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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.17 no.1 Goiânia June 2011

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

O TEMPO VIVIDO1
(Estudos Fenomenológicos e Psicopatológicos)

PRIMEIRO CAPÍTULO
O Devir2 e os Elementos Essenciais do Tempo-Qualidade
(O Princípio do Desenvolvimento)

 

 

Eugène Minkowski (1933)

 

 

1. Preliminares

Quando na vida cotidiana o tempo é uma questão, nós olhamos instintivamente nosso relógio ou o calendário como se em relação ao tempo tudo se reduzisse a assinalar cada evento em um ponto fixo para exprimir em anos, meses e horas a distância que separa uns dos outros.

A clínica adota a mesma atitude. Ela fala-nos de desorientação no tempo e para constatá-la, faz-nos interrogar o doente sobre a data de seu nascimento, sobre quanto tempo durou sua permanência no hospital ou ainda sobre o dia em que estamos. É no mesmo sentido também que ela fala da bradipsiquia (dos epiléticos) tendo em vista a lentidão de suas reações por comparação com aquelas do indivíduo normal, lentidão que se poderia, nos casos fracassados, medir com a ajuda de um relógio e exprimir em minutos e segundos. É ainda a mesma concepção habitual do tempo que se encontra na base das pesquisas experimentais sobre a faculdade de avaliar, em diferentes condições, suas durações mensuráveis tal como sobre os desvios que poderiam apresentar esta faculdade nos casos patológicos.

Não é difícil divisar que se trata aqui do tempo mensurável, ou para falar com Bergson, do tempo assimilado ao espaço. Sem falar das expressões tais como "medida", "distância", "intervalo" que, aplicadas indiferentemente ao tempo ou ao espaço, disso são provas suficientes. Por outro lado, a desorientação no tempo ocorre, na patologia, junto com uma desorientação do espaço como se essas duas desorientações fossem apenas a expressão de um mesmo problema; é assim que nós as encontraremos lado a lado no caso de confusão mental ou na consciência obnubilada, onde toda a realidade se encontra como que suspensa e substituída por um mundo fictício, ou ainda no caso de enfraquecimento intelectual, quando a memória falha não chega mais a evocar a tempo, nem os nomes dos lugares, nem as datas fixadas convencionalmente por nós para os diversos eventos da vida.

Deixemos esse aspecto do tempo de lado. Ele constituirá uma base demasiado estreita para um estudo geral sobre o fenômeno do tempo. O que não é difícil de se perceber.

A monótona vida aos pedaços, por vezes nos faria esquecer a data e o dia da semana; nas condições em que nos encontramos, separados da continuidade e da organização habituais da vida esses dados não nos apresentam, no fundo, nenhum interesse imediato; também a substituiríamos por outro "calendário", mais apropriado à situação, que contasse simplesmente os dias que transcorreram a partir desse alinhamento e aquelas que nos separam ainda de um retorno ao isolamento do repouso. Desorientados no tempo, no sentido comum da palavra, nós o estamos, às vezes; mas nós nos recriaríamos se alguém dissesse que somos seres "sem tempo", se ousássemos nos exprimir assim; ao contrário, todo nosso sofrimento, fora a devastação semeada pela morte, vem do tempo; nós sucumbimos à extensão e à monotonia dos dias que se sucedem e lutamos contra o tédio - fenômeno, como é fácil perceber, de natureza essencialmente temporal - que como uma massa morta e pegajosa se infiltra em nosso ser, ameaçando-o de reduzi-lo a nada. Não se diz que, durante a guerra não estamos apenas com o inimigo, mas também "em tédio"?

Tomo emprestado o seguinte exemplo da psicologia infantil. Quando meu filho tinha seis anos, habitualmente eu o acompanhava à escola; nós tomávamos o café da manhã juntos, depois eu fumava um cigarro e, em seguida, saíamos em direção à escola. Um dia, tendo me levantado mais tarde do que de costume, eu disse ao meu filho, que bebia tranquilamente seu leite: "apressese, meu pequeno, pois senão nos atrasaremos". A resposta não tardou: "mas, papai, me disse meu filho, não podemos estar atrasados, você ainda nem fumou seu cigarro". A criança certamente havia registrado a sucessão regular de certos acontecimentos, ele dispunha incontestavelmente de noções de ordem temporal, apesar de que a ideia completamente desenvolvida de um tempo abstrato escoando independentemente dos acontecimentos que se desenrolavam diante dele e aos quais ele se reportava, ainda faltavam para ele.

No domínio patológico, encontramos fatos parecidos. Um paralítico, em um estado não muito avançado de afecção, mostra-se capaz de contar-nos, em ordem cronológica, o que ele fez durante a guerra, mas é incapaz de dizer-nos quando a guerra começou ou quando foi assinado o armistício. Quanto às demências senis, ao ouvi-los falar, diz-se, por mais paradoxal que possa parecer, que, apesar de seus graves problemas de memória e sua completa desorientação, seu pensamento, dentro de suas fabulações e de todas suas manifestações psíquicas, apenas se desloca no tempo; frequentemente, em cada frase que pronunciam, encontra-se uma noção de ordem temporal. Para citar apenas um exemplo: uma paciente de 78 anos, com um enfraquecimento intelectual considerável, não sabe nem que idade tem nem quando nasceu, nem em que dia estamos, nem desde quando está no hospital, mas podemos ouvi-la dizer: "Minha mãe (sua mãe está morta) veio todos esses dias, mas hoje ela não veio; ela vinha todos os dias, eu acho que ela não veio ontem; mas ela virá todos os dias trabalhar comigo. Até aqui meus filhos vinham todos os dias, agora eu não vejo mais meus filhinhos como eu via antes. Quando eu penso nos meus, acredito que faz um século que não os vejo. Se ao menos eu pudesse ver-lhes duas ou três vezes por semana, para poder me dizer que os vi recentemente e que vou revê-los em breve". Enfim, dentro de outra ordenação de ideias, lembremo-nos de um doente de M. Gilbert Robin que, esquizofrênico, "atirava" em seu relógio, para matar, ao menos simbolicamente, o tempo que ele considerava como seu pior inimigo.

Não nos retardaremos mais muito tempo nesses exemplos; falaremos deles novamente. Aqui, os mencionamos para mostrar que nem a ideia do tempo mensurável dentro do domínio normal nem a noção de desorientação no tempo no domínio patológico podem exaurir o fenômeno do tempo vivido; dele as constituem apenas uma fraca parte, apenas um dos aspectos mais abstratos e mais distantes da realidade vivida, e não saberiam, por consequência, servir de ponto de partida de uma análise completa do tempo. Nós não procuraremos, aliás, esse ponto de partida nem nos fatos psicopatológicos nem na psicologia infantil, nem em certas circunstâncias excepcionais da vida normal; todos esses fatos contêm, por sua própria natureza, um elemento de desvio ou de inferioridade, o que de um golpe os reduz ao papel de fatores coadjuvantes no estudo que prenunciamos. Não, o que devemos fazer antes de tudo é compreender o vivo fenômeno do tempo em toda sua riqueza, em toda sua especificidade original.

Desde esse ponto de vista, temos ainda uma observação a formular. O tempo assimilado ao espaço peca, como sabemos, por excesso de estatismo. Mas é necessário desconfiar tanto quanto, senão mais, das imagens do tempo que, ao contrário, parecem pecar por excesso de dinamismo, além de totalmente artificiais como veremos adiante. Muito frequentemente vemos o fenômeno do tempo transformado em um tipo de caleidoscópio, fazendo espelhar diante dos olhos a cada instante, sem cessar, constantemente, imagens novas que se relacionam, sejam aos eventos do mundo exterior sejam aos eventos de nossa vida íntima. A vida é substituída pela ideia de um turbilhão, de um curso violento, de uma sucessão perpétua, não oferecendo à nossa necessidade de refletir e de meditar qualquer ponto de apoio mesmo que pouco estável. Eu me lembro da impressão produzida pela descrição do tempo em um dos livros de Ziehen: "Jamais encontraremos um που στω3-4. Nós somos carregados por nossas representações e nossas sensações. Não podemos nem pará-las, nem pular do carro que nos leva em sua rota rápida e sempre adiante, para podermos olhar como espectadores. Cada pensamento relativo às nossas representações já é uma nova representação. Desde que acreditamos ter agarrado o momento A, já estamos no momento B". Na presença desta descrição, estamos quase em vistas de gritar: "mas é falso tudo isso. Esse που στω existe, o conhecemos todos, podemos ser espectadores de cada momento da existência, somos mesmo chamados a sê-lo, é esta uma das tarefas essenciais que temos de cumprir na vida; e se aí há desacordo certamente não é nos dados imediatos da consciência que devemos nos prender, mas à descrição que desprezam". De uma forma mais objetiva, em um dos meus primeiros estudos dizia a esse propósito5:

"Esse quadro é o resultado de uma projeção integral da realidade psíquica sobre um tempo objetivado, tal qual o concebe a física. Entretanto, um rápido vislumbre sobre nossa vida psíquica é suficiente para mostrar que o quadro em questão não corresponde de forma alguma à realidade. De início não vivemos o tempo unicamente como uma sucessão perpétua de diversos elementos de nossa consciência, como o quer Ziehen; nós já conhecemos o fator da duração destes elementos, de sorte que, por outro lado, os fenômenos trazidos à memória contêm em si a relação passado-presente, relação que não se deixa levar por uma simples sucessão de fatos. De forma alguma é dita, a priori, que não há na realidade psíquica dos fenômenos a impossibilidade desses serem subordinados à relação de sucessão no tempo e assim serem chamados eles mesmos para servir de ponto de partida ao estudo desta realidade. Em outros termos, antes de adotar o quadro esboçado acima, será necessário provar, antes de mais nada, que é legítimo projetar a realidade psíquica inteiramente sobre um tempo objetivado. No caso oposto, esse quadro não seria outra coisa que a expressão de nossa tendência a assimilar a qualquer preço a realidade psíquica ao devir material". Hoje, eu me exprimiria provavelmente de um modo um pouco diferente, mas o fundo do meu pensamento é o mesmo. Esse tipo de caleidoscópio de que falamos não é outra coisa, ele mesmo, que a expressão de uma espacialização e uma racionalização excessiva do tempo. Esse é assim decomposto em pontos justapostos, e ao fazê-los deslizar mentalmente com uma velocidade supostamente muito grande, esses pontos juntamente com os estados de consciência que seriam aí estimados, acredita-se ter oferecido um quadro fiel do escoamento da vida no tempo. Entretanto, em realidade, o tempo vivido não se parece em nada com esse quadro. Apesar de sinônimo de dinamismo, ele se mostra fortemente compatível com os fenômenos da duração e da estabilidade (que são totalmente diferentes do imóvel e da morte); além do mais, existem fenômenos que se transcorrem no tempo, contêm, além disso, o tempo em si mesmos, constituindo-se como "figuras temporais", se ousamos exprimir assim; tais figuras são, para não citar quaisquer exemplos, a lembrança com sua recordação do passado ou ainda o desejo e a esperança que pela sua própria natureza estão voltadas ao futuro e contribuem para que constantemente as criemos e voltemos a recriálas diante de nós. Esses fenômenos evidentemente merecerão nossa atenção, serão questão ao longo de toda essa obra; mas desde já é claro que não poderemos nos contentar em examiná-los unicamente como se sucedem no tempo, já que pelo seu conteúdo ou mais exatamente pela sua estrutura particular, determinam o contexto geral do tempo vivido, quer dizer, do tempo que precisamente nós queremos estudar aqui.

É necessário dizer que o problema assim colocado em nada se relaciona com os problemas levantados em física pelas teorias modernas da relatividade. Volkelt recentemente insistiu sobre esse ponto6. A física, tomando como ponto de partida o aspecto espacial do tempo, não faz nada mais que progredir de abstração em abstração nessa perspectiva. Nosso pensamento se move em uma direção diametralmente oposta; cansado dessas abstrações, procura voltar "para trás", em direção ao tempo vivido com tudo o que há de particular nele7.

 

2. O Devir

O que é, então, o tempo?

É, para falar de Bergson, essa "massa fluida", esse oceano movente, misterioso, grandioso e poderoso que eu vejo ao redor de mim, em mim, em todo lugar, em uma palavra, quando medito sobre o tempo. É o devir.

Eu o designo de uma maneira aproximada e bem imperfeita, admito, dizendo que o tempo escoa, passa, flui de uma maneira irremediável, mas também avança, progride, se vai em direção a um amanhã indefinido e insaciável.

Eu digo que me exprimo assim de uma forma imperfeita. Isso é exato. Entretanto, tal imperfeição diz respeito não a uma insuficiência dos meios dos quais disponho, mas àquilo que o devir não busca, de forma alguma, exprimir. É que, dentro de sua força misteriosa, ele não deixa emergir nenhuma ilha sobre a qual pudéssemos firmar pé para delinear um julgamento ou uma definição ao seu respeito. Ele recobre com suas ondas tudo o que possamos ser tentados a opor-lhe; ele não conhece nem sujeitos nem objetos, não há partes distintas, nem direção nem começo nem fim. Não é reversível nem irreversível. É universal e impessoal. Ele se torna caótico. Todavia, ele é tão próximo de nós, tão próximo que constitui a base mesma de nossa vida. Por pouco diríamos que ele é sinônimo de vida, no sentido mais amplo do termo.

Habitualmente o tempo é considerado como um produto da abstração, conduzindo-se, em sua origem, pelas mudanças concretas observadas, seja em nossa consciência, seja no mundo exterior. No fundo ele não é nada. O tempo se nos apresenta como fenômeno primitivo, sempre lá, vivo e muito próximo, infinitamente mais próximo que todas as mudanças concretas que chegamos a discernir no tempo. Ele não deixa nunca de se exaurir pela sucessão de nossos sentimentos, de nossos pensamentos, de nossas vontades. Sim, eu diria mesmo que ele é percebido em toda sua pureza quando não há nenhum pensamento, nenhum sentimento preciso na consciência; ele a preenche então totalmente, apaga os limites entre o eu e o não-eu, abraça por isso meu próprio devir como o devir do universo ou o devir simplesmente, ele os faz confluir e se confundir; meu eu parece se ajustar nele inteiramente sem que por isso eu prove um sentimento penoso de espera levado à integridade de minha personalidade. Ao contrário, essa é a única forma de renunciar a si mesmo sem fazer atos de renúncia propriamente falando. Nós nos confundimos com ondas poderosas, impessoais, desprovidas de "estado civil", se ousamos nos exprimir assim sobre o devir, sem dificuldade, sem a menor resistência, até mesmo com um sentimento de bem-estar e de quietude.

E se formos chamados, a qualquer preço, opor ao devir algum fenômeno concreto, não pensaríamos em primeiro lugar na sucessão de sentimentos e de representações ou ao movimento dos corpos sem organização, quer dizer, às mudanças dentro do tempo, mas às mudanças com o tempo ou em relação ao tempo, como são o desabrochar e a criação pessoal de um lado e a usura do tempo, o envelhecimento e a morte de outro.

O fenômeno do devir encontra-se na base do παντα ρει8 que, sem descontinuidade, atravessa a filosofia desde a Antiguidade até nossos dias. Todavia, é necessário se preservar de considerar, dentro desta fórmula, o παντα como uma soma de unidades isoladas, quaisquer que sejam, pois, se o fizermos, transformaremos esta fórmula, sem dúvida, nesse tipo de caleidoscópio do qual falamos mais acima. O παντα é aqui um todo primitivo que não se deixa decompor, um "todo" constituído pelo ρει e por mais nada. Talvez fosse mais justo, deste ponto de vista, dizer poη ρει9, para enfatizar que o devir elementar não admite nenhum substrato preciso. Como o exige o pensamento discursivo, ainda será preciso não perder de vista que esta fórmula apela a um sujeito e a um verbo, ao passo que o devir não contém nem suporta tal disjunção, já que tudo se confunde nele e nada do que ele contém pode ser separado dele.

Desta forma, nós não temos nada a fazer além de destacar o caráter irracional do devir. Mesmo os processos mais elementares do pensamento discursivo se mostram contrários à sua natureza. Nós podemos exprimi-lo igualmente, dizendo que não chegaremos a alcançar, em relação ao devir, a distância necessária para fazê-lo um objeto de nosso conhecimento. Ele está perto demais de nós para isso. Querer conhecê-lo, analisá-lo, representálo, não corresponde a nada, uma vez que, a cada instante, podemos vivê-lo, podemos tê-lo totalmente dado diante de nossos olhos.

Evitamos assim a censura de ter caracterizado o devir unicamente pelo lado negativo, fazendo aparecer seu caráter irracional. Esta censura está ela mesma fora da expressão da supremacia do pensamento discursivo adotado sem crítica. Não se trata aqui de uma insuficiência atual e totalmente relativa de nosso pensamento sob ponto de vista do fenômeno do tempo. O que nós temos diante de nossos olhos é qualquer coisa de positivo, no sentido que constatamos assim uma incompatibilidade fundamental entre o fenômeno do devir e os processos deste pensamento. Pela sua própria natureza o devir se separa de todo julgamento, todo atributo, todo sujeito, todo objeto. Adaptado ao ser, o pensamento se mostra incapaz de abordar o devir. O devir é inacessível ao conhecimento, não porque se localiza fora do conhecido, mas porque se encontra, por assim dizer, totalmente dado, não colocando sobre o tema de sua natureza nenhum problema que seja do domínio do pensamento discursivo.

Encontramos uma confirmação, do que acabamos de dizer sobre o tema, do caráter irracional do devir, naquilo que a lógica chega a demonstrar com uma facilidade surpreendente: que o tempo é contraditório em si mesmo. Aqui temos um dos esquemas: o passado é passado, não é mais; o futuro não é ainda; o presente se encontra assim entre dois nadas, mas o presente, o agora é um ponto sem extensão, desde o momento em que o presente está aqui, não é mais, o agora é então contraditório e por esse fato é também um nada. É assim que a realidade se reduz para o tempo como um nada situado entre dois nadas10.

Estas considerações apenas provam, pois, simplesmente, que o tempo seja realmente um nada. Por isso será necessário admitir que os argumentos para os quais apelamos não têm somente um valor absoluto, mas ainda um valor exclusivo. Entretanto, sobre isso não se pode discutir. O tempo, por si só, é extremamente rico, extremamente vivo para que possamos acomodá-lo a uma fórmula que o reduza ao nada. De sorte que a argumentação indicada mais acima, por mais que ela possa parecer prová-lo, serve apenas para demonstrar que o tempo torna-se um puro nada se o divisamos do ponto de vista da lógica; ela diz unicamente que o tempo é irracional dentro de sua essência mesma e que não pode ser reduzido ao nada se não lhe aplicamos os preceitos do pensamento discursivo e que, por consequência, não deva ser em nenhum caso abordado desde esse ponto de vista.

Notemos que os paralogismos desta ordem são longe de serem raros. É assim que se partindo do princípio do determinismo no domínio da realidade material, demonstra- se com todo o rigor desejado que parece que os fatos psíquicos não seriam nada mais que epifenômenos. De fato, uma olhadela sobre esses fatos é suficiente para provar que não é nada disso. Certamente, eles se tornam epifenômenos se os olhamos da maneira que acabamos de precisar. Mas no fundo nada nos obriga a olhá-los assim e todo o raciocínio que leva a conclusões dessa ordem provam apenas uma coisa: que a realidade psíquica, que esse raciocínio deforma à vontade, é incompatível com as premissas sobre as quais repousa11.

De uma maneira análoga, a redução do tempo ao nada apenas demonstra sua incompatibilidade com os postulados em virtude dos quais esta redução operou bem como a necessidade de se aplicar para seu estudo métodos mais apropriados à sua natureza.

Mas, então, como abordar o estudo do tempo?

 

3. Passagem do tempo vivido ao tempo assimilado ao espaço; suas consequências de ordem metodológica

Chegamos a uma virada decisiva. Fiel à filosofia de Bergson, fizemos reaparecer o caráter irracional do devir. Mas o que fazer em presença deste desacordo fundamental entre o tempo vivido e os procedimentos do pensamento discursivo?

Uma solução se impõe ao espírito. O tempo exige que ao ser analisado, em razão de seu aspecto particular, ao menos seja colocado em destaque um método particular próprio à sua natureza, que Bergson preconizou como o método intuitivo. Não é necessário evocar aqui a grandeza de sua obra. Duas vias, entretanto, parecem se abrir diante de nós. Podemos, como fez Bergson em sua "Evolução criativa", atribuir ao tempo um substrato mais estável e mais consistente sob a forma de fenômenos biológicos e alcançar assim uma percepção luminosa de encadeamento dos fatos da natureza. Mas podemos tentar também mantermo-nos no domínio dos fenômenos puros. Uma saída não se dissimularia ao fundo do impasse no qual parece estarmos acuados constatando a oposição irredutível entre o pensamento discursivo e a intuição, entre o espaço e o tempo?

Retomemos nossos passos. Rejeitamos a imagem do caleidoscópio. Contudo, essa imagem pode surgir no espírito daqueles que a traçaram. Certamente, não está em quetão aqui verdadeiro tempo, mas talvez seja apenas um de seus aspectos. Eu o confesso agora, quando tomo como ponto de partida a ideia da sucessão dos fatos, chego a reconstituir em mim o calidoscópio em questão. Sim, às vezes, não apenas chego a representar esse caleidoscópio, mas também a experimentá-lo de maneira muito viva. Nos momentos de cansaço, de desânimo, de decepção, tudo me parece fugidio, efêmero, inacessível. A vida, muito mais minha própria vida do que aquela que se desenrola ao redor de mim, parece realmente fluir com o tempo sem que eu consiga aí tomar pé, e a atitude dissolvente de "e daí?" toma conta de todo meu ser. esses são apenas momentos passageiros, eu vejo isso bem, mas, contudo eles existem e traduzem um aspecto particular do tempo. E esses momentos devem nos servir somente como termo de comparação, aliás como a imagem mais racional do caleidoscópio, para permitir o aparecimento da textura do tempo em toda sua plenitude primeira, o que não poderiam jamais o fazer se não tivessem nenhuma relação com ele.

E é assim que em todo estudo que busca penetrar a natureza íntima do tempo, vemos aparecer, como pano de fundo, como figurante mudo, mas indispensável, a ideia de espaço. Volkelt considera como elemento essencial, para a noção do tempo, a consciência do "agora-continuidade" (Jetzt-Stetigkeitsbewusstsein); isso dito, não deixa de nos descrever o que seria de nossa vida se esse elemento não existisse, ele o representa então como um tipo de mosaico, como qualquer coisa de descontínuo e de interrompido (zerrissen). De um lado, temos vontade de lhe perguntar: como ele pode saber o que seria elemento essencial do tempo privado, já que ele nunca teve a oportunidade de vê-lo na ausência deste elemento? E, com que direito, ele introduz, dentro de suas considerações sobre o tempo, as noções visivelmente embaraçadas ao espaço, como aquelas da descontinuidade e do interrompido? Mas, por outro lado, podemos nos impedir de achar seu raciocínio plausível, ao menos em certa medida.

O devir e o ser, o tempo e o espaço, parecem ser muito mais intimamente ligados um ao outro, e se conciliam bem melhor, do que poderíamos supor à primeira vista. A ideia de um fundamento solidário espaço-temporal, comparável àquele da solidariedade organo-psíquica, vem ao espírito.

A física, como mostrou Bergson, decompõe o movimento e o traduz pelos lugares os quais o corpo que se move ocupa sucessivamente em diversos momentos. Introduzindo assim a justaposição de pontos distintos (T, T + t1, T + t2, etc.) onde parece haver apenas penetração e organização, ela deforma o tempo, assimilando-o ao espaço. Mas uma questão de importância primordial se coloca: o que lhe permite operar esta assimilação, e de um modo totalmente natural, estando fora de questão ser esse um tratado de gênio a esse propósito? Se o tempo fosse totalmente diferente do espaço, jamais nem a física nem algum físico poderiam chegar a parecido resultado, a ideia não poderia lhes acontecer. Além do mais, dirigindo-se à nossa própria experiência, à experiência da vida diária e do senso comum, constatamos que desde que tentamos nos representar o tempo - e esta é uma operação mental que não é somente vazia de sentido, mas que podemos perceber sem dificuldade - o fazemos de modo totalmente natural e quase instintivo, à maneira da física, justamente sob forma de linha reta.

Escreve Blondel: "Sem dúvida, o sentimento de ter vivido dentro da duração é indispensável para a compreensão do que são os meses e os anos, e os processos objetivos que as coletividades adotaram para medir o tempo seriam ininteligíveis sem a experiência original da maneira pela qual ele se escoa e como as realidades o preenchem. Mas, resta apenas que o indivíduo normal venha a pensar a duração como uma espécie de rota reta e unida, que as etapas do calendário recortam em pedaços claramente determinados"12.

As ligações íntimas entre a ideia do tempo assimilado ao espaço e ao tempo vivido se revelam assim como uma passagem totalmente natural, sem conflitos nem tropeços, de um ao outro. Dizer, a respeito desta passagem, que se trata de uma aquisição, de um resultado de longos esforços de adaptação, serve do meu ponto de vista apenas para recuar o problema. Sem levar em conta que desta forma se substitui pelo estudo fenomenológico do tempo uma interpretação genética e, além do mais, que de certo modo comete-se um tipo de petição de princípio, a noção de gênese, de progresso e de evolução fazendo parte ela mesma do fenômeno estudado e do qual se liberam apenas progressivamente, a adaptação ou o hábito tomado, aos quais apelamos, pressupõem necessariamente de uma experiência original, na qual a passagem em questão possa ser realizada, ainda que seja somente em esboço, e encontrar assim as condições próprias a esta realização. De sorte que parecerá legítimo divisar esta passagem não como resultado de um esforço de inteligência, mas muito mais como um "dado imediato" da consciência e de deixar, como tal, fazer valer seus direitos.

Estes direito se resumem nos seguintes: o tempo se apresenta, de um lado, como um fenômeno irracional, refratário a toda fórmula conceitual, mas, de outro lado, desde que tentamos representá-lo, ele toma naturalmente o aspecto de uma linha reta; é necessário, portanto, que existam fenômenos que se intercalem e se escalonam entre esses dois aspectos extremos do tempo, possibilitando a passagem de um ao outro.

Nossas pesquisas recebem agora uma orientação precisa: elas terão por objeto os fenômenos intermediários dos quais acabamos de falar.

A via a seguir, para atingir esse objetivo, se encontra igualmente totalmente traçada. Projetando sobre o devir uma relação elementar qualquer de natureza racional, nós pesquisaremos o fenômeno realizando a união dos dois. Tais fenômenos - nós podemos prever de início - deverão ter um caráter particular; eles terão, por assim dizer, duas faces: de um lado, devem proteger sua característica temporal e se manter refratários aos procedimentos do pensamento discursivo, ou, se quisermos, se mostrar contraditórios em si mesmos na presença da tentativa de levá-los inteiramente a relações de ordem racional, ao passo que, por outro lado, eles devem se mostrar como portadores justamente de relações desta ordem permitindo que se aproximem progressivamente do espaço.

As páginas que se seguem permitirão, eu o espero, melhor percepção do método que se impõe ao nosso estudo.

 

4. O Devir e o "ser um ou vários". Os fenômenos da duração que escoam e os da sucessão. O princípio da continuidade e da reiteração.

Nós nos dirigimos aos atributos elementares: "ser um" e "ser vários" ou, por conta de uma simplicidade relativa, "ser dois". Tentaremos colocar esses atributos em relação com o devir. Nós percebemos então que o devir não os opõem simplesmente um fim de não-recebimento, mas nos encontramos assim diante do fenômeno da duração que se escoa ou, se se preferir, do fluxo daquilo que dura e daquele da sucessão.

Tudo que é um em relação ao devir dura ao escoar, ou se escoa enquanto dura; tudo aquilo que é dois em relação ao tempo se sucede. Inversamente, todo que dura enquanto se escoe se afirma como um em relação ao tempo, assim como tudo que se sucede se afirma como dois ou mais.

Esse "ser um" pode concernir tão bem um conteúdo qualquer de minha consciência, como, por exemplo, uma percepção, um sentimento ou um estado de alma, que o eu inteiramente ou os outros "eu", ou ainda, um acontecimento qualquer do devir ambienta-se ou o mundo inteiro, estabelecendo que eles sejam considerados sob seus aspectos temporais. O que importa, em uma palavra, não é o conteúdo da unidade que vemos, mas o fato de ser uma unidade em relação ao tempo vivido. Também nossos estados de consciência assim como os eventos que se desenrolam em torno de nós, duram enquanto se escoam, ao passo que os objetos imóveis do mundo exterior apenas duram, sem serem penetrados pelo fluxo vivente do tempo.

O caráter temporal e, ao mesmo tempo, a natureza elementar dos dois fenômenos que são questão, são evidentes. Isso vai de si para o fenômeno da sucessão. Para o fenômeno da duração que se escoa, as coisas se complicam, em aparência ao menos, pelo fato de não termos, em nossa linguagem, um termo único para designar esse fenômeno. A impressão que contém dois elementos distintos, a saber: a duração e o fluxo. É assim que Volket percebe a duração como um fator não temporal (ausserzeitliches Moment), concedendo, além de tudo, que a duração pertença a certo tipo de tempo. Ele vislumbra, assim, finalmente, em virtude do princípio que, tudo aquilo que é tempo, deve se modificar, mudar, mover incessantemente, princípio esse que, como vimos mais acima, constitui uma via do espírito, mas não repousa na natureza mesma do tempo.

No fundo, trata-se aqui também de um fenômeno simples que não se deixa decompor. É aqui que ressurge todo o conjunto de considerações de Bergson, concernente à diferença entre a duração pensada, com seus pontos justapostos, e a duração vivida, com sua constante organização viva. Nós não saberíamos fazer melhor do que lembrar as palavras de Bergson, pelas quais ele situa os fenômenos da duração e da sucessão no mesmo plano: "não há diferença essencial entre passar de um estado a outro e persistir no mesmo estado" ou ainda: "podemos conceber a sucessão sem a distinção e como uma penetração mútua, uma solidariedade, uma organização íntima de elementos em que cada um, sendo representativo do todo, não se distingue e não se isola por um pensamento capaz de abstrair".

Assim, a sucessão vivida, apesar de conter "o ser dois", não contém por isso duas durações distintas, que se sucedem uma a outra. Afirmá-lo seria já decompor e racionalizar o fenômeno estudado mais que o permite sua natureza.

Na sucessão há dois eventos, mas nenhum deles é concebido independentemente do outro. É como se nós estivéssemos sobre o cume de uma montanha a partir do qual poderíamos muito mais prever seus dois lados do que explorá-los; a sucessão é antes de tudo encontrar-se sobre o cume e não olhar alternadamente cada um dos dois lados e percebermos, em seguida, que nos encontramos sobre o ponto que os separa. Do mesmo modo a duração que se escoa não pode ser decomposta em uma multiplicidade de sucessões; isso seria aqui também deformar e confundir sua natureza. É necessário ser cauteloso, quando se trata do tempo, de toda operação aritmética demasiadamente precoce.

Vejamos agora como os fenômenos que estudamos se apresentam sobre suas "duas faces", como havíamos exprimido no final do parágrafo anterior.

a. O lado irracional dos dois fenômenos ressurge notadamente do que foi dito mais acima. A menor tentativa realizada para ultrapassar os atributos "ser um" ou "ser dois" dando-lhes um desenvolvimento totalmente natural para o pensamento discursivo, coloca-nos em contradição com o modo pelo qual esses fenômenos são vividos na realidade. Isso revela-se assim, do ponto de vista racional, como contraditório em si mesmo.

Isso pode ser colocado em destaque de um modo ainda mais evidente. Temos aqui o raciocínio que se faz frequentemente: acabamos de constatar a sucessão entre A e B; constatar a sucessão entre A e B equivale a dizer que A não é mais quando B está, a sucessão estabelece uma relação entre A e B; para que possamos estabelecer uma relação entre dois termos, é necessário que esses dois termos estejam ambos presentes na consciência; isso não é o caso, de acordo com o sentido mesmo da relação de sucessão; pois nós não podemos, em nenhum caso, constatar de uma forma imediata a sucessão de dois eventos. Nós o fazemos, entretanto, a cada momento da existência.

A psicologia sempre confronta esse problema. Suas soluções são todas levadas a admitir que o evento A deixa traços mnemônicos que subsistem quando se produz o evento B. Mas sem mesmo falar disso que se dá assim à memória por uma extensão totalmente artificial, não se trata aqui de pseudossoluções, pois quaisquer que sejam a natureza do traço de A, é necessário que a consciência seja já a intuição da sucessão para poder interpretar, nesse sentido, a presença desse traço ao lado de B, no mesmo corte transversal da consciência, como costumamos dizer: B + o traço de A não podem jamais sozinhos fazer nascer a ideia de sucessão. Certamente, podemos fazer um apelo à lembrança. Mas não somente não encontraremos nada além de uma lembrança em nossa consciência, quando vivemos a sucessão de dois eventos, mas também a lembrança vivida concerne sempre um passo mais longo, largo, deixando como um intervalo vazio, entre o evento que ela evoca e o presente ao qual se opõe, de sorte que não se pode aplicar ao passado "atual" que comporta a sucessão imediata, se é que é permitido nos exprimirmos assim.

De minha parte, o único problema que aí vejo é a expressão do caráter irracional da sucessão enquanto fenômeno temporal. O raciocínio que nos leva é apenas uma das variantes dessa aplicação ao tempo dos postulados do pensamento que, como vimos mais acima, resulta invariavelmente em demonstrar que o tempo é contraditório em si mesmo. O ponto cardinal, de todos esses paralogismos, reside, se não me engano, na introdução ao fenômeno do tempo da negação que ele, de nenhum modo, comporta ao fundo. A sucessão vivida não é, de forma alguma, uma relação entre aquilo que é e aquilo que não é; ela o torna somente, como, aliás, toda relação de ordem temporal, quando queremos racionalizá-la. Introduzir a negação no tempo nada mais é que a expressão do fracasso ao qual estão fatalmente votadas tentativas similares. Uma vez que essa substituição é feita, vê-se aparecer diante de si todos os pseudoproblemas que existem em relação ao tempo. Melhor seria, em seguida, resolvê-los fazendo a memória intervir como um deus ex machina, concebida, aliás, de um modo puramente mecânico e racional, tendo por suporte o elemento de negação que acabamos de falar. Os psicólogos aqui dão a mão aos naturalistas que veem na memória a primeira função psíquica da matéria organizada, de onde se descola, em seguida, a consciência, e que se considera mais particularmente como geradora da noção de tempo.

O que acabo de dizer sobre o tema da sucessão pode ser aplicado mutatis mutandis ao fenômeno da duração que se escoa. É suficiente para isso decompor essa duração em uma série de instantes que se sucedem. Faz-se necessário insistir de que aí há uma vantagem. Não o faremos, para evitar repetições inúteis.

b. Passemos agora ao outro lado, quer dizer, às características que surgem diante dos olhos, quando, tentamos fixar pelo pensamento, sustentamos por mais tempo os atributos de "ser um ou vários".

Certamente, se depois de ter interpretado a sucessão como uma relação entre o que é e o que não é, nós imaginamos uma série de sucessões, fizemos anteriormente surgir a ideia do caleidoscópio. Mas em realidade as coisas se passam diferentemente. Se, por um ato suplementar, tento fixar, representar-me seja uma duração vivida, seja uma sucessão, estas, em razão de sua mobilidade, em razão de seu caráter temporal, se enfraquecem nesta tentativa. O devir não se curva às exigências do ser. Entretanto, o fracasso de nossa tentativa não é sentido por nós unicamente como um "fracasso", como uma impossibilidade, como uma insuficiência de nossos meios. Visto deste lado do devir, esse fracasso tem uma coloração particular, ou melhor dizendo, um conteúdo positivo; ele se traduz, diante dos nossos olhos, pelo fenômeno da continuidade no devir.

É certo que se tentarmos fixar o pensamento dos eventos concretos em suas características temporais, eles se furtam e fogem. Mas, por mais paradoxal que possa parecer, o tempo, ele, não parece de forma alguma fluir. Longe de nos sentirmos levados por uma rapidez vertiginosa por qualquer um de seus elementos, nós vemos, ao contrário, agora o tempo estender-se diante nossos olhos, vemos o devir ultrapassar, transbordar indefinidamente toda duração vivida e toda sucessão que tentamos fixar, não os reduzindo a nada, como o faria, conforme as leis da razão, um infinitamente grande em relação a um pequeno, mas sim os continuando sempre e novamente. É aqui que o sentido primitivo do fenômeno de continuidade vivida nos aparece e se torna claro e plausível.

Em outros termos, na mesma medida em que as sucessões se perpetuam, no lugar de ter a impressão de um caleidoscópio ou de areia movediça, nós vemos, ao contrário, um fator de similitude, de estabilidade, de extensão, de consistência, diria mesmo de monotonia se desembaraçando e se penetrando, sem choques especiais no devir. Monotonia que talvez um dia nos levará, em certos momentos, a encontrar a via cinza, e dizer que os dias apenas se seguem e se parecem. Mas esta já é uma consequência longínqua. No ponto em que estamos, isso não é nem um sentimento de tédio, menos ainda um sentimento de insegurança, como aquele que a imagem do caleidoscópio evoca, mas um sentimento de apaziguamento que veremos nascer em nós em presença da continuidade no devir. Nós nos sentimos perfeitamente sossegados nesta continuidade, é bom vivê-la; e esse sentimento de segurança e de sossego que no fundo, está conforme a tonalidade mediana de nossa vida em relação ao tempo, é quase uma prova que nós temos chegado perto da verdade, apresentando as coisas como acabamos de fazer.

Nós podemos, aliás, colocá-los em evidência de uma maneira ainda mais concreta. Quando se trata de reproduzir de uma maneira tão viva quanto possível a sucessão de dois fatos passados, nós evocamos a imagem destes dois fatos, mas não evocamos da mesma maneira a relação de sucessão que une um ao outro; esta, nós a revivemos, nós a recriamos, por assim dizer, dizendo-nos mentalmente, por exemplo, "inicialmente A e depois B" ou usando um procedimento qualquer da mesma ordem. Tentando assim reproduzir uma sucessão passada, nada mais fácil que reviver uma sucessão nova, quantas vezes quisermos. Nada nos impede de fazê-lo, pois nós temos sempre uma sucessão viva em nossas mãos, e isso não como relação isolada e concreta, mas sim como relação suscetível de se repetir à vontade; é assim que nasce a imagem da reiteração contínua, da continuidade movente do tempo.

O fenômeno da continuidade nos aproxima evidentemente do espaço. Mas esta é apenas uma aproximação e não uma identidade. A continuidade vivida está longe de ser exemplo de dinamismo. É que vivemo-la não como coisa pronta, mas por mais tempo como se faz diante dos nossos olhos. Nós não temos a continuidade estabelecida diante de nós, não, nós temos diante de nós o tempo que se perpetua e se renova continuamente em seus elementos.

Do mesmo modo, se a reiteração continua a nos fazer pensar na série natural dos números, esta não se confunde inteiramente com aquela, pois nenhum elemento desta presume multiplicidade nem se fixa suficientemente para nos permitir contar seus elementos; cada um deles apenas se perpetua diante nós, fazendo nascer assim a ideia de multiplicidade, mas sublinhando ao mesmo tempo seu caráter fugidio e efêmero. Nada servirá de ponto de partida natural para contar os outros números.

Resumindo:

Entre o devir e o ser, entre o tempo e o espaço, escalonam- se, na nossa vida, os fenômenos de ordem espaço-temporal. Esses fenômenos indicam-nos o porquê e como o pensamento chega a assimilar o tempo e o espaço de um modo totalmente natural.

Os fenômenos estudados até o presente formam como dois degraus entre o tempo e o espaço; são a duração e a sucessão vividas por um lado, e a continuidade vivida por outro.

Eu consinto de bom grado que na vida, que é um todo harmonioso, esses diversos degraus se interpenetram. Para discerni-los, um esforço de abstração é necessário; mas sem esse esforço, nós não saberíamos dizer nada sobre o tempo, tanto quanto sobre qualquer outro fenômeno. Igualmente, parece ocioso precisar qual dos dois degraus, colocados em destaque, é mais próximo do tempo e qual mais próximo do espaço. Isso é uma questão de gosto, diria eu. Acredito que poderíamos tanto partir da continuidade para desembaraçar a sucessão e a duração, restringindo-nos a esses fenômenos, quanto partirmos da duração e da sucessão para deixá-los deslocarem-se na continuidade. O centro de gravidade de nossas considerações não reside tanto no modo particular em que organizamos os dois degraus, mas sim na circunstância de ter mostrado que eram dois.

O lugar que une esse dois degraus representa um princípio especial que designamos pelo nome de princípio do deslocamento.

Encontramos igualmente dois degraus do tempo em Pierre Janet13. Só que se apresentam sob um outro aspecto. Essa diferença vem do que Janet aborda o problema do tempo sob um ângulo distinto do meu. Se trata, em Janet, antes de tudo de um estudo da evolução das condutas temporais. É muito importante relevar que Janet descreve, do seu ponto de vista, dois degraus, que chama de forma inconsistente e de forma consistente do tempo. Eis aqui resumido muito brevemente esta concepção.

Janet, no que concerne à memória, se opõe à tradição e isso tem um duplo ponto de vista. Antes de tudo, ele não vê de inicio o fenômeno primeiro, o ponto de partida de toda a evolução da noção de tempo; ele a faz preceder por um sentimento de duração, ao qual ele não chega a juntar-se que ao largo da evolução, trazendo-lhe, é certo, perfeccionamentos enormes. Ademais, a memória não é, para Janet, a faculdade de conservar, de reproduzir ou de reconhecer; ela não consiste, igualmente, nesta repetição banal e automática que preside à formação das tendências e hábitos na série animal. A memória, no sentido verdadeiro da palavra, é outra coisa. Ela é própria unicamente ao homem e consiste numa conduta particular ligada intimamente à formação da linguagem, a saber a do relato. Ela encontra suas origens numa conduta social que se desenvolve a partir do momento no qual o ser humano descobre todo o proveito que ele pode ter colocando as sentinelas não mais no campo, como o fazem certos animais que vivem em grupo, mas fora do campo, conduta que implica evidentemente na faculdade de advertir verbalmente um ausente ou lhe transmitir a ordem.

O relato é assim a conduta elementar da memória. Essa conduta vai se tornando agora, cada vez mais complexa, no curso da evolução. Ela dará nascimento, inicialmente, à descrição que tem por objetivo transmitir aos ausentes não apenas uma simples ordem, mas toda uma situação.

O relato e a descrição pertencem agora, todos os dois, à memória elementar, porque se relacionam com objetos que persistem. Assim, as primeiras manifestações da memória não contêm a noção de desaparecimento do passado. Mas a memória continua a se desenvolver e torna-se narração. Ela se relaciona com o passado desaparecido, uma noção que a humanidade descobriu após uma longa evolução e que agora acredita apaixonadamente, embora possa ser discutível.

É provável que as primeiras narrações tenham sido narrativas de vitórias, quer dizer, narrações capazes de suscitar entre os que escutavam o relato, um sentimento de triunfo e de alegria, como se estivessem presentes nesta vitória. Isto explica a circunstância tão paradoxal à primeira vista, que poderia haver, em geral, certa utilidade em ocupar-se de uma coisa inexistente, a saber, neste caso, do passado desaparecido.

A narração, tendo por objetivo fazer experimentar aos presentes os sentimentos que eles experimentariam se tivessem assistido ao evento, deve ser feita de modo apropriado.

Para isso, é necessário, antes de tudo, aprender a colocar na narração, os acontecimentos em sua ordem histórica. Esta justaposição histórica na ordem cronológica traz com ela um fator primordial: a relação de antes e de depois que será o ponto de partida de um novo desenvolvimento considerável da memória e do tempo.

Mas aqui se coloca uma etapa bem particular na evolução da memória. Quando aprendemos as relações de antes e de depois, quando aprendemos a justaposição ordenada e cronológica dos eventos, encontramos essa coisa tão agradável, tão estimulante que nos agradamos pelo simples fato de fazer relatos pelo prazer de narrar. Eis a origem da fabulação que encontramos tão frequentemente nas crianças e nos povos primitivos.

E assim, a memória, primitivamente mesclada com a ação, se torna pouco a pouco - graças ao fato que o relato não é sempre fácil - um jogo, se torna inconsistente e se aperfeiçoou na inconsistência. A fabulação é assim o estado da memória desenvolvida por ela mesma.

Parece também se tratar de uma regra geral que observamos na evolução das condutas humanas. Assim a linguagem, igualmente ligada intimamente em suas origens à ação, se torna, em seguida, em razão de sua ação estimulante, num jogo, e se transforma em conversação, que ao fundo, fora de seu valor estimulante, não tem nenhuma utilidade. A linguagem não podendo, entretanto, se contentar com esta forma inconsistente, veio a afirmação a religá-la de novo à ação e a voltar a dar-lhe consistência.

Para a memória, o estado de fabulação não poderia ser mais que transitório; a memória não poderia deixar de voltar a resultar em prática, nem poderia deixar de sair dessa inconsistência na qual havia se arrojado a fabulação. Tratar-se-ia, pois, para a memória, de alcançar esse objetivo. A relação do antes e do depois é sempre relativa, cada "antes" pode ser "depois" com relação a outro "antes"; e esta relatividade é precisamente o que estava na base da fabulação. Para suprimi-la, seria necessário introduzir um ponto absoluto, um marco, por assim dizer, em relação ao qual seria possível ordenar de uma maneira unívoca, o passado e o futuro. É assim que se desenvolve a noção de presente.

Em conseqüência, é falso ver no presente uma noção primitiva e totalmente dada. Esta intervenção somente interferiu muito tarde na evolução da memória e é já uma coisa muito complexa. O presente é para a memória, o que a afirmação é para a linguagem.

Mas se trata de entender o que é o presente. Foi dito que há ação no presente. Isto é exato, mas não é suficiente. Todos os seres vivos agem, mas todos estão distantes de constituir um presente; nós mesmos podemos realizar um conjunto de ações sem nos repetir constantemente que nós as realizamos no presente. Não há, pois, meios de obter o presente da simples ação.

Quando eu digo: "é meu presente", eu não faço outra coisa que narrar, seja a mim mesmo seja a outrem, minha ação no momento mesmo que a executo. Assim, o presente é um relato da ação, que nós fazemos enquanto estamos agindo. O presente é um ato particular que reúne a narração e a ação. E como a narração se dá no presente, isto implica necessariamente em fenômenos da memória. Isto pode parecer paradoxal, pois como colocar a memória no presente, e porque relatar uma ação no momento de sua realização. Há aí, entretanto, uma ação necessária que permite unir numa só história completa, o presente, o passado e o futuro que, em si mesmos, não passam de poemas e de fabulações. O presente torna a memória de novo mais consistente, a devolve ao domínio prático da ação.

O presente é, assim, uma ação complexa e difícil. Também os pacientes que temem o esforço, têm horror do presente e preferem viver no passado, ou ainda no futuro, fazendo projetos sem se preocupar com sua realização. Igualmente entre os débeis14, encontramos frequentemente uma memória fabulista, na qual há o passado e o futuro, mas não o presente; eles não se preocupam com ele e vivem muito bem sem ele. Estes fatos vêm confirmar a opinião15 que o presente é uma aquisição relativamente tardia e não um fato primitivo e totalmente natural.

Para retornar à memória, temos agora que distinguir duas formas de memória: uma é a memória de fabulação, na qual tudo é relativo, o antes e o depois não estando atrelados a nenhum presente, e que, por esse fato, pode estender-se à vontade; a outra é a memória consistente, caracterizada por uma operação essencial - a constituição do presente, da qual ela é obrigada de ter em conta; limitada, por assim dizer, por esta obrigação, sempre está mais ou menos restrita, mas assim se vincula ao tempo real em toda sua complexidade.

 

5. O devir e "ser uma parte elementar de um todo". O agora e o presente. A homogeneização.

No parágrafo precedente, tomamos como ponto de partida os atributos "ser um ou vários". Aqui, nos dirigimos ao atributo "ser uma parte elementar de um todo".

Projetado sobre o devir, esse atributo nos coloca na presença do fenômeno do "agora".

O agora é um fenômeno de natureza temporal; mais explicitamente, o vivemos sempre como uma parte elementar do tempo.

É evidente que não chegamos ao "agora" procurando divisar o tempo, como faríamos com um objeto extenso. O agora se impõe desde já muito mais como um elemento essencial do tempo-qualidade. Assim não a nele nada a ver nem com um pequeno pedaço de tempo mensurável que somos ainda em estado de nos representar ou de perceber, e ainda menos com o infinitamente pequeno da física teórica. Na vida, ele é para nós, de um modo imediato, uma parte elementar do tempo. Ele é indivisível não porque não se deixa dividir de modo algum, mas porque a questão de divisibilidade não se aplica a ele.

O pensamento discursivo não se importa em demonstrar que o "agora" é contraditório em si-mesmo. O agora se apresenta a nós como um elemento do tempo, que é exato, mas ao mesmo tempo carrega um sotaque todo particular que é chamado a fazer, parece, o sinônimo de "existência": não há o agora que existe, enquanto que o que não é agora, não existe; o agora assim, enquanto parte de um todo, não deixa subsistir ao lado dele nenhuma outra parte equivalente e que se substitui pelo todo.

Paralelamente, será fácil de provar, ao se apoiar sobre os postulados emprestados ao espaço, que o agora não pode ser vivido como uma parte do tempo; para ver no espaço uma figura, é indispensável ver o seu contorno e, mais ainda, nada mais que um pedaço do campo contíguo; aplicado ao tempo, isso equivaleria a exigir que vivêssemos no agora o que não é, exigência que deve evidentemente parecer à razão absurda e impossível.

A psicologia tradicional terá que cedo adotar esse modo de ver, ela fará reentrar em seguida no agora, sempre com a ajuda da memória, como um jogo de caixas colocadas umas sobre as outras, tudo o que na vida parece passar. E não é nada disso em realidade.

Certamente nos sucede encontrar o agora como carregado do que o precedeu imediatamente e do que deve lhe suceder, e a linguagem - e é ao ensinamento de meu amigo Pichon que eu devo esses conhecimentos - suscetível de refletir de um modo maravilhoso o caráter irracional do tempo, não é questão de incômodo empregar expressões como "agora acabo de fazer" ou "agora vou fazer". Mas se trata aqui de relações totalmente diferentes daquelas que preconizam o pensamento espacial; nós não encontramos aí traços nem de lembranças nem de previsões, no sentido próprio das palavras, nem especialmente nada em absoluto que possa ser interpretado como limites ou contornos do agora, mesmo que na vida, sentindo o presente se desvanecer incessantemente, nós não o vemos jamais se converter em passado ante nossos olhos, como tampouco vemos o futuro franquear os limites do presente.

O desacordo entre o pensamento discursivo e o fenômeno do "agora", desacordo do qual acabamos de dar alguns exemplos, não é outra coisa para nós - e é fácil de adivinhar - que a expressão do caráter temporal deste fenômeno. Não insistimos mais aí. A vida se ajusta muito bem com esse desacordo. Seguimos seu exemplo e, sem nos determos em pseudoproblemas, vejamos como o princípio do deslocamento se manifesta em relação ao agora.

Se tratamos de representar-nos, de fixar o agora, não alcançamos êxito; ele foge diante de nossa vista, mas ao mesmo tempo o vemos como se deslocando diante de nós e dando lugar a outro fenômeno que, apesar de lhe guardar muita afinidade, difere dele em mais de um ponto. Tenho ante mim o presente.

O agora imerge no presente e é submergido por ele. Mas o presente não é um não-agora; conserva em si qualquer coisa do agora. É um agora que se deslocou. Há, no presente, a duração, a extensão. Eu não posso dizer nem onde ele começa, nem onde ele finda, eu não posso nem mesmo precisar seus limites, mas eu sei que esses limites têm, contrariamente ao agora, qualquer coisa de fluido, de extensivo, de flexível. O presente é, para nós, segundo as circunstâncias, tanto o instante presente (o agora) que o hoje ou que a época presente e todas essas formas de presente que parecem se encaixar umas nas outras, mas ficando por sua vez subordinadas à noção do presente vivido.

O presente não contém mais em si a situação dramática que caracterizava, sobretudo para nosso pensamento, o agora. Ele não coloca mais o problema do "ser" e do "não-ser". Não é mais um cume que dá vertigem, mas um planalto sobre o qual nos sentimos à vontade. Ele é bem menos abrupto, exclusivo, afirmativo que o agora, ele é muito mais tranqüilo, mais homogêneo, mais apaziguador que aquele. Nós podemos nos deixar viver no presente.

Para caracterizar a transição do agora para o presente, nós somos tentados a falar de homogeneização, designando assim a forma particular sobre a qual se manifesta aqui o princípio do deslocamento. O que com ele entendemos salta-nos aos olhos, creio, pelo que já dissemos mais acima. Os qualificativos de extenso e, ao mesmo tempo, de homogêneo parecem verdadeiramente ter um sentido, aplicados ao presente, quando nós o comparamos com o agora. Essa homogeneização pode, também, se não me engano, ser ainda colocada em relevo. O agora, como vimos, tende a elevar-se a uma sorte de absolutismo e a reduzir assim a nada tudo o que não é ele; ele se mostra disposto a englobar ao menos a parte mais próxima do antes e do depois imediatos. O presente, ao opor-se ao não-presente, se situa sobre o mesmo nível que ele. O que é agora existe e o que não é agora não existe, dizíamos mais acima. Não pode ser questão de uma oposição desta ordem para o presente. Já para o próprio presente, a possibilidade de afirmação de sua existência não parece mais, em razão de sua extensibilidade, tão evidente que para o agora; e, por outra parte, quando vislumbramos o não-presente, não é tanto para dizer que ele não é presente, que por dizer que ele foi ou que será ainda. Não é, portanto, a oposição categórica do sim ou do não que intervêm aqui, mas a diferenciação de diversas formas da existência, precisamente aquelas do presente e do não-presente. Porque o passado, do qual nasce o presente, não é unicamente aquele que desapareceu para sempre, mas é o que existe no passado ou, se o preferimos, o que foi presente uma vez e não fez mais que recuar no passado. As coisas se apresentam de uma maneira análoga para o futuro. O presente e o nãopresente tem então algo de homogêneo, de parecido, de semelhante, que surge do caráter particular do presente e os une num todo. O passado e o futuro somente existem em relação ao presente e não possuem outro sentido, como o presente só pode surgir do passado que ele chamou para unir-se, como ele deve de outra parte, dar nascimento necessariamente ao futuro.

Encontramos uma confirmação indireta do que acabamos de dizer, no fato que podemos tão bem viver no passado, mergulhando inteiramente nas nossas lembranças, como podemos viver no presente. Ademais - e este é um ponto a reter - em razão do jogo infinitamente variável dos limites do presente, nós estamos em condições de englobar no presente uma fatia indeterminada do passado. Dado que, do ponto de vista fenomenológico, rememorar o que fiz ontem, e constatar que entre outras coisas, eu trabalhei de 16 a 18 horas nesta obra, é algo muito diferente que sentir, ao escrever agora essas páginas, que o trabalho realizado anteriormente, reunido com o mesmo esforço ao trabalho de hoje, feito por mim, faz parte do presente ao mesmo título que este, o mesmo se se trata de atitudes completamente diferentes com respeito ao passado, quando relatamos o que fizemos durante a guerra, quando tratamos de reviver para nós mesmos o que experimentamos ao longo dessa tormenta e, enfim, quando a sentimos todavia presente em todas as fibras do nosso ser, quando deste modo a sentimos fazer parte de nosso presente e ainda mais o que não o faz o presente atual. Mas estes são já os problemas concernentes mais particularmente à fenomenologia do passado.

 

6. O devir e "ter uma direção". O fenômeno do ímpeto. O princípio do fracionamento e de continuidade.

Ao confrontar o devir com a noção de direção, nós nos encontramos na presença do fenômeno do ímpeto. Empregarei igualmente o termo ímpeto vital, evitando entretanto, ao menos de início, situá-lo na esfera dos fatos biológicos.

O ímpeto vital cria o futuro diante de nós e é somente ele que o faz.

Na vida, tudo o que possui uma direção no tempo, tem um ímpeto, avança, progride para o futuro.

Do mesmo modo, desde que eu penso numa orientação no tempo, me sinto irresistivelmente impulsionado para adiante e vejo o futuro se abrir diante de mim. E esse fato de "ser impulsionado" não possui nada de passivo; de modo algum quer dizer que as forças externas me constrangem a ver diante de mim e a progredir nesta direção; não, há toda uma outra significação; ele quer dizer que eu tendo espontaneamente, de todas as minhas forças, de todo meu ser, para o futuro, realizando assim toda a plenitude de vida que em geral sou capaz desde este ponto de vista.

Mas não é tudo. No meu sentimento de ir em direção ao futuro, me é dado, ao mesmo tempo, de maneira imediata, a progressão na mesma direção de tudo o que, ao redor de mim, possui uma relação qualquer com o tempo, o que quer dizer, em última análise, do universo inteiro.

O devir transporta ondas poderosas, mas cinzas e caóticas, submergindo tudo à sua passagem. Somente a partir do ímpeto vital e por ele que o devir inteiro se torna irreversível e começa a ter um sentido.

Isto não quer dizer que eu constate a presença do ímpeto vital em mim ou em outro e que ao mesmo tempo eu encontre uma direção análoga no universo. Não há lugar para dois atos distintos de minha parte; não pode haver aí nem comparação nem analogia. De outra parte, o eu, enquanto individualidade bem determinada intervém em geral para muitas poucas coisas nesta constatação. Ela é de natureza bem mais geral e nos diz que no fundo, há somente um fenômeno, o do ímpeto vital, e que esse fenômeno contém em si a asserção que, onde ele se realiza, ele dá a mesma direção ao devir por inteiro. Em outros termos, não há um "eu avanço e o mundo progride ao mesmo tempo", mas um "eu avanço e o mundo avança" não são mais que uma só coisa. Certamente, se opomos o eu ao mundo, parece que o ímpeto vital, para nossa razão, se cinde em duas partes distintas, mas em realidade, há somente um ímpeto que, ainda que contribua talvez para estabelecer a oposição da qual acabamos de falar, permanece uno e indivisível. Esta é também uma particularidade própria aos elementos do tempo-qualidade em geral. A duração, a sucessão, o agora, o presente permanecem os mesmos para o eu e para o universo e os engloba, de uma maneira imediata, em um todo.

Dizíamos mais acima que o ímpeto vital cria diante de nós o futuro e é ele que o faz. Aqui também seria inexato dizer que nós sabemos que existe um futuro e que nós orientamos em direção a esse futuro o nosso ímpeto. Não, o futuro e o ímpeto vital estão tão intimamente ligados um ao outro que não são mais que um. É o ímpeto vital que nos desvela a existência do futuro, que no-lo dá um sentido, que o abre e o cria diante de nós, esse futuro acerca do qual chegaremos a saber talvez alguma coisa um dia, de todo modo pouca coisa.

Querer terminar um trabalho para amanhã às cinco horas e ver se abrir, no ímpeto vital, o futuro imenso diante de si são - vale a pena insistir - duas coisas totalmente diferentes, infinitamente distanciadas uma da outra.

O ímpeto vital não se deixa reduzir a qualquer volição ou a uma tendência dirigida para um objetivo preciso, nem tampouco, a uma soma de semelhantes volições ou de semelhantes fins que viriam se escalonar no tempo. Ele está sobre esses fatos isolados e, apesar de presidir seu nascimento, ele procura ainda, ele procura sempre, o fim ou os fins pelos quais chegará a deixar qualquer coisa de concreto sobre seu caminho. Por sua natureza primeira, ele é geral e indefinido (é neste sentido que eu pensei poder falar de ímpeto para...); ele cria sua forma, o quadro indispensável a toda atividade particular, a atmosfera sem a qual uma tal atividade não poderia jamais se produzir. Assim também o ímpeto vital não se esgota nos objetivos alcançados, qualquer que seja seu número e qualquer que seja seu escopo objetivo, visto que, quando esses objetivos são alcançados, quer dizer, quando eles começam a pertencer ao passado, o ímpeto vital, sempre o mesmo, sempre com a mesma potência, sem ser diminuído em nada, se sobrevém e recria o futuro (não mais de nosso pensamento, mas de nossa vida, ou ainda melhor, da vida em geral), diante de nós.

Certamente o que acabamos de dizer vai de encontro com a maneira habitual de ver. Esta toma sempre como ponto de partida as relações concretas. Mas isto é legítimo? O que se supõe chamar "geral e abstrato" é com grande freqüência muito mais elementar, muito mais próximo de nós do que o que se considera concreto. Não é isso a razão de ser do pretensamente concreto, não é o que se faz compreensível?

Não é este o único ponto sobre o qual diferimos da psicologia tradicional. Esta, ao tomar por ponto de partida as sensações, as percepções e as representações, quando se trata de fenômenos ligados ao tempo, pensa em primeiro lugar na memória. O futuro é então considerado como uma imagem do passado projetado diante de nós, de sorte que o ato primeiro pelo qual penetramos nele será a previsão. O ideal, nestas condições, consistiria em prever tudo. Entretanto, o pensamento antigo já via uma felicidade divina na eterna possibilidade de tratar de conhecer, e nós nos mantivemos fiéis a este pensamento. À verdade acabada, preferimos o esforço constante que nos leva até ela. É que o fenômeno que nos introduz primitivamente o fator de direção no tempo vivido, não é de modo algum a memória, a qual, concebida como uma espécie de reprodução, permanece necessariamente limitada, aferrada ao que foi realmente, mas é o ímpeto que, ilimitado por natureza, cria e abre toda a perspectiva de futuro diante de nós. O futuro não está feito sobre a imagem do passado da memória e é ele, ao contrário, que se empobrecendo, dá nascimento verossímil a este passado. Não é possível fazer surgir o que é florescimento e riqueza do que é congelado e pobre. Por outro lado, como ainda o veremos, o passado não nos parece ser dado de uma maneira primitiva pela memória, enquanto que, ao contrário, é impossível conceber o futuro sem associá-lo de início ao ímpeto que nos leva até ele.

Essas relações não se tornarão completamente claras enquanto não tivermos estudado em detalhe a maneira pela qual nós vivemos tanto o futuro quanto o passado. Mas desde já nos parece útil sublinhar a assimetria profunda que aparece nitidamente na vida entre o passado e o futuro. O futuro vivido nos é dado de uma maneira incontestavelmente mais primitiva que o passado. É ele que traz consigo na vida o fator criador, do qual parece ser inteiramente desprovido o passado, e se mostra, por este fato, incompatível com todo fenômeno análogo à memória. Um fenômeno desta ordem não existe com relação ao futuro e não é mesmo pensável. Por essência, não somos profetas, e se o fôssemos, se pudéssemos prever tudo, não seria, todavia, onisciência, como se pretende imaginar, mas a diferença entre o passado e o futuro se desvaneceria para nós e, imobilizados em nosso ímpeto, nós nos encontraríamos fora do tempo vivido.

O caráter irracional do ímpeto vital ressalta muito nitidamente o que vem sendo dito a seu respeito. Mas nós podemos colocá-lo ainda mais em relevo.

Quando se trata de fatos concretos, se desenrolando no espaço, nós gostamos de saber, pela direção, o ponto de partida e o ponto de chegada. Um trem indo da estação A para a estação B pode nos servir de exemplo. A direção do ímpeto vital está longe de ater-se a essas exigências. Isto não é primitivamente jamais um ímpeto partindo de..., mas unicamente um ímpeto para..., e mais, indo na direção do futuro, ele nos leva em suas asas, para terras não apenas desconhecidas, mas ainda parecendo à razão inexistentes, ele nos faz tocar de dedo, diríamos, o que não é e que somente será um dia talvez. Basta que algo esteja ali para que o ímpeto se desloque imediatamente, já que sua visada está sempre cravada no futuro. Tomando, por outra parte, a título de exemplo, uma volição isolada, nós reencontramos o mesmo estado de coisas: se nós perseguimos um objetivo, este objetivo, pelo mesmo fato que buscamos atingir, não está ali e, entretanto, logo que se trata de um objetivo que nos toma o coração, nós nos tendemos de todo nosso ser em sua direção, nos encontramos na mais íntima relação com ele.

Nesse último caso, se tratará, certamente, de transformar a dificuldade, fazendo apelo à representação do objetivo. Mas eu não tendo na direção desta representação, mas para sua realização, ou seja, em direção à realidade por vir que ela representa e é precisamente meu ímpeto e nada mais que transforma, de uma maneira inacessível à razão, esta representação em representação de um objetivo a alcançar, de sorte que dando ainda um passo a mais, nós seríamos mesmo levados a nos perguntar se a representação não perde seu caráter de "representação" (quer dizer, de representar qualquer coisa que não é) ante tudo que pode servir de ponto de partida a uma volição de nossa parte. Quanto ao impulso para o futuro, para retornar a ele, não parece que, em sua forma geral, tenha por condição prévia a faculdade de representar as coisas. Entretanto, sempre subsistirá o ímpeto criador, nostálgico e poderoso, que perscruta o horizonte, sem ali projetar a menor representação precisa.

Esse caráter irracional do ímpeto para... não é para nós mais do que a expressão de que trata de um fenômeno de ordem temporal.

Mas como tal, ele deve ter ainda uma outra face. Nós tentaremos examiná-la agora.

A imagem espacial de um objeto indo de um ponto A para um ponto B se mostra, como dissemos acima, inconciliável com o ímpeto vital. Mas isto não a descarta simplesmente. É que ela serve, por assim dizer, de eixo que lhe permite de se deslocar e se estender. Quando tento deixar o ímpeto vital mais racional, de concebê-lo não mais como ímpeto para X, mas como ímpeto de a para b, eu o vejo como se estendendo, se fracionando, deslocando-se diante de meus olhos. Ele se fragmenta como em partes, diríamos, onde o fim de cada uma serve de começo para a seguinte. O ímpeto para..., fenômeno geral e indefinido, se reduz e se fraciona no tempo em ímpetos particulares, onde cada um parece se dirigir para um objetivo preciso e que todos agora parecem suceder-se e estender-se assim em uma linha reta. Mas - e isto é preciso reter, já que aqui, de novo, ressalta o caráter específico do fenômeno estudado - se analisamos mais de perto, nenhuma desse as partes se deixa separar das outras, nenhuma se constitui numa entidade verdadeiramente independente e o todo não pode se remeter a uma soma de entidades desta ordem. É que esses ímpetos particulares não fazem mais do que se sucederem não importa como; eles se seguem, eles se encadeiam naturalmente, eles formam uma trama, uma história, e é este fenômeno de continuidade ou de trama nos parece bem mais essencial que os elementos que ele compõe. A noção de continuidade e de encadeamento não nos vem da observação de fatos isolados; ela é bem mais primitiva que eles e formam o quadro no qual se ordenam. E sobre esse quadro se eleva sempre, presidindo seus destinos, o ímpeto vital, que não parece ser mais que uma imagem reduzida, sob a forma de um deslocamento, como acabamos de descrever. Antes mesmo que um objetivo tenha sido inteiramente alcançado, nós nos vemos já tendendo a outro objetivo; cada objetivo atingido não marca mais que uma etapa para nós, etapa que prepara a seguinte; sem descanso na vida; nós não acabamos jamais com nossa tarefa aqui; é preciso ir sempre além; mas só excepcionalmente brota dessa necessidade um sentimento de angústia; para isto são necessárias condições completamente anormais; visto que, em realidade, esse escalonamento de objetivos e a progressão que se opera, são a expressão da força, do vigor, da afirmação da vida em si mesma; já que por esta progressão constante que o ímpeto vital nos traz, com suas asas poderosas, sempre em direção adiante, até mais além da morte. E se o conjunto dos nossos objetivos sucessivos parece se escalonar sobre uma linha, não é tanto uma linha reta no espaço quanto a linha pessoal da nossa vida que elas traçam.

 

 

Tradução: Joanneliese de Lucas Freitas
Revisão Técnica: Adriano Holanda

Nota Biográfica
Eugène Minkowski
(1885-1972) é de origem judaico-polonesa. Nascido em São Petersburgo (Rússia), fez seus estudos de Medicina na Polônia e na Alemanha, tendo sido assistente de Bleuler em Zurich. Em 1922, na 63ª Jornada da Sociedade Suíça de Psiquiatria em Zurich, apresentou seu estudo sobre "Um Caso de Melancolia Esquizofrênica" que, juntamente com o artigo de Binswanger sobre a fenomenologia, no mesmo evento, são considerados os marcos da psicopatologia fenomenológica. Destacam-se dentre suas obras La Schizophrénie (1927), Le Temps Vécu (1933), Vers une Cosmologie (1963) e Traité de Psychopathologie (1966), dentre outras.
1 Publicado originalmente em 1933, Delachaux & Niestlé, Neuchâtel (Suisse).
2 No original francês, devenir. Optou-se pela tradução por devir, por ser uma expressão já consagrada na literatura, e que remete ao “fluir”, à idéia de “movimento” presente tanto no pensamento de Minkowski, quanto na tradição grega (como em Heráclito, p.ex.) e fenomenológica (veja-se a noção de durée de Bergson, sucessivamente citado por Minkowski). Em espanhol, devenir. Em inglês, becoming (N.T.).
3 Em que lugar [onde] parei?
4 Esta expressão encontra-se na clássica frase, atribuída a Arquimedes: δος μοι που στω και κινω την γην (Dos moi pou sto kai kino taen gaen), que significa algo como "dê-me um ponto fixo e moverei o mundo" (N.T.).
5 «Betrachtungen imAnschluss an das Prinzip des psychophysischen Parallelismus ». Arch. f. die ges. Psychologie, t.XXXI, 1914.
6 Johannes Volkert. Phenomenologie und Metaphysik der Zeit. München, 1925.
7 Nos últimos anos apareceu o importante livro de M.Heidegger, "Sein und Zeit" (2ª Edição, 1929). Esta obra filosófica, consagrada ao estudo do fenômeno do tempo e do lugar que ele ocupa na vida, exerceu uma grande influência sobre os trabalhos psicológicos e psicopatológicos de língua alemã. Minhas próprias pesquisas já estavam adiantadas quando tomei conhecimento do livro de M.Heidegger, de sorte que não pude aprofundar suficientemente suas idéias, para colocá-las aqui em relevo e discutir os pontos comuns ou as divergências que poderiam existir entre elas.
8 Tudo passa, tudo escoa.
9 poη, a corrente.
10 Volkert, em sua obra, recorda o lugar que ocupam considerações dessa ordem na filosofia, loc. Cit., p. 31-32.
11 Já tive a oportunidade de insistir sobre esse ponto nas minhas "Betrachtungen imAnschluss, etc...", loc. cit.
12 Blondel, - La Conscience Morbide, Alcan, éditeur, 2e édition, 1928, p. 214.
13 Pierre Janet, L’Évolution de la mémoire et de la notion du temps, Paris, Maloine Éditeur, 1928.
14 No original em francês, "imbéciles" (N.T.).
15 Essa opinião foi defendida por Janet. Recordo o que ele dizia a esse respeito, desde 1903, em "Les obsessions et la psychasthénie", assinalando que se tratam de palavras cuja importância nunca se sublinharia por completo: "O último termo dessa função do real, que resume provavelmente todos os precedentes, seria uma operação mental lamentavelmente muito pouco conhecida: a constituição do tempo, a formação do momento presente no espírito. O tempo não é dado ao espírito já completo; seria suficiente - para o demonstrar - estudar as ilusões das crianças e dos pacientes sobre o tempo. O momento presente dos matemáticos, esse ponto inacessível, nada tem a ver com as noções que falamos aqui. O mesmo presente que estuda a psicometria, essa pulsação de um décimo de segundo, não é igualmente o que apreciamos como sendo o presente. O presente real, para nós, é um ato, um estado de uma certa complexidade que abraçamos num só estado de consciência, apesar dessa complexidade e apesar sua duração real que pode ser mais ou menos longa... Há uma faculdade mental que poderíamos chamar, forjando uma palavra, a presentificação e que consiste em tornar presente um estado de espírito e um grupo de fenômenos".

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