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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.18 no.2 Goiânia dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Ser psicoterapeuta: reflexões existenciais sobre vivências de estagiários-terapeutas iniciantes1

 

Be psychotherapist: existential reflections on experiences of trainees-therapists beginners

 

Ser un psicoterapeuta: reflexiones existenciales cerca de vivéncias de alumnos-terapeutas principiantes

 

 

Jéssica Paula Silva MendesI; Sionara Karina Alves de Brito GresslerII; Sylvia Mara Pires de FreitasIII

IDiscente do curso de Psicologia da Universidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: tata_jotape@hotmail.com
IIDiscente do curso de Psicologia da Universidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: sionaragressler@hotmail.com
IIIPsicóloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Especialista em Psicologia do Trabalho pelo Centro Universitários Celso Lisboa (CEUCEL/RJ). Formação em Psicoterapia Existencial pelo Núcleo de Psicoterapia Vivencial (NPV/RJ). Docente e Orientadora de Estágio em Psicologia Clínica e de Grupo, na abordagem Fenomenológico-Existencial e Co-coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Fenomenológico-Existencial da Universidade Paranaense -UNIPAR/Umuarama - Paraná. Docente-orientadora de Estágio em Psicologia do Trabalho, na Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR). Endereço Institucional: Av. Mascarenhas de Moraes, s/n. Universidade Paranaense, Campus sede Umuarama, Paraná - Colegiado do curso de Psicologia. E-mail: sylviamara@gmail.com

 

 


RESUMO

Esta produção apresenta uma análise reflexiva, com base no existencialismo sartreano, sobre a idealização do estagiário-terapeuta iniciante sobre o Ser Terapeuta. Tal reflexão teve como ponto de partida algumas vivências das autoras, bem como a observação das dos demais estagiários que se encontravam diante do início da prática da psicoterapia individual para adultos e terceira idade, desenvolvida por meio da disciplina de Estágio Específico I, da ênfase de Psicologia e Processos Clínicos, do 4º ano do curso de Psicologia da Universidade Paranaense, Campus Umuarama/PR, no ano de 2010. Partindo dessas vivências, propomos desconstruir o lugar de soberania onde muitas vezes é colocado o psicoterapeuta, lugar esse construído por ideologias que criaram o papel do profissional responsável pela cura, valorizando-o sobremaneira ao ponto de enfatizar verdades que desconsideram a interdependência da relação terapeuta-cliente, proporcionando sentidos que levam o estagiário-terapeuta iniciante a criar expectativas frente suas atuações, as quais, ao abarcar toda a responsabilidade pela "cura" do Outro, nega-o como artífice de sua existência. Diante disso, consideramos que projetos idealizados não abarcam frustrações, impossibilitando o reconhecimento dos limites do próprio projeto de Ser terapeuta.

Palavras-chave: Terapeuta iniciante; Ser psicoterapeuta; Idealização; Fenomenologia-existencial.


ABSTRACT

This production presents a reflective analysis, based on Sartrean existentialism, on the idealization of the traineetherapist Being a beginner on the therapist. This reflection has as its starting point a few experiences of the authors and the observation of other trainees who were before the start of the practice of individual psychotherapy for adults and seniors, developed through the discipline of Stage-Specific I, the emphasis of Psychology Clinical and Processes, 4th year of Psychology at the University of Parana, Campus Umuarama / PR, in 2010. Based on these experiences, we deconstruct the place where sovereignty is often placed on the psychotherapist, this place built by ideologies that have created the role of the professional responsible for healing, valuing it greatly to the point of value truths that ignore the interdependence of the therapist- client, providing directions that lead the trainee-therapist beginner to create expectations facing his performances, which, embracing all responsibility for the "cure" the Other, it denies its existence as a journeyman. Therefore, we believe that projects do not cover idealized frustrations, making it impossible to recognize the limits of the project itself being a therapist.

Keywords: Beginning therapist; Being a psychotherapist; Idealization; Existential phenomenology.


RESUMEN

Esta producción presenta un análisis reflexivo, basado sobre el existencialismo sartreano, en la idealización del aprendiz-terapeuta ser un principiante en el terapeuta. Esta reflexión tiene como punto de partida algunas experiencias de los autores y la observación de los alumnos que estaban antes del inicio de la práctica de la psicoterapia individual para adultos y personas de edad avanzada, desarrollada a través de la disciplina de la Etapa I-específicas, el énfasis de la Psicología Clínica y Procesos, 4 º año de Psicología en la Universidad de Paraná, Campus Umuarama / PR, en 2010. Con base en estas experiencias, deconstruir el lugar donde la soberanía es a menudo puesto en el psicoterapeuta, este lugar construido por las ideologías que han creado el papel del profesional responsable de la curación, lo que valora en gran medida hasta el punto de toma el valor de las verdades que hacen caso omiso de la interdependencia del terapeuta- cliente, proporcionando indicaciones que llevan al alumno principiante-terapeuta para crear las expectativas frente a sus actuaciones, que, abrazando toda responsabilidad por la "cura" el otro, niega su existencia como un jornalero. Por lo tanto, creemos que los proyectos no cubren frustraciones idealizado, lo que hace imposible reconocer los límites del propio proyecto de ser un terapeuta.

Palabras-clave: Terapeuta principiante; Ser un psicoterapeuta; La idealización; La fenomenología existencial.


 

 

Introdução

Ao pensar em psicoterapia, a idéia que instiga primeiramente é a de um tratamento cuja função principal é a cura. Tal concepção de livrar o paciente de determinados sintomas passa pelo senso comum, configurando-se inclusive como expectativa do próprio estudante de Psicologia frente à prática psicoterápica (Camon, 1999).

Para Zaro, Barach, Nedelman e Dreiblatt (1980), as expectativas do estudante, quando inicia os atendimentos psicoterapêuticos, influenciam a maneira como compreendem as vivências de seus clientes e suas próprias. Discutir sobre essas expectativas nos remete, necessariamente, a contextualizar algumas condições que levam a escolha de Ser terapeuta. Sobre esse assunto, Zaro et al. (1980) mencionam que, apesar de cada pessoa possuir seus próprios motivos, de acordo com seus projetos, geralmente os estudantes de Psicologia tendem a compartilhar de alguns deles tais como a preocupação com o bem-estar das pessoas e o desejo em ajudá-las. Associada a isto está a busca pelo reconhecimento de ser um terapeuta capaz de melhorar a qualidade de vida dessas pessoas.

Chegamos, portanto, ao possível motivo para toda ansiedade e angústia do estagiário-terapeuta iniciante, que são vivenciadas antes mesmo do primeiro atendimento, ao imaginar sua atuação baseada no projeto de terapeuta ideal.

Durante a formação do psicoterapeuta, ele geralmente é também habilitado para realizar o psicodiagnóstico a partir do conhecimento de teorias que fundamentarão sua prática. Entretanto, podemos dizer que aquilo o que ele leva para a prática, antes de qualquer coisa, é a si próprio como pessoa. Sua relação com o cliente também será construída de acordo com seu projeto de ser, podendo, a princípio e pela falta de prática do método que deverá embasar sua prática, analisar os sentimentos e comportamentos dos clientes com referência em suas próprias experiências, expectativas e valores morais.

Sobre a psicoterapia enquanto vivência de diferentes sensações experimentadas pelo estagiário-terapeuta iniciante, não se pode deixar de falar em como a supervisão, tanto do acadêmico em atividades curriculares, quanto dos recém formados, torna-se um recurso que viabiliza o conhecimento básico e a experiência mínima para atuação enquanto prática clínica (Boris, 2008).

É sobre as principais expectativas e sentimentos diversos que acometem o estudante de Psicologia frente às atividades práticas em psicoterapia, ou seja, as possíveis vivências diante seu projeto em Ser terapeuta, que nos debruçaremos reflexivamente neste artigo. Sob os conceitos da filosofia de Jean-Paul Sartre, um dos principais filósofos existencialista da modernidade, é que fundamentaremos nosso olhar, uma vez que, a respectiva abordagem difunde a idéia de uma educação progressista, que coloca o estudante no centro de todo o processo, exórdio de toda discussão apresentada nesta produção científica.

A concepção da Psicologia voltada à prática enquanto Clínica vem, ao longo do tempo, se adequando às demandas emergentes com exigências contemporâneas cada vez mais peculiares, onde problemas das mais variadas ordens se apresentam. Tal atuação que se difundiu no meio acadêmico e social como a mais nobre, revelou a figura do psicólogo que atua dentro de um contexto terapêutico tradicional.

Historicamente, a Psicologia Clínica dispõe de um sujeito idealizado, que surge para atender a uma demanda de exaltação da subjetividade, característica do individualismo moderno. Há uma inversão na relação teoria e prática, que se deve, segundo Portela (2008), à tentativa de encaixar os fenômenos em um conceito teórico que acaba por engessar a historicidade e facticidade desses eventos. Nesse sentido é que este autor cita o apego aos modelos científicos como fator limitante da compreensão dos fenômenos, uma vez visto o método como forma de um (falso) controle para sua ocorrência.

Para Pretto, Langaro e Santos (2009), a abordagem Existencialista tem abarcado essa demanda da contemporaneidade por meio de seus vários instrumentos em uma metodologia fundamentada historicamente, de forma concreta e atualizada, e segundo as relações que são estabelecidas. Busca-se então uma clínica ampliada, não limitada, desenvolvida nos mais diversos contextos nos quais a Psicologia se insere, seja na saúde pública, no meio organizacional, educação ou qualquer outra área, com uma prática pautada na visão global desse cliente.

Não nos debruçaremos na caracterização desses variados contextos por acreditarmos que as expectativas do estagiário-terapeuta iniciante se assemelham independente do local onde atue. Nosso foco se mantém então, em levantarmos sucintamente algumas dessas expectativas, destacando aspectos que nos parecem fundamentais sob a perspectiva existencialista. Antes, porém, faz-se mister definirmos alguns conceitos básicos que fundamentam a Fenomenologia husserliana, na qual Sartre apoiou-se no conceito de consciência intencional, para assim também podermos compreender em que Sartre transcende Husserl em suas reflexões. Posteriormente, a partir dessa breve contextualização, partiremos para a análise compreensiva a temática que nos propomos.

 

1. A fenomenologia Husserliana

Fenomenologia nada mais é que um método que surge dentre os movimentos do pensamento do século XX. Na concepção husserliana, essa definição restaura um "retorno às coisas mesmas" (Galeffi, 2000, p. 19), provocando assim importantes mudanças no fazer filosófico deste século. Husserl se empenhou em diferenciar a consciência do eu empírico. Para Husserl (1906/1990, p. 32) "o eu no seu sentido habitual é um objeto empírico", ou seja, ele não possui outra unidade senão aquela que lhe é dada pela própria consciência. Contudo, esta concepção do eu sofrerá uma mudança radical a partir do momento em que Husserl encaminha a fenomenologia na direção de uma filosofia transcendental. Uma vez que perceber o objeto é intencioná-lo, o ego transcendental passa a ser visto como a origem de toda significação e a fenomenologia vem a partir daí, explicar esta constituição do ego transcendental (Santos, 2008).

Considerando o Eu transcendental, a individualidade da consciência e esta, por sua vez caracterizada enquanto intencional e vazia, Husserl enfatiza esse Eu como responsável por todo conhecimento, constituindo e dando sentido ao mundo. Assim, a fenomenologia se desenvolv e com o objetivo principal de descrição de vivências, a partir das quais se constituem objetos intencionais da consciência (Brandão, 2009). Nesse sentido, para Husserl, o Eu Transcendental unifica as vivências. É ele que vai ao mundo, capta e conhece a coisa (objeto).

A busca de Husserl então se fundamenta naquilo que podemos chamar de uma consciência absoluta, revelada pela redução fenomenológica. Seu caráter epistemológico é o que define o significado de mundo para cada indivíduo, evidenciando o conteúdo concreto de vida de forma autêntica. Posta a ação do mundo suspensa, se permite a consciência tornar-se plenamente consciente de si mesma (Giles, 1989).

 

2. O Existencialismo Sartreano

Diferente de Husserl, Sartre (1937/1994) compreende que o Eu não pode ser visto como estrutura constituinte da consciência. Desta maneira, a definição de uma consciência vazia seria aniquilada, contradizendo e comprometendo assim a teoria husserliana (Santos, 2008). Assim, o Eu não pode estar presente na consciência irrefletida uma vez que o "Eu penso" só surge por meio do ato reflexivo. Ou seja, é a reflexão que constitui este objeto transcendente chamado Eu, que a partir deste momento passa a existir no mundo como um Em-si. Sartre postula então um Ego transcendido e não transcendental, haja vista ser este conhecido e não o que conhece (Bocca & Freitas, 2011).

Apoiados no conceito de projeto da filosofia sartreana, encontramos a caracterização do homem enquanto expressão de sua liberdade. Nesse sentido, o Existencialismo baseia-se em uma análise compreensiva da existência a partir do entendimento de uma liberdade de escolha situada, não obstante, sem obrigatoriamente garantia de obtenção, em que o homem opta por esse ou aquele projeto de acordo com sua valorização, que se respalda também em uma moral vigente de seu contexto. Sob essa óptica o homem passa a ser um existente separado de todos, uma vez que consciente, se apresenta como algo distinto de si. Ao passo que "transporta em mim os projetos do Outro e no Outro os meus próprios projetos" (Sartre, 1960/2002, p. 212).

Vê-se então a contradição fundamental entre homem x mundo. Ao mesmo tempo em que o homem faz parte de uma totalidade, sendo o próprio todo, ele não é o todo à medida que se coloca contraditório a ele. Para Perdigão (1995), é o mundo que lhe dá o Ser ao afirmá-lo não só como sujeito, mas enquanto totalidade acabada. O Outro o objetiva, tornando-o um Em-si, coisa entre as coisas. Entretanto, o homem particulariza-se no âmbito de tal contradição. Enquanto tese, o homem se contrapõe ao mundo que é antítese, e é a existência desse não-ser em andamento entre a totalização constituinte e o todo constituído que estabelece a existência dialética de um nada ativo e, ao mesmo tempo passivo (Sartre, 1960/2002).

Inerente à construção do mundo pelo homem está a constituição deste último enquanto produto desse mundo feito por ele. Necessário se faz, neste caso, estabelecer relações com outros homens para se tornar homem, já que se constitui enquanto tal pela mediação de uma realidade que ele próprio estabelece.

Assim, a cada escolha que transcende as contradições inerentes a existência humana, constitui o enfoque daquilo que Sartre denominou de histórico-dialético. O sujeito deve ser compreendido a partir de sua história individual e, ainda, dos contextos social, cultural, econômico e político ao qual está inserido.

Com foco nesta concepção histórico-dialética de Sartre (1960/2002), sua contribuição para a Psicologia diz respeito ao estudo de um homem em situação, e principalmente, dos fenômenos que permeiam as relações no decorrer de sua existência. Toda essa investigação proposta pela filosofia sartreana visa alcançar a compreensão dos diversos aspectos da existência em todo seu movimento e constituição do projeto de Ser.

Desse modo, a fenomenologia-existencial nos fornece métodos para a prática clínica: do método fenomenológico, a partir da epoqué, abstraímos a base para uma atitude compreensiva e pelo método progressivo-regressivo podemos entender o projeto de Ser a partir das escolhas realizadas pelos clientes, que se dão num movimento dialético temporal. E é por este mesmo movimento que a Psicologia clínica foi e continua sendo construída historicamente.

 

3. A psicologia Clínica e o Sujeito Objetivado

Falar em atuação clínica nos remete inevitavelmente a uma discussão, mesmo que breve, do movimento da Psicologia enquanto construção de um saber científico, cuja prática foi moldada ao longo do tempo e influenciada pelas questões sociais e antropológicas que conferem ao homem em suas variadas formas de ser, o objeto de estudo do fazer psicológico.

Para concretizar-se enquanto ciência, a Psicologia, no que diz respeito à prática clínica, é um campo marcado pela busca de um saber inquestionável. Propunha a confiabilidade de um método que fosse capaz de prever e controlar os fenômenos responsáveis pela construção de um homem subjetivado. Seguindo o percurso de uma subjetividade marginalizada pelo processo científico, à medida que se opõe a objetividade proposta pela ciência, ao terapeuta foi concedida a capacidade de transformar a natureza de seu cliente, cujos fenômenos característicos foram reduzidos apenas a um objeto de estudo.

Nesse sentido é que Neubern (2001) aponta o grande dilema da Psicologia Clínica, pois à medida que se desenvolvem novas formas de atuação, ainda assim, esbarramos na limitação epistemológica que tende a excluir a subjetividade.

Provavelmente o maior resultado dessa discrepância para as relações terapêuticas está relacionado à dificuldade de aceitação das mais variadas formas possíveis de compreensão de mundo, reduzindo as experiências a conceitos universalizados, logo generalizantes.

Pode-se dizer que o conhecimento foi associado a uma hierarquia, uma relação de poder, onde as perspectivas do terapeuta, de maneira sutil, foram impostas, substituindo ou influenciando assim as peculiaridades do cliente. Concomitante a isto, a Psicologia foi tomando como função oferecer explicações confiáveis, principalmente dos sujeitos que estavam à margem do conceito de normalidade. O foco no patológico veio reafirmar a condição desse homem enquanto dependente e submisso do processo terapêutico, uma vez que a Psicologia lhe foi apresentada como uma, senão a única, capaz de promover soluções eficazes.

A avaliação das múltiplas e complexas dimensões de um processo histórico é de fundamental importância no sentido de estabelecer a prática de um conhecimento vinculado, inclusive, às resistências impostas por ele enquanto obstáculo epistemológico (Neubern, 2001).

Uma vez que partimos da dispersão dos organismos humanos, vamos considerar indivíduos inteiramente separados (pelas instituições, por sua condição social, pelos acasos de sua vida) e tentaremos descobrir nessa separação - isto é, em uma relação que tende para a exterioridade absoluta - seu vínculo histórico e concreto de interioridade (Sartre, 1960/2002, p. 213).

Por estarmos inseridos em uma estrutura social que fora organizada pela práxis de outros que nos precederam historicamente, torna a práxis individual uma reorganização de um setor de materialidade inerte, cuja função é atender as exigências de outro setor material, e não mais uma livre organização do campo prático. Matéria, em um sentido mais amplo, seria não-consciência (Sartre, 1960/2002).

Entretanto, segundo Perdigão (1995), não somente as práxis de nossos antecedentes, mas também as nossas enquanto liberdade produzem o fenômeno da contra-finalidade da matéria. Para este autor, o homem intervém na matéria influindo nela seu próprio projeto, disperso, resultando em um fenômeno alheio que foge ao controle, e a matéria pode responder contrariamente aos efeitos que se buscava.

O isolamento dos sujeitos que se condenam a sofrer a contra-finalidade aliena seus projetos livres e favorece o estabelecimento de relações de domínio, devendo realizar projetos que não lhe são próprios, e sim determinados por outros (Perdigão, 1995). Assim, o homem também escolhe e produz seus próprios condicionamentos, logo a maneira de alienar-se.

Romagnoli (2006) define as relações contemporâneas como intrínsecas, qualitativas e afetivas, por se desenvolverem nesse cenário globalizado de uma sociedade pretensiosamente autoritária que envolve aquilo que a autora definiu como corpo social, por meio dos mais diversos mecanismos de dominação. A alienação faz com que as imposições dessa sociedade dominante sejam, ao mesmo tempo, também desejadas pela subjetividade, produzindo assim formas de vidas padronizadas.

Para Luczinski e Ancona-Lopez (2010), na prática clínica, a busca do psicólogo é pela compreensão do homem no mundo, assim como uma forma de acompanhar esse homem em suas necessidades de acordo com os objetivos terapêuticos. Entretanto, é certo que o homem pode apresentar crescimentos e mudanças no que diz respeito ao desenvolvimento pessoal, a partir das mais diversas experiências vividas, sem que para isso seja necessária qualquer intervenção psicológica.

Nesse aspecto é que a prática da Psicologia Clínica imersa no contexto social, não visa uma política de atenção às camadas sociais mais favorecidas. Diz respeito a uma proposta para uma "clínica de qualquer lugar", segundo Romagnoli (2006, p. 53). O objetivo primeiro, neste caso, seria a aniquilação de produções em massa, vinculada a uma apreensão da singularidade do cliente não submisso a um modelo de estudo. Isso vale também para o próprio terapeuta que não se atenha ao pensamento narcísico de detentor do poder de modelar seus clientes.

Tendo em vista a fundamental importância do mundo enquanto produto e produtor de subjetividades objetivadas, cabe ressaltar o processo de sociabilidade, como se dá e o nível de influência que este exerce sobre a constituição do homem. Em meio a esse processo encontra-se também a construção do Ser terapeuta, que tende ir ao encontro das expectativas da sociedade e as perspectivas dos estudantes que se dedicam a esta atuação profissional, como por exemplo, a conciliação indubitável entre naturalidade e critério, as quais serão foco de nossa reflexão mais adiante.

 

4. A Sociabilidade e o Social

Iniciaremos uma discussão a respeito da sociabilidade a partir da conceituação de Qualidade de Vida. Ao pensar Qualidade de Vida há uma tendência a associar tal conceito à saúde. Segundo definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde não diz respeito somente à ausência da doença, e sim a presença de um bem estar físico, mental e social (Fleck, 2000).

Em um artigo apresentado por Campos e Rodrigues Neto (2008), que trata de uma narrativa reflexiva sobre Qualidade de Vida, os autores trazem um tópico intitulado "Instrumentos de Medida de Qualidade de Vida" (p. 235), onde descrevem construtos capazes de mensurar e comparar os diversos níveis que caracterizam e determinam o bem-estar social.

O tema é abordado como se o fenômeno do bem-estar fosse padronizado e a tal ponto generalizado que permitiria uma avaliação cabal de toda e qualquer subjetividade. Nesse aspecto, ressaltamos a importante influência exercida pela ascensão do capitalismo no que diz respeito ao entendimento de bem-estar contemporâneo. Os padrões de beleza, padrões comportamentais, status social são alguns dos predicativos que diariamente são impostos pela mídia, por exemplo, e sobre os quais se fundamenta a condição de se ter ou não bem-estar. Podemos observar também que para se atingir tais projetos impostos como necessários ao bem-estar, há a necessidade de se consumir produtos para esses fins. A valorização do homem, então, diz respeito à capacidade de consumo que ele apresenta, e não daquilo que o constitui enquanto Ser.

Nesse contexto e no senso comum, o psicólogo se insere como alguém capaz de modificar os comportamentos vistos como "não saudáveis", proporcionando assim o bem-estar ao seu cliente. Mais que isso, quiçá, por algumas pessoas, considerado como o único capaz de tal mudança, pelo fato de possuir conhecimento relativo ao homem enquanto processo e suas diferentes formas de compreensão do mundo.

Em 2008, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP 08) contemplou a edição n. 57 da revista Contato com a temática Qualidade de Vida, enfocando as contribuições da Psicologia para se alcançar esse bem-estar tão almejado pelo homem. Uma das reportagens foi direcionada à profissionais envolvidos com a prática da Psicologia em um contexto ambiental, que denunciaram os resultados danosos das ações do homem sobre a natureza, que afetam sobremaneira sua qualidade de vida. Diante o que é construído por esta relação dialética homem-mundo, por meio da qual o homem sente a contra-finalidade da matéria, ou seja, o homem se vê controlado por sua criação, cabe aqui uma análise.

A expressão 'Em-si' na teoria sartreana se refere ao Ser, ou seja, tudo aquilo que é, estanque, fechado. Dito de outra forma: encontra-se fora da pessoa, não mantém relação nem consigo nem com outro Ser, é o universo das coisas materiais. Em contrapartida o 'Para-si' é o pleno vazio, o nada. É a consciência (Para-si) que faz reconhecermo-nos como Ser (Em-si) (Perdigão, 1995).

A relação dialética 'Para-si' e 'Em-si' nada mais é que a relação entre a consciência e o mundo. Já disse Sartre (1943/1997, p. 131) que "o homem é um para-si-em-si", uma vez que ontologicamente o homem é o nada, o vazio que será preenchido por algo, tornando-se momentaneamente um 'Em-si' na relação com o mundo (Para-si-Em-si).

O único fundamento concreto da dialética histórica é a estrutura dialética da ação individual. E, na medida em que podemos abstrair, por um instante, essa ação do meio social onde, de fato, está submersa, surpreendemos nela um desenvolvimento completo da inteligibilidade dialética como lógica da totalização prática e da temporalização real (Sartre, 1960/2002, p. 328).

Portanto, a prática clínica nada mais é que um olhar desse homem na sociabilidade (relações), limitado por aquilo que é instituído por essas mesmas relações, ou seja, o social será o produto dessas relações, como, por exemplo, as normas, as leis, as teorias e as políticas. Sendo produto, o social é a antítese do individuo e seu projeto de Ser também será construído a partir desta relação, como interioriza esse social e como age sobre ele.

Por ser falta e por estar inserida no mundo, a relação com as coisas e com os outros se dá num movimento recíproco, que remete o homem ao reconhecimento de si próprio enquanto meio, tal como vê o outro, que se move em direção a um fim. Essa relação é, ao mesmo tempo, mediadora e mediada pela materialidade. Um conjunto de homens e de coisas, segundo Bettoni e Andrade (2001), em meio a qual a práxis da individualidade atua para determinado fim a sobrevir sobre a realidade. A somatória das ações de vários sujeitos constitui um grupo que, mais tarde, irá demarcar e, de certa forma, exercer controle sobre a individualidade expressa em prol dos objetivos coletivos.

Podemos dizer que enquanto a realidade coletiva se apresenta ao homem como algo imposto, esta é constituída também a partir de sua individualidade. Sob esta lógica da dialética homem-mundo configura-se uma totalização-em-curso. Cabe então à consciência desvelar todo esse movimento dialético e retirá-lo da inércia, fazendo com que seja possível refletir sobre a trajetória das coisas (Bettoni & Andrade, 2001).

 

5. Ser Terapeuta Ideal

No eixo da Fenomenologia-existencial, a construção do projeto de Ser terapeuta é também produto dessa dialética ontológica. Inicialmente, ao pensar nos objetivos da educação como sendo o de fundamentar uma identidade ao homem, a formação acadêmica em Psicologia, assim como em qualquer outra área do conhecimento, traria em seu bojo uma atitude de má-fé ao tentar impor um Ser psicólogo ao Não-ser, como resposta frente ao nada.

Segundo Danelon (2004), é como instituir uma essência antes da existência, a qual se constituirá mais tarde como realidade interior do sujeito, servindo de referencial para que este elabore e concretize seus projetos, contrapondo-se assim a premissa básica do Existencialismo de que a existência precede a essência.

O Ser ontológico do homem, ao pensar, pensa sempre em algo que, a partir daí, torna-se objeto captado por sua intencionalidade. Pensar em Ser psicoterapeuta implicaria então, em projetar um Ser terapeuta, primeiramente idealizado.

Já impregnados com conceitos do senso comum sobre o papel do terapeuta, o estudante inicia a graduação podendo ter alguns desses conceitos reforçados por paradigmas de uma formação que limitam a prática desse profissional somente ao contexto do consultório e que designam à figura do terapeuta características utópicas, como, por exemplo, a onipotência de detentor do poder de curar o outro. E é nesse aspecto que a educação pode assumir um caráter perverso ao propor um Ser para o homem que se projeta a partir do que foi instituído. Compromete-se assim, o princípio de intencionalidade também, que desse momento em diante impossibilita a abertura da consciência para o mundo, já que será parte de uma subjetividade que lhe foi instituída anteriormente (Danelon, 2004).

A formação, porém, tem o poder de caracterizar o sujeito. Concretizá-lo como um Ser-em-si, que poderia ser definido como subjetividade individual, não fosse o fato da consciência apresentar-se objetivada de conceitos que foram pré-determinados (Danelon, 2004).

A possibilidade de livrar o cliente do sofrimento e ser reconhecido como um bom profissional tende a incitar o terapeuta, pois esta possibilidade de ser lhe confere poder. Ideologicamente fixado em conceitos, como os padrões de saúde mental, qualidade de vida, bem-estar, e condições sociais, por exemplo, disseminados na sociedade capitalista, o terapeuta iniciante pode se deter a uma pretensão de enquadrar o cliente em conceitos pré-estabelecidos, de modo que se sinta capaz de mudá-lo e reinseri-lo tal como o meio exige.

Diante o exposto, fica evidente uma intensa preocupação do estagiário-terapeuta iniciante, com o desempenho nos primeiros atendimentos psicoterapêuticos. Certo nível de ansiedade demonstra as incertezas do futuro com o cliente e da habilidade para estar realmente com ele. Sabido que o que se fizer pode causar um impacto no outro, é possível aceitar tais ansiedades como normais, embora uma ansiedade demasiada talvez acabe com toda confiança que tenha em si próprio.

O estagiário-terapeuta iniciante se encontra imerso em um mar de dúvidas em relação ao que deverá ser dito e de que forma, e, apreensivo pelas coisas que acredita não poder dizer, pode conformar-se com o silêncio em alguns momentos ou mesmo quebra-lo inadequadamente para livrar-se da angústia diante do vazio que se instaura na relação, que pensa poder se entendido pelo outro como uma impotência de sua parte. Nesse aspecto, a supervisão funciona como moderador dessa ansiedade e angústia por meio da orientação dada por profissional que tenha experiência.

A supervisão se dá com o uso de vivências, discussões, dramatização dos casos atendidos, estudo de material teórico e outras atividades com o objetivo de ajudar e avaliar o desenvolvimento do estagiário-terapeuta iniciante na sua prática. Isso se torna possível por meio da reflexão, neste instigada, sobre suas habilidades, assim como suas limitações, que é levado a repensar a autoimagem, relações dentro do grupo e, paralelamente, seu crescimento pessoal (Távora, 2002).

A prática idealizada da psicoterapia estaria vinculada a conciliação de uma metodologia científica aplicada em um contexto previsível, agindo de forma inquestionável sobre a motilidade que caracteriza a vida humana. Como se o estagiário-terapeuta iniciante fosse detentor de uma receita que livrasse o cliente de todo seu sofrimento, levando-o a crer que a "cura" seria algo ofertado pelo primeiro, ao invés de considerar o processo terapêutico como uma caminhada para a conscientização e apropriação do projeto de Ser do e pelo cliente, que pode ser mantido ou não.

Estagiários-terapeutas iniciantes tendem a antever seu encontro inicial com os clientes vivendo sentimentos ambivalentes. Aplicar na prática os conceitos teóricos-metodológicos aprendidos configura-se como uma das maiores preocupações enquanto atuação. O anseio por intervir no momento que considera ser o certo, e de maneira que também acha ser a pertinente, acaba por vezes comprometendo a vivência daquilo que o cliente fala, no exato momento em que ele traz. O terapeuta fica preso a um modelo ideal de atuação e perde a singularidade do processo, em seu âmbito vivencial da relação com o cliente.

E por falar de singularidade e de relação, dois outros aspectos podem também ser compreendidos de maneira errônea pelo estagiário-terapeuta iniciante: (1) a questão da individualidade do indivíduo ser compreendida de maneira descontextualizada do social e (2) a não consideração da relação dialética no próprio setting terapêutico.

Sendo aspectos que se imbricam, a individualidade, tanto do cliente quanto do terapeuta, não está dissociada dos seus respectivos contextos coletivos. As vivências de ambos vêm carregadas do que é instituído por um contexto maior por meio de suas relações extra setting. Sendo assim, a maneira como superam as contradições das relações fora do setting influenciará a relação que travarão dentro deste, bem como transcenderão todas as demais. Logo, nenhuma delas pode deixar de ser apreendida e trabalhada.

Outro aspecto importante a ser pontuado refere-se às atitudes de silêncio do cliente que, por vezes, são significadas pelos estagiários-terapeutas iniciantes como uma barreira à intervenção psicoterápica. O silêncio do cliente é vivenciado pelo estagiário-terapeuta iniciante com um tempo interminável e não é incomum que este se sinta ameaçado a ponto de buscar algo contraproducente com o fim de quebrá-lo, livrando-se assim da angústia diante do vazio. Por remetê-los ao vazio, o silêncio passa a ser associado a uma impotência do estagiário-terapeuta iniciante que se sente na obrigatoriedade de interrompê-lo, dizendo coisas, por vezes desnecessárias, ou lançando mão de um inquérito com o único intuito de totalizar a lacuna que se estabelece no momento em que o cliente se cala, como já dissemos anteriormente. Entretanto, assim como qualquer outro comportamento, o silêncio, quando trabalhado em terapia, contribui para que o cliente obtenha consciência de si, servindo inclusive como recurso de intervenção para o próprio psicoterapeuta, uma vez que pode assinalar ao cliente a maneira como escolhe lidar com o vazio.

No entanto, é mister identificar a intenção do cliente por meio de sua atitude de silenciar-se, haja vista que o silêncio produtivo tem caráter reflexivo (Erthal, 1994). Contudo, este tipo de silêncio é menos mobilizador de angústia no estagiário-terapeuta iniciante, pelo fato de o cliente, em sua atitude reflexiva, estar voltado para si e não para o terapeuta. Diferente do silêncio estéril, que tem seu significado na evitação de algum assunto em específico que tenha incomodado o cliente e/ou a dificuldade de tomar a iniciativa de falar, neste, o cliente demonstra com o comportamento de silenciar-se, outras atitudes geralmente não-verbais, que informam ao estagiário-terapeuta iniciante que este é quem deve quebrar o silêncio. Neste caso, suportar o silêncio passa a ser uma vivência um tanto ameaçadora, haja vista que, não responder ao apelo do cliente é intervir com uma negativa, e como se esta não fosse também uma intervenção.

Quase sempre as intervenções iniciais ocorrem de maneira intranquila para o estagiário-terapeuta iniciante. Há uma tendência a sentir-se intimidado e receoso, como se algo que pudesse dizer tivesse o poder de destruir o cliente de modo que ele nem retorne na sessão seguinte. Nesse sentido, evita-se falar sobre o que supõe ser desagradável para o cliente. Diante tal compreensão equivocada, a atuação fica restrita a uma prática amena, amigável, porém, a real intenção é a de manter o controle da liberdade do cliente. Esta tentativa de controle remete à expectativa do estagiário-terapeuta iniciante em estar de acordo com as expectativas que supõe que o cliente tenha. Em outras palavras, a atuação fica vinculada à uma tentativa de não frustrar o cliente para não frustrar a si próprio. Alienado em sua liberdade, e em busca de retoma-la, o estagiário-terapeuta iniciante tende a abster-se de uma possível confrontação com o cliente, tentando também transformar a liberdade deste último em algo alienável ao seu controle. Enfim, reverte o lugar de quem deve estar impotente.

Outro contexto relacional em que o estagiário-terapeuta iniciante pode mostrar o seu ideal de Ser terapeuta é na relação com seu orientador. Assim como receia que sua atuação não seja reconhecida pelo cliente pelo modelo idealizado, o olhar do orientador também poderá ser percebido como uma ameaça ao seu projeto. Em ambas as relações que trava - com o cliente e com o orientador - o estagiário-terapeuta iniciante tenderá controlar a liberdade da consciência alheia. Contudo, na segunda relação, caberá ao orientador a ajudá-lo a conscientizar-se de seu projeto.

Nesta trama dialética das relações, para obter sucesso com a psicoterapia fenomenológico-existencial e com a orientação, todos - orientador, estagiário e cliente - devem se comprometer com suas escolhas: o orientador, com a de ensinar ao estagiário-terapeuta iniciante a desenvolver habilidades e competências para a aplicação da teoria e do método em questão, bem como encorajá-lo a desistir de idealizações e assim a arriscar-se, com isso o orientador também precisa se expor-se na relação; o estagiário-terapeuta iniciante, com a sua escolha pela abordagem e pelo tipo de prática, aprendendo na orientação pode transpor a experiência para com o seu cliente, mas deve arriscar-se em ambas as relações; e, finalmente, o cliente com a decisão de fazer terapia pode engajar-se com sua proposta, e assim apropriar-se de seu Projeto de Ser e com possíveis transcendências ao seu modo de Ser. Tais engajamentos provocarão mudanças nas relações de todos.

 

Considerações finais

Aquele que almeja ser psicoterapeuta geralmente se enquadra em características tais como: o interesse pelas pessoas, a estabilidade emocional, a capacidade de inspirar confiança nos outros, e principalmente, tolerância às mais diversas formas e estilos de vida e crenças.

Na contemporaneidade, exige-se ainda que esse terapeuta-iniciante desenvolva a condição de compreender e aceitar o seu Eu tanto quanto os outros. Assim, quando vão à prática os estudantes de Psicologia são submetidos à prova da sua capacidade de integração e aplicação de tudo aquilo que aprenderam durante a formação acadêmica. Mesmo estando cientes da influência que os docentes exercem enquanto modelo de terapeuta, ignora-se a singularidade do potencial individual ao tentar imitá-los. Os recursos podem e devem ser usados, mas buscando sempre caminhos que sejam peculiares a cada olhar.

Ao longo dessa discussão, onde alguns paradigmas foram abordados e discutidos, ressaltamos que a formação científico-metodológica não é suficiente para garantir uma prática psicoterápica com êxito. A busca, não de ser um produto acabado, mas de permanecer aberto no sentido de vir-a-ser um profissional cada vez mais preparado, é, entre outras, uma das qualidades mais importantes para a experiência de tornar-se psicoterapeuta.

Esta experiência implica correr riscos, manifestar a coragem e a vontade de abandonar a segurança do conhecido para mergulhar no desconhecido, de onde possa emergir muitas possibilidades de Ser. Tais funções destinadas ao ser terapeuta ocultam, por sua vez, a condição humana, pois se precaver à manutenção das expectativas de um papel estereotipado superpõe o indivíduo enquanto pessoa.

Quando possível, deve-se questionar os conhecimentos adquiridos, uma vez que a vida acadêmica é construída por pessoas e estas não detêm saberes absolutos. Teorias, métodos, instrumentos e recursos estão no mundo, logo passíveis de serem transcendidos. Seja qual foi o grau de embasamento teórico acadêmico e prático, o estagiário-terapeuta iniciante não deve sobrecarregar-se da necessidade de ser perfeito. Os erros serão cometidos tanto por principiantes quanto pelos mais experientes, afinal, o cliente não é frágil a ponto de fadar vossas vidas aos nossos erros.

Projetos idealizados não toleram frustrações, logo não abarcam limites, sendo assim, não colocar limites ao cliente, ajudando-o a se conscientizar sobre seu Projeto de Ser, é também não querer reconhecer os limites de seu próprio projeto de Ser terapeuta.

 

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Recebido em 03.07.11
Aceito em 12.03.12

 

 

1 Comunicação oral apresentada no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, realizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, de 04 a 07 de junho de 2011.