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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.18 no.2 Goiânia dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Linguagem poética e clínica fenomenológica existencial: aproximações a partir de Gaston Bachelard*

 

Poetic language and existential phenomenological clinic: rapprochements with Gaston Bachelard

 

El lenguaje poético y la clínica fenomenológica existencial: aproximaciones a partir de Gaston Bachelard

 

 

Rafael Auler de Almeida PradoI; Marcus Tulio CaldasII; Karl Heinz EfkenIII; Carmem Lúcia Brito Tavares BarretoIV

IMestre e Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Email: rafaelpradoauler@gmail.com
IIDoutor em Psicologia pela Universidade de Deusto-Espanha; Professor da Graduação e Pós-Graduação do Curso de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Email: marcus_tulio@uol.com.br
IIIDoutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professor e Coordenador do Curso de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Email: khefken@hotmail.com
IVDoutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Professora e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Coordenadora do Laboratório em Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial- LACLIFE. Endereço Institucional: Universidade Católica de Pernambuco, Centro de Ciências Biológicas e Saúde. Rua do Príncipe, 526 - Bloco B (Boa Vista). CEP 50050-410 - Recife/PE. Email: carmemluciabarreto@hotmail.com

 

 


RESUMO

A clínica fenomenológica existencial posiciona-se criticamente a uma modalidade de linguagem concebida por critérios, categorias ou conceitos. Este artigo consiste numa reflexão teórica, com o objetivo de apresentar a imaginação poética como via de linguagem articulada com a dimensão compreensiva, própria desta abordagem psicológica. Compreendemos a linguagem como gesto significador, de acordo com Merleau-Ponty e em oposição às concepções intelectualistas ou empiristas. A "imaginação criadora" de Bachelard distingue-se da referência usual de imaginação como subproduto da memória. A imaginação poética, segundo a concepção de Bachelard é uma possibilidade de linguagem por meio da qual se vive plenamente o sentido de algo que vem ao nosso encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos de significados extremamente ricos e que dizem respeito ao mundo que está ao nosso redor.

Palavras-chave: Linguagem; Significação; Imaginação poética; Clínica fenomenológica existencial.


ABSTRACT

Existential phenomenological psychology criticizes a conception of language defined by criterions, categories or concepts. This article consists of theoretical reflection, with the aim of presenting poetic imagination as a conception of language articulated to comprehension. We understand language as a signifier gesture, according to Merleau-Ponty and in opposition to empiricist or intellectualist conceptions. Bachelard's "creative imagination" distinguishes itself from the imagination's usual reference - memory's byproduct. The poetic imagination, according to Bachelard's conception, consists of a type of language by which we can fully experience the sense of something. This experience allows us to take hold of multiple meanings that relate to the world that surrounds us.

Keywords: Language; Meaning; Poetic imagination; Phenomenological existential psychology.


RESUMEN

La clínica fenomenológica existencial toma de modo crítico a una modalidad de lenguaje concebido por criterios, categorías o conceptos. Este artículo se propone una investigación teórica, con el objetivo de presentar la imaginación poética como una posibilidad de lenguaje articulado con la dimensión comprensiva, típico de este enfoque psicológico. Comprendemos el lenguaje como gesto significante de acuerdo con Merleau-Ponty y en oposición a los conceptos empiristas o intelectualistas. La "imaginación creativa" de Bachelard se distingue de la referencia corriente que considera a la imaginación como un subproducto de la memoria. La imaginación poética de acuerdo con la concepción de Bachelard es una posibilidad del lenguaje por el cual es posible vivir en plenitud el sentido de nuestra existencia con las cosas del mundo. En resumen la experiencia de la imaginación poética nos permite apoderarse de significados muy profundos que se relacionan con el mundo que nos rodea.

Palabras-clave: Lenguaje; Significado; Imaginación poética; Clínica fenomenológica existencial.


 

 

O presente artigo procura realizar uma aproximação entre a imaginação poética, entendida como modalidade de "imaginação criadora", e expressão do sonhar, segundo o pensamento de Gaston Bachelard e a clínica fenomenológica existencial. Esta aproximação tentará mostrar que a reflexão filosófica sobre a imaginação poética feita por Bachelard pode abrir novas modalidades de compreensão para uma prática clínica fenomenológica e existencial. A poética se apresenta como possibilidade para o ser humano estabelecer uma relação viva consigo e com os outros, a partir de sua linguagem própria, e de seu peculiar modo de se expressar. Merleau-Ponty (1945/1999) toma a linguagem de modo igualmente fundamental, como gesto criador e significador de um mundo. Este tipo de relação, também almejado pela clínica fenomenológica existencial, só pode ser estabelecida quando a linguagem deixa de ser "usada" como meio de expressão ou "instrumento" e passa a manifestar e revelar nosso modo de ser situado no mundo com os outros. É nesse sentido de manifestação e revelação daquilo que mais propriamente nos diz respeito que a poética é compreendida por Bachelard, o que justifica nosso interesse pelo tema em questão.

A clínica fenomenológica existencial não se restringe a conceitos e categorias, construtos de uma linguagem categorial, mas se apresenta vinculada a modalidades de compreensão humana. A psicoterapia não é apenas uma construção teórica, mas encontra a sua efetivação na prática clínica. Como prática, pode ser fecundada por uma determinada concepção filosófica. O psicólogo é o profissional cuja fala e escuta se prestam a uma compreensão. Em sua formação acadêmica, procura desenvolver e aperfeiçoar sua capacidade de compreensão. É para atender essa necessidade de qualificar seu compreender que fundamenta sua prática em uma teoria. O suporte teórico vigente fundamenta-se no método científico, concebido a partir de premissas filosóficas. Em consonância com tal fato, teorias psicológicas se desenvolveram a partir da preocupação de fornecer ao psicólogo uma melhor capacidade de compreensão. É inquestionável que, com o desenvolvimento de teorias psicológicas, como a psicanálise, a psicologia comportamental e a psicossociologia, a prática do psicólogo tem se tornado mais qualificada.

Seria por isso uma exclusividade do método científico a possibilidade de fornecer referenciais que possam servir de guia para o psicólogo compreender o outro? Por que haveriam de ser menos válidas para uma prática clínica as referências sobre o humano fornecidas pela poética e pela filosofia? Seriam desprezíveis? Não se pretende defender a fundação de uma nova proposta psicoterápica, muito menos desvalorizar aquelas fundamentadas por métodos científicos, mas somente refletir sobre a possibilidade da poética ser uma modalidade de linguagem útil para a prática psicoterápica fenomenológica existencial.

Sá (2009) nos lembra que sempre haverá uma condição histórica fundada em uma comunidade humana que a partir de uma linguagem que pareceria natural, nos permite uma experiência do mundo cotidiano. Portanto, os procedimentos técnicos e científicos, ou mesmo qualquer teorização, por mais que alcance uma linguagem técnica altamente especializada, depende desta determinação histórica. Esta reflexão nos indica o cuidado que devemos ter ao tomar a verdade em seu caráter absoluto. A partir daí, acreditamos que a verdade sempre será uma construção, não por isso menos verdadeira que qualquer verdade técnico-científica.

Para cumprir seus propósitos, este artigo iniciará com uma reflexão sobre o pensamento de Descartes, sua influência para a fundamentação das ciências psicológicas e para uma determinada concepção de linguagem. Mostraremos como o método de conhecimento proposto por este filósofo foi, por um lado, de fundamental importância para o desenvolvimento das ciências; porém, por outro lado, caso utilizado como única forma de se atingir "a verdade", limita a compreensão do ser humano, que é fundamental para a proposição de uma prática psicológica adequada.

Em seguida, apresentaremos a linguagem compreendida como gesto que significa e cria um mundo no pensamento de Merleau-Ponty; com o intuito de explicitar essa importante noção. Escolhemos essa concepção por ela não entender a linguagem como um processo associativo ou representacional, mas como gesto significador. Esta compreensão de linguagem norteia nossa reflexão sobre a imaginação poética.

Num terceiro momento, falaremos sobre a especificidade da imaginação poética, aproximando considerações de Merleau-Ponty e de Bachelard. Procuraremos mostrar o que de específico tem a imaginação poética a partir da concepção de linguagem adotada. A imaginação poética não é, para Bachelard, um processo de representação ou expressão de uma idéia. A poética é uma modalidade de linguagem pela qual significamos e criamos nosso mundo a partir de nossa capacidade de sonhar.

Dando continuidade às reflexões anteriores, apresentamos e discutimos algumas imagens poéticas trabalhadas por Bachelard. Concluímos o artigo pensando sobre possíveis contribuições da imaginação poética para a psicologia fenomenológica existencial.

 

1. O pensamento de Descartes, Ciências psicológicas e Linguagem

Partimos da ideia de que há uma limitação quanto à adoção metodológica de inspiração cartesiana, no que diz respeito à fundamentação das ciências humanas, inclusive a psicologia. Embora o pensamento de Descartes seja de inestimável importância para a história da filosofia e tenha contribuído para o desenvolvimento das chamadas ciências naturais, a crítica aqui é dirigida ao uso dogmático e acrítico do método cartesiano no campo do conhecimento sobre o ser humano.

As concepções filosóficas que orientam as práticas psicológicas existentes são fundamentadas numa tradição de conhecimento predominante, em que há uma divisão epistemológica fundamental entre sujeito e objeto, que se desdobra nas dicotomias entre homem e mundo, e corpo e mente - ou psique - entre outras. Medard Boss ressalta que o termo psique deriva do grego antigo e tem o significado original de "(...) uma determinada maneira de existir, ou seja, aquele modo-de-ser que distingue os seres vivos" (Boss, 1972/1981, p. 53).

Psique foi assumindo, no entanto, no pensamento europeu, o significado de "(...) uma coisa substancial, a qual se encontra em algum lugar no espaço" (Boss, 1972/1981, p. 53), colocando-se dessa forma em oposição à corporeidade. No pensamento de Descartes, psique assume o significado de Res Cogitans, entendida como o espírito humano, o sub-iectum que "(...) quer dizer aquilo no que algo se baseia, que está como fundamento de todo o restante." (Boss, 1972/1981, p. 53). Por sub-iectum também se entende a base para que as realidades do mundo existam, sendo tomadas por objetos. A psicologia assimilou o conceito de Res Cogitans como "aparelho psíquico" na teoria freudiana.

No campo da psicoterapia, Boss considera indispensável ao terapeuta ter conhecimento da origem de sua fundamentação filosófica. Como a maioria das ciências atualmente se fundamentam na filosofia de Descartes, inclusive as ciências humanas, ele alerta para a importância do psicólogo refletir sobre seus pressupostos teóricos examinando criticamente a filosofia cartesiana: "[É] (...) indispensável ao atual psicoterapeuta que - caso ele queira saber o que faz - que ele reflita, pelo menos um pouco, sobre o que aprontou a seu tempo, este matemático-filósofo, com o nosso mundo e com o mundo dos posteriores psicoterapeutas" (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor chama a atenção para o fato de que, na filosofia cartesiana, verdade e realidade são entendidas como o aquilo que é mensurável, calculável e exato. Essas características, por serem controláveis, foram eleitas para estabelecer o que é verdade, permitindo que o homem exerça controle sobre a natureza.

Nossa sociedade contemporânea é capitalista e consumista. O capitalismo, por um lado, se estrutura no controle de condições e no processo de produção industrial, o que estimula, por exemplo, pesquisas científicas para fabricação de novos produtos ou criação de novas máquinas que aceleram e intensificam a produção. Por outro lado, no controle de condições também se oferece a possibilidade de se manipular e de se ter poder.

Nietzsche afirma (conforme citado por Boss, 1972/1981, p. 54) que o "(...) século XIX não trouxe a vitória da ciência, mas a vitória do método (método de pensar científico) sobre a ciência". Para Boss, a colocação de Nietzsche é válida ainda hoje. O método científico, que é um método de controle sobre o mundo, tornou-se o modo de pensar e de ser de uma sociedade. Com isso, as qualidades de mensurabilidade, calculabilidade e exatidão, exigidos para que a ciência estabeleça controle sobre o mundo, tornaram-se sinônimos de verdade e realidade no plano das ideias.

As práticas psicológicas, portanto, fundamentam-se numa filosofia que tem como objetivo o controle da natureza e apresenta caráter possessivo. Boss (1972/1981) ressalta o risco que as psicoterapias correm de "(...) servir para um aumento de poder do sujeito em relação a todos os objetos do mundo externo - inclusive de seus semelhantes" (Boss, 1972/1981, p. 55). Segundo o autor, as psicoterapias atuais "(...) correm este perigo de serem elas também como todas as ciências naturais que tentam obter o domínio sobre a natureza inanimada, filhas desta mentalidade extremamente possessiva, subjetivista da filosofia cartesiana" (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor aponta ainda para a necessidade de a proposta psicoterápica fenomenológica existencial estabelecer novos referenciais humanos não-conceituais ou categoriais, mas que possam servir para expressar melhor o domínio da compreensão.

Merleau-Ponty (1945/1999), ao formular sua concepção de corpo, tenta superar a dicotomia entre sujeito e objeto proposta por Descartes. Para o autor, não existe a separação entre um corpo físico e uma alma ou mente, e nem o corpo é compreendido como ideia ou objeto. O "corpo-próprio" para Merleau-Ponty é um "corpo sujeito", um modo paradoxal desse sujeito "estar" no mundo, posto que o mundo o permeia de modo que o corpo é visível e se vê, é sensível e se sente, é tocável e se toca. O ser humano é seu próprio corpo e nada além, ou fora dele.

O pensamento de Merleau-Ponty caracteriza-se por uma alternativa às limitações colocadas pelo pensamento cartesiano e busca ir além dele, fazendo uma releitura da condição do ser humano, de modo que mundo e homem não são mais compreendidos como separados, mas o homem, através de sua corporeidade, é um ser no mundo, sendo o mundo o que o cerca e lhe diz respeito. Esta concepção devolve o homem ao seu pertencimento ao mundo, e permite que os fenômenos humanos sejam reinterpretados. A linguagem, a partir da corporeidade proposta por Merleau-Ponty é, desse modo, compreendida de uma outra forma.

 

2. Linguagem como Gesto que Significa e Cria um Mundo

A dicotomia sujeito-objeto, proposta pelo modelo cartesiano, deu origem a duas correntes de pensamento: o intelectualismo, que privilegia o subjetivismo, e o mecanicismo, que privilegia o objetivismo. No âmbito da concepção da linguagem, ambas as correntes consideram uma separação entre pensamento e fala em que ou um é causa do outro, ou um representa o que outro expressa. Para Merleau-Ponty (1945/1999), a fala e o pensamento são dois momentos de um mesmo gesto, um gesto que só pode se dar através do corpo. É por isso que o autor afirma que "(...) para poder exprimi-lo em última análise o corpo precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que ele nos significa. É ele que mostra, ele que fala." (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 267).

A linguagem - fenômeno do corpo - é uma modalidade de gesto. Como todo gesto, a fala só acontece a partir das possibilidades expressivas do corpo como vociferar e soltar ar silibante, e, ao mesmo tempo constitui um mundo de significados que expressam suas intenções e sua disposição emocional. Este mundo de significados é constituído pela fala e se refere a uma rede significativa "intersubjetiva" já adquirida, a qual permite que a fala seja compreendida pelo outro. No entanto, a fala não se relaciona a esta rede "intersubjetiva" a partir de um processo causal, nem por um acesso intelectual a representações mentais pré-existentes. A fala do outro habita meu corpo, há uma reciprocidade entre minhas intenções e desejos e a fala do outro e vice e versa e, só por isso, há fala. A rede intersubjetiva é apenas o meio (linguístico) possibilitador da fala.

A fala não pressupõe o pensamento. Falar não é unir-se ao objeto através de uma representação nem por uma intenção de conhecimento. A denominação dos objetos é seu próprio reconhecimento, e não anterior a ele.

(...) a fala não é o signo do pensamento, se entendemos por isso um fenômeno que anuncia outro, como a fumaça anuncia o fogo. A fala e o pensamento só admitiriam essa relação exterior se um e outro fossem tematicamente dados; na realidade, eles estão envolvidos um no outro, o sentido está enraizado na fala, e a fala é a essência exterior do sentido (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 247).

Compreendemos para além do que pensamos espontaneamente. Isso mostra que o pensamento não se relaciona com a fala a partir de um processo associativo, como é defendido pelo intelectualismo. O sentido de uma obra literária, por exemplo, mais contribui para modificar o sentido comum das palavras do que é por ele constituído. Há um "pensamento que fala" (Merleau-Ponty, 1945/1999) tanto no escutar e ler, como no falar e escrever. Isso é desconsiderado pelo intelectualismo.

Pronunciar uma palavra é o único modo de representá-la para mim. Assim como outras modalidades da consciência corporal, a imagem verbal é uma das modalidades de gesticulação fonética. Fala e pensamento estão arraigados um ao outro e não são dados separadamente. A fala é a "essência exterior do sentido" que, por sua vez, está fundado na fala. A duplicação e a vociferação que revestem o pensamento trazem e contêm em si o seu sentido. A fala tem uma "potência de significação" que lhe é própria. A operação expressiva realiza a significação da fala, ela não a traduz. A fala é um gesto, e como (todo) gesto contém seu sentido, o que permite a comunicação. A comunicação acontece de mim para um outro "sujeito falante", que tem um determinado modo de ser e com "um mundo que ele visa". Não nos comunicamos com pensamentos nem com representações, assim como é proposto pelo intelectualismo.

A fala é um gesto cuja origem é o "silêncio primordial". Ela é o gesto que rompe este silêncio. A significação da fala é um mundo. A comunicação acontece não através da apreensão de um sentido dado, mas pela compreensão do gesto do outro. A compreensão só é possível porque existe uma reciprocidade entre minhas intenções e os gestos dos outros. Assim, minhas intenções podem habitar o corpo do outro, assim como as intenções do outro podem habitar meu corpo.

Tanto a compreensão do outro como a percepção das coisas se dão pelo corpo. O sentido do gesto está na sua expressão e não é dado separada ou anteriormente a ele numa representação. O sentido do gesto estrutura um mundo de significações. A gesticulação verbal se serve de significações já disponíveis, estabelecidas por expressões anteriores, que são comuns aos falantes. O sentido da fala é o modo como ela articula essas significações adquiridas.

A fala é uma das possibilidades da "potência irracional" humana que cria significações e as comunica. Sua singularidade entre as operações expressivas é a possibilidade de criar um "saber intersubjetivo" a partir de sua sedimentação. Por isso, só a metalinguagem - ou falar sobre a fala - é possível, e algo semelhante não é possível em outras modalidades expressivas, como pintar sobre a pintura e cantar sobre a música. A "atividade categorial" ou nossa possibilidade de estabelecer categorias é apenas um modo de nos relacionarmos com, ou de estarmos no mundo, ou mesmo um modo de configurarmos nossa experiência. O pensamento cartesiano e as ciências que nele se fundamentam elegem esta possibilidade como a mais verdadeira ou confiável e invalidam as outras.

 

3. A Especificidade da Linguagem poética - Aproximando Considerações de Merleau-ponty e de Bachelard

Em 1938, Gaston Bachelard, a convite do poeta Jean Lescure, escreve um artigo sobre poesia chamado "O instante poético e o instante metafísico". Este texto marca profundamente o rumo de suas reflexões filosóficas, antes mais preocupadas com a epistemologia. Segundo Pessanha (1994),

(...) o que Bachelard conquista a partir desta época para ele e para nós - são os fundamentos da legitimidade do devaneio, os motivos que tornam o sonho imprescindível à arte e à vida. Conquista o direito de sonhar. E, aqui também pedagogo, ensina as riquezas e benefícios do devaneio (pp. 10-11).

O devaneio é compreendido por Bachelard como uma função de um sonhar ativo, vivificador e não pelo seu sentido divagativo. A imaginação poética é uma modalidade de devaneio que diz respeito à expressão poética sobre o que se sonha e vive.

As concepções de imaginação e de devaneio poéticos estão fundamentadas numa concepção de linguagem. Para compreender como Bachelard nos apresenta estes fenômenos humanos, vamos adotar como referência a concepção de linguagem de Merleau-Ponty. Ela nos oferece uma compreensão sobre este fenômeno que difere das concepções tradicionais e que tem compatibilidade com as proposições bachelardianas. Merleau-Ponty defende que a linguagem é um gesto do corpo, que na sua expressão revela seu sentido. Não existe uma cisão entre um pensamento, em que as ideias estariam representadas, e a fala que apenas expressaria ideias previamente dadas, disponíveis para uma expressão. Ele acredita numa unidade "ambígua" entre pensamento e fala, na qual a fala é o próprio pensamento consumado, dando-se junto com este e não de forma exterior. Isso rompe com noções mecanicistas e idealistas da linguagem que a veem como efeito de uma causa exterior ou como expressão de uma representação mental prévia.

Bachelard (1957/2000) afirma que para estudar os problemas propostos pela imaginação poética, um filósofo que costuma fundamentar seus estudos no racionalismo ativo deve romper com suas linhas de pensamento e seus hábitos de pesquisa. Essa posição converge para a de Merleau-Ponty, no sentido de não se limitar às noções causais e dicotômicas que configuram as correntes idealistas ou empiristas para se estudar um fenômeno da ordem da linguagem como a imaginação poética.

A proposição de Bachelard é convergente à concepção de linguagem para Merleau-Ponty. Quando o primeiro afirma que é: "(...) necessário estar presente, presente à imagem: se há uma filosofia da poesia ela deve nascer e renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem" (Bachelard, 1957/2000, p. 1), o autor encontra um modo específico possível de falar que, de certa forma, contempla a posição de Merleau-Ponty sobre linguagem. Este afirma que: "O elo entre a palavra e seu sentido vivo não é um elo exterior de associação; o sentido habita a palavra, e a linguagem 'não é um acompanhamento exterior dos processos intelectuais'" (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).

A imaginação e o devaneio poético são modos privilegiados de conhecer uma dimensão humana ainda pouco explorada pela psicologia: o potencial do imaginário compreendido como "imaginação criadora", nossa capacidade de sonhar com olhos abertos (que difere do sonhar noturno). Segundo o autor, a psicologia vem tradicionalmente tratando a imaginação como subproduto da memória, não lhe dando grande importância.

Bachelard elege a imaginação poética como forma de estudar a imaginação. Esta modalidade se encontra no domínio da linguagem escrita, o que facilita a reflexão e permite ao leitor, através da leitura de imagens poéticas, servir-se de referenciais humanos sempre novos, contribuindo para ampliar seu mundo e suas significações. Estas, segundo Merleau-Ponty, são o meio pelo qual a linguagem humana se dá.

Ela [a linguagem] apresenta, ou antes ela é tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações. O termo 'mundo' não é aqui uma maneira de falar: ele significa que a vida 'mental' ou cultural toma de empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que o sujeito pensante deve ser fundado no sujeito encarnado (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).

Para Merleau-Ponty, a linguagem categorial é apenas uma das possibilidades da linguagem, mas segundo uma perspectiva idealista é a única forma de se conseguir conhecimento verdadeiro ou absoluto. "Mas, se nos reportamos às descrições concretas, percebemos que a atividade categorial, antes de ser um pensamento ou um conhecimento, é uma certa maneira de relacionar-se ao mundo e, correlativamente, um estilo ou uma configuração da experiência" (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 259). Para o autor, se a fala é autêntica, "faz nascer algo novo" (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 263). O estudo sobre a imaginação poética, realizado por Bachelard, visa justamente ao nascer desta novidade, deste mundo de significações e sentidos singulares e únicos que as imagens nos trazem.

A linguagem poética, segundo Bachelard (1957/2000), é a linguagem pela qual o ser humano expressa mais direta e nitidamente o modo como é tocado pelo mundo. O mundo, constructo permanente e mutável da pluralidade do ser humano, são as redes de significações que se estabelecem nas relações dos homens com as coisas. A poética é uma possibilidade do homem se reconhecer na sua singularidade e de dar sentido à sua vida.

Na perspectiva colocada por Bachelard, o imaginário, estudado pelo autor, na forma de imaginação poética, tem um lugar central na existência humana no que diz respeito à relação do ser humano consigo mesmo, com os outros e na significação de seu mundo. Essa posição é consonante com a posição de Merleau-Ponty (1945/1999) sobre linguagem:

A partir do momento que o homem faz uso da linguagem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 266) (Grifos do autor).

A própria elaboração que a pessoa faz sobre si mesma é poética, no sentido de que é única e que fala dela, e porque busca o sentido do que se vive e não causas e explicações. Na prática psicoterápica podemos propor que o terapeuta promove, através de uma escuta cuidadosa e interessada, o aprofundamento da elaboração poética que a própria pessoa faz a respeito de suas experiências vividas. O psicólogo, também, assume uma atitude poética em relação ao que o paciente lhe conta, quando ele se coloca em sua posição e encontra palavras que esclarecem o sentido que se apresenta na fala do paciente. Isso difere de uma postura em que o terapeuta atribui explicações e causas para as vivências relatadas pelo paciente, o que é próprio das abordagens teóricas psicológicas fundamentadas no pensamento cartesiano.

 

4. Algumas Imagens poéticas Trabalhadas por Gaston Bachelard

A título de ilustração, apresentaremos neste item a análise de três imagens poéticas trabalhadas por Bachelard, para que possamos ter uma ideia do tipo de contribuição que estas podem oferecer para a psicologia clínica fenomenológica existencial e foram escolhidas com o propósito de mostrar um pouco da variabilidade dos temas e dimensões humanas que podem ser expressas através dessa modalidade de linguagem. A elaboração poética é linguística e, portanto, tem a função de dar sentido ao mundo. A primeira imagem apresentada aqui é do domínio dos sentimentos; a segunda diz respeito a um devaneio em que o elemento terra é mais fortemente presente; e a terceira é uma imagem da "imensidão íntima".

Jules Supervielle (conforme citado por Bachelard, 1957/2000, p. 206), na seguinte imagem poética, nos traz uma nuance do sentimento de tristeza que encontrou seu lugar, e de alguém que se permite triste pela própria necessidade que a tristeza apresenta e não tenta evitá-la, não a sente de forma insuportável: "Conheço uma tristeza que tem cheiro de abacaxi. Sou menos triste, sou mais docemente triste".

A leitura de uma imagem poética, quando repercute no íntimo de uma pessoa, 'empresta' ao sentimento dela um meio de se expressar. Ele é, assim, reconhecido, não é mais estranho, mas familiar e pode ser incorporado. Sobre a imagem poética, acima citada, o autor afirma: "Qualquer que seja a afetividade que matize um espaço, mesmo que seja triste ou pesada, assim que é expressa, a tristeza se modera, o peso se alivia" (Bachelard, 1957/2000, p. 206). As imagens poéticas não encerram o significado de uma vivência humana, mas detalham-no ao máximo, permitindo que na especificidade de sua significação, falem algo genuíno e vivo, capaz de sensibilizar o leitor, que se reconhece na imagem.

Bachelard dedica-se, num primeiro momento de suas obras a tratar das imagens materiais. Ele escreve cinco obras, sendo cada uma inspirada em um elemento da natureza ou matiz material (fogo, ar, água e duas obras destinadas aos devaneios da terra). O autor diferencia a imaginação formal da imaginação material, situando no universo da segunda suas obras sobre a poética e o devaneio. A primeira modalidade de imaginação, formadora de conceitos, é própria da ocularidade, própria de um filósofo "que vê o trabalhador trabalhar" (Bachelard conforme citado por Pessanha, 1994, p. 14). A imaginação material já é fruto da mão que trabalha a matéria, de uma experiência corporal de criação. Como exemplo do tipo de imaginação que Bachelard chama de imaginação "da mão feliz", apresentamos a seguinte imagem: "'A matéria estava vencida, a natureza não era tão forte como ele'" (Phillipe conforme citado por Bachelard, 1948/2001, p. 49). Por meio do seu trabalho o trabalhador vence a matéria, unindo o seu devaneio à sua vontade de poder.

Esta imagem se refere a um operário que termina um tamanco, mas fala de "(...) um sentimento de vitória consumada proporcionada pela matéria domada no trabalho" (Bachelard, 1948/2001, p. 49). Ela também mostra que o devaneio está subjacente a qualquer atividade humana. Neste trabalho de fabricação manual do tamanco, o orgulho de realização acontece através do devaneio da luta; a vitória da realização acontece através da vitória contra a adversidade da matéria. Esta é a forma de trabalho que inspira a imagem poética. Não se trata nem de um trabalho sob sua contextualização capitalista, nem de um trabalho num cenário de luta de classes. É um trabalho corporal na sua corporeidade mais radical; um trabalho braçal que pouco inspiraria, à primeira vista, nossas forças devaneadoras. Mas o trabalho, nesta imagem, é apresentado como luta que nos fortalece como seres humanos felizes.

A terceira imagem, de Bachelard, nos convida para o interior da nossa floresta interna. Encaramo-nos com os mistérios de nossa origem. A floresta como um "antes-de-nós" parece-nos testemunhar silenciosamente nossa ancestralidade.

A floresta é um antes-de-nós (...). Quando se abranda a dialética do eu e do não-eu, sinto as pradarias e os campos comigo, no comigo, no conosco. Mas a floresta reina no antecedente. Em determinado bosque que conheço meu avô se perdeu. Contaram-me isso, não o esqueci. Foi num outrora em que eu não vivia. Minhas lembranças mais antigas têm cem anos ou pouco mais. Essa é a minha floresta ancestral. Tudo o mais é literatura (Bachelard, 1957/2000, p. 194).

Esta imagem expressa "nosso estarmos" limitados em relação à compreensão de nós mesmos e de nossa origem. Por meio dela, nos sentimos assistidos por um mundo que nos conhece mais que a nós mesmos. A floresta ancestral, ambiguamente, também mobiliza em nós um sentimento de familiaridade com o mundo.

A imagem poética, conforme queremos sugerir, é uma forma de linguagem como significação de mundo, e como forma de estabelecer uma relação viva conosco mesmos e com o outro. Ela é direta na sua singularidade. Ela é assim, o que há de mais sincero, de mais espontâneo. Ela é pura imediaticidade. A confiança passa aqui do que está mais atrás (como na adoção de causalidade como referência explicativa de um fenômeno), para o que vem mais à frente, o que se mostra, mais nítido, mais visível. Segundo Bachelard: "(...) a imagem em sua simplicidade, não precisa de um saber. É dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem jovem. O poeta na novidade de suas imagens é sempre origem de linguagem" (Bachelard conforme citado por Pessanha, 1994, p. 28).

 

5. Aproximações entre Clínica fenomenológica e Imaginação poética

Que contribuições a noção de imaginação poética - apresentada através desta reflexão - pode trazer para a psicologia? A busca pela imaginação poética, da qual o devaneio é expressão, como fonte de referenciais humanos para a psicologia é uma busca por um modo alternativo aos estabelecidos segundo concepções cartesianas. O devaneio poético é uma possibilidade humana em que se vive plenamente o sentido de algo que vem ao nosso encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos de significados extremamente ricos e que dizem respeito ao mundo que está ao nosso redor. Por imaginação, neste estudo, entende-se "imaginação criadora" no sentido do termo atribuído por Bachelard, e não pelo que se costuma chamar de imaginação, segundo a referência usual que a considera um subproduto da memória.

A imaginação e o devaneio poéticos permitem uma ampliação de novas considerações sobre a imaginação e o sonhar de forma geral. Grafado na forma de imagem poética, o devaneio é preservado e pode assim ser compartilhado por outras pessoas. A imagem poética tem sentido ontológico e é apreendida pelo leitor acompanhada pelo sentimento de pertencimento. "Essa imagem que a leitura do poema nos oferece torna-se realmente nossa. Enraízase em nós mesmos. Nós a recebemos, mas sentimos a impressão de que teríamos podido criá-la, de que deveríamos tê-la criado" (Bachelard, 1957/2000, p. 7).

A leitura de um poema se dá pelas dinâmicas de repercussão, entendidas pelo modo como somos sensibilizados pela imagem poética e de ressonância, elaboração intelectual posterior que dá sentido ao poema. A ressonância é uma vivência superficial que contextualiza o poema. Na repercussão, o indivíduo se apropria do poema, sentindo que seus significados lhe dizem respeito. A repercussão serve para o leitor como desvelamento de sentido de sua própria existência, enquanto as ressonâncias, como próprias da intelectualidade "(...) dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo" (Bachelard, 1957/2000, p. 7) e produzem documentos psicológicos.

Se considerarmos a fala escrita - na forma de imagem poética - como gesto do outro, poderemos aproximar o fenômeno da repercussão e da ressonância na compreensão de uma imagem poética da noção de Merleau-Ponty, o qual considera que a compreensão do gesto do outro acontece a partir da reciprocidade entre as intenções dos outros e as minhas. Segundo Merleau-Ponty:

Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou se minhas intenções habitassem o seu. O gesto que testemunho desenha em pontilhado um objeto intencional. Esse objeto torna-se atual e é plenamente compreendido quando os poderes de meu corpo se ajustam a ele e o recobrem (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 251).

Bachelard ressalta que a psicologia limita-se a estudar a ressonância poética, buscando contextualizar o poema socioculturalmente e a partir da história de vida do poeta. O autor defende que falta à psicologia um estudo sobre a repercussão poética e volta parte de sua obra às imagens poéticas que repercutem no leitor. Um estudo fenomenológico sobre a imaginação e sobre o devaneio poético é importante, pois o devaneio, através da vivência de repercussão de uma imagem, pode devolver o indivíduo para si mesmo e fazer com que este se aproprie de seu próprio mundo, libertando-o do que não lhe diz respeito.

De um modo mais geral, compreende-se também todo o interesse que há, acreditamos nós, em determinar uma fenomenologia do imaginário onde a imaginação é colocada no seu lugar, como princípio de excitação direta do devir psíquico. A imaginação tenta um futuro. A princípio ela é um fator de imprudência que nos afasta das pesadas estabilidades. Veremos que certos devaneios poéticos são hipóteses de vida que alargam nossa vida dando confiança no universo (...). Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que é o nosso mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos possibilidades de engrandecimento de nosso ser nesse universo que é o nosso. (Bachelard, 1960/1996, p. 8).

Um estudo sobre a imaginação e o devaneio poéticos poderá contribuir para o modo de estar na relação com o cliente, acompanhando-o na apropriação de si mesmo, através da apropriação da sua capacidade de sonhar. O interesse em refletir sobre a imaginação poética como referência para o sonhar e a imaginação criadora se deu também pelo fato de a poética ser uma linguagem possível na psicoterapia fenomenológica existencial, segundo Pompéia e Sapienza (2004). A reflexão sobre a imaginação poética apresentada por Gaston Bachelard possibilita a compreensão teórica sobre a imaginação e o sonhar, e pode contribuir para ampliar a comunicação do psicólogo que, ao se familiarizar com a linguagem poética, familiariza-se com uma linguagem compreensiva, própria da psicoterapia.

Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão do nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente daquelas coisas que já nos foram caras, que já foram coisas do coração, mas que perderam esse vínculo em função de dificuldades de comunicação, tornando-se desgastadas. Foram esquecidas, mas num esforço de procura através da linguagem poética, podemos reencontrá-las. Quando isto acontece, encontramos uma verdade (Pompéia & Sapienza, 2004, p. 161) (Grifo do autor).

Segundo apontamento de Pompéia e Sapienza (2004), a linguagem poética conduz o paciente a se encontrar consigo mesmo, a conseguir significar, validando e dando sentido à sua vida. Boss ressalta que os pacientes libertos para si mesmos têm suas possibilidades de ser e sua liberdade recuperadas através do conhecimento de si mesmo, possibilitado e alimentado pela psicoterapia. As verdades encontradas durante a procura psicoterapêutica, que se dá através da linguagem poética, são compreensões libertadoras. O paciente esclarece e conta com novas possibilidades de ser e pode, a partir delas, fazer suas escolhas de modo mais apropriado. A libertação do paciente para suas próprias possibilidades de ser é a que a psicoterapia fenomenológica existencial se propõe, segundo Boss:

Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar nossos pacientes para si mesmos (...). Por isso, com a libertação psicoterápica, queremos levar nossos pacientes 'apenas' a aceitar suas possibilidades de vida como próprias e a dispor delas livremente e com responsabilidade. Isto quer dizer também, que nós queremos que eles criem coragem de levar a termo suas possibilidades de relacionamento co-humanos e sociais de acordo com sua consciência intrínseca e não como uma pseudo-consciência imposta por qualquer um (Boss, 1972/1981, p. 61).

A imaginação poética pode contribuir para a prática psicológica por oferecer imagens de rico significado humano para o psicólogo, e por deixá-lo mais sensível para compreender e legitimar os devaneios de seus pacientes. Estes, embora não escrevam sobre seus devaneios tornando-os poemas escritos, devaneiam, por exemplo, ao lembrar de sua infância e revivê-la, ou mesmo ao se entregarem a um momento contemplativo ou terem um insight.

No plano de contribuições para pensar uma clínica numa perspectiva fenomenológica existencial, as imagens poéticas podem ampliar as possibilidades compreensivas do discurso do cliente. A poética é a linguagem que mais possibilita e amplia a capacidade de compreensão, e por isso, é uma modalidade de linguagem possível na clínica fenomenológica existencial. Boss (1972/1981) defende que as contribuições verdadeiramente importantes da abordagem existencial para a prática clínica fundamentam-se na compreensão mais aprofundada da existência humana e não em técnicas psicoterápicas. As imagens poéticas, por serem do âmbito da compreensão, diferentemente dos conceitos que são do âmbito da explicação, podem ser referências importantes para um terapeuta existencial.

O gesto humano de se comunicar, de buscar significados de criar e alimentar seu mundo está plenamente contemplado pela leitura de uma imagem poética. Este modo de se relacionar com a linguagem - a imaginação poética - nos volta para o sentido fundamental da linguagem, que é criar e significar o mundo, estabelecendo uma relação viva consigo e com os outros. É prestando a esta finalidade que a linguagem deixa de ser objeto revelar-se como um modo de estar no mundo com os outros.

Um estudo sobre a imagem poética nos provoca, no entanto, uma sensação de insegurança que atribuímos ao seu caráter de não encerrar questões em conceitos, não permitindo, por exemplo, o estabelecimento de saberes fundamentais. Mas são os saberes infinitos sobre o ser humano e sua condição que são ditos pela imagem poética. É preciso aceitar a inesgotável possibilidade de saberes como condição humana de inconclusividade. O tipo de estudo que a imagem poética exige, apresenta contribuições para pensar uma clínica fenomenológica existencial que não se apoia em conceitos estabelecidos ou em categorias.

 

Referências

Bachelard, G. (1996). A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1960).         [ Links ]

Bachelard, G. (2000). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1957).         [ Links ]

Bachelard, G. (2001). A Terra e os Devaneios da Vontade. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1948).         [ Links ]

Boss, M. (1981). Angústia, culpa e libertação (ensaios de psicanálise existencial). São Paulo: Livraria Duas Cidades (Original publicado em 1972).         [ Links ]

Merleau-Ponty, M (1999). Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1945).         [ Links ]

Pessanha, J. A. M. (1994). Introdução à coletânea póstuma de artigos de Gaston Bachelard. Em G. Bachelard, O Direito de Sonhar (pp. 5-31). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Pompéia, J. A., & Sapienza, B. T. (2004). Na Presença do Sentido. São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Sá, R. N. (2009). Psicoterapia, cientificidade e interdisciplinaridade: a propósito de uma discussão sobre a suposta necessidade de uma regulamentação das práticas psicológicas clínicas, Portal do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [online]. Disponível na World Wide Web: http://www.crpsp.org.br/psicoterapia/textos_6.aspx        [ Links ]

 

 

Recebido em 16.10.12
Primeira Decisão Editorial em 07.12.12
Aceito em 26.12.12

 

 

* Agradecemos ao Fundo de Amparo à Ciência e à Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) pela concessão de bolsa de Doutorado que nos permitiu a realização do presente artigo.