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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.17 no.1 Goiânia jun. 2011

 

ARTIGOS

 

O aqui-e-agora na Gestalt-terapia: um diálogo com a sociologia da contemporaneidade

 

The here and now in Gestalt therapy: a dialogue with the contemporary sociology

 

El aquí y ahora en la terapia Gestalt: un diálogo con la sociología contemporánea

 

 

Giovana Reis Mesquita

Universidade Federal da Bahia
Universidade Salvador
Instituto de Gestalt-terapia da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho explora, problematiza e discute, em uma perspectiva teórica, a relação do fundamento da Gestalt-terapia - o aqui-e-agora - com alguns estudos sociológicos, como os de Bauman, Giddens e Elias, sobre as condições psíquicas e concretas do homem contemporâneo. Como ponto de partida, pressupõe-se que a forma como cada sociedade lida com o tempo é histórica e culturalmente determinada. Sociólogos têm argumentado que a vida moderna colocou o sujeito em uma nova condição de tratamento com o tempo e, consequentemente, com seu funcionamento psíquico, onde existe um constante projetar-se para o futuro e para o passado. A Gestalt-terapia, por sua vez, dá ênfase à tomada de consciência, favorecendo o contato autêntico consigo. Observamos, portanto, uma tensão entre a vivência individual proposta pela Gestalt-terapia e a sociedade ocidental moderna. Com isso, objetivamos um aprofundamento teórico sobre o conceito do aqui-e-agora, discutindo os limites e possibilidades de manter a consciência focada no tempo presente. Estudos como esse servem para fornecer elementos teórico-conceituais para investigações em Gestalt-terapia bem como para fomentar discussões acerca de posicionamentos clínicos. Proceder a uma investigação, tomando análises sociológicas para compreender fatos psicológicos, permite aprofundar o entendimento do humano, que nunca é esgotado em um único campo do saber.

Palavras-chave: Gestalt-terapia; Aqui-e-agora; Sociologia.


ABSTRACT

This paper explores and discusses, in a theoretical perspective, the relationship of the foundation of Gestalt therapy - the here and now - with some sociological studies, such as Bauman, Giddens and Elias, about the psychological and practical conditions of contemporary man. As a starting point, it is assumed that the way society deals with each time is historically and culturally determined. Sociologists have argued that modern life has placed the subject in a new treatment condition over time and, consequently, their mental functioning, where there is a constant project into the future and the past. The Gestalt therapy, in turn, emphasizes the awareness, promoting the authentic contact with yourself. We observed, however, a tension between individual experience proposed by Gestalt therapy and the modern western society. Thus, we aimed a theoretical concept about the here and now, discussing the limits and possibilities of maintaining consciousness focused in the present tense. Studies like this are meant to provide theoretical and conceptual elements for research in Gestalt therapy and to foster discussion of clinical placements. Undertake a sociological research taking to understand psychological facts, allows deeper understanding of the human, which is never exhausted in one field of knowledge.

Keywords: Gestalt therapy; Here and now; Sociology.


RESUMEN

Este trabajo explora, analiza y discute, en una perspectiva teórica, la relación de la fundación de la terapia Gestalt - el aquí y ahora - con algunos estudios sociológicos, como Bauman, Giddens y Elías, sobre las condiciones psicológicas y prácticas del hombre contemporáneo. Como punto de partida, se supone que la sociedad trata el tiempo de manera histórica y culturalmente determinada. Los sociólogos han argumentado que la vida moderna ha puesto el tema en una condición de un nuevo tratamiento con el tiempo y, en consecuencia, su funcionamiento mental, donde hay un lanzamento en curso para el futuro y el pasado. La terapia Gestatlt, a su vez, hace hincapié en la sensibilización, promover el contacto auténtico con usted. Observamos, sin embargo, una tensión entre la experiencia individual propuesta por la terapia Gestalt y entre la sociedad occidental moderna. Por lo tanto, nos propusimos un concepto teórico en el aquí y ahora, hablando de los límites y las posibilidades de mantener la conciencia centrada en el tiempo presente. Estudios como éste tienen por objeto proporcionar elementos teóricos y conceptuales para la investigación en terapia Gestalt y para fomentar la discusión de prácticas clínicas. Llevar a cabo una investigación sociológica tomando para comprender los hechos psicológicos, permite una comprensión más profunda del ser humano, que nunca se agota en un campo del conocimiento.

Palabras-clave: La terapia Gestalt; Aquí y ahora; La Sociología.


 

 

Introdução

Como ponto de partida deste estudo, pressupõe-se que a forma como cada sociedade ou civilização lida com o tempo é histórica e culturalmente determinada. Ou seja, a importância que creditamos hoje à temporalidade, a forma como lidamos com essa grandeza, e a própria idéia de linearidade temporal, não são fenômenos inatos e universais do ser humano, mas mudam conforme se transformam as organizações sociais ao longo da história.

O homem que se configura a partir da modernidade tem uma vivência temporal calcada na projeção futura, na reflexividade de seus atos, no refreamento de impulsos, no planejamento a longo prazo das ações e em avaliações sobre o passado (Elias, 1998; Giddens, 2002; Bauman, 2004). Perece-nos, portanto, que o fixar-se no presente é uma tarefa pouco explorada e pouco oferecida como experiência na contemporaneidade.

Dessa forma, observamos uma tensão entre a vivência individual proposta pela Gestalt-terapia de estar no "aqui-e-agora" e a sociedade ocidental moderna, montada, por sua vez, em um "lá-então". Propomos como problema a questão da (im)possibilidade do sujeito, na atualidade, manter-se focado na vivência presente. Com isso, objetivamos um aprofundamento teórico sobre o conceito do aqui-e-agora, discutindo os limites e as possibilidades de manter-se a consciência focada no tempo presente, diante dos conhecimentos produzidos pela Sociologia - Norbert Elias, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman -, que tem se preocupado com o modus vivendi que se caracterizou a partir da Era Moderna. Alguns autores da Gestalt-terapia têm se preocupado com os desafios da prática clínica, tomando como base o conceito do aqui-e-agora (Carmo, 2004; Costa, 2004 e Granzotto & Granzotto, 2004). No entanto, há uma carência de estudos que tratem do problema sob o ponto de vista da relação deste conceito com os estudos sociológicos das novas configurações do homem moderno e suas relações com o tempo.

Discussões como essa servem para fornecer elementos teórico-conceituais para investigações dentro da abordagem gestáltica, bem como para fomentar discussões acerca de posicionamentos clínicos. Proceder a uma investigação, tomando análises sociológicas para compreender fatos psicológicos, permite aprofundar o entendimento do humano, que nunca é esgotado em um único campo do saber. Daí a necessidade dos diálogos entre disciplinas. Tal fato está em consonância com os próprios fundamentos da Gestalt-terapia que busca tomar o homem em sua totalidade, enquanto organismo. Com isso, acredita-se que será possível contribuir para uma prática psicoterápica cada vez mais crítica e teoricamente referenciada.

 

1. O Homem no Tempo

Parece haver uma dificuldade sempre presente em todo e qualquer estudo que se proponha a abordar elementos característicos de uma dada sociedade que são considerados, vividos e sentidos como óbvios. A pertença a uma cultura específica, de um tempo também específico, parece instaurar uma tácita aceitação das coisas com as quais lidamos e acreditamos; isso, sem dúvida, deve ocorrer ao tratarmos de algo aparentemente tão constante e natural quanto o tempo.

Dessa forma, nos posicionamos ao lado de filosofias e teorias do campo das Ciências Sociais e Humanas que entendem o Homem e a sua consciência como resultantes de processos sociais de aprendizado e, por consequente, como mutáveis - ao longo da história - e diversos, em quão diversas sejam as culturas. Para o sociólogo Norbert Elias (1998), todo saber humano repousa sobre um longo processo de aprendizagem e todo indivíduo, por maior que seja sua contribuição criadora, constrói a partir de um patrimônio de saber já adquirido. Assim, o indivíduo não tem capacidade de forjar, por si só, o conceito de tempo; "esse [o tempo], tal como a instituição social que lhe é inseparável, vai sendo assimilado pela criança à medida que ela cresce numa sociedade em que ambas as coisas são tidas como evidentes" (p.13).

A noção de tempo se coloca, então, como uma construção intencionada, a partir da qual todos os indivíduos devem se orientar a fim de manter-se a ordem social. O que se quer dizer é que, assim como a linguagem, o tempo tem uma natureza social que é imposta a todos e é responsável por regular as ações sociais, bem como as vivências extremamente pessoais. Em resumo, Elias (1998) afirma que o "tempo" é a representação simbólica de uma vasta rede de relações sociais, individuais e físicas e foi em um estágio relativamente tardio na história humana que ele tornou-se símbolo de coerção universal e inelutável.

De fato, o estar bem orientado no tempo e no espaço é hoje condição necessária, inclusive, para se atestar a sanidade mental de alguém. Tomando um manual de psicopatologia, vemos que o não-compartilhamento social das orientações de tempo e espaço é considerado como uma "alteração da orientação" e, portanto, indício de alguma enfermidade psíquica (Paim, 1982). A orientação temporal indica se o sujeito sabe em que momento cronológico está vivendo, a hora do dia, se é de manhã ou de tarde, qual o dia do mês e do ano. Dalgalarrondo (2008) diz que a orientação temporal é a mais fácil e mais rapidamente prejudicada pelos transtornos mentais e distúrbios neuropsicológicos. Ainda de acordo com o autor, a semiotécnica da orientação temporal consiste das seguintes perguntas que começam do "mais fácil" para o "mais difícil": "Que dia é hoje?"; "Qual o dia da semana?"; "Em que mês estamos?"; "Qual a época do ano?"; "Aproximadamente que horas são agora?". Eis o caráter coercitivo do tempo.

Viver neste mundo é estar em uma relação de controle do tempo. Isso, na prática, implica em um dever de viver intensamente, mas sem sucumbir à sedução do presente. É preciso ponderar todas as decisões, pensando em suas conseqüências futuras. Para Elias (1990), as sociedades complexas - portanto, as sociedades modernas - obrigam o indivíduo:

(...) a uma incessante retrospecção e previsão, para além do instante presente, visto serem mais longas e diferenciadas as cadeias em que cada ação automaticamente se insere; exigem um constante domínio dos impulsos afectivo-emocionais momentâneos, atendendo aos efeitos ulteriores do comportamento; inculcam no indivíduo um autodomínio mais uniforme, que lhe cinge o comportamento como um aro apertado, e uma regulação mais constante das pulsões, de acordo com os padrões sociais (p.196).

À medida que as sociedades tornam-se mais complexas e, consequentemente, mais interdependentes, cada ato particular está ligado a muitos outros indivíduos. Cada atividade social depende de tantas outras para funcionar. Deste modo, a consciência humana precisa de um controle maior de seus impulsos e de uma ponderação dos atos individuais: atos mais civilizados e previsíveis (Elias, 1990). A ordem social precisa dessa previsibilidade para que possa funcionar de maneira eficaz, em meio às tantas funções sociais. Assim, a estruturação do comportamento e do psiquismo humano está em íntima correspondência com a organização social. Há uma segurança ontológica conferida pelo monopólio da violência que se encontra nas mãos do Estado e afastada da vida cotidiana dos indivíduos (Elias, 1990). A vida está, assim, menos exposta a abruptas mudanças e há um maior espaço para o cultivo e a vivência da subjetividade e para planejamentos futuros. Para Giddens (2002), o planejamento da vida é um meio de preparar um curso de ações futuras, mobilizadas em torno da construção do próprio eu.

Esse tipo de comportamento somente é permitido por organizações sociais complexas, estáveis e onde se sobrepõe uma vivência de si mesmo bastante acentuada, denominada de individualismo. O que se quer dizer é que as diversas sociedades tiveram formas específicas de lidar com o tempo, de se pensar na linha finita de duração da vida. O que se destaca aqui é que a época Moderna - instaurada a partir do século XIX - inaugura um novo modo do homem se relacionar consigo mesmo e com a temporalidade.

A orientação da vida moderna para o controle e planejamento da vida e, conseqüentemente, para controle dos impulsos e economia dos afetos, cria vivências específicas de subjetividade (Rieff, 1989; Elias, 1990; Foucault, 1999; Giddens, 2002). A necessidade de colonizar o futuro e de escolher um estilo de vida faz como que, de acordo com Giddens (2002), o sujeito não viva "à vontade no mundo"; e cria-se espaço para sensações de insegurança.

Parecem cada vez mais em evidência, pelo menos nas sociedades ocidentais, os sentimentos subjetivos de angústia frente a como se viver a vida e a como se relacionar com o tempo, principalmente o tempo futuro.

Podemos dizer, então, que o individualismo, simultaneamente, constitui, valoriza e enfraquece o indivíduo; dá-lhe mais status e responsabilidade e lhe traz mais ameaças e desamparo. Então, diante dessa perplexidade, os homens passam a pensar acerca das causas e do significado de tudo que fazem, sentem e pensam sobre eles mesmos.

É, nesse momento da história, em que há espaço propício para o aparecimento de uma ciência que tente explicar as angústias humanas e a propor formas de tratamento para o sofrimento. Eis a oportunidade para a Psicologia e as psicoterapias. Para Marx e Hillix (1997), o século XIX oferece as condições sociogenéticas para o surgimento da Psicologia. Eles afirmam que, na Idade Média, por exemplo, havia uma concepção de homem como uma criatura dotada de alma, possuidora de livre arbítrio, o que o colocava fora do alcance das leis naturais e ordinárias. O homem era sujeito da sua própria vontade e da vontade de Deus. Semelhante criatura não podia ser objeto de investigação científica.

Pensando na sociologia da psicoterapia como prática específica do saber e ação sobre os indivíduos, Giddens (2002) relaciona o seu surgimento à secularização, ao deserto moral criado pelo enfraquecimento da religião tradicional. O sujeito, agora, não conta mais e nem deposita tanta confiança no conforto da Igreja, em seu lugar, recorre à terapia, a fim de preservar seu bem-estar psíquico. A terapia, portanto, é o lugar de planejamento da vida moderna (Giddens, 2002), buscando dar aos seus "terapeutizandos" confiança e os demais atributos necessários para se viver dentro dos limites possíveis de normalidade para o mundo e para si. É o espaço para pensar e encontrar diretrizes para a vida. Rieff (1989) postula que a hora terapêutica oferece ao paciente um descanso, fornecendo um momento particular em que qualquer coisa pode ser dita.

A Psicanálise de Freud foi o marco inicial para os procedimentos terapêuticos de cura pela fala. Rieff (1989) afirma que a terapia freudiana propõe tirar o paciente do mundo da "dura realidade" que ele não conseguiu enfrentar - uma retirada temporária - objetivando devolvê- lo, municiado de um equipamento mais realista. Podemos estender essa definição a todas as outras propostas psicoterapêuticas.

A Psicanálise sofreu muitas críticas por seus posicionamentos teóricos, bem como de seus próprios estudiosos - que muitas vezes desertaram do campo psicanalítico -, criando suas próprias abordagens terapêuticas. E esse foi o caso da abordagem denominada por Gestaltterapia, que tem raízes no movimento psicanalítico (Fagan & Shepherd, 1980; Perls, Hefferline & Goodman, 1997; Perls, 1998; 2002).

A Gestalt-terapia diferencia-se da Psicanálise ao propor uma reintegração da psicologia do normal e do anormal, re-avaliando o que é considerado o "funcionamento psicológico normal" (Perls et al., 1997), que é quando o indivíduo consegue realizar trocas sadias com o meio, hierarquizando as necessidades mútuas. De acordo com Perls (1988), esse funcionamento normal corresponde à capacidade de autorregulação humana, de se manter em um estado de equilíbrio homeostático entre organismo e meio. Com isso, a Gestalt-terapia aparece como uma terceira via nas conduções clínicas, buscando uma re-integração do sujeito no seu ciclo de contato. E questiona os padrões de normalidade aos quais as psicoterapias tradicionais, sejam elas psicanalíticas ou comportamentais, tendem a re-inserir o sujeito.

Para tanto, a abordagem gestáltica dá ênfase à tomada de consciência da experiência atual, reabilitando a percepção emocional e corporal, e favorecendo o contato autêntico consigo mesmo, através da consciência dos mecanismos interiores que nos levam a determinadas condutas (Ginger & Ginger, 1995). O paciente chegará às suas próprias interpretações, cabendo ao terapeuta chamar a atenção para seus "pontos cegos" de atitudes, valores e crenças. Neste sentido, Perls (1988) declara que a psicoterapia deixa de ser "uma escavação do passado, em termos de repressões, conflitos edipianos e cenas primárias para se tornar uma experiência de viver no presente" (p. 30). É uma terapia que trabalha quase exclusivamente no tempo presente. Ou seja, busca-se que o paciente seja capaz de entrar num contato saudável com o mundo, estando apto a resolver seus problemas através da percepção real de si, de suas necessidades no espaço e tempo presentes, que é a única dimensão real sobre a qual se pode agir. É, assim, mais uma terapia vivencial do que verbal; conforme Perls (1988):

(...) pedimos ao paciente para não falar dos seus traumas e problemas da área remota do passado e da memória, mas para re-experenciar [...]. À medida que experimente os modos pelos quais se impede de "ser" agora - os meios por que se interrompe - também começará a experenciar o si-mesmo que interrompeu (p. 76-77).

O passado, assim como as prospecções futuras, só ganham importância no trabalho clínico à maneira como se apresentam no presente do paciente. Por exemplo, em uma história de abuso na infância, é mais importante investigar como esta experiência traumática passada se apresenta agora para o sujeito, do que aprofundar reminiscências da infância, trazendo dados cognitivos sobre o evento, fazendo, portanto, uma análise somente intelectual da situação e pouco calcada na vivência atual. Pensando a história de vida como uma árvore, podemos dizer que a Gestalt-terapia não busca as raízes, mas como essas modelam e constituem o tronco; e, de que maneira, elas impedem o aflorar de novas possibilidades. Assim, atua de forma sincrônica sobre o homem, em contrapartida a outras técnicas psicoterápicas que atuam de forma diacrônica.

De acordo com Fagan & Shepherd (1980), o grande diferencial desta abordagem terapêutica em relação a outras - como a de Carl Rogers - que também estão interessadas na situação presente, é a exploração do problema da conscientização (awareness) do que está acontecendo ao paciente, no exato momento da terapia.

Assim, o estar no aqui-e-agora equivale a uma postura de conscientização de si, que é a pedra angular da abordagem gestáltica. Para Ribeiro (1985), o aqui-agora encerra tudo aquilo de que o sujeito precisa para se guiar na reestruturação e fortalecimento do seu campo perceptivo- existencial. Ainda de acordo com o autor:

O aqui-e-agora vivencial ou Gestalt-terapia é uma extensão ou ampliação do aqui agora da Psicologia da Gestalt. Aquele significa uma proposta de responsabilidade com a realidade circundante, ou seja, o presente é responsável por ele mesmo, ele se auto-explica se auto-revelando. Tentar viver o aqui e agora significa compromissar-se com a realidade como um todo aqui e agora. Esse é um dos objetivos da psicoterapia [grifo nosso] (p.81).

Isto posto, propomos uma retomada da condição do homem moderno. Expusemos que a modernidade colocou o sujeito em uma nova condição de funcionamento psíquico (Elias, 1990; Giddens, 2002), onde existe um constante projetar-se para o futuro e para o passado. Devido às condições como se configuram os hábitos sociais, podemos dizer que essa marca histórica no lidar com o tempo não é facilmente mudada. Bauman (2004) argumenta que, ao contrário do que poderíamos imaginar, a cultura se apresenta cada vez mais como a parte herdada da identidade que não se pode remendar. Ora, isso significa que sendo o tempo também uma construção cultural, assim como os modos como cada sociedade lida com ele (Elias, 1998), mudar essas relações torna-se uma tarefa bastante complicada, senão impossível.

 

2. A Abordagem do Tempo Presente

Podemos dizer que a Gestalt-terapia surgiu por discordância a princípios e procedimentos psicanalíticos. Em Ego, fome e agressão, Perls (2002), ao lançar as suas bases teóricas, critica os modos como a psicanálise lida com o tempo do sujeito. Para o autor, desenterrar o passado - tal como relata que atua a clínica psicanalítica - é um método para colaborar com a resistência do paciente neurótico em enfrentar o presente, afastando-o da experiência da "sensação de si mesmo". A sua proposta é uma psicoterapia que ofereça uma forma diferenciada de ação clínica, concentrando as atenções nos fatos do tempo presente do indivíduo. Tal postura decorre de uma conceituação específica do que seja estar no aqui [espaço]- e-agora [tempo] e de como isso possibilita a emergência de processos subjetivos específicos que são, acredita-se, mais adaptativos à vida.

Para Carmo (2004), o aqui-e-agora talvez seja um dos conceitos que mais caracteriza a terapia gestáltica e, também, o menos entendido nos meios acadêmicos. Isso justifica a importância de se explorar o tema, principalmente quando se procura fazer uma inter-relação deste com aspectos culturais responsáveis por moldar formas gerais do homem ver e interagir no mundo. Pensando sobre essa influência, Polster e Polster (2001) salientam que os sistemas culturais precisam se re-configurar, a fim de estimular as pessoas a viverem suas vidas mais focadas no momento atual. Em consonância, Carmo (2004) observa que terapeutas e clientes compartilham a mesma sociedade, que costuma impossibilitar que se faça contato com o presente e com os processos subjetivos de sentimentos, pensamentos e ações.

A posição de valorização do espaço e tempo presente vai de encontro à tese categórica de Freud de que a psicanálise, enquanto método, prevê, necessariamente, a recuperação da memória infantil (Perls et al., 1997). E é sobre essa posição do tratamento psicanalítico que Perls (2002) se opõe fortemente. Para o autor, nesse processo retrospectivo, a pessoa evita assumir responsabilidade por sua vida e suas ações, colocando a culpa em algo que aconteceu no passado, ao invés de se aventurar e resolver sua vida tal como se encontra no momento. Para Perls (2002), a realidade é o presente, reter o passado ou viver em projeções futuras são formas de encobrir a realidade; e essa renúncia do agora pode levar a uma personalidade desequilibrada.

Se apenas a estrutura presente de sensação e comportamento estão disponíveis e acessíveis ao sujeito, questiona- se, portanto, qual seria a importância das rememorações no desempenho dessas estruturas. E o organismo, por meio de sua auto-regulação, descarta os conhecimentos inúteis e fixa aquilo que é importante, de modo que, como afirmam Perls et al. (1997): "o passado e toda outra fixidez persistem através de seu funcionamento presente: uma abstração persiste quando é comprovada na fala presente" (p. 100).

Ora, dessa forma, a Gestalt-terapia está assentada na crença de que a existência só se dá no presente; o passado é sempre lembrado a partir de sua posição e de sua repercussão na vida atual da pessoa. Ou seja, a ideia não é re-viver o trauma em si, re-viver imageticamente situações do passado. A proposta é trabalhar na psicoterapia as situações inacabadas do passado que ainda habitam e tomam de emoção o sujeito, bloqueando o fluxo de sua vida em determinada esfera.

A busca do processo terapêutico na Gestalt-terapia é a consciência de si e de suas possibilidades, que só pode acontecer no presente. Retomando a definição de psicoterapia, como exposta na resolução Nº 010/2000 do Conselho Federal de Psicologia do Brasil, vemos que é uma prática que enseja a promoção - na esfera do indivíduo ou grupo - de condições para o enfrentamento de conflitos e/ou transtornos psíquicos. Pretende realizar, portanto, em algum nível, uma mudança, seja ela de crença, de atitude, de perspectiva ou de disposição. Ora, então, um sujeito que recorre à psicoterapia busca algum tipo de mudança em sua vida, ou, ainda, encontra-se imobilizado nesse processo por conta de alguma questão conflitante. Nesse caso, não seria errôneo postular que as psicoterapias orbitam em torno dessa questão, e concebem teorias e técnicas a fim de promover mudanças nas vidas de seus pacientes.

Para que haja mudança, segundo a visão gestáltica, o indivíduo precisa se apropriar de si e integrar suas polaridades. Tem que se reconhecer, aceitar-se para poder mudar. Quando isso não é feito, toda a energia de impulso e motivação é jogada para o futuro, para o que se deseja ser. Mas, como o futuro é sempre um sonho, um para além do presente, podemos dizer, então, que o momento atual esvazia-se de projetos, de impulsos e, conseqüentemente, nenhuma mudança real acontece.

Daí, mais uma vez, a importância do conceito do aquie- agora e sua proposta de mudança: é preciso mobilizar o sujeito, fazendo-o apropriar-se da sua existência presente. Um sujeito apropriado e consciente de quem se é, acredita-se, estará muito melhor instrumentalizado para transitar em um mundo em constantes dinâmicas e realizar suas re-construções.

Como toda abordagem psicológica, a Gestalt-terapia guarda uma visão de homem que se localiza em uma posição dentro do que chamamos de impasses das ciências humanas, quais sejam: homem-mundo, inato-adquirido, biologia-cultura. E é essa concepção do humano que orienta as posturas psicoterapêuticas e suas técnicas e manejos clínicos; cada teoria precisa definir-se a partir das específicas visões de homem, do quanto há de cultural ou determinismo em cada posição. Nesse sentido, Perls (1988) declara que a abordagem gestáltica considera o indivíduo uma função do campo formado pelo dual organismo/ meio, sendo seu comportamento um reflexo de sua ligação dentro desse campo. O autor ainda acrescenta que não considera o homem em conflito com o meio, mas, sim, em constante interação que, por sua vez, reconfigura continuamente esse campo.

A Gestalt-terapia se propõe a ser uma psicoterapia do "homem-no-mundo" (Robine, 2006). Isso quer dizer que não toma o homem como uma entidade isolada em si mesmo, com modos de funcionamento padronizados, com etapas programadas de desenvolvimento, que independem da sua relação com o meio que o rodeia. O sujeito, nesse caso, só pode ser compreendido como um ser em relação, assim como a sua consciência.

Essa concepção relacional do homem resulta em um dos conceitos fundamentais da abordagem gestáltica, que é o contato. Para Perls (1988), o estudo do modo como o homem funciona no seu ambiente é o estudo da fronteira do contato entre o indivíduo e seu meio. Toda função do organismo é necessariamente um processo de interação entre este organismo e o meio. Com esta perspectiva, o autor afirma que "organismo e meio se mantêm numa relação de reciprocidade. Um não é vítima do outro. Seu relacionamento é, realmente, o de opostos dialéticos" (p.32). A Gestalt-terapia não trabalha, portanto, com duas realidades estanques e cindidas. Mas, pelo contrário, sujeito e mundo estão em constante processo de determinação recíproca acerca de suas necessidades.

Problematizando e aprofundando os conceitos de contato, Robine (2006) o define como o processo mais primitivo do ser humano em sua relação com o mundo, referindo-se aos primeiros "impulsos instintivos" no campo organismo-ambiente. O contato se localizaria, assim, antes da relação dialógica e antes mesmo das relações objetais. Para Perls et al. (1997), a experiência é essencialmente contato, é o funcionamento da fronteira entre o organismo e seu ambiente.

Dessa forma, o contato saudável tem uma estreita relação com o manter-se consciente na situação presente. É a awareness que permite a autopercepção que, por sua vez, possibilita uma vivência autêntica. Ou seja, o sujeito que se mantém em contato saudável com o mundo, está aware, ou seja, está alerta, presente, consciente de si mesmo e de suas possibilidades. O contato ocorre em um lugar denominado de fronteira e, de acordo com Robine (2006), designa o processo de ajustamento criador do organismo e seu meio. Esse processo é uma totalidade, mas pode ser dividido em uma sequência de fundos e figuras proposta por Perls et al. (1997): pré-contato, contato, contato final e pós-contato.

Vimos, assim, a perspectiva por meio da qual se dão as relações entre organismo e meio, que acontecem sempre em ciclos que devem ser completados de modo a não deixar Gestalten inacabadas (Perls et al., 1997). No entanto, as interrupções podem ocorrer ao longo desse ciclo, gerando desequilíbrios, fixações que se manifestam sob a forma de patologias ou comportamentos disfuncionais. Na neurose, por exemplo, Robine (2006) afirma que há um cessar do intercâmbio entre organismo-ambiente. E, a depender do momento do ciclo onde ocorra a interrupção, haverá comportamentos específicos que orientarão o terapeuta a descoberta desse momento. De acordo com Perls (1988):

Uma das características do neurótico é não poder fazer bom contato nem organizar sua fuga. Quando deveria estar em contato com seu meio, sua mente está em qualquer outro lugar e assim não pode se concentrar. Quando deveria fugir, não pode. A insônia, uma queixa freqüente dos neuróticos, é um exemplo da incapacidade de fugir. O fenômeno do tédio é outra. O tédio ocorre quando tentamos ficar em contato com algo que não fixa nosso interesse. Rapidamente exaurimos qualquer excitação; nos tornamos cansados, desinteressados (p. 35).

A neurose está, assim, em relação inversa com a awareness; quanto menos o sujeito está consciente de si, do que sente, do que deseja, mais perto se encontra da esfera da neurose. Existe, portanto, uma relação entre a neurose e a incapacidade do indivíduo de realizar um contato saudável com o mundo. Pode-se concluir que o neurótico não se situa no aqui-e-agora, mas fixa-se em situações passadas ou vive uma angústia antecipatória em relação ao futuro. Há na neurose uma inabilidade de estabelecer contatos de forma autêntica, sendo considerada uma perturbação das funções do self. Vejamos uma descrição de Perls (1988) do neurótico:

E agora vem nosso neurótico - ligado ao passado com modos obsoletos de agir, vago quanto ao presente porque o vê apenas através de óculos escuros, torturado em relação ao futuro porque o presente lhe escapa (p.57).

Nessa imagem, pode-se perceber que o indivíduo não realiza um ciclo completo de contato com o mundo, sua ação é ineficiente porque não há autenticidade em seus atos, não reconhece suas necessidades. Então, para tratar a neurose - transtorno com grande prevalência na sociedade ocidental desde a modernidade (Perls et al., 1997) - a Gestalt-terapia propõe fazer com que o paciente se perceba, perceba como está fazendo suas interrupções no campo, para que possa, então, experimentar uma ação diferente e aprender como organizar suas necessidades. Para o self se organizar de forma mais saudável, é preciso contatar o presente transiente concreto (Perls et al., 1997). É o sujeito consigo mesmo, tentando tornar-se consciente de seus desejos, de suas reais sensações.

O processo terapêutico visa ao restabelecimento do si-mesmo pela integração das partes dissociadas da personalidade (Perls, 1988). Com isso, acredita-se que será restabelecida a auto-consciência e seu centramento nas escolhas que faz no aqui-e-agora. A conscientização fornece ao paciente a compreensão de suas próprias capacidades e habilidades e esse processo só pode se dar no momento presente (Robine, 2006; Perls, 1988).

De fato, pode-se ver que alguns transtornos mentais têm relações com alterações da percepção temporal normal. Fé (2004) pontua que os portadores de transtorno obsessivo- compulsivo têm uma dificuldade de organização perceptiva do passado imediato, citando a recorrente dúvida que esses pacientes costumam ter em relação a uma atividade que acabaram de concluir, como, por exemplo, trancar uma porta. Essa dúvida ocasiona uma necessidade imediata e repetitiva de verificação. Podemos, assim, dizer que esse paciente não tem problemas neurológicos ligados à memória, mas, muito provavelmente, uma dificuldade de manter sua atenção no presente enquanto faz tal atividade; além, é claro, de outros fatores que o caracterizam como obsessivo-compulsivo, de acordo com a literatura específica.

O autor ainda caracteriza o ansioso por tentar reiteradamente "presentificar" o futuro, sendo o grau mais acentuado disso, o "paranóide", que é capaz de tornar provável qualquer situação possível. Em outro pólo, Fé (2004) caracteriza o deprimido como aquele que tem uma preocupação no passado, mas não passado de realizações, e sim aquele carregado de perdas, de fracassos e decepções, projetando um futuro sombrio.

Vimos, portanto, o quanto a relação com o tempo torna-se um fator importante de trabalho nas psicoterapias. A proposta para que o paciente traga sua história e a experimente novamente no aqui-e-agora é uma atitude incessante da abordagem gestáltica (Carmo, 2004). Na prática, isso significa chamar a atenção do paciente para os sentimentos e sensações que emergem junto com seu relato, numa tentativa de presentificá-los e tentar estabelecer novas significações das relações e de si. Nesse caso, o vivido e as projeções para a posteridade devem estar apenas retidos no agora. Conforme Costa (2004), do ponto de vista da experiência, não existe presente sem referência intrínseca ao passado e ao futuro.

Uma vida saudável, longe das neuroses, acontece sem interrupções de contato, sabendo bem por onde transita, que escolhas autênticas são feitas. O sujeito é capaz de viver em contato íntimo com a sociedade sem ser tragado por ela, reconhecendo os limites de contato entre si e o mundo (Perls, 1988). Resta saber o quanto é possível o homem manter-se nesse funcionamento saudável diante das imposições sociais.

 

3. Aqui-e-agora e Modo de Vida Contemporâneo: um Diálogo Possível?

Para Elias (1990) e Fé (2004), a forma de vida humana, como consolidada ao longo da evolução, forçou o homem a desenvolver uma concepção de história, gerou formas específicas de pensamento e condicionou, para cada pessoa, comportamentos e atitudes de acordo com o passado. Por analogia, surgiram também ideias relacionadas ao futuro, como, por exemplo, a sua previsão.

O intelecto tornou-se, então, o diferencial, a função simbólica desenvolveu-se para nomear, para passar conhecimento e, assim, construir uma cultura que pudesse se sobrepor a todas as suas limitações físicas. A linguagem especifica e nomeia, no tempo, as experiências, possibilitando registrá-las, ensiná-las ou mesmo planejá- las. Vimos, portanto, que deslocar o pensamento no tempo é uma atitude inerente à espécie humana. O que vai se diferenciar e mudar radicalmente, em cada momento histórico, é a forma como o homem organiza sua vida no eixo temporal e como usa o tempo como medida para crescer ou para se estagnar, para interromper sua ação no mundo.

Elias (1990; 1998) descreve com muita precisão os fatores sociais que levaram a nossa relação com o tempo a adquirir a configuração que tem hoje, qual seja: uma vida muito ponderada, avaliada e planejada no tempo. É claro que isso só foi possível com o grau de controle e previsibilidade que a sociedade concentra hoje. Os avanços científicos e o comportamento civilizado levaram o homem a uma precisão de horários, deslocamentos rápidos, conhecimento e antecipação das atitudes dos sujeitos. Ou seja, não estamos preparados para atitudes inesperadas diante, por exemplo, de uma festa social, com alguém excedendo as normas "pré-vistas". O imprevisto gera sempre um desconforto, que deve ser causado pela surpresa do fato. O mundo que se configurou desde a modernidade não é muito afeito ao inesperado. A surpresa da loucura, da natureza, dos atentados deve ser controlada, vigiada, calada.

É claro que o ritmo e significados da vida moderna geram um psiquismo específico também. E não parece acaso biológico uma observação, a olho nu, que se tem do aumento de neuroses e determinados transtornos mentais: depressão, ansiedade, ansiedade generalizada, síndrome do pânico, compulsões e, até mesmo, psicoses. Podemos nos perguntar se o modo de vida moderno é um modo psiquicamente doente de se viver.

No capítulo intitulado A natureza humana e a antropologia da neurose, Perls, Hefferline e Goodman (1997) fazem uma discussão bastante profícua - um tipo de sociologia histórica - sobre as origens das neuroses e sua relação com o meio. Os autores levantam a hipótese de que o modo comum de vida da cultura ocidental contemporânea tornou-se neurótico. Em um mundo de grande complexidade e interdependência, como já discutido aqui, existe uma necessidade crescente de controle dos impulsos (Elias, 1990). E, para a Gestalt-terapia, esse controle não se dá impunemente. As novas formas de organização social tornaram-se tão complicadas que deixaram algumas faculdades da natureza humana fora de uso. Não há, assim, uma integração das polaridades social vs. natural, mas uma repressão desta última.

É inegável, portanto, que as neuroses são mecanismos adaptativos que surgem do embate entre o inato e o adquirido. Emergem para resolver a equação entre os desejos e necessidades pessoais e as demandas sociais às quais todo homem quer e/ou deve se submeter. Do contrário, o sujeito terá sua vida invalidada para qualquer função social, como, podemos dizer, acontece com os considerados "interditos" mentais; ou seja, aqueles que não compartilham os mesmos valores e crenças padrões de uma sociedade. Dessa forma, a neurose é incorporada para impedir a espontaneidade; e a unidade básica do movimento e do sentido do movimento se perde (Perls et al., 1997).

Chegamos, portanto, ao ponto-chave da argumentação proposta aqui. Resposta final não se encontrará, mesmo porque as certezas são sempre menos férteis do que as dúvidas. Mas temos um espaço suficiente de discussão e problematização.

Sabendo-se que a Gestalt-terapia busca uma integração saudável do campo, onde o sujeito saiba reconhecer suas necessidades, transitar no social - mas sem se perder -, resta saber como se posiciona a clínica e a teoria gestáltica diante das imposições culturais que têm colocado a neurose como um recurso de ajustamento. A isso se segue a proposta de tornar o sujeito consciente do seu aqui-e-agora, quando o todo social funciona em outra demanda temporal, inclusive moldando o seu psiquismo. Isso poderia soar, à primeira vista, como uma incoerência interna, uma invalidade de constructo da Gestalt-terapia, pondo em xeque sua efetividade.

Mas o manter-se no aqui-e-agora não é uma impossibilidade psíquica, é um trabalho, ao que parece, de foco de atenção. Não significa que o sujeito deva esquecer seu passado e não planejar a vida. Mesmo porque tal atitude seria incongruente com o modus vivendi, tornando o homem desajustado da ordem social. Assim, qualquer utilização atomizada do conceito, ou seja, tomá-lo como uma máxima figura descolada de seu fundo, das condições reais de vida social, parece levar a propostas ingênuas de trabalho psicoterapêutico e, portanto, de eficácia possivelmente duvidosa.

O aqui-e-agora é um conscientizar-se sobre suas próprias capacidades e habilidades de seu equipamento sensorial, motor e intelectual (Perls, 1988). O aqui-e-agora é, portanto, uma tentativa de integração desse sujeito consigo mesmo. Como a Gestalt-terapia é a terapia do contato, de ampliação de suas fronteiras, como forma de ampliar as potencialidades individuais, o "tornar-se presente" é uma prerrogativa irrevogável para tal alcance. A sensopercepção só se dá no presente. Temos, portanto, o fundamento do aqui-e-agora como uma conseqüência da necessidade de ampliação das fronteiras de contato. Nesse sentido, o terapeuta gestáltico funciona como alguém que irá, de alguma forma, corrigir as dificuldades de contato de cada paciente (Costa, 2004).

Sendo o comportamento neurótico tomado como uma forma adaptativa de vida nas sociedades contemporâneas, a Gestalt-terapia, neste caso, não se coloca como uma clínica da conformação. A busca por centrar-se no aquie- agora é subversiva à ordem vigente, mas não significa que infrutífera. O que se propõe é um avanço no status quo, é o treino e a utilização de habilidades psíquicas que podem trazer uma melhora nas condições de vida. Se o momento atual é neurótico, não quer dizer que ele tenha que ser sempre assim. É pensar em possibilidades de atuar para fora e mudar o estabelecido.

Assim, a Gestalt-terapia se apresenta como uma proposta psicoterapêutica de verdadeira mudança. Isso implica num conhecimento do meio social - fato que foi abordado ao longo desse trabalho, com o levantamento dos aspectos sociais e antropológicos da sociedade ocidental moderna - e aceitação de como as coisas são, para, então, poder propor teoricamente e praticamente mudanças efetivas.

É comum as abordagens psicodinâmicas falarem que seus objetivos psicoterapêuticos principais não são a remissão de sintomas, mas uma compreensão intelectual de si. Tal concepção parece-nos, se não uma concordância, pelo menos, uma aceitação da ordem cultural como um dado que precisa ser aceito, em conseqüência de uma troca feita há muito tempo na história da humanidade: a abdicação dos hábitos naturais pelo conforto e proteção de uma vida social. Essa equação dá um resultado sempre negativo, com o homem visto como um sujeito clivado e castrado. Daí seu caráter pessimista correntemente apontado.

A abordagem gestáltica também busca a adaptação do homem ao seu meio, mas através do seu lado criativo, favorecendo um jogo maior de determinação entre indivíduo e meio. E, como conseqüência, ocasiona a cessão de vivências que são impeditivas do sujeito se expressar livremente: os sintomas. Nesse sentido, é perfeitamente possível falar em propostas para uma busca mais otimista na relação homem-meio; onde o primeiro não se coloca apenas como refém do segundo. A Gestalt-terapia, através de propostas como o aqui-e-agora, resgata a condição criadora humana na possibilidade de repensar as coisas que estão dadas. É uma proposta de movimento e resgate da capacidade humana de se re-inventar. É uma proposta psicoterapêutica que não apenas aceita os ditames culturais, mas, também, repensa-os, e propõe novas formas de vida.

Isso não quer dizer que seja tarefa fácil e de completa responsabilidade do indivíduo. Existem fatores sociais que, muitas vezes, são impeditivos para o sujeito e impossíveis de serem transpostos. Mas perfeitamente possíveis de serem propostos. Para mudar, como foi dito, o sujeito precisa conhecer seu campo, seu funcionamento, como e por que se submete a determinadas situações, e isso, por si só, já é um concentrar-se no presente e em quem se é. Esse parece ser o verdadeiro significado do manter-se no aqui-e-agora. Nem sempre mudar é, necessariamente, transpor barreiras, mudar o rumo de um caminho, mas é, certamente, conhecer-se.

Desta foram, acredita-se que psicólogos e psicoterapeutas devem estar atentos às questões dos modos de vida e de pensamento produzidos socialmente, seus limites e possibilidades. Daí a importância de se incorporar estudos como esse, que se aproximam e dialogam com a antropologia e a sociologia. O homem é material muito complexo, demandando um intercâmbio entre disciplinas, pois só uma abordagem complexa pode tentar dar conta de alguma parte de explicação.

 

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Recebido em 08.06.2011
Primeira Decisão Editorial em 19.08.11
Aceito em 01.09.11

 

 

Giovana Reis Mesquita - Psicóloga, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia e Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é Professora Assistente da Universidade Salvador e do Instituto de Gestalt-terapia da Bahia.

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