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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.18 no.2 Goiânia dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Tédio e trabalho na pós-modernidade

 

Boredom and work in the post-modernity

 

Apatia existencial y trabajo en la pos modernidad

 

 

Karina Okajima FukumitsuI; Júlia Yoriko HayakawaII; Suzan Emie KudaII; Elisa Harumi MushaII; Tauane Cristina do NascimentoII; Bruna Bezerra OliveiraII; Elisabete Hara Garcia RochaII; Daiany Aparecida Alves dos SantosII; Karen UekiII; Lucas Palhari VasconcelosII

IKarina Okajima Fukumitsu - Psicóloga, psicoterapeuta, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora convidada pelo departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae. Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Universidade São Paulo-USP/SP). Mestre em Psicologia Clínica (Michigan School of Professional Psychology-Center for Humanistic Studies - EUA). Especialista em Psicopedagogia (PUC-SP) e em Gestalt-terapia (Sedes Sapientiae-SP). Endereço para correspondência: Avenida Fagundes Filho, 145 - sala 96 (Edifício Austin Office Center) Vila Monte Alegre. São Paulo-SP - Brasil - CEP: 04304-010. E-mail: karinafukumitsu@gmail.com
IIAlunos do 8º semestre de graduação do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar as relações entre tédio existencial, tempo e trabalho na pós-modernidade. O trabalho considera duas perspectivas: a primeira, o caráter que impede o trabalhador de se apropriar do tempo tornando-se entediado; a segunda, a dimensão facilitadora para o serviço que faz sentido ao trabalhador. Na sociedade pós-moderna, percebe-se um esvaziamento de significados devido à demanda de produção técnica que, associada ao tédio, resulta na perda de sentido para o trabalhador. Nesse contexto, o homem que busca preencher seu tempo por meio das inúmeras ocupações não se permite entrar em contato com seu projeto existencial. Entretanto, a vantagem da constatação do tédio existencial favorece a autenticidade e permite possibilidades de ressignificações para a compreensão do tempo vivido

Palavras-chave: Tédio existencial; Trabalho; Tempo.


ABSTRACT

This present article there is how objective show the established relation between the existential boredom, time and work in the post-modernity. The work is seen from two perspectives: the first is about a one negative character; and the second, a positive dimension. In the post-modernity society, there is one emptying of your positive mean that associate with boredom can result in lose sense. In this context, the man to fill search your time through everyday occupations and as soon as the work to show like central factor in your life, can create to mount up activities that don't permit enter in contact with your existential project. However, the existential boredom can open to way to new possibilities of the meet with future reframes.

Keywords: Existential boredom; Work; Time.


RESUMEN

El siguiente artículo tiene como objetivo presentar las relaciones entre la existencia y el burrimiento, tiempo y trabajo en la pos modernidad. El trabajo considera dos perspectivas: la primera, el carácter que impide al trabajador de apropiarse del tiempo volviéndose tedioso; la segunda, la dimensión facilitadora para el servicio que da sentido al trabajador. En la sociedad post-moderna, se percibe una carencia de significados debido a la demanda de producción técnica que, asociada a la monotonía, resulta en la perdida del sentido para el trabajador. En este contexto el hombre que busca satisfacer su tiempo por medio de las innumerables ocupaciones no se permite entrar en contacto con su proyecto esencial. Entretanto, la ventaja de la constancia de apatía existencial favorece a la autenticidad y permite posibilidades de re significación para la comprensión del tiempo vivido.

Palabras-clave: Apatía existencial; Trabajo; Tiempo.


 

 

Introdução

A ação e ocupação humana estão intrinsicamente relacionadas ao tempo. Apesar de o trabalho ser reconhecido como uma atividade central, que ocupa quase totalmente o tempo e espaço do cotidiano humano, torna-se crescente o número de trabalhadores que não reconhecem o ambiente profissional como um espaço de realização e possibilidades.

No contexto pós-moderno, as informações sobre bens de consumo podem provocar no homem a falsa percepção de que ele é o que produz, tornando-o refém de um status quo e de uma exigência para produzir cada vez mais. Assim, o dilema entre ser, ter e parecer se instala.

O presente artigo tem o objetivo de estabelecer relações entre tédio e trabalho na pós-modernidade, segundo a concepção fenomenológico-existencial que além de ser uma visão preocupada com as questões existenciais, está também comprometida com o modo de o ser humano apoderar-se de sua existência.

O mundo moderno é demarcado por dois tempos: o cronológico e o vivencial. Sendo assim, o trabalho é apresentado no estudo como uma ocupação do ser humano associada ao tempo.

Chauí (1995, p. 241) nos ensina que:

Somos seres temporais - nascemos e temos consciência da morte. Somos seres intersubjetivos - vivemos na companhia dos outros. Somos seres culturais - criamos a linguagem, o trabalho, a sociedade, a religião, a política, a ética, as artes e as técnicas, a filosofia e as ciências.

Reflete, portanto, sobre o tempo quando vivenciado pelo esvaziamento de significados e, concomitantemente, sobre a voracidade que impele o ser a buscar novidades para evitar a constatação do vazio existencial.

Considera-se também nesse estudo o tédio e a falta de sentido no trabalho, e a fuga do tédio por meio do trabalho, contemplando a compreensão das pessoas que trabalham demasiadamente, os workaholics.

O tempo permite tanto compreender o existente humano em seu ser, quanto qualquer modo de ser possível e, por esse motivo, nas duas modalidades de tempo supracitadas, o tédio emerge e pode ser compreendido como uma das manifestações da angústia do indivíduo moderno que projeta sua inautenticidade provocada pelo esquecimento do ser.

 

1. O Homem e o Tempo na pós-Modernidade

O homem é possibilidade de ser e se relaciona com o tempo não apenas objetiva e mensuravelmente, mas o experiencia de maneira singular e própria. Logo, o tempo não é, mas se temporaliza, porque produz a si mesmo de diferentes modos: temporalidade originária, tempo do mundo e tempo comum (Reis, 2005).

O tempo comum tem origem na databilidade do tempo cronológico (kronos), o que resulta uma série de instantes idênticos e não relacionados entre si. Em geral, o ser humano não se relaciona com o tempo de outro jeito a não ser aquele mensurável que remete ao tempo do relógio, ao aqui e agora, ao ontem e ao amanhã (Josgrilberg, 2007). Em contrapartida, apresentar o tempo somente como uma somatória de eventos do presente reduz outras possibilidades de compreensões. Desse modo, Kirchner (2007, p. 187) questiona: "Será que, quanto mais o tempo é exclusivamente mensurado e cronometrado, menos experiências as pessoas fazem com o tempo junto à ocupação do mundo e como tempo da temporalidade da presença?"

O autor se baseia na consideração de que responder a tal questão seria um equívoco e ainda reflete sobre o fato de que mensurar e cronometrar o tempo só se torna viável pela possibilidade de a contagem já ser sempre acessível ao próprio ser.

Josgrilberg (2007) aponta também para a interpretação ontológica de Heidegger sobre a experiência do tempo que constitui o próprio Dasein, o existente humano. Na mesma direção, Bilibio (2005, p. 78) tenta "(...) compreender a experiência do tempo de modo fenomenológico a partir da própria existência humana e de sua finitude (...)".

De acordo com Minkowski (2011), tanto a ideia de tempo mensurável quanto a noção de desorientação no tempo não esgotariam o fenômeno do tempo vivido e, dessa forma, é possível desorientar-se no tempo em alguns momentos. A monotonia gerada por essa desorientação leva ao tédio que, por sua vez, gera sofrimento nas pessoas que lutam contra esse fenômeno essencialmente temporal. Para o autor, o tempo apresenta um excesso de imagens dinâmicas e artificiais que aparecem constantemente e se relacionam a eventos do mundo exterior e/ou da vida íntima do ser. Sendo assim, a vida segue um curso violento, levando a uma sucessão de imagens e acontecimentos que não oferecem nenhum apoio à necessidade de refletir, tornando-a um turbilhão de episódios.

 

2. O Ser-no-Mundo na pós-Modernidade

É o homem que precisa se adequar ao lugar e ao tempo? Ou deve-se pensar o contrário: é o lugar e o tempo que precisam ser adequados ao homem? Para elucidar tais questões, pode-se compreender o tempo e o espaço por meio da mitologia grega em torno dos mitos de Kronos e Kairós.

Kronos, de acordo com a mitologia, era um dos deuses que receava a realização da profecia de que seria destronado por um de seus filhos, motivo pelo qual os devorava. Zeus, um desses filhos, foi poupado da morte e escondido por sua mãe, retornando para reivindicar o trono e exigindo que Kronos libertasse seus irmãos Ades, Hera, Possêidon, Héstia e Deméter. Zeus expulsou então Kronos do Olimpo e se tornou imortal, poder concedido também aos irmãos, enquanto seu pai foi jogado ao limbo. Kairós, segundo a lenda, demarca o tempo vivido.

A sociedade contemporânea, igualmente, pauta-se no tempo cronológico, ou seja, em Kronos, sendo este o útil, o sequencial, que se contrapõe ao tempo vivenciado e representado por Kairós. Nesse sentido, o trabalho pode se embasar nas concepções de Kronos e não permitem que o indivíduo se aproprie de seu projeto existencial. Em contrapartida, o apropriar-se do tempo relaciona-se à concepção pertencente ao tempo vivenciado, isto é, Kairós, que possibilita a reflexão sobre a ação e se aproxima do vazio fértil.

Vazio e solidão fazem parte da condição de singularização. Ao contrário, o anonimato é o esforço da evitação do contato com a angústia. É pela manutenção do anonimato que o ser humano encontra lugar para devolver a aparência de que tudo está bem e que nada precisa ser alterado. É pela constatação da angústia e vivência de acolhimento do vazio existencial que o homem desperta de sua condição de ser-no-mundo. Nesse sentido, a diferença entre estar-no-mundo dos homens e ser-no-mundo é apontada, pois estar-no-mundo dos homens significa seguir determinismos e a justificativa causal de que o homem é produto do meio, restando-lhe apenas o quietismo e o anonimato. Em contrapartida, o ser-no-mundo significa habitar, atuar sobre e no mundo de modo que possa interferir, modificar, inventar, criar e sobretudo, engajar-se e exercitar sua transcendência. E assim como Sartre (2010) ensina "O quietismo é a atitude daqueles que dizem: 'Os outros podem fazer aquilo que eu nao posso' (...) só existe realidade na ação.'" (pp. 41-42)

Porém, a possibilidade de despertar do anonimato revela a possibilidade de refletir sobre a ampliação das possibilidades existenciais, quer dizer, para ser visto é necessário ser preciso no tempo e no espaço. Para ser visto, o ser humano precisa se ver e se reconhecer, sem depender do reconhecimento externo do que faz, de quem é e do lugar a que pertence. No entanto, há de se considerar, nesse momento, os casos de pessoas que trabalham apenas pela necessidade financeira e que trocariam prontamente de atividade profissional se recebessem mais. Por isso faz-se importante a reflexão do tédio existencial no contexto do trabalho, pois "não somos mais capazes de nos situar no mundo porque nossa própria relação com ele [mundo] foi praticamente perdida" (Svendsen, 2006, p. 20).

 

3. A Satisfação é Encontrada no Ser, Ter ou no parecer?

O homem busca a satisfação das necessidades e a expressão das próprias emoções. E, por muitas vezes, acredita que, se for considerado bem-sucedido profissionalmente ou se ganhar muito dinheiro, garantirá seu lugar de pertencimento. Adota então, várias estratégias para manter o status quo, tornando-se aprisionado pela ideia de que para ser visto e reconhecido, precisa dedicar seu tempo somente ao trabalho. Ou quando sua competência é testada e a insegurança se instala, o olhar do outro é perseguido como um pedido de aprovação, e o ser humano sente necessidade de ser visto e confirmado não por quem é, mas pelo que conquistou. Dessa maneira, o ter e o parecer se tornam mais importantes do que o ser.

Sabe-se que tudo depende do grau e, em caso de pessoas que trabalham demasiadamente, o excesso causa a falta, pois ao mergulhar em seu trabalho, o workaholic não precisa se submeter ao olhar profundo do próprio vazio existencial e, em contrapartida, dar-se-á um luto de significados do tempo e do espaço que ocupa. O tédio será mantido. O vazio perdurará e a solidão se manifestará, independentemente do que fizer ou produzir.

Nesse ponto, o ocupar-se pode ser vivido própria ou impropriamente, mas "(...) tanto em um quanto o outro há a possibilidade de autenticidade" (Seibt, 2008, p. 501). Assim, a inautenticidade surge quando o ser não se apodera de seu projeto existencial, quando procura nos entes o significado de sua existência, quando não se conscientiza da finitude e quando enfatiza o ter e o parecer. O eu é dito pelo impessoal, que foge de si, e se percebe por meio de suas ocupações, ou seja, o ser se dilui nas ocupações diárias e desvela seu jeito inautêntico de ser, manifestando-se em três constituições fundamentais: a facticidade, a existencialidade e a ruína, que diz respeito a se lançar na cotidianidade e no anonimato, isto é, "(...) ele [Dasein] vegeta na banalidade das ocupações corriqueiras, desviando-se de si mesmo e do projeto ontológico" (Costa, 2010, p. 156).

Nesse caso, Costa (2010) aponta que a ocupação ocorre por uma aproximação de acordo com o Dasein, que necessita de um sentido para sua vida, e a maneira como absorve ou não o tempo orienta também a forma de existir no mundo. O autor ainda acrescenta que:

O homem contemporâneo é dominado pelo processo técnico, no sentido de enxergar nele o único meio de sobrevivência e consequentemente de se adequar no mundo moderno, se diluindo em meio aos outros entes, se deixando arrastar pela vida inautêntica em meio aos objetos que manipula (p. 155).

O trabalho não é um fim em si mesmo, mas unicamente um meio para alcançar outra finalidade (Ribeiro & Leda, 2004). É no contexto em que o sentido é depositado nos objetos e não na finalidade da vida que podemos compreender a perda de significação que Giovanetti (2002, p. 99) descreve como "(...) a ausência de rumo que dê significado ao ato". Portanto, para o mesmo autor, o sentido é expresso na direção que se imprime ao viver algo e, colocar sentido nas coisas é, então, falsear o problema. De acordo com Ribeiro e Leda (2004, p. 77): "Ao longo dos tempos, identificam-se duas visões contraditórias do trabalho que convivem nos mesmos espaços, e, por vezes, um mesmo indivíduo revela sentimentos ambíguos em relação a sua vida profissional."

Por muito tempo o significado de trabalho foi associado ao fardo e sacrifício, e sua concepção como fonte de identidade e autorrealização humana foi constituída a partir do Renascimento. Então, "constata-se (...) que o trabalho apresenta duas perspectivas distintas. A primeira referente a um caráter negativo; e a segunda a uma dimensão positiva" (Ribeiro & Leda, 2004, p. 77).

No entanto, na pós-modernidade, percebe-se a retirada do valor positivo do trabalho e vive-se um momento histórico de esvaziamento de seu significado, ou, nas palavras de Ribeiro e Leda (2004, p. 80): "há um desconforto que, conforme as circunstâncias a serem vividas, vai desencadeando adoecimento psíquico e somático nos indivíduos".

 

4. O Esvaziamento do Significado e o Tédio

O esvaziamento do significado de trabalho associa-se diretamente ao tédio, pois abrange tanto a perda de definições pessoais quanto o esgotamento de sentido na vida e na relação com o mundo. Albom (1998, p. 48) aponta a lição de seu professor Morrie:

Tanta gente anda de um lado para outro levando vidas sem sentido. Parecem semi-adormecidas, mesmo quando ocupadas em coisas que julgam importantes. Isso acontece porque estão correndo atrás do objetivo errado. Só podemos dar sentido à vida dedicando-nos a nossos semelhantes e à comunidade e nos empenhando na criação de alguma coisa que tenha alcance e sentido.

O tédio é compreendido como restrição da liberdade existencial pela qual há evidência na dificuldade de ação, ou seja, torna-se subjacente à maioria das ações humanas corriqueiras, com um caráter positivo e negativo. Por conseguinte,

O tédio está associado a uma maneira de passar o tempo, em que o tempo, em vez de ser um horizonte para oportunidades, é algo que precisa ser consumido. [...] Não sabemos o que fazer com o tempo quando estamos entediados, pois é precisamente então que nossas capacidades ficam inertes e nenhuma oportunidade real se apresenta (Svendsen, 2006, p. 24).

Além disso, cabe salientar a diferença entre o tédio do senso comum - o situacional - e o tédio existencial. O primeiro é o estado de ficar entediado e responsabilizar outrem pela dificuldade da ação. O segundo é ser entediado e relacionar-se ao vazio existencial. Em geral, o tédio situacional manifesta-se quando não se pode fazer o que se quer ou em situações em que o indivíduo precisa fazer o que não quer e, consequentemente, surge a necessidade de passatempos. Para Kirchner (2007), passatempos têm o objetivo de aniquilar o tempo do mundo e são resultados de um tempo que não é pensado, sendo possível inferir que o homem não pode compensar o tempo em suas ocupações.

Para Svendsen (2006), o tédio se caracteriza por uma condição de desorientação que se apresenta no estado de tédio profundo. O tédio se faz entediante, porque parece algo infinito. É capaz também de revelar a própria finitude da existência. O tédio, em comparação à morte, assemelha-se a uma espécie de antecipação fúnebre, pois tédio tem relações com a finitude e com o nada. "É uma morte em vida, uma não vida" (p. 43).

Como dito anteriormente, reflete-se sobre indivíduos que procuram se ocupar, porque a ocupação se torna um jeito de evitar o vazio provocado pelo tédio. Desse modo, o que mais importa não é a atividade com a qual se ocupam, e, sim, como a ocupação em si acontece. Portanto, o passar o tempo pode ser considerado uma tentativa de se evitar o tédio, ao se procurar qualquer coisa com a qual se possa consumir o tempo. O ser humano preenche o tempo com a apropriação cotidiana e a prática dos entes, o que caracteriza o papel de cada pessoa na contemporaneidade (Costa, 2010), porém, confunde a ocupação com evitação e, nas palavras de Feijoo (2000, p. 113), "(...) o eu se perde quando se paralisa uma tentativa de resolver o inevitável, isto é, a situação paradoxal da existência humana".

No tédio, o Dasein é aprisionado no tempo, em um vazio que parece ser impossível de ser preenchido. Svendsen (1970, p. 32) menciona que:

O tédio pode ser compreendido como um desconforto que comunica que a necessidade de significado não está sendo satisfeita. Para eliminar esse desconforto, atacam-se os sintomas, em vez de atacar a própria doença, e procuramos todas as espécies de significados substitutos.

O ficar entediado ocorre porque falta um significado e um propósito, e a tarefa do tédio é atrair a atenção exatamente para essa situação. Portanto, o trabalho é percebido como a fonte de supressão temporária dos problemas do cotidiano, da existência inautêntica que se ocupa dos entes presentes no mundo, mas não reflete sobre a existência destes. Assim, conforme nos afirma Costa (2010, p. 153): "A cotidianidade do ser-aí caracteriza em certo sentido a ocupação que se torna deficitária, ao passo que, o que está em jogo não é um intento ontológico, mas sim a manualidade do instrumento em si mesmo."

Em casos daqueles que trabalham demasiadamente, os workaholics, pode-se inferir que, no discurso de "não ter tempo para nada", privam-se de tempo para tudo o que não está relacionado ao trabalho e denunciam que suas escolhas direcionam-se à dedicação profissional em detrimento a outros afazeres que poderiam agregar em seu projeto existencial.

Para Spanoudis (1976), a razão pela qual o modo de viver, hoje, vivencia e propaga o tédio pode ser compreendida pela alienação com que a vida é levada. Dessa maneira, trabalhando demasiadamente ou abusando de passatempos é que o homem busca a libertação de sua vida monótona e estagnada - justamente para preencher seu vazio existencial. Esse vazio sem significado é chamado por Matos (2007) de tempo patológico, que considera o estresse como ideal, uma vez que, na monotonia, o tempo não passa, pois o ser está alienado na perda do sentido das ações.

A ilusão de promoção da felicidade divulgada pelos meios de consumo, pela qual se percebe um consumo ilimitado, impede a reflexão. Assim, a relação do ser com o trabalho deixa de ser de produtividade e ação e torna-se reprodução, uma inatividade na qual se observa a falta de sentido, gerando um mal-estar que conduz ao tédio, o que leva a uma desvalorização de si, das relações e do próprio trabalho (Matos, 2007). Falta tempo para se vivenciar o tédio e nada pode preencher totalmente o vazio existencial que o ser humano deve assumir com responsabilidade. Falta tempo para ser.

De acordo com Giovanetti (2002), o contexto atual é marcado também pela transformação de uma consciência política a uma consciência narcísica, em que a centralidade sobre o eu passa a definir a orientação de todas as ações do indivíduo moderno, ao ponto de excluir o outro de sua vida. Consequentemente, na pós-modernidade, as desordens neuróticas - tratadas pelos terapeutas do início até os meados do século XX - foram substituídas pelas desordens narcísicas, que se caracterizam por um mal-estar longo e indefinido e, naturalmente, o esvaziamento dos significados da existência e da vida cotidiana. Ainda segundo o autor, o grande sintoma, na vida moderna, pode ser bem-representado pela dificuldade de se assumir o vazio existencial.

 

5. O valor do vazio fértil

Van Dusen (1977) apresenta comparações entre a cultura ocidental e oriental, afirmando que, no Oriente, o vazio é confortável e familiar, podendo ter um valor máximo em si mesmo e possibilitando a produtividade, ao contrário do mundo ocidental em que espaço vazio significa desperdício - a não ser que seja preenchido com ações, uma vez que é muito comum, na sociedade ocidental, preencherem-se esses espaços também com objetos ou até mesmo deixar que as ações dos objetos preencham os espaços dos indivíduos. E o autor continua: "O vazio é o centro, e o coração da mudança terapêutica" (p. 125).

Assim, trabalhar na sociedade pós-moderna parece algo indiscutível. A criança, desde pequena, é questionada sobre o que quer "ser" quando crescer, sendo que "ser" tem o sentido de executar uma tarefa que deve, necessariamente, contribuir para a sociedade - direta ou indiretamente. Questionar uma criança sobre qual profissão executará no futuro também lhe mostra a importância de preparar o seu devir, no aqui e agora, com estudo, experiências, em prol dessa parte do tempo chamado futuro. Porém, na maioria das vezes, não é possível ser astronauta, jogador de futebol, atriz de novela, como aquela criança previa e, para sobreviver em uma sociedade capitalista, o adulto tem a necessidade de trabalhar em cargos que não são aquele em que de fato esperava trabalhar. Com isso, frustra-se e, obrigado a trabalhar para sobreviver, passa a enxergar o trabalho como uma ocupação e o tempo do aqui-e-agora como algo a ser consumido ao seu máximo, visando a um vivenciar projetado para um futuro previamente estabelecido.

Quando o trabalho é satisfatório, pode-se pensar na combinação entre diversos fatores, tais como valores, experiências e objetivos que variam de acordo com cada um e com cada etapa da vida. Isso não significa que, necessariamente, a satisfação leve à estagnação, mas pode ser também um motivador para busca de novas experiências que gerem significados. Porém, para que isso realmente se torne eficaz é necessário participar de todo o processo, entrar em contato com a angústia, reformular as questões existenciais e dar vida a novos significados ou ressignificá-los. Entretanto, não são muitos os que concluem o processo sem passar pela obscuridade do tédio.

A maioria dos indivíduos que se percebem entediados não se permite vivenciar e desfrutar o tempo de maneira mais prazerosa e consomem o tempo do mundo como se fosse o mesmo. O trabalho torna-se o mesmo, bem como a falta de sentido é a mesma. O significado do trabalho é vazio, e o homem se automatiza sem encontrar sentido para suas ações. O trabalho é comumente associado a um meio de sobrevivência, no qual nem sempre é possível questionar as demandas. Dessa forma, aquele se conforma de que no futuro poderá mudar essa situação e acredita ou deseja acreditar que eliminará o tédio com o passar do tempo. Concebe como um dever continuar aceitando as coisas como estão, ainda que esteja insatisfeito.

 

6. O Homem e a Transcendência

Sentir-se angustiado e cansado são os primeiros sinais para entrar em contato com o tédio existencial, e não se reconhecer naquilo que se faz automaticamente é essencial, pois, uma vez que o homem se questiona e reflete sobre o sentimento de esvaziamento e de existência inautêntica no mundo e por meio da transcendência, encontra a possibilidade de refletir sobre sua existência no aqui-e-agora. Isto é, o que está sendo feito dele e como está se apoderando de sua existência pode provocar transformações, bem como descobertas dentre inúmeras possibilidades de ser e estar no mundo. E como Perdigão (1995, p. 115) cita: "somos livres, resta-nos descobrir o que devemos fazer com essa assombrosa liberdade".

Sabe-se que a tônica existencial é a crença de que o homem é angústia. Desse modo, faz-se necessário ficar atento à sua condição existencial para que encontre cada vez mais sentido nas atividades, a fim de ressignificá-las. E como aponta Kundtz (1999), é possível criar no cotidiano alguns momentos especiais de pequenas pausas que permitam a ressignificação. Mas nem sempre a reflexão é possível diante das necessidades do dia a dia. No mundo pós-moderno, há uma grande exigência de que as pessoas estejam em constante atividade, ainda que para exercê-la se abra mão de muitas outras coisas. Mas será que seria necessário parar dias ou semanas para refletir? Às vezes, parar por apenas alguns minutos pode permitir que a reflexão ocorra ou se apoderar do vazio existencial como Perls (1979, p. 231) preconiza: "Vazio fértil, fale através de mim. Em estado de graça quero ver. Benção e verdade sobre mim. Face a face com você".

Para entender o vazio, faz-se necessário verificar dois componentes: o antropológico e o social. O componente antropológico é a perda de sentido, ou seja, as coisas que preenchiam o cotidiano dos indivíduos vão se esfacelando, e a vida começa a desmoronar. O componente sociológico do problema do vazio da vida humana, por sua vez, é expresso pelo esvaziamento das relações interpessoais, o que provoca um desaparecimento de laços pessoais entre os homens. Esse esvaziamento provoca a exclusão do outro e exacerba mais o individualismo pregado pela sociedade contemporânea (Giovanetti, 2002).

Para Giovanetti (2002), pensar na superação do vazio é tentar ressignificar esses dois componentes que o caracterizam. No plano antropológico, torna-se necessário construir um projeto de vida; no plano sociológico, ressignificar as relações interpessoais e buscar a sedimentação da intimidade. Por isso, para o autor, "(...) os relacionamentos pessoais estão na base de um redimensionamento da sociedade individualista para uma sociedade solidária" (p. 100).

Ao se sentir ameaçado pelo vazio, o Dasein tenta se abster, retirando-se do contexto ameaçador, ou busca preenchê-lo por meio do trabalho; o vazio então cresce e atenua a vontade. No entanto, quando o indivíduo aceita que o vazio é fértil, pode descobrir coisas surpreendentemente novas dentro de si. Assim, o vazio emerge na psicoterapia para que o indivíduo possa refletir sobre seu feitio de existir, já que "o vazio nem é nada, nem é algo. É o vazio fértil" (Van Dusen, 1977, p. 129).

O indivíduo que vive constantemente o enfadonho tédio e que não consegue refletir sobre como vivencia o tempo, ocupando-se sobremaneira com diversas tarefas, evita o encontro consigo e com o vazio existente.

No geral, o tédio representa a realidade subjetiva que desordena o mundo e coloca o homem frente a um tipo de morte, a morte da significação. Significação esta necessária à vida humana e à qual corremos em direção, na contramão do tempo, por meio das novidades da modernidade como via de solução (Pinheiro, 2007, p. 162).

O tédio existencial significa a morte de possibilidades, pela qual surge a perda de significados na vida. Para transcendê-lo, o homem tem de ressignificar o sentido de sua vida e não estruturar sua vida somente na má-fé. Cabe enfatizar que é possível ser inautêntico e agir sem má-fé, pois a má-fé é a manifestação da coisificação. Sendo assim, como não há uma atitude humana sem intencionalidade, o grande problema é a usura e quando o homem age como se não soubesse da própria intenção. Quando o ser humano perde a ética, perde também o respeito por si e a discriminação de suas necessidades. Dessa maneira, torna-se imprescindível que compreenda que a ética é a própria condição humana que permite a dignidade de ser livre e de assumir suas escolhas.

A vida é uma série de puxões para a frente e para trás. Queremos fazer uma coisa, mas somos forçados a fazer outra. Algumas coisas nos machucam, apesar de sabermos que não deviam. Aceitamos certas coisas como inquestionáveis, mesmo sabendo que não devemos aceitar nada como absoluto (Albom, 1998, pp. 44-5).

Além disso, em concordância com a proposta heideggeriana, faz-se necessário recuperar o sentido esquecido do ser, reconhecendo-se o tédio como um paradoxo que contém tanto o problema quanto a solução para vida moderna, uma vez que o tédio é também um potencial para futuras ressignificações. O tédio e a angústia do vazio fértil permitem a revisão do projeto existencial, pois o ser humano recebe o convite para que possa refletir sobre a necessidade de reconhecimento, aceitação e pertencimento. O significado é próprio; portanto, é preciso notar que não é o tempo que deve ser refém do trabalho; ao contrário, o trabalho existe somente porque existe um tempo que deve ser vivido e vívido para que o ser não seja esquecido.

 

Referências

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Recebido em 23.05.2012
Aceito em 19.11.2012