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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.19 no.2 Goiânia Dec. 2013

 

ARTIGOS ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Uma análise reflexiva sobre desejar

 

Un Análisis Reflexivo del Deseo

 

 

Lester Embree

Professor do Departamento de Filosofia do Florida Atlantic University, em Boca Ratón, Florida (Estados Unidos). PhD em Filosofia pelo New School for Social Research, sob orientação de Aron Gurwitsch, é um dos fundadores e atualmente um dos diretores do Center of Advanced Research in Phenomenology (http://www.phenomenologycenter.org). Autor de diversos textos em Fenomenologia. E-mail:embree@fau.edu

 

 


RESUMO

Após algumas notas acerca da metodologia, irei descrever um tipo de encontro predominantemente afetivo chamado "desejar" (desiring), e irei compará-lo com "pretender algo" (wishing) e esperança (hoping), e também relacioná-lo com crença e volição.

Palavras-chave: Desejar; Análise reflexiva; Fenomenologia.


ABSTRACT

After some remarks about methodology, a predominantly affective type of encountering best called "desiring", will be compared with wishing and hoping and also related to believing and willing.

Keywords: Desiring; Reflective analysis; Phenomenology.


RESUMEN

Después de unas pocas notas sobre la metodología, voy a describir un tipo de encuentro predominantemente afectiva llamado "desear", y voy a compararlo con "querer algo" (desear) y la esperanza, y también se relacionan con la creencia y la voluntad.

Palabras-clave: Desear; Análisis reflexivo; Fenomenología.


 

 

 

1. Apesar de não serem exercícios de lexicografia, quando possível, a melhor prática para começar análises reflexivas é procurando as significações na linguagem comum que correspondam adequadamente à eidos em questão. As duas primeiras definições de "desejo" no Oxford English Dictionary ditam o seguinte:

1. O facto ou condição de desejar; o sentimento ou emoção que está dirigido à obtenção ou possessão de algum objeto do qual se espera receber prazer ou satisfação; vontade de algo, apetite; uma instância particular deste sentimento, um desejo.

2. Apetite físico ou sensual; luxúria2.

2. Com esta informação já se tem uma ideia de que, apesar do desejo ser por vezes especificamente sensual, o primeiro conceito em linguagem comum é genérico, e é nesse que nos vamos concentrar aqui. Para além do mais, o uso de "desejar" orienta-se apropriadamente para um tipo de processo mental que é predominantemente afetivo, mas não é assim tão claro se "pretender algo" (wishing), ou ter a esperança de obter algo (hoping) também são desejar. Seja como for, este é um bom começo.

3. Os exemplos podem ajudar a desenvolver análises reflexivas, e aqui o exemplo principal será um automóvel Porsche 911, ilustrado acima, que eu desejo desfrutar. Ao refletir, constata-se rapidamente que eu não apenas desejo o carro, mas também o seu desfrute, e o carro-a-ser-desfrutado, o que levanta algumas boas questões acerca da temporalidade aqui envolvida.

4. No que diz respeito ao método, o primeiro passo para fenomenólogos é adotar uma atitude teórica reflexiva. Hoje em dia, a maioria das pessoas com formação intelectual adota facilmente uma atitude contemplativa ou teórica, e essa mesma atitude também pode ser reflexiva. Se não se está a refletir, está-se numa atitude direta ou simples e, nesse caso, o modo como as coisas aparecem perspectivamente, têm valores e usos, modos de doação, etc., são aspectos que passam despercebidos. Estes aspectos são revelados no objeto-enquanto-intentado em conjunto com várias componentes correlativas nos processos mentais que lhes são intentados, já para não falar das determinações do ego ou do Eu - todas estas coisas podem ser reveladas quando se reflete. No nosso caso presente, o tema teórico reflexivo é denominado: (a) "desejar", (b) "a coisa-enquanto-desejada", e (c) ego ou "eu" (Infelizmente, há colegas que, profissionalmente, aprendem a permanecer, digamos assim, na atitude simples, ou irreflexiva, mas até eles são capazes de responder à pergunta do dia-a-dia: "Como te sentes?" ao, digamos, olhar para dentro e depois relatar o que vêm, por exemplo, tédio. A fenomenologia pode ser considerada um desenvolvimento de começos como este).

5. Há um outro passo metodológico que é muitas vezes negligenciado e que merece a nossa atenção. Este processo chama-se a "epoché, redução e purificação egológica". Vou tentar explicar isto com uma estória. Há anos atrás tive uma conversa com um novo aluno de pós-graduação vindo da África, que iria começar o programa de estudos no Departamento de Antropologia da Universidade de Pittsburgh, onde minha então esposa também era aluna de pós-graduação. O novo aluno africano, que aprendera a falar um inglês excelente numa escola missionária, estava perturbado porque lhe tinham dito para escolher as disciplinas que gostaria de estudar. Estranhando a sua reação, consegui que ele me explicasse que se ainda estivesse em casa, uma decisão destas envolveria uma conversa com o avô, com o pai, e com vários tios, e todos eles com várias mulheres presentes de forma mais ou menos assumida. Em último caso poderia dizer, em palavras minhas, que o aluno esperava algo como uma decisão de comitê familiar. Mas este aluno, acabado de chegar de algum lugar em África sentia-se abandonado, senão órfão, quando lhe disseram para escolher as disciplinas sozinho. Em contraste, quando eu fui um aluno de pós-graduação estava acostumado talvez a pedir conselhos, mas no final escolher sozinho as minhas próprias disciplinas de curso.

6. Contei esta estória porque foi nessa altura que compreendi como se pode fazer parte de uma intersubjetividade ou grupo de modo consciente. Claro que desde então tive várias experiências conscientes de mim mesmo como membro ativo de intersubjetividades alargadas e mais reduzidas (e de modo inconsciente, muitas vezes antes e também depois). Relativamente recentemente, aprendi a relacioná-lo com a metodologia fenomenológica (Cairns, 2013). Na verdade, é invulgar não me encontrar a mim mesmo como membro de um grupo, e tenho-me tornado mais hábil a distinguir quais são os meus próprios processos mentais daqueles dos outros. Afinal, percepcionamos os processos mentais dos outros até certo ponto, ainda que apresentativamente e não presentativamente, como apenas os meus processos mentais me podem aparecer.

7. De acordo com a forma como hoje em dia eu compreendo Husserl, a nossa atitude comum, ou automática, é a chamada atitude natural, e essa atitude inclui não só uma crença de si mesmo no mundo, mas também de outros no mundo, e isto de forma a que os outros em conjunto conosco formam um "nós" que partilha o que poderemos chamar de objetos públicos, tal como o chão debaixo dos nossos pés. Deste modo, há uma prioridade da intersubjectividade, mas é possível operar uma epoché onde os outros que haviam sido co-sujeitos, o chão, e até o mundo para nós se tornam então objetos para mim como uma simples subjetividade.

Assim, a atitude na qual todas as coisas são, por assim dizer, intentadas por "nós" é reduzida à atitude onde todas as coisas, apesar de ainda serem intentadas por outros, e os próprios outros, são considerados como sendo apenas intentados por "mim" (Embree, 2009).3

8. Por ainda outras palavras, o resultado é uma vida mental individual atual ou possível, e as coisas-enquanto-intentadas-nela, e isto enquanto tal é purificado de ser dado como objeto para outros. Para a minha sociedade, classe, grupo étnico, gênero, e nível educacional, esta epoché egológica é tão automática como a adoção da atitude teórica e reflexiva. Parece fazer parte do que às vezes se chama "individualismo burguês" e eu creio que é a base do que é muitas vezes chamado o "Cartesianismo" de Husserl, que predomina nas suas Ideen (1913) e nas Cartesianische Meditationen (1931). Para mim, é frequente parecer-me mais difícil estar consciente de como sou uma subjetividade dentro de uma intersubjetividade, mas claro que em último caso, a objetividade o requer. Começamos em intersubjetividade, tematizamos a subjetividade, e no final procuramos alcançar a intersubjetividade de novo.

9. Deixem-me agora contar, incidentalmente, o que ouvi por duas vezes em palestras de fenomenologia dadas pelo meu professor Dorion Cairns, na New School for Social Research, nos anos 1960. Ambas as vezes, os alunos perguntaram o que siginificava "puro" para Husserl, e Cairns contou uma conversa que tivera com Eugen Fink, em Freiburg, no começo dos anos 30, e na qual Fink explicou que o título metodológico geral completo era "epoché, redução, e purificação": epoché nomeando a operação de suspensão ou abstenção, "redução" nomeando o seu efeito na atitude do ego ou do eu, e "purificação" denominando o seu efeito nas coisas enquanto intentadas.

10. Claro que existe um número de espécies deste método geral; as mais discutidas são as epoché, reduções e purificações eidéticas, transcendentais e psicológicas. O nome abreviado pode então ser "epoché", e os procedimentos específicos são denominados segundo os seus efeitos:

a epoché eidética conduzindo a um eidos puro ou eide, a epoché transcendental conduzindo a uma consciência ou vida mental transcendentalmente pura, e a epoché psicológica - que também se pode tornar habitual - conduzindo a uma vida psíquica pura, e sendo fatos ou atualidades, o estatuto de ser-no-mundo, e as relações reais de processos psíquicos a fatores somáticos ou ambientais aquilo de que as coisas em questão estão respectivamente purificadas. E em ambas as vezes, a estória terminava com Cairns a relatar como ele e Fink riram do modo como Husserl conduzia ao equívoco quando dizia e escrevia "redução" em vez de "epoché" como o nome abreviado4.

11. Assumindo a atitude teórica reflexiva, e também egologicamente (e psicologicamente!) reduzida, o que é que podemos observar, analisar e descrever reflexivamente para clarificar o conceito de desejar? A fenomenologia, ou a análise reflexiva é, obviamente, uma investigação de fenómenos, e os fenómenos não são as aparências das coisas-enquanto-intentadas, mas antes as próprias coisas que aparecem e que Husserl chama Erlebnisse. Este termo tem sido traduzido como "experiência" e, curiosamente, como "experiência vivida", mas eu às vezes gosto de seguir o meu professor Cairns e dizer "processo mental" e até "processo intentivo", mas costumo preferir dizer "encontro".

O termo "encontro" tem, creio eu, pelo menos três vantagens. Primeiro, convida logo a perguntar sobre o que é encontrado; segundo, é prontamente especificado como "experiencial", "posicional", "dóxico", "afetivo" ou "pático", "conativo" ou "práxico", etc; e terceiro, os objetos encontrados são rapidamente reconhecidos como sendo originalmente objetos culturais com características de crença, valores e usos.

12. Como já foi intimado, ao refletir sobre desejar observou-se que envolve "eu", "desejar", e a "coisa-enquanto-desejada". Por exemplo, "eu desejo desfrutar um Porsche 911". A próxima questão é se desejar é majoritariamente experiencial ou posicional. Eu digo majoritariamente porque todos os encontros incluem, falando concretamente, componentes experienciais e posicionais. "Experienciar", no sentido mais lato, pode ser de coisas atemporais ou ideais ou, mais frequentemente, de coisas temporais no agora, no passado, ou no futuro. No entanto, o que predomina no desejar não é experiencial mas majoritariamente algo posicional e, mais especificamente, algo afetivo-valorativo. Assim, posso encontrar reflexivamente na minha vida mental um componente de um processo predominantemente intentivo que é um gostar que é intentivo ao Porsche 911. Este gostar e o valor que o carro tem para mim neste gostar é positivo e contrasta com não gostar ou ser indiferente ou neutro. Mas ao contrário da maior parte dos tipos de gostar que têm uma forma negativa - por exemplo, detestar -, desejar não tem uma modalidade negativa. Se desejamos a morte de um inimigo, por exemplo, essa morte é uma coisa boa, tem um valor positivo. Mas pode haver neutralidade ou ausência de desejo. Pode também ser uma preferência, isto é, eu desejo um Porsche mais do que desejo uma Ferrari, mas desejar não é necessariamente preferencial.

13. A espécie de valoração que é desejar pode ser direta ou indireta. Posso desejar indiretamente calcular a raiz quadrada de 3. A raiz quadrada de 3 é um objeto matemático ideal, mas o seu cálculo é uma operação mental e essa operação é o que é diretamente desejado neste caso. De modo semelhante, posso desejar lembrar-me de uma conversa que ocorreu ontem, o lembrar ocorrendo no futuro e a conversa no passado, e também pode haver, de modo análogo, uma esperança indireta. A conversa e o lembrar são ambas coisas temporais, a primeira no passado e a última no futuro que também é diretamente desejada ou é um objecto de esperança. No entanto, posso, de modo direto, desejar ou ter esperança de desfrutar um Porsche 911.

14. Também é preciso reconhecer que não só desejar, mas também ter esperança de algo (hoping) e "pretender algo" (wishing) podem ter formas reflexivas assim como diretas. Deste modo, posso desejar um 911 diretamente e posso desejar reflexivamente não só aquele objeto mas também o meu ego, ou "eu" e o encontro com o objeto, por exemplo, um caso de "Eu - desejando - um 911". "Pretender algo" (wishing), pode ser de chuva amanhã ou "Eu - pretendendo (wishing) - chuva amanhã", e de forma análoga no que diz respeito a ter esperança de algo, e antecipação. Isto é como lembrar-me diretamente do almoço de ontem, e lembrar-me reflexivamente "Eu - comendo - almoço ontem". Nas formas reflexivas podemos aceder aos modos de doação, aparências, posicionalidade, assim como às componentes correlativas nos encontros.

15. Desejar não é como "pretender algo" (wishing), por exemplo, no sentido em que não pode ser diretamente de algo no passado, enquanto eu posso ter "pretender" (wish) que não tivesse chovido ontem na parada. É interessante notar que "pretender algo" (wishing) não parece motivar volição do mesmo modo que desejar. Desejar é como ter esperança no sentido em que o seu objeto é temporal mas não no passado e também não no agora. Em termos rigorosos, as questões acerca da temporalidade dos objectos relaciona-se não com a posicionalidade de um encontro mas com a componente experiencial nele. Alguns tipos de gostar podem acompanhar a intentividade a um objeto ideal ("uma teoria elegante"), e também podem acompanhar a recordação, a percepção e antecipação. Para além de incluir a componente predominante afetiva de valoração positiva ou gostar, ter esperança de algo pode ser de sol na praia este fim de semana ou um outro evento futuro relativamente definido.

16. Mas aquilo a que normalmente chamamos "desejar" pode ser acompanhado por uma intentividade para o futuro mas não necessariamente para um tempo definido nele, embora muitas vezes o seja. Pode ser útil considerar que se pode usar, como sinônimo de "desejar", uma "ânsia esperançada" ou uma "ânsia sem esperança". A intentividade para o futuro em desejar não pode então ser sempre chamada uma antecipação. E em virtude da intentividade para um futuro sem necessariamente um evento definido, a forma de encontro chamada desejar também é como ter esperança. Não podemos ter esperança por um evento no passado, e não podemos desejar o passado diretamente5.

17. Muitas vezes é possível fazer avançar análises reflexivas considerando opostos. Desejar e ter esperança parecem não ter formas negativas distintamente opostas como acontece no caso de valoração positiva que tem desvaloração negativa, por exemplo, reprovação, e não gostar. Neste caso, esperança tem o seu oposto no desespero, que parece ser uma ausência de esperança. De modo semelhante, desejar tem como seu oposto a ausência de desejo; por exemplo, fico frio em relação a um Volkswagen Beetle6.

18. E quanto a acreditar? Porque eu não possuo os $182,000 que é correntemente o mínimo necessário para comprar um Porsche 911 novo, neste momento, isto é para mim uma impossibilidade de facto. Ainda assim, não é impossível eu vir a poder gozar o meu próprio Porsche 911, pois poderia ganhar na loteria e depois já poderia comprar um. Saber se é ou não possível para mim requer a determinação das condições necessárias. Mas é possível desejar sem a crença de que a coisa desejada é possível. Eu desejo viver para sempre mas acredito que é impossível. O mesmo é verdade em relação à esperança.

19. E que dizer acerca de conação e volição? Desejar pode realmente motivar ações, como a compra de bilhetes de loteria. A volição envolvida nestes encontros conativos ou práxicos é normalmente intentiva a meios, e pelo menos a um fim. O fim imediato de utilizar o meio de uma soma modesta de dinheiro para comprar o bilhete de loteria seria ter dinheiro suficiente para usar como meio, no final, para comprar o carro que desejo.

20. Apesar de desejar ser acompanhado por volição e experienciar, vale a pena repetir que o que predomina no desejar é a componente valorativa.

21. Há mais uma distinção que é importante fazer. Isto foi expresso por Husserl em termos de atos e processos mentais primária e secundariamente passivos. Para receber o modificador "acional", o meu professor Cairns preferia falar de "ações" em vez de "atos", e também preferia "automático" em vez de "passivo", também especificando processos mentais "secundariamente" assim como "primariamente automáticos". Divirjo de Cairns em dois aspetos em relação a estes termos. Eu também prefiro "automático", mas devido ao meu interesse na cultura, hábitos e tradições, coloco mais ênfase na automaticidade secundária do que na primária onde se constitui a natureza, incluindo animais humanos e não-humanos. E prefiro "operação" à "ação" de Cairns ou "ato" de Husserl porque acho importante distinguir entre operações ativas e passivas. Por exemplo, quando faço contas em relação ao meu extrato bancário e reflito sobre as operações que faço, descobri o meu ego, ou eu, ativamente envolvido, mas às vezes ouço música que me solicita, que me move, e uma reflexão sobre o meu eu nessa altura revela que está envolvido numa operação passiva.

22. Voltando ao desejar, por vezes descubro o que pode ser descrito como "Eu - desejo - um Porsche 911". Se me perguntassem que carro é que eu gostaria mesmo de ter, a minha resposta seria "Eu desejo um Porsche 911", e poderia depois encontrar reflexivamente o meu "eu" ativamente envolvido nessa operação de falar e, claro, ocupado pelo menos com o estado de fatos significado por essa frase que é intentado de forma vazia. Por outro lado, ao andar na rua pode acontecer que eu veja um carro destes passar e descobrir um desejar individual habitual ou secundariamente automático na minha vida mental de tal maneira forte que eu começo a envolver-me nele. E claro que o meu desejar um 911 é apenas um de muitos desejares habituais que adquiri e que se pode tornar operacional desta maneira.

23. Quanto à automaticidade primária, é possível que o desejo por coisas doces ou ambientes confortáveis, satisfação da sede, etc., sejam primariamente automáticos e até seja útil chamar-lhes instintivos. Que haja um tal desejar automático de, por exemplo, coisas doces sem que tenha ocorrido primeiro, por exemplo, o saborear de algo doce como o mel, eu não tenho a certeza. Mas o meu desejar pelo desfrute de um Porsche 911 é profundamente cultural. Aprendi de várias formas o que é um automóvel, o que é conduzir, as características distintivas de um magnífico Porsche 911, etc.

24. Em suma, podemos observar e analisar teoricamente de modo reflexivo processos mentais ou intentivos ou encontros do tipo habitualmente referidos (pelo menos em inglês) como "desejar". Uma subespécie proeminente de desejar é sensual, intentiva a tipos de bebida, comida, e sexo, mas desejar é mais alargado que isso, e usar algo como um objeto não sensual como exemplo pode ajudar a mostrar isso.

25. Desejar é um encontro no qual predomina uma posicionalidade afetiva positiva, e a coisa-enquanto-intentada nesse encontro tem um valor positivo. Ao contrário da maioria de outros tipos de encontro no qual predomina a valoração, por exemplo, "pretender algo" (wishing) e aprovação moral, desejar é mais como ter esperança de algo no sentido que não é diretamente intentivo a objectos ideais, passados ou presentes, mas apenas a um objeto futuro e pode até ser um objeto futuro sem uma data provável.

26. Ao contrário do que parece ser o caso no desejar por algo doce ou por conforto que pode ocorrer em automaticidade primária, desejar em automaticidade secundária, isto é, como hábito, é algo que é claramente aprendido e que se torna operacional em determinadas circunstâncias.

27. Finalmente, apesar de agora isto poder parecer problemático, desejar é discutido em psicologia tradicional e é relevante para a fenomenologia constitutiva principalmente enquanto parte de uma explicação de motivação e justificação de volição e ação. Mas, para além desses usos, também pode promover o desenvolvimento da capacidade para fazer análises reflexivas.

 

Referências

Cairns, D. (2013). The Egological Reduction. In Dorion Cairns, The Philosophy of Edmund Husserl (Lester Embree, Ed., pp. 109-118). Dordrecht: Springer.         [ Links ]

Embree, L. (2009). Dorion Cairns and Alfred Schutz on the Egological Reduction, In Hisashi Nasu, Lester Embree, George Psathas & Ilja Srubar (Eds), Alfred Schutz and his Intellectual Partners (UVK: Verlagsgesellschaft mbH.         [ Links ]

Husserl, E. (1913). Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie (Husserliana 3). Dordrecht: Kluwer Academic.         [ Links ]

Husserl, E. (1931). Cartesianische Meditationen (Husserliana 1). Dordrecht: Kluwer Academic.         [ Links ]

 

 

Recebido em 15.09.13
Aceito em 08.12.13

 

 

1 NT: Há uma dificuldade na tradução de termos centrais neste texto. Em inglês, há uma distinção entre "desiring" e "wishing", enquanto que em português ambos são "desejar": o desejo como sentimento de querer possuir algo - que é o tema aqui em discussão -, ou o desejo que se faz ao ver uma estrela cadente - para nós, em ambos os casos o termo é exatamente o mesmo. Tentei distinguir, mas infelizmente sem muita elegância, traduzindo "wishing" por "pretender algo" seguido do termo em Inglês em parênteses. ("Querer algo" e "gostar" é utilizado pelo autor de forma distinta e independente tanto aqui como noutros textos e por isso evitei usá-lo como tradução de "wishing"). Tradução de Inês Pereira Rodrigues.
2 Consultado online em 7/1/13.
3 Incidentalmente, Schutz pensava que Husserl operava as epoché egológicas e transcendentais simultaneamente.
4 Tentei confirmar as minhas recordações com uma passagem de Cairns e o melhor que encontrei na sua Nachlaß até agora foi o seguinte: "Uma consequência da epoché fenomenológica-psicológica é a redução fenomenológica-psicológica à sua pureza psíquica. Uma consequência paralela é que o ego psíquico que reflete coloca-se numa atitude fenomenológica-psicológica em relação à sua pureza psíquica" (Cairns Nachlaß, p. 5350). Quer de forma consciente ou inconsciente, o meu professor parece ter seguido Husserl no uso do termo "redução" como a forma abreviada de "epoché, redução, e purificação" (mais recentemente, no processo de estudar apontamentos de alunos do seminário de Cairns sobre as Ideen, descobri uma afirmação do meu professor dizendo que Husserl deixara de usar o termo "puro" nas suas obras mais tardias, mas Cairns não deu nenhuma razão para esta mudança).
5 Os meus colegas informam-me que em Castelhano, Catalão e Português não há diferença entre desejar e "pretender algo" (wishing) e que por isso nas traduções são necessárias notas de tradutores, etc. Estou ansioso por perguntar a um colega alemão se acontece o mesmo, e estou particularmente curioso acerca das línguas asiáticas.
6 Um amigo meu sugeriu que há uma forma negativa de desejar que é evidente quando consideramos a oposição entre atração e aversão. Não há dúvida que eu considero alguma comida apetecível e comida estragada repulsiva, e estes têm, de fato, valores positivos e negativos nas coisas-enquanto-intentadas, mas parece-me que isto é mais um caso da espécie sensual de desejar e não desejar de modo geral como parece ser reconhecido na definição do Oxford English Dictionary. Eu não encontro na minha vida mental uma aversão a qualquer marca ou modelo automóvel, mas apenas um desejo maior ou mais fraco e, no caso extremo do Beetle, um desejar mínimo senão inexistente ou neutro.