisor, deve ser sua abertura para o estranhamento, sua disponibilidade para suportar a disposição da angústia perante o não saber sobre o outro. Protasio (2008) faz mais outra reflexão acerca da obra de Kierkegaard, trazendo em questão a posição ética do terapeuta como "instrutor", mas que ilustra bem o sentido do trabalho de acompanhamento do supervisor com os estagiários:

O filósofo fala então da figura do instrutor, aquele que se instala na reflexão, assume uma posição negativa, não se afirma como uma posição esta ou aquela, não recorre a revelações. Este homem, no propósito de ajudar o outro a tomar consciência da posição que ocupa, a ganhar interioridade acerca de si mesmo, conserva-se sempre na retaguarda, e traz um auxílio negativo. Aquele que quer ajudar deve começar de forma humilde, encontrando o outro onde este se encontra, habitando o mundo do outro, compreendendo aquilo que o outro compreende. (Protasio, 2008, p. 30)

Assim como qualquer outra abordagem, a psicologia fenomenológico-existencial demanda a aquisição de um corpo teórico específico que implica informação, leitura, raciocínio crítico e rigor conceitual, mas tudo isso é letra morta sem o desenvolvimento de uma atitude fenomenológica própria e da compreensão concreta da vida como existência, que surge daquela disposição fundamental associada a essa atitude.

Nos períodos iniciais da formação profissional é comum se pensar que o enorme desconforto que acompanha o exercício das práticas psicológicas provém de uma carência de conhecimento e será, portanto, sanado, no futuro, pelo acúmulo de informações teóricas e técnicas que trarão segurança e legitimidade.

Para a perspectiva fenomenológico-existencial, o saber sobre a existência é sempre problemático pela própria natureza desta, pois qualquer objetivação do existir afasta sua realidade essencial.

Não é, portanto, objetivo da supervisão resolver o problema da identidade profissional utilizando da mera transmissão de teorias e técnicas, mas sustentar a tensão desta problematicidade, para que por meio dela se operem transformações existenciais, já que o saber que aqui mais importa é aquele indissociável do nosso próprio modo de ser.

Durante o percurso na graduação em psicologia, os alunos têm contato com diversas perspectivas teóricas. Em meio a essa diversidade, ainda está presente, de forma mais ou menos tácita, a idéia da psicologia como ciência historicamente emancipada da filosofia e da psicoterapia como técnica no sentido de psicologia aplicada.

Não se pretende aqui fazer uma discussão epistemológica aprofundada, mas apenas pensar sobre algumas implicações de se considerar a psicoterapia como ciência psicológica aplicada. O que observamos é que a maioria das abordagens, no que concerne à noção de adoecimento psíquico, tem em comum o fato de partir de objetivações psicológicas do sofrimento existencial, buscando categorizações das patologias e explicações causais de seu aparecimento.

As formas de compreender a atuação em clínica têm, por sua vez, uma articulação direta com esses modos de apreender a natureza da existência humana e o fenômeno do sofrimento psíquico. Espera-se um certo controle e previsibilidade do processo psicoterápico, expectativas que raramente são atendidas no exercício concreto da prática clínica. Contudo, ainda que as singularidades das relações clínicas apontem para uma problematização dos ideais de adequação teórica e eficácia técnica, eles ainda permanecem como marcos de referência na busca de identidade e legitimidade profissional.

Ao iniciarmos o estágio curricular em psicologia clínica, na perspectiva fenomenológico-existencial, algumas dificuldades emergem devido à inadequação das abordagens teóricas objetivantes do psíquico, adquiridas no curso, e o tipo de atitude compreensiva da existência que somos convidados a exercitar.

Do ponto de vista dos estagiários, o desconforto inicial pela ausência de instrumentos teóricos que lhes dê segurança no exercício da prática clínica, é atribuído à insuficiência de disciplinas voltadas para a fenomenologia e a filosofia existencial no currículo do curso. Embora, na maioria dos casos, essa escassez seja verdadeira, não bastaria um acúmulo de informações teóricas sobre este enfoque, sem uma compreensão experiencial do tipo de transformação de atitude que está aí em jogo. Assim, o paradigma comumente sustentado da necessidade de compreensão de um determinado aparato teórico para o exercício da clínica deve ser deslocado, sendo privilegiada a própria experiência do atendimento.

Neste sentido, há uma inversão do enfoque até então vivenciado na universidade pelos estagiários: agora é a experiência que vai ser o ponto de abertura para a compreensão da teoria, uma vez que é a partir do encontro do estagiário com a pessoa que busca o serviço da clínica universitária que as teorias serão pensadas.

Esta inversão é muito importante para a vivência do estágio clínico na abordagem fenomenológico-existencial, pois convida os alunos a pensar e se apropriar criticamente de sua formação, propiciando uma atitude fenomenológica com relação aos próprios conhecimentos adquiridos durante o percurso universitário e uma suspensão de juízo acerca da posição de verdade das teorias e técnicas integrantes da grade curricular do curso de psicologia.

É comum que esta apropriação crítica tenha inicialmente um acento reativo de afirmação da própria identidade por negação da diferença, mas com o amadurecimento da compreensão fenomenológica, deve ficar claro para os estagiários que, longe de negar ou criticar reativamente outras teorias, a atitude fenomenológica permite pensá-las em seus limites, bem como em suas possibilidades, mantendo sempre a abertura para o diálogo e a atuação transdisciplinar, que não se confundem com o ecletismo ingênuo. Como consequência, deixamos de pensar o exercício clínico como um lugar onde o trabalho se desenvolve a partir da mera aplicação de teorias. Ainda que possamos fazer uso delas como instrumentos circunstancialmente úteis, as teorias deixam de ter o valor de referencial privilegiado para a efetivação do trabalho clínico.

Tal perspectiva, ao mesmo tempo em que nos liberta do jugo de sermos meros reprodutores de técnicas, também nos lança a uma angústia decorrente da maior responsabilidade com o outro, pela própria incerteza que a liberdade de escolha acarreta. Protasio comenta acerca do pensamento de Kierkegaard:

(...) o filósofo afirma que a Psicologia de sua época também se tornará o real como objeto de estudo, ocupando-se em observá-lo, desenhar-lhe o contorno e descrevê-lo, oferecendo elementos para a dogmática, ou seja, para que sistemas explicativos sejam construídos. Sua crítica se dá no sentido da ilusão de abarcar toda a existência nestes sistemas explicativos e na distância guardada entre o sistema e a existência concreta. Propõe, então, que à Psicologia não cabe o real em si, ou seja, a ação do homem, que é algo movediço, mas sua possibilidade. A possibilidade é o elemento do qual, a todo momento, sem cessar, nasce a ação do homem em liberdade. A liberdade é, portanto, contingente à existência humana e implica na impossibilidade da não-escolha e na inevitabilidade de viver as conseqüências das escolhas vividas. O lugar da Psicologia é o lugar da angústia, da indecisão, onde o homem em liberdade opta por determinado modo de existir em detrimento de outro. (Protasio, 2008, p. 6)

Contudo, não é apenas na formação universitária o discurso científico aparece como lugar privilegiado de verdade. Deparamo-nos, ainda, com situações onde o sentido dado ao sofrimento pelos próprios clientes já aponta, antecipadamente, para referenciais direcionados a determinados sistemas e teorias, mesmo nos casos onde a procura é espontânea.

Há uma apropriação pelo senso comum de determinados modelos teóricos acerca do funcionamento psíquico, apropriação esta que tem consequências na postura dos próprios clientes durante o atendimento. Os sentidos atribuídos por eles às suas queixas apresentam, frequentemente, descrições em que percebemos a influência de discursos médicos e psicológicos, facilmente encontrados na internet ou divulgados por outras mídias como revistas populares, jornais e televisões; ou ainda, constroem hipóteses explicativas utilizando noções de origem científica que já caíram no imaginário popular, tais como "trauma", "complexo" etc. Percebe-se uma reprodução de modos de pensar onde há demanda por diagnósticos objetivantes e práticas eficazes de intervenção. É esperado do estagiário que ele seja capaz de confirmar ou negar um determinado diagnóstico, e que indique e/ou aplique técnicas que dêem conta do problema identificado.

É como se a atitude natural cotidiana de objetivar e cristalizar os sentidos da existência e das experiências de sofrimento ganhasse, com as representações teóricas, um reforço, dificultando ainda mais a atitude fenomenológica de suspensão.

Há uma suposição, compartilhada pela visão científica e pelo senso comum, de que o lugar do psicoterapeuta apenas pode ser legitimado a partir de um saber positivo sobre a vida psíquica e, consequentemente, pela detenção de protocolos eficazes de intervenção. Não fosse pelas frustrações recorrentes que a clínica, e a própria vida, sempre impõem a essas expectativas, a abordagem fenomenológica há muito teria desaparecido das práticas psicoterápicas.

A abordagem fenomenólogico-existencial deve suspender qualquer suposição sobre o um aparelho psíquico que tenha um funcionamento causal e possa responder de forma adequada a intervenções técnicas planejadas. "Por que o interesse pela fenomenologia? Ela não se constitui formalmente como uma teoria, é principalmente um modo através do qual nos aproximamos do que pretendemos investigar" (Sapienza, 2007, p. 9).

Ela se volta para a própria experiência do sujeito, para os sentidos que ele vivencia em sua própria existência, buscando compreender como aquele sentido, e não outro, se constituiu historicamente, e que possibilidades de abertura aquela existência abarca, a fim de ampliar o campo de liberdade do seu existir factual.

A fenomenologia-existencial pode ser apresentada como uma abordagem mais aberta, mais ampla, mas isso não deve ser entendido como uma postura autocondescendente, que exigiria menos rigor e esforço por parte de terapeutas e clientes.

Compreender esta amplitude nos coloca em um campo de possibilidades maior, mas também exige maior rigor de pensamento e mais responsabilidade ética. Ao renunciar a uma teoria explicativa, a um protocolo de intervenção, colocamos a nós mesmos em jogo diante do cliente, o que é bem diferente de estar autorizado por um determinado saber.

Desenvolver a disponibilidade para habitar o próprio caminho, para envolver-se, aqui e agora, de modo singular, na relação com o outro que nos vem ao encontro, é o objetivo principal do estágio supervisionado sob o enfoque fenomenológico.

Se a atitude fenomenológica é intuitiva, no sentido de se ater ao imediato dar-se das coisas a partir de si mesmas, tal possibilidade é sempre mediada por um esforço paciente e um treinamento persistente do tipo de atenção que diferencia a mera representação que temos das coisas da presença mesma que se dá à experiência.

Por outro lado, devemos sublinhar que, apesar de não ser própria da atitude natural, a atenção reflexiva ou meditativa, proposta pela atitude fenomenológica, não demanda nenhuma espécie de qualidade privilegiada de seus praticantes.

Qualquer pessoa pode seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites. Por quê? Porque o homem é o ser (Wesen) que pensa, ou seja, que medita (sinnende). Não precisamos portanto, de modo algum, de nos elevarmos às 'regiões superiores' quando refletimos. Basta demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora. (Heidegger, 1959/2000, p. 14)

O que a supervisão propõe, essencialmente, é uma provocação à experiência das práticas psicológicas para aquém das representações correntes que delas fazemos enquanto métodos ou técnicas. Sob essa perspectiva, a psicoterapia não se reduz ao tipo de conhecimento que pode ser sistematizado em algum método e repetido na forma de uma técnica, embora procedimentos técnicos possam e devam ser utilizados em sua prática.

As perguntas e as respostas concernentes às questões da vida nunca estão formuladas a priori, pois, ainda que se repitam, somente fazem sentido a partir do contexto existencial concreto em que surgem, como se fossem feitas sempre pela primeira vez.

Para quem lida com a transmissão e a formação clínicas, esta é uma situação absolutamente desconfortável: como ensinar algo que jamais se esgota no âmbito do saber representacional, que está intimamente conectado à experiência singular?

Talvez, na experiência de supervisão das práticas psicológicas fique mais óbvio aquilo que está em jogo em todas as práticas de formação: "Formar é deixar o outro aprender, integrando no que ele é, os limites do que ele não é" (Leão, 1989, p. 49).

O contexto institucional, em que nossa prática da supervisão tem se desenrolado, constitui o horizonte fundamental a partir do qual as diversas tensões existenciais, expressas como tensões psicológicas, teóricas, sociais, políticas etc., emergem. O exercício da atitude fenomenológica não se restringe à relação com o paciente, deve estender-se à compreensão desse contexto institucional de inserção da prática psicológica.

É nesse horizonte que se desenvolve de modo ampliado a consideração atenta do jogo de diferenças e tensões que perpassa cotidianamente o ser-no-mundo-com-o-outro. A tendência de sustentar uma identidade por exclusão crítica reducionista do diferente é um modo comum de lidar com os conflitos, os limites e as frustrações, a todos os momentos impostos pelas complexas dinâmicas institucionais em que estamos inseridos.

Esse fechamento defensivo, muitas vezes legitimado por meio de racionalizações coerentes, deve ser objeto de uma elaboração temática cuidadosa no espaço da supervisão. Não se trata de efetuar uma redução psicologizante da dimensão institucional, apenas de não tomá-la como uma realidade simplesmente dada, na qual nosso papel constitutivo de sentido fosse menor do que em qualquer outro âmbito da existência.

Além dos atendimentos psicológicos propriamente ditos, as diversas situações que envolvem o estágio, como os seminários clínicos com a participação das demais equipes e supervisores, os contatos com outros estagiários e pacientes nos espaços de circulação comum, a interação com funcionários de secretária, limpeza e manutenção, fazem parte do contexto geral do estágio e devem ser levadas em consideração na medida em que venham ao discurso como objeto de estranhamento, crítica ou emissão de juízos preconcebidos.

 

Considerações Finais

No curso de nossas experiências de supervisão, temos sido levados a pensar cada vez mais naquilo que acreditamos ser o essencial das práticas psicológicas, a tematização das identificações e diferenças que apontam os limites da nossa existência enquanto "poder-ser". Se for assim, nenhuma prática psicológica deveria ser adequadamente compreendida como mera psicologia teórica aplicada.

Parafraseando o que diz Heidegger (2003, p. 5) acerca da filosofia, poderíamos dizer, especificamente da psicoterapia, que clínica é clinicar, isto é, qualquer abstração conceitual sobre o que é a clínica psicológica deixa obrigatoriamente de fora seu caráter mais essencial de ser o envolvimento atento numa dinâmica relacional que ultrapassa o saber e o querer iniciais dos seus protagonistas e somente assim se realiza de modo próprio como relação psicoterapêutica.

Isso não significa que o trabalho teórico, enquanto dimensão legítima dessa prática, deva ser desprezado, muito menos abandonado o esforço de reflexão crítica rigorosa, apenas que seu lugar deve ser pensado a partir da experiência e não o contrário. Como escreve Heidegger:

Encontrar a forma conveniente para que a educação do pensamento não seja confundida com erudição, nem com pesquisa científica, é a grande dificuldade. O perigo permanece patente, pois o pensamento deve sempre encontrar primeiro seu próprio lugar. Pensar bem em meio às ciências significa: tomar distância delas, sem as menosprezar. (1962, p. 256)

Não se trata, portanto, de estabelecer uma relação de crítica sistemática e negação reativa às técnicas e teorias psicológicas. Apenas alertar que elas são apenas uma das fontes de saber, importante, é claro, que alimentam a práxis clínica. Heidegger nos alerta para o perigo de nos tornarmos escravos da técnica, mas aponta que podemos fazer um uso mais livre dela, ao compreendê-la como, apenas, mais um modo histórico de desvelamento de sentido, e não algo superior e indispensável.

Quando a perspectiva científico-natural de saber e intervenção sobre a existência é questionada em sua própria possibilidade interna, surgem, inevitavelmente, sentimentos de impotência, esvaziamento da identidade profissional e falta de sentido do empreendimento psicoterápico como um todo.

Embora sejam experiências incômodas e estejamos longe de fazer qualquer apologia da dificuldade e do sofrimento no processo de formação clínica, acreditamos não serem etapas meramente negativas e sem valor para o tipo de compreensão que se busca das práticas psicológicas clínicas.

Ao contrário, nossa experiência como alunos e supervisor de estágio em psicologia clínica na abordagem fenomenológico-existencial do curso de Psicologia, indica que esses momentos de impasse, em que se instala uma "crise" de paradigmas teóricos e identidades profissionais, são essenciais para um redimensionamento do lugar das teorias e técnicas psicológicas nas práticas de cuidado clínico sob a luz de uma compreensão propriamente fenomenológica da existência.

 

Referências

Heidegger, M. (1962). Chemins qui ne mènent nulle part. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Heidegger, M. (1989). Ser e tempo (Vol. I). Petrópolis: Vozes         [ Links ]

Heidegger, M.. (2000). Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget. (Trabalho original publicado em 1959).         [ Links ]

Heidegger, M. (2003). Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Heidegger, M. (2006). Aportes a la filosofia: acerca del evento. Buenos Aires: Editorial Biblos.         [ Links ]

Leão, E. C. (1989). Aprendendo a pensar. Petrópolis (RJ): Vozes.         [ Links ]

Protasio, Myriam M. (2008). Contribuições kierkegaardianas para a compreensão do adoecimento psíquico. Em A. M. L. C. de Feijoo (Org.), Interpretações Fenomenológico- Existenciais para o sofrimento psíquico na atualidade. Rio de Janeiro: Edições IFEN.         [ Links ]

Sapienza, B. Tatit. (2007.) Do desabrigo à confiança: daseinsanalyse e terapia. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Universidade Federal Fluminense
Centro de Estudos Gerais - Departamento de Psicologia
Campus Gragoatá, Bl. O, sala 218 (São Domingos)
CEP 24210-350, Niterói, RJ.
E-mail: robertonovaes@psicologia.uff.br

Recebido em 04.08.10
Aprovado em 16.10.10

 

 

Roberto Novaes de Sá - Professor Associado da Universidade Federal Fluminense (UFF). vinculado ao Programa de Pós-Graduação e Supervisor de Estágio em Psicologia Clínica.
Oditon Azevedo Junior - Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Estagiário em Psicologia Clínica e integrante da pesquisa "A Consciência e o Mundo: um encontro entre a Fenomenologia e a Educação" (PIBIC/ CNPq).E-mail: tom_psico@yahoo.com.br
Thais Lethier Leite - Graduanda em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).E-mail: thaisll@hotmail.com

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